Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0394/17
Data do Acordão:06/27/2018
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:ARAGÃO SEIA
Descritores:TAXA
REGULAMENTO
Sumário:O Regulamento Municipal de Águas Residuais do Concelho da Covilhã n.º 26/2011 não é desconforme com as leis habilitantes.
Nº Convencional:JSTA000P23450
Nº do Documento:SA2201806270394
Data de Entrada:03/30/2017
Recorrente:ADC - ÁGUAS DA COVILHÃ, EM
Recorrido 1:A... SA
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: Acordam os juízes da secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo:

ADC – ÁGUAS DA COVILHÃ, EM, inconformada, interpôs recurso da decisão do Tribunal Administrativo e Fiscal de Castelo Branco (TAF de Castelo Branco) datada de 27 de Janeiro de 2017, que, julgou procedente a impugnação deduzida por A…………, SA contra o indeferimento da reclamação graciosa que havia deduzido contra o acto de liquidação no valor total de € 5.991,55 relativo ao consumo de água e taxas de saneamento, resíduos etc, anulando o acto de liquidação impugnado, na parte a que se refere à tarifa de saneamento, com a consequente restituição do montante indevidamente pago, acrescido de juros indemnizatórios.

Alegou, tendo apresentado conclusões, como se segue:
1. A recorrente não se conforma com a sentença do tribunal a quo que julgou procedente a impugnação judicial.
2. Desde 2009 que as atividades de abastecimento de água às populações de saneamento de águas residuais urbanas e de gestão de resíduos urbanos estão regulados no Decreto-Lei n° 194/2009 de 20 de Agosto, tendo este revogado expressamente os decretos-Lei nº 379/93 e 207/94.
3. O Dec. Lei nº 194/2009, o qual define muito bem quais os sistemas que estão em causa e os seus componentes, sendo certo que no sistema de águas residuais estão presentes os componentes de recolha, drenagem e tratamento de águas residuais.
4. Uma estrutura complexa que integra um sistema de drenagem e um sistema de tratamento ou, como explicita o Dec. Lei nº 379/93, um serviço de recolha e rejeição de efluentes e um serviço de tratamento.
5. Em nenhuma lei se fixa um serviço de drenagem e tratamento.
6. Na verdade, tal não existe na realidade: a rede de drenagem é uma, fisicamente distinta, constituída por uma rede de coletores e tubagens enterrados, o sistema de tratamento é outro, também fisicamente distinto, composto por estações de tratamento (ETAR,s).
7) O legislador quis, efetivamente, referir-se a todos os serviços prestados pela entidade pública.
8. Em todos os normativos o legislador se referiu expressamente a todos os serviços prestados aos utentes, nomeadamente, os que têm que ver com a condução das águas residuais (rede de drenagem) e os que têm a ver com o tratamento das águas residuais.
9. Deste quadro legal, não pode o intérprete saltar para a conclusão que tira o Tribunal a quo a saber, de que na lei “…apenas se contemplam três distintas prestações de serviços…”
10. Impõem os n°2 e 3 do art. 9° do Código Civil que não pode ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, sendo que na fixação do sentido e do alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados.
11. O Regulamento de Águas Residuais quis explicitar a composição da tarifa de saneamento.
12. E conforma-se com a lei habilitante.
13. Portanto, o Regulamento de Águas Residuais do Concelho da Covilhã, publicado no DR. 2ª Série de 12 de janeiro de 2011 é absolutamente legal.
14. A recorrente cobra ao utilizador a contrapartida pela existência de uma rede de canalizações “devidamente conservada”; cobra a contrapartida pela utilização da rede de drenagem de esgotos; cobra ao utilizador a compensação pelas despesas feitas pela entidade gestora para tratar o esgoto (estações de tratamento, produtos de tratamento).
15. Todos os serviços são perfeitamente dissociáveis.
16. Depois de cumprir o seu dever de máxima informação, a recorrente procurou simplificar a leitura do “tarifário” e da factura.
17. Da matéria de facto dada como provada consta que a tarifa de saneamento, uma tarifa de saneamento, comporta a drenagem e o tratamento.
18. E do verso da fatura consta “tarifa de saneamento”.
19. Portanto, a ora recorrente nunca cobrou duas tarifas de saneamento, cobrou a tarifa de saneamento onde estão agregados os serviços de drenagem e de tratamento.
20. Ao decidir no sentido que o fez, a douta sentença do Tribunal a quo fez uma deficiente interpretação dos art. 2º nº 1 al. b), nº 4 e 11º-A do Decreto-Lei nº 194/2009, dos art. 32º e 33º do Regulamento de Águas Residuais do Concelho da Covilhã, publicado no DR. 2ª Série de 12 de Janeiro de 2011 e violou o nº 2 e 3 do art. 9º do Código Civil.

A recorrida contra-alegou tendo concluído:
1.ª O objeto do presente recurso reconduz-se à questão de direito discutida na sentença recorrida, que consiste em determinar se o Regulamento Municipal de águas Residuais na parte relativa a tarifas variáveis padece de ilegalidade.
2.ª O Tribunal a quo decidiu e bem que “no âmbito do sistema de saneamento de águas residuais, apenas pode ser cobrada uma única tarifa [variável] pelo serviço prestado [saneamento] que, forçosamente, englobará as fases de recolha, drenagem, elevação, tratamento e rejeição de águas residuais, não se justificando que, para efeitos de tributação, qualquer uma destas fases possa ser individualizada como uma específica prestação de serviços, da mesma forma que as diversas fases dos demais sistemas municipais [de abastecimento de água e gestão de resíduos sólidos] não são autonomizáveis” concluindo que “as normas previstas nos artigos 33.º n.° 2 e 3, 37.° e 38.º, do Regulamento de Águas Residuais da Covilhã ao preverem a criação de duas taxas como contrapartida remuneratória pela realização da mesma actividade de saneamento são, pois, ilegais, porquanto desconformes com os diplomas enformadores da actividade em causa, bem como com o artigo 16°, n.° 3 da Lei n.° 2/2007, vigente à data da elaboração do aludido regulamento, devendo, por isso, serem desaplicadas ao caso em concreto”.
3.ª Atendendo ao critério formal da fonte da obrigação, que é a lei, ao regime económico, que é de monopólio, à indispensabilidade do serviço e à sua natureza comutativa, a tarifa ou preço do serviço de saneamento tem a natureza de taxa, receita tributária.
4.ª Sendo uma taxa, a tarifa de saneamento é uma receita de natureza tributária à qual são integralmente aplicáveis todas as normas que conformam a criação de contribuições financeiras a favor de entidades públicas e habilitam a sua sindicância.
5.ª O Decreto-Lei n.° 226-A/2007, o Decreto-Lei n.° 207/94 e o Decreto-Lei n.º 194/2009 consideram todos eles, de forma igual, a prestação pelas entidades gestoras responsáveis de três e apenas três serviços públicos integrados: (i) captação, tratamento e distribuição de água para consumo público; (ii) recolha, tratamento e rejeição de efluentes e (iii) recolha e tratamento de resíduos sólidos.
6.ª A divisão destes três serviços públicos, encontra-se pois, legalmente conformada nos citados diplomas, não sendo possível destacar qualquer uma das oito atividades ali indicadas (captação/ tratamento/ distribuição de água para consumo público/ recolha/ tratamento/ rejeição de efluentes/recolha/tratamento de resíduos sólidos) como atos tributáveis autónomos.
7.ª Na Recomendação n.° 1/2009 do então Instituto Regulador de Águas e Resíduos (disponível em www.ersar.pt) foi expressamente afirmado que “em virtude da aplicação das tarifas de saneamento, a entidade gestora deve ficar obrigada a executar as seguintes actividades, não as devendo facturar de forma específica (...)
b) Recolha e encaminhamento de águas residuais; (...)” (cfr. n.º 3.3.1.1.2).
8.ª O Regulamento de águas residuais aprovado em Assembleia Municipal de 10.12.2010 criou, nos seus artigos 32.° n.° 1, 33.° n.ºs 2 e 3, 37.° e 38.° n.°s 1, 2 e 3, TRÊS TAXAS de saneamento: uma fixa de disponibilidade do serviço e DUAS TAXAS VARIÁVEIS uma de drenagem de esgotos e outra de tratamento de esgotos, cada uma incidindo sobre o volume de água faturado.
9.ª A Recorrida não contesta a taxa fixa de disponibilidade.
10.ª Não existindo LEI habilitante que permita a duplicação da Taxa de Saneamento nas duas taxas variáveis efetivamente cobradas de i) “Tarifa de drenagem” e (ii) “Tarifa de tratamento”, as normas que o determinam, ínsitas nos artigos 32.º n.° 1, 33.° n.°s 2 e 3. 37.º e 38.° n.°s 1, 2 e 3 do Regulamento de águas residuais são ilegais.
11.ª O Regulamento aprovado em Assembleia Municipal de 10.12.2010 revela-se nulo e de nenhum efeito por não respeitar as respetivas leis conformadoras quanto à incidência tributária a saber: o Decreto-Lei n.º 226-A/2007, de 31 de maio, o Decreto-Lei n.° 207/94, de 6 de agosto revogado pelo Decreto-Lei n.° 194/2009 e a Lei n.º 2/2007, de 15 de Janeiro, entretanto também revogado pela Lei n.° 73/2013, de 3 de setembro.
12.ª Se as leis habilitantes não preveem a duplicação da taxa variável de saneamento em (i)”Tarifa de drenagem” e (ii) “Tarifa de tratamento”, por força do princípio constitucional da hierarquia das leis não poderia o Regulamento de Águas residuais fazê-lo, posto que “nenhuma lei pode criar outras categorias de actos legislativos ou conferir a actos de outra natureza o poder de, com eficácia externa, interpretar, integrar, modificar, suspender ou revogar qualquer dos seus preceitos.”, sob pena de ser manifestamente inconstitucional (cfr. artigo 112.° n.° 5 da Constituição da República Portuguesa).
13.ª A fatura que titula a liquidação Recorrente não discrimina as duas taxas variáveis de drenagem de esgotos e de tratamento de esgoto previstas nos artigos 37.º e 38.º do regulamento, nem apresenta o seu valor unitário tal como o não faz o tarifário publicado (cfr. Doc. n.°3), desrespeitando aquelas normas regulamentares.
14.ª A Recorrente liquidou duas taxas variáveis de “saneamento” por duas vezes sobre o valor total do consumo de água (100%), contrariando a Recomendação n.° 1/2009 do IRAR que aconselha a considerar-se que o volume de águas residuais recolhidas corresponde ao produto da aplicação de um coeficiente de recolha de referência de âmbito nacional, correspondente ao valor de 0,9 ao volume de água consumido (ou seja, uma única taxa variável sobre 90% da água faturada).
15.ª Não apresentando fundamento regulamentar válido por o Regulamento de Águas Residuais ser nulo e de nenhum efeito, o ato impugnado enferma de nulidade por falta de fundamento legal.

O Ministério Público notificado, pronunciou-se pela improcedência do recurso.

Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

Na sentença recorrida deu-se como assente a seguinte factualidade concreta:
A) A ADC - Águas da Covilhã, EM., é uma empresa pública municipal, constituída em 03/03/2006, cujo objecto consiste, por delegação do Município da Covilhã, além do mais, na gestão e exploração dos serviços municipais de abastecimento de água, de drenagem e tratamento de águas residuais urbanas.
B) A impugnante é titular de contrato de fornecimento de água junto da ADC - Águas da Covilhã E.M., sendo cliente, do tipo comercial, com o n.° 1106138-001.
C) Do tarifário da ADC - Águas da Covilhã, E.M., em vigor a partir do dia 20/02/2013, consta, além do mais, o seguinte:
CONSUMIDORES NÃO DOMÉSTICOS
Tarifas Variáveis (por m³)
Água
Saneamento (Drenagem
e tratamento)
Resíduos
Sólidos
Comercial
Industrial
Obras e Rega
IPSS e Outros
Estado
2,19€
3,21€
3,21€
1,28€
3,50€
2,48€
2,48€
0,00€
2,48€
2,48€
1,24€
1,24€
1,24€
1,24€
2,48€

D) A impugnante foi notificada da factura n.° 0751402/21002465, emitida, em 2014-02-05, pela ADC - Águas da Covilhã, E.M., relativa ao consumo do período de 2014-01-03 a 2014-02-03, com débito a partir de 2014-02-30, no valor total a pagar de 5.991,55€, do qual o montante de 2.969,71€ corresponde a “Saneamento”.
E) O valor liquidado a título de “Saneamento” encontra-se discriminado, no verso da factura mencionada na alínea anterior, do seguinte modo:

Descrição
Explicação
Faturado
Valor Unit
Valor
Saneamento
Tarifa Saneamento
1195-0x(32dx12/365d)
1195,00
2,480000
2963,60€
Tarifa Disp Saneamento
6,110000x1,0 Meses
1,00
6,110000
6,11€

F) O débito da factura mencionada na alínea D) foi pago pela impugnante.
G) Em 08/04/2014, a impugnante apresentou junto da ADC da Covilhã, E.M., reclamação graciosa contra o acto de liquidação da tarifa de saneamento a que se reporta a factura mencionada em D).
H) Pelo ofício n.° 175, datado de 05/05/2014, foi a impugnante notificada da proposta de indeferimento da reclamação graciosa mencionada na alínea anterior, constando ainda do referido oficio o seguinte: «Fica ainda V Exa. notificada para, querendo, no prazo de 10 dias úteis se pronunciar por escrito sobre a respectiva proposta de decisão. Na falta de resposta, a proposta de decisão converte-se em decisão definitiva, não havendo lugar a nova notificação».
I) A presente impugnação foi remetida, por site, em 07/07/2014.
Nada mais se deu como provado.

Há agora que apreciar o recurso que nos vem dirigido.
Como a recorrida bem refere nas conclusões das suas contra-alegações, o objecto do presente recurso reconduz-se à apreciação do julgamento feito na sentença recorrida quanto à questão de saber se o Regulamento Municipal de Águas Residuais do Concelho da Covilhã n.º 26/2011, aprovado, em 10/12/2010, pela Assembleia Municipal da Covilhã e publicado em Diário da República, 2.ª Série, no dia 12/01/2011 (doravante Regulamento), na parte relativa a tarifas variáveis, padece de ilegalidade.
Já vimos que enquanto a recorrida concorda com o julgamento do TAF de Castelo Branco, a recorrente opõe-se a tal julgamento por entender que o mesmo viola, no essencial, o disposto no artigo 9º, n.ºs. 2 e 3 do Código Civil, por se ter feito na sentença recorrida uma má leitura de tal Regulamento.
No essencial, decidiu-se na sentença recorrida, após se ter feito uma extensa reprodução das normas legais com interesse para a resolução da questão:
Aqui chegados, importa salientar que em qualquer dos regimes jurídicos constantes dos diplomas atrás mencionados apenas se contemplam três distintas prestações de serviços, a saber: i) abastecimento público de água; ii) saneamento de águas residuais e iii) recolha e tratamento de resíduos sólidos.
O que de resto está em consonância com o que dispunha o artigo 16.°, n.° 3, alíneas a), b) e c), da Lei n.º 2/2007, de 15/01 [correspondente ao artigo 21.°, n.º 3, alíneas a), b) e c), da actual Lei n.º 73/2013, de 3/10], segundo o qual: «Os preços e demais instrumentos de remuneração a cobrar pelos municípios respeitam, designadamente, às actividades de exploração de sistemas municipais ou intermunicipais de: a) Abastecimento público de água; b) Saneamento de águas residuais; c) Gestão de resíduos sólidos;
Sendo certo que esta é a específica norma legal que habilita os municípios a criarem as taxas municipais correspondentes à contrapartida remuneratória pela prestação dos referidos serviços públicos, as quais devem estar em conformidade com o regime geral das taxas das autarquias locais [artigo 15.º da Lei n.º 2/2007] e com as demais disposições legais que regulamentam a actividade.
Do exame às referidas normas é líquido afirmar que o regulamento em que assenta a liquidação impugnada consagra três taxas/tarifas quanto ao serviço de saneamento, a saber:
1) Tarifa de disponibilidade, plasmada no artigo 36.°, de montante fixo, com periodicidade mensal, incidente, como deriva da sua denominação, da disponibilidade do sistema geral de águas residuais;
2) Tarifa de drenagem de esgotos, estatuída no artigo 37.°, de montante variável, a pagar por todos os utilizadores do sistema, em função do consumo de água facturado, relativamente aos encargos com a actividade desenvolvida no âmbito da exploração do sistema público de drenagem de águas residuais [vide artigo 33.°, n.º 2];
3) Tarifa de tratamento de esgotos, prevista no artigo 38.°, também de montante variável, em função do consumo de água facturado, relativo ao tratamento das águas residuais.
Como é afirmado pela impugnante, esta não coloca em causa a tarifa de disponibilidade.
Estão, pois, em causa, as tarifas de drenagem de esgotos e a de tratamento de esgotos que, no entender da impugnante, correspondem a uma duplicação de taxas sem que exista qualquer fundamento legal para tal.
E, adiante-se, afigura-se-nos assistir razão à impugnante.
É que, efectivamente, os diplomas anteriormente transcritos, como já dissemos, prevêem apenas a existência de três distintas prestações de serviços: abastecimento público de água; saneamento de águas residuais e recolha; e tratamento de resíduos sólidos.
Sendo certo que no saneamento das águas residuais está abrangida a recolha, tratamento e rejeição de águas residuais, tal como sobressai do artigo 1.° do Decreto-Lei n.º 379/93 e do artigo 4.°, alínea zz), ponto ii) da Lei n.° 58/2005, de 29/12 [Lei da Água] ou, no dizer do artigo 2.°, n.º 1, alínea b), do Decreto-Lei n.º 194/2009, a recolha, drenagem, elevação, tratamento e rejeição de águas residuais urbanas.
Deste modo, julgamos que, no âmbito do sistema de saneamento de águas residuais, apenas pode ser cobrada uma única tarifa [variável] pelo serviço prestado [saneamento] que, forçosamente, englobará as fases de recolha, drenagem, elevação, tratamento e rejeição de águas residuais, não se justificando que, para efeitos de tributação, qualquer uma destas fases possa ser individualizada como uma específica prestação de serviços, da mesma forma que as diversas fases dos demais sistemas municipais [de abastecimento de água e gestão de resíduos sólidos] não são autonomizáveis.
Não se vislumbra, pois, fundamento legal que permita a criação, por via regulamentar, de duas taxas/tarifas variáveis como contrapartida remuneratória pela prestação do serviço de saneamento de águas residuais.
Interpretação que, de resto, está em consonância com a Recomendação n.º 1/2009, do Instituto Regulador de Águas e Resíduos [IRAR] - actualmente Entidade Reguladora dos Serviços de Águas e Resíduos [ERSAR] -, que refere no ponto 3.1.1., n.º 1, que os tarifários de abastecimento, saneamento e gestão de resíduos devem compreender uma componente fixa e uma componente variável, acrescentando no n.º 2, desse mesmo ponto que, para além das tarifas de abastecimento, saneamento e resíduos identificadas na Recomendação, não devem ser exigidas ao utilizador final quaisquer outras taxas, tarifas, preços ou prestações com o mesmo fundamento.
Sendo que a única segregação a que o Regulador alude na Recomendação n.º 2/2010 reporta-se à distinção dos três serviços autónomos de abastecimento de água, saneamento de águas residuais e de gestão de resíduos sólidos e não de autonomização de cada uma das fases dos respectivos sistemas.
Do exposto decorre que as normas previstas nos artigos 33.°, n.º 2 e 3, 37.° e 38.°, do Regulamento de Águas Residuais da Covilhã ao preverem a criação de duas taxas como contrapartida remuneratória pela realização da mesma actividade de saneamento são, pois, ilegais, porquanto desconformes com os diplomas enformadores da actividade em causa, bem como com o artigo 16.°, n.º 3 da Lei n.º 2/2007, vigente à data da elaboração do aludido regulamento, devendo, por isso, serem desaplicadas ao caso em concreto.
Por força da desaplicação das referidas normas regulamentares ao caso concreto, resulta a falta de norma de incidência tributária, pelo que terá que se concluir pela anulabilidade do acto de liquidação impugnado, por vício de violação de lei, por erro sobre os pressupostos, na parte em que se refere à "Tarifa Saneamento".

O TAF de Castelo Branco concluiu pela ilegalidade do dito Regulamento porque o mesmo previa, em desacordo com a lei habilitante, a existência de duas taxas como contrapartida remuneratória pela realização da mesma actividade de saneamento que, naturalmente, seriam simultaneamente pagas pelos consumidores, relativamente ao mesmo período temporal.

Já sabemos que as taxas em causa são as que resultam dos artigos 33º, 37º e 38º do referido Regulamento e que têm o seguinte teor:
Artigo 33.º
Tarifas e preços a cobrar pela ADC
I - A tarifa da disponibilidade de serviço incide sobre a valia de disponibilidade de um sistema geral de águas residuais devidamente conservado em função do calibre do contador de água e da tipologia de consumo.
2 - Para fazer face aos encargos com a actividade desenvolvida no âmbito da exploração do sistema público de drenagem de águas residuais é devida a tarifa de drenagem de esgotos, em função da tipologia de consumo.
3 - Para fazer face às despesas com o tratamento de esgoto, a ADC cobrará a respectiva tarifa em função da tipologia de consumo.
Artigo 37.º Tarifa de drenagem
A tarifa de drenagem de esgotos respeita ao valor mensal a pagar por todos os utilizadores do sistema, e é reportada ao valor do consumo de água facturado.
Artigo 38.º Tarifa de tratamento
1 - A tarifa de tratamento de esgoto respeita aos encargos relativos ao tratamento das águas residuais.
2 - A tarifa referida no n.º 1 deste artigo será calculada com base no valor do consumo de água facturado.
3 - As tarifas de saneamento serão cobradas conjuntamente com a tarifa de consumo de água e serão indissociáveis desta, face à relação proporcional existente entre a água consumida e a água residual rejeitada.

Também nós sabemos, porque assim é, que as normas habilitantes deste Regulamento não permitem que sejam fixadas duas tarifas -taxas/preços- distintas e simultâneas que recaiam sobre o mesmo serviço prestado pelo município ou concessionário (tratando-se como se trata de um serviço prestado ao público em geral, e a cada um em particular, tendo como contrapartida o pagamento do respectivo preço que se consubstancia na taxa fixada, não faria sentido que se pudesse cobrar pelo serviço prestado duas vezes o mesmo valor ou diferentes valores, cfr. entre outros o ac. datado de 27/06/2012, rec. n.º 0428/12).

Na sentença recorrida invocaram-se as seguintes normas para concluir pela ilegalidade do Regulamento:
- do Decreto-Lei n.º 379/93, de 5 de Novembro, que tem por objecto o regime de exploração e gestão dos sistemas multimunicipais e municipais de captação, tratamento e distribuição de água para consumo público, de recolha, tratamento e rejeição de efluentes e de recolha e tratamento de resíduos sólidos [cf. artigo 1.°], tal diploma estatui, com interesse para o caso versado, o seguinte:
Artigo 6.°
Princípio geral
A exploração e a gestão dos sistemas municipais pode ser directamente efectuada pelos respectivos municípios e associações de municípios ou atribuída, em regime de concessão, a entidade pública ou privada de natureza empresarial, bem como a associações de utilizadores.
Artigo 9.°
Objecto da concessão
1 - O contrato de concessão tem por objecto:
a) A exploração e a gestão dos serviços públicos municipais de captação, tratamento e distribuição de água para consumo público;
b) A exploração e a gestão de serviços públicos de recolha, tratamento e rejeição de efluentes, através de redes fixas;
c) A exploração e a gestão dos serviços públicos municipais de recolha e tratamento de resíduos sólidos;
d) A exploração e a gestão conjunta dos serviços previstos nas alíneas a), b) e c).
2 - A exploração e a gestão dos serviços referidos no número anterior abrangem a construção, extensão, reparação, renovação, manutenção de obras e equipamentos, e respectiva melhoria.
Artigo 13.° Concessionária
2 - A concessionária, procedendo aprovação pelo concedente, tem direito a fixar, liquidar e cobrar uma taxa aos utentes, bem como a estabelecer o regime de utilização, (...)
Artigo 15.° Taxas
1 - As taxas a cobrar aos utentes pela concessionária respeitam à prestação de cada um dos serviços previstos no n.º 1 do artigo 9.°, podendo o contrato de concessão autorizar a cobrança de taxa única pela exploração conjunta dos serviços, no caso de ambos integrarem o objecto de concessão.
- do Decreto-Lei n.º 207/94, de 6 de Agosto, que tem por objecto os sistemas de distribuição pública e predial de água e de drenagem pública e predial de águas residuais [cf. artigo 1.º], estipula, com relevo, o seguinte:
Artigo 2.°
Âmbito
O presente diploma aplica-se a todos os sistemas, sem prejuízo das normas especificas aplicáveis aos sistemas multimunicipais e municipais de captação, tratamento e distribuição de água para consumo público, de recolha, tratamento e rejeição de efluentes e de recolha e tratamento de resíduos sólidos, quando concessionados.
Artigo 4.° Entidade gestora
1 - Nos sistemas públicos deve existir uma entidade gestora responsável pela sua concepção, construção e exploração.
2 - A responsabilidade das actividades referida no número anterior cabe, nos termos da lei, ao Estado, aos municípios e às associações de municípios, podendo ser atribuída a outras entidades em regime de concessão.
3 - Cabe à entidade gestora:
a) Promover a elaboração de um plano geral de distribuição de água e de drenagem de águas residuais;
c) Promover o estabelecimento e manter em bom estado de funcionamento e conservação os sistemas públicos de distribuição de água e de drenagem e desembaraço final de águas residuais e de lamas;
Artigo 11.º
Fornecimento de água e recolha de águas residuais
A entidade gestora é obrigada a fornecer água potável e a recolher águas residuais, de acordo com o plano geral previsto na alínea a) do n.º 3 do artigo 4.°.
-Entretanto, os diplomas citados viriam a ser revogados pelo Decreto-Lei, nº 194/2009, de 20 de Agosto [vide artigo 79.°, n.º 1], que veio estabelecer o [novo] regime jurídico dos serviços municipais de abastecimento público de água, de saneamento de águas residuais urbanas e de gestão de resíduos urbanos [cf. artigo 1.º], do qual se destacam as seguintes normas:
Artigo 2.° Âmbito
1 - Os serviços municipais de abastecimento público de água, de saneamento de águas residuais urbanas e de gestão de resíduos urbanos abrangidos pelo presente decreto-lei compreendem, no todo ou em parte:
a) A gestão dos sistemas municipais de captação, elevação, tratamento, adução, armazenamento e distribuição de água para consumo público, bem como a gestão de fontanários não ligados à rede pública de distribuição de água que sejam origem única de água para consumo humano;
b) A gestão dos sistemas municipais de recolha, drenagem, elevação, tratamento e rejeição de águas residuais urbanas, bem como a recolha, o transporte e o destino final de lamas de fossas sépticas individuais;
c) A gestão dos sistemas municipais de recolha, transporte, armazenagem, triagem, tratamento, valorização e eliminação de resíduos urbanos, bem como as operações de descontaminação de solos e a monitorização dos locais de deposição após o encerramento das respectivas instalações.
Artigo 6.° Entidade titular dos serviços
1 - Sem prejuízo do regime específico dos serviços de titularidade estatal, objecto de legislação própria, a gestão dos serviços municipais de abastecimento público de água, de saneamento de águas residuais urbanas e de gestão de resíduos urbanos é uma atribuição dos municípios e pode ser por eles prosseguida isoladamente ou através de associações de municípios ou de áreas metropolitanas, mediante sistemas intermunicipais, nos termos do presente decreto-lei.
Artigo 7.°
Entidade gestora dos serviços e modelos de gestão
1 - A entidade gestora dos serviços municipais é definida pela entidade titular, de acordo com um dos seguintes modelos de gestão:
c) Delegação do serviço em empresa do sector empresarial local;
Artigo 17.° Delegação dos serviços
1 - Um município, uma associação de municípios ou uma área metropolitana podem delegar os respectivos serviços descritos no artigo 2.º em empresa do sector empresarial local, abreviadamente designada por empresa municipal, cujo objecto compreenda a gestão dos mesmos.
2 - A delegação referida no número anterior inclui a operação, a manutenção e conservação do sistema descritos no n.º 1 do artigo 2.º e pode incluir ainda a construção, renovação e substituição das infra-estruturas, instalações e equipamentos, na totalidade ou em parte do território da entidade delegante, sem prejuízo do n.º 1 do artigo 4.º.
3 - A delegação referida no n.º 1 é efectuada através da celebração de contrato de gestão delegada entre o município, a associação de municípios ou a área metropolitana e a empresa municipal delegatária.
Artigo 23.º Receitas tarifárias
1 - As receitas a aplicar pela empresa municipal delegatária são definidas no contrato de gestão delegada em vigor, expressas a preços constantes e subsequentemente actualizadas com base na taxa de inflação, devendo a entidade delegante ratificar o seu cálculo.
CAPÍTULO VII
Relações com os utilizadores
Artigo 62.º Regulamento de serviço
1 - As regras de prestação do serviço aos utilizadores constam do regulamento de serviço, aprovado pela entidade titular que deve conter, no mínimo, os elementos estabelecidos por portaria a aprovar pelo membro do Governo responsável pela área do ambiente.
2 - Quando os serviços sejam objecto de delegação ou concessão, a proposta de regulamento de serviço é elaborada pela entidade gestora, a apresentar à entidade titular no prazo máximo de um ano a contar da assinatura do contrato de gestão delegada ou de concessão.
3 - A entidade titular promove um período de consulta pública do projecto de regulamento de serviço, de duração não inferior a 30 dias úteis, que deve ser disponibilizado ao público no sítio da Internet da entidade gestora, bem como nos locais e publicações de estilo.
4 - A entidade reguladora emite parecer sobre a proposta de regulamento de serviço, que deve ser solicitado pela entidade titular, durante o período de consulta pública.
5 - O regulamento de serviço e respectivas alterações são publicadas na 2.ª Série do Diário da República, devendo a entidade gestora do serviço afixá-lo em local visível nos respectivos serviços de atendimento, assim como no respectivo sítio de Internet.
6 - A entidade gestora deve ainda informar os utilizadores da data de publicação do regulamento de serviço no Diário da República e da possibilidade da sua consulta através de comunicação escrita e individual, a qual pode constar do contrato de fornecimento ou de recolha, de facturas ou qualquer outro meio.
7 - Até à entrada em vigor do regulamento de serviço proposto é aplicável o regulamento existente em tudo quanto não contrarie as condições definidas no contrato de gestão delegada ou de concessão.
8 - Compete à entidade gestora fiscalizar o cumprimento das normas constantes do regulamento de serviço relativas aos utentes e instruir os eventuais processos de contraordenação aí previstos, competindo à entidade titular a decisão de aplicação aos utilizadores das coimas a que haja lugar.
Artigo 80.º
Aplicação no tempo
1 - As disposições do presente decreto-lei são aplicáveis às entidades gestoras de serviços municipais em gestão directa ou delegada dois anos após a data da sua publicação, excepto as constantes do capítulo vii e as respeitantes à recolha de informação sobre a caracterização geral do sector e a caracterização específica das entidades gestoras, as quais são aplicáveis a estas entidades desde a entrada em vigor do presente decreto-lei.
2 - Os contratos de concessão existentes e os regulamentos de serviço vigentes no momento da entrada em vigor do presente decreto-lei devem ser adaptados ao mesmo no prazo de três anos após a data da sua publicação.
Artigo 81.º
Entrada em vigor
O presente decreto-lei entra em vigor em 1 de Janeiro de 2010.»

Em decorrência da interpretação que o tribunal recorrido fez destes preceitos legais concluiu que não era legalmente admissível a segregação da dita taxa de saneamento em diversas taxas em função das diversas etapas do processo de eliminação das águas residuais e respectivas lamas.
Como bem se percebe da leitura das normas do Regulamento que dispõem sobre a matéria não estamos perante uma situação de duplicação de custos para um mesmo serviço prestado ou a prestar, ou seja, não se encontra prevista a possibilidade de cobrança de diferentes taxas, no mesmo período de tempo, relativamente ao mesmo serviço que está a ser prestado.
Efectivamente a decomposição da taxa de saneamento, em taxa fixa de disponibilidade, taxa variável de drenagem de esgotos e taxa variável de tratamento de esgotos, resulta directamente das normas anteriormente citadas do Regulamento e, mais especificamente, do n.º 3 do artigo 38º, que se refere a essas 3 taxas como “taxas de saneamento”.
Não se mostra prevista a existência de duas taxas diferentes que incidem sobre o mesmo serviço que é prestado aos munícipes, existe sim uma decomposição da usualmente designada taxa de saneamento em 3 diferentes taxas, uma fixa e duas variáveis, sendo que estas duas foram designadas pelo nome da fase da operação de saneamento que visam abranger, apesar disso só em aparência ganham autonomia entre si.
E tanto assim é, que acabou por ser fixado, relativamente a estas duas taxas variáveis, um valor comum de 2,48€, cfr. al. c) do probatório, designando-se tal taxa como tarifa de saneamento, assim sendo facturado, em cumprimento do disposto no DL n.º 114/2014, de 21.07, bem como em cumprimento do ponto 3.3.1.1.2. da Recomendação n.º 01/2009, valor este, praticamente coincidente com o valor que anteriormente à data da entrada em vigor deste Regulamento era cobrado, tal como refere a recorrida nos artigos 41º e 42º da p.i., relativamente à parte variável do serviço de saneamento.
Não há dúvida, assim, que nem o Regulamento previu a duplicação de cobrança do serviço de saneamento prestado, nem procedeu à criação de duas taxas diferentes em desconformidade com as normas habilitantes, nem tal serviço se encontra a ser efectivamente facturado em dobro relativamente ao mesmo período.
A decomposição regulamentar da taxa de saneamento variável, pelo que se percebe, ocorre como forma de facilitar o seu cálculo e de apresentar perante os interessados a sua composição e justificação da mesma, para que se perceba a razão de ser da sua cobrança. E tanto assim é que a mesma, como já vimos, aparece facturada como uma única taxa de saneamento variável, sendo aí devidamente explicada a sua composição e valores parcelares.
Na verdade, só esta interpretação das normas do Regulamento respeita as regras de interpretação das leis previstas no artigo 9º do Código Civil, nomeadamente o elemento gramatical, bem como o elemento racional, uma vez que facilmente se apreende e compreende que o sentido e alcance dessas mesmas normas, que prevêem tais taxas, se destinam a dar cumprimento às normas habilitantes que permitem fixar uma contrapartida pelo serviço de saneamento prestado aos munícipes.
Aliás, e de acordo com a dita Recomendação n.º 01/2009 (Recomendação Tarifária) do IRAR, hoje ERSAR, se, como se refere na sentença recorrida, é desejável que seja fixada uma única taxa pelo serviço de saneamento, é sempre possível a entidade competente -a entidade titular do sistema- decidir de modo diferente tal como resulta do ponto 3.1.5.1. da dita Recomendação, desde que faça constar da deliberação que aprova os tarifários dos serviços de águas e resíduos a fundamentação das opções desconformes com os princípios e as orientações constantes da Recomendação. Ou seja, não há uma imposição ou proibição absoluta no tocante à aprovação dos tarifários que não sigam pontualmente as regras e orientações estabelecidas pelas normas e Recomendação referidas, tal como referido na sentença recorrida.
Procede, assim, o recurso que nos vinha dirigido.

Termos em que, face ao exposto, acordam os juízes da Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo em:
- conceder provimento ao recurso e, em consequência, revogar a sentença recorrida;
- julgar improcedente a questão que vinha colocada pelas partes;
- ordenar a baixa dos autos ao tribunal a quo para que aí sejam conhecidas as restantes questões suscitadas pelas partes.
Custas pela recorrida.
D.n.
Lisboa, 27 de Junho de 2018. – Aragão Seia (relator) – Dulce Neto – Francisco Rothes.