Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:01502/03
Data do Acordão:03/04/2004
Tribunal:1 SUBSECÇÃO DO CA
Relator:JOÃO CORDEIRO
Descritores:NOVO SISTEMA RETRIBUTIVO.
ACTO VINCULADO.
INTERPRETAÇÃO DA LEI.
PRINCÍPIO DA EQUIDADE.
Sumário:I - O princípio constitucional da igualdade tem carácter estruturante do sistema jurídico global, constituindo, numa das suas dimensões, a proibição de arbítrio, um limite externo da liberdade de conformação de todos os poderes públicos;
II - Na vinculação directa da Administração, o princípio de igualdade releva no domínio dos actos praticados no exercício de poderes discricionários.
III - Porém, deve ser decretada a invalidade de um acto vinculado, por erro nos respectivos pressuposto de direito, se as normas jurídicas que o enformam ou a interpretação que delas foi feita, violar o princípio constitucional da igualdade.
IV - As normas do DL 404-A/98 de 18-12, designadamente a do n.º4 do seu art. 21º devem ser interpretadas, se necessário, extensivamente, no pleno respeito dos princípios gerais da coerência e equidade que presidem ao sistema de carreiras da função pública, obviando a que uma funcionária, em termos de escala indiciária pudesse ser ultrapassada por colegas da mesma categoria, de nomeação mais recente.
Nº Convencional:JSTA00060741
Nº do Documento:SA12004030401502
Data de Entrada:09/22/2003
Recorrente:SE DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA
Recorrido 1:A... E OUTRO
Votação:UNANIMIDADE
Meio Processual:REC JURISDICIONAL.
Objecto:AC TCA.
Decisão:NEGA PROVIMENTO.
Área Temática 1:DIR ADM GER - FUNÇÃO PUBL ESTATUTÁRIO.
Legislação Nacional:CONST2001 ART13 ART59 N1 ART266 N2.
DL 404-A/98 DE 1998/12/18 ART21 N4 ART22.
Jurisprudência Nacional:AC STA PROC46609 DE 2001/04/05.; AC STA PROC46607 DE 2000/12/14.; AC STA PROC716/02 DE 2002/05/23.
Aditamento:
Texto Integral: Acordam em conferência, na 1ª Secção do STA:
Oportunamente e no TCA, A... interpôs recurso contencioso de anulação do acto tácito do MINISTRO DO TRABALHO E SOLIDARIEDADE e do SECRETÁRIO DE ESTADO DA ADMINISTRAÇÃO PUBLICA formulado no recurso hierárquico que lhes dirigiu, em 8-3-99 sobre o despacho do Vogal do CD do CRSSLVT que a posicionou no escalão 3, índice 285 da categoria de assistente administrativo especialista, imputando ao acto vício de violação de lei.
O processo correu os seus regulares e ulteriores termos, vindo, a final e por acórdão de 10-7-02 a ser concedido provimento ao recurso, determinando-se a anulação do acto contenciosamente recorrido.
Agravou a Secretária de Estado da Administração Pública, formulando, no termo das respectivas alegações as seguintes conclusões:
A – A situação em apreço resulta da conjugação das regras gerais de transição previstas no art. 20º do DL 404-A/98 de 18-12, com a regra geral da promoção p. no art. 17º do DL 353-A/89 de 16-10, tendo como filosofia genérica de todo o novo NSR.
B – De acordo com as normas aplicáveis à situação em apreço, a recorrente foi correctamente posicionada no escalão 3, índice 285, da categoria de assistente administrativo, com efeitos a 1 de Janeiro de 1998.
C – Pelos motivos expostos, considera-se que o acto que, em aplicação do DL 404-A/98 de 18-12, posicionou a recorrente no escalão 3, índice 285 da categoria de assistente administrativo especialista, não enferma do alegado vício de violação de lei.
Neste STA, o EMMP emitiu parecer no sentido do improvimento do recurso.
O processo correu os vistos legais, cumprindo-nos, agora a decisão.
Nos termos do disposto no art. 713º/6 do CPC, dá-se, aqui, por reproduzido o julgamento da matéria de facto realizado no tribunal a quo.
No acórdão recorrido, considerando-se que, pelo acto recorrido, a ora recorrente, posicionada no escalão 4 da categoria de Oficinal Administrativo Principal, em 1996, correspondendo-lhe, então, o índice 280, em resultado da aplicação do novo regime de carreiras aprovado pelo DL 404-A/98 de 18-12, transitou para o escalão 3, índice 285 da categoria de assistente administrativo especialista, ao mesmo tempo que outros funcionários, promovidos no ano de 1997 e antes posicionados em escalão e índice igual ao da ora recorrente transitaram, por força a da aplicação do art. 21º, para o escalão 4, índice 305, conclui que tal acto, na interpretação seguida, viola os princípios constitucionais da igualdade e justiça, violando os arts. 13º, 59º, n.º1, al. a) e 266º, n.º2 da CRP.
Nas conclusões das alegações, a autoridade ora agravante reitera a justeza da interpretação seguida, em conformidade com a alegada base da filosofia genética do NSR.
Sobre esta questão, em sentido coincidente com o que foi decido no tribunal a quo, se tem pronunciado, quer o tribunal Constitucional, mesmo em sede de declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral de normas conducentes a idêntico resultado prático, quer este STA.
Na verdade a interpretação do regime normativo aplicado no acórdão impugnado, mereceu o acolhimento designadamente, quer do acórdão do STA de 11-3-03 – rec. 1873/02, quer do acórdão de 20-3-03 – rec. 1799/02-, transcrevendo-se, da fundamentação deste último do mesmo relator do dos presentes autos, o seguinte passo, que nos merece inteira concordância, aplicável, com as devidas e necessárias adaptações, à situação em exame:
No quadro fáctico enunciado e que, se dá, aqui, por reproduzido, não deixa se chocar a sensibilidade jurídica a verificação do facto de a recorrente, no 5º escalão do cargo de 2º oficial, desde 1-10-96, por aplicação das normas do DL 404-A/98 de 18-12, venha a transitar para o 4º escalão do cargo de assistente principal com o índice 245, enquanto, à luz do mesmo diploma legal, colegas seus, que só acederam ao cargo de 2º oficial em 1998, vieram a ser integrados no 5º escalão da carreira de Assistente principal com o índice 260.
Como referem J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira In CRP Anotada, pg. 125 e ss., o princípio da igualdade, tão claramente violado, constitui princípio estruturante do sistema constitucional global, que, na sua dimensão democrática, exige a explícita proibição de discriminações, constituindo a proibição do arbítrio um limite externo da liberdade de conformação dos poderes públicos.
Quando os limites externos da “discricionaridade legislativa” são violados, ou seja, quando a medida legislativa não tenha suporte material, há violação do princípio da igualdade que proíbe, tanto as vantagens, como as desvantagens ilegítimas na atribuição de direitos.
No entender dos ilustres professores da U. de Coimbra citados, nas situações de desigualdades não fundamentadas, a mesma deve ser adjudicada a favor da extensão dos benefícios aos que dela foram excluídos Loc. cit. pg. 128,
Ora, o princípio da igualdade é, assim, uma das causas primeiras, se não mesmo a principal do sistema jurídico e da própria ideia de Direito Nesse sentido, Canaris, in Pensamento Sistemático e Conceito de Sistema na Ciência do Direito - 2ª ed. Gulbenkian, 1996, pg. 279, a ele estando vinculadas todas as funções estaduais, sendo uma das determinantes heterónomas da função legislativa, da administração e da jurisdição, com vinculação, até, dos próprios particulares.
Este entendimento tem evidente eco na jurisprudência deste STA, reconhecendo-se que, na perspectiva legislativa, o princípio da igualdade é um dos princípios estruturantes do Estado de Direito Democrático e do sistema constitucional global, pretendendo evitar-se o arbítrio legislativo, mediante uma diferenciação de tratamento irrazoável, a que falte inequivocamente apoio material objectivo. Cf., i.a., acs. STA de 22-2-01 - rec. 47.048, ou de 23-5-02 - rec. 716/02-11
Na vinculação directa da Administração, o princípio da igualdade releva no domínio dos actos praticados no exercício de poderes discricionários, como um dos seus limites externos, só aí sendo fonte autónoma de invalidade quando a Administração goza de liberdade para escolher o comportamento a adoptar. Cf., i.a., acs. STA de 14-12-00 - rec. 46607 e de 5-4-01 - rec. 46.609.
Na situação dos autos, se a violação do princípio da igualdade não pode ser fonte autónoma e directa da invalidade do acto aqui praticado em estreita vinculação legal, não deixa tal violação de poder vir a determinar a sua invalidade, por erro nos pressupostos de direito, se as normas jurídicas que o enformem, ou a interpretação delas feita, violar tal princípio constitucional.
No caso em exame, vemos que da conjugação das normas dos arts. 22º e 21º, nº4 do DL 404-A/98, em interpretação literal deste último preceito, com limitação da cláusula de salvaguarda apenas aos funcionários promovidos em 1997, permite-se que os funcionários promovidos nos anos de 1998 e 1997 possam receber remunerações mais elevadas que outros que haviam acedido à promoção em anos anteriores.
Em situação em tudo idêntica à dos presentes autos, o Tribunal Constitucional veio, no seu acórdão 254/2000 Publicado na I série do DR de 23-5-00, pg. 2304 e ss., a declarar a inconstitucionalidade com força obrigatória geral de normas dos DL 204/91 de 7-6- e do DL 61/92 de 15-4, na medida em que aí se permitia o recebimento de remuneração superior por funcionários com menor antiguidade na categoria Mais recentemente, o TC, no seu acórdão 405/2003 de 17-9-03, veio declarar, com força obrigatória geral, por violação do art. 59º, n.º1 al. a), como corolário do art. 13º da CRP, de normas do DL 564/99 de 21-12, na medida em que permitem, na carreira de técnico de diagnóstico e terapeuta o recebimento de remuneração superior por funcionários com menor antiguidade na categoria..
No acto recorrido, este indesejável e constitucionalmente vedado efeito estaria verificado, designadamente por a norma do art. 21º, n.º4 ter sido objecto de mera interpretação declarativa, em desconformidade, aliás, com os arts. 13º, 47º, n.º2, 59º, n.º1, al. a) da CRP.
Mas, se é possível enfrentar a questão dos autos nesta perspectiva, não se nos afigura, no entanto, nem necessária, nem sequer útil, a confrontação directa da questão da constitucionalidade das normas aplicadas, uma vez que sendo desejável, é possível a discussão/decisão da problemática colocada no mero quadro da interpretação de normas, fazendo especial apelo aos elementos sistemáticos e teleológicos da interpretação da lei.
Ora, de acordo com o respectivo preâmbulo, com a promulgação do DL 404-A/98 não visou o legislador a criação de um novo sistema de carreiras, nem dum novo sistema retributivo para a função pública, pretendendo-se a introdução a introdução de mais justiça relativa no sistema vigente, dando-lhe coerência e equidade...
Ora na situação em exame, ao aceitar-se que um funcionário promovido em 1996 passe a ganhar menos que outros colegas da mesma categoria só promovidos em 1998, estão-se a violar os princípios da coerência e da equidade que presidem ao sistema de carreiras, sendo que a lei prevê a aplicação pela Administração dos necessários mecanismos de correcção, designadamente, pela interpretação extensiva da norma do n.º4 do art. 21º, em conformidade com o espírito do sistema retributivo e respectivos princípios e com a descrita finalidade do diploma legal em que se insere.
Desta forma, na interpretação/aplicação seguida de tal normativo, o mesmo é violado, por não ter sido interpretado correctamente, de acordo e em conformidade com os princípios de coerência e equidade que presidem ao sistema de carreiras da função pública, e imporem que tal norma se deva aplicar não só aos funcionários promovidos em 1997, mas e também ( por identidade ou maioria de razão) àqueles que, em tal ano já possuíam a categoria a que eles acederam .
Pelo exposto e sem necessidade de outras considerações, acorda-se em negar provimento ao recurso, confirmando-se o douto acórdão recorrido, mas com a diferente fundamentação que aqui se refere.
Sem custas.
Lisboa, 4 de Março de 2004.- João Cordeiro (relator) – Santos Botelho – Freitas Carvalho