Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:01424/12.6BESNT
Data do Acordão:03/10/2022
Tribunal:1 SECÇÃO
Relator:ANA PAULA PORTELA
Descritores:RESPONSABILIDADE CIVIL EXTRACONTRATUAL DOS ENTES PÚBLICOS
ILÍCITO
MATÉRIA CRIMINAL
Sumário:I - No caso de um pedido de indemnização tendo por base ilícito criminal, o mesmo não está dependente do efetivo exercício do procedimento criminal, nem do resultado final desse procedimento ou do tipo de pessoa civilmente demandada, devendo ser-lhe aplicável o prazo prescricional a que alude o art. 498º nº3 do CC.
II - Pela mesma razão que se justifica a extensão do prazo em caso de ilícito criminal (a razão de não haver prazos diferentes para os civilmente responsabilizáveis), o prazo prescricional deve também contar-se a partir da data do arquivamento final do processo-crime, no caso o que seguiu contra o maquinista e não do arquivamento do processo-crime contra a Refer e a CP.
III - O art. 72º nº 1 do CPP concede uma possibilidade, e não um dever, de o lesado recorrer em separado à jurisdição civil, podendo optar por manter-se no processo criminal, em homenagem ao princípio da adesão, que é a regra.
Nº Convencional:JSTA00071420
Nº do Documento:SA12022031001424/12
Data de Entrada:10/13/2021
Recorrente:A............ E OUTROS
Recorrido 1:REDE FERROVIÁRIA NACIONAL - REFER, EP E OUTROS
Votação:UNANIMIDADE
Legislação Nacional:ART. 498.º, n.º 3, CCIV/66
ART. 72.º, n.º 1, CPP
Aditamento:
Texto Integral: Acordam na secção do Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo:
1. A………… e B………… vêm interpor recurso jurisdicional de revista para este STA do acórdão do TCAS proferido em 30.04.2020, que negou provimento ao recurso que interpuseram do saneador – sentença de 9.12.2014, proferido pelo TAF de Sintra, que julgou improcedente a ação por si intentada, contra a [Rede Ferroviária Nacional – REFER, E.P.E. e CP – Caminhos de Ferro Portugueses] com fundamento na prescrição do direito dado o prazo prescricional ter começado a correr em 19/09/2008 e terminado em 19/09/2011, tendo os A. intentado a ação em 19/12/2012 ou seja, um ano e três meses após o decurso do prazo prescricional.
2. Para tanto, produziram as suas alegações, concluindo:
“1. A decisão recorrida, que por sua vez confirma a decisão prolatada em primeira instância, não se pronunciou sobre a questão de fundo, procurando eximir a responsabilidade do Estado, com base em argumentos puramente formais, que escapam à essência do Direito, quando este deveria ser entendido como um grau de obtenção de Justiça, em nome do Estado de Direito democrático; além disso, interpretou erradamente e por isso violou a lei substantiva e processual.
2. Interpretou erradamente o regime aplicável à responsabilidade civil extracontratual dos entes públicos, no sentido de que não considerou a possibilidade de inclusão das pessoas coletivas, como não permitiu a aplicação da prescrição sujeita a prazo mais longo por estar em causa um facto ilícito suscetível de constituir crime, violando assim o regime legal contido no artigo 498.º, n.º 3, do CC.
3. O critério de imputação da responsabilidade criminal às pessoas coletivas reside, no caso dos autos, no cometimento da infração criminal em nome e no interesse da pessoa coletiva por qualquer pessoa singular que ocupe uma posição de subordinada na pessoa coletiva e o cometimento do crime se tenha tornado possível em virtude de uma violação, pelas pessoas que ocupam uma posição de liderança, dos seus deveres de controlo e supervisão sobre os respetivos subordinados – sendo que a violação dos deveres de cuidado pode resultar de ação ou de mera inércia do líder, consistindo, por exemplo, na omissão de ordens diante de práticas ilegais dos subordinados, sendo que em qualquer dos casos, a violação dos deveres de cuidado pode ser dolosa ou negligente, pelo que as pessoas coletivas são suscetíveis de responsabilidade criminal, em função de um crime como o que está em causa nestes autos de recurso.
4. Mas ainda que, por hipótese, assim não se entendesse, a ratio legis do alargamento do prazo prescricional previsto no n.º 3 do artigo 498.º do CC assenta na especial gravidade do facto que, embora seja o mesmo, tenha gerado diferentes tipos de responsabilidade: a civil e a criminal; pelo que lei estabelece apenas uma única exigência para a aplicação do prazo prescricional mais alargado: saber se a conduta ilícita civil, causa do pedido de indemnizar, é suscetível também de integrar um ilícito penal, não estando dependente do efetivo exercício do procedimento criminal, nem do resultado final desse procedimento ou do tipo de pessoa civilmente demandada (ver o acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte, prolatado em 22.11.2007 no âmbito do processo n.º 02121/04.1BEPRT, onde se pode ler que “IX. Não obsta à aplicação de prazo de prescrição extraordinário, previsto na lei penal, o facto de os civilmente demandados serem pessoas coletivas, insuscetíveis, em princípio, da censura moral em que assenta o ilícito penal.”).
5. No caso dos autos os factos em causa são suscetíveis de integrar um crime de homicídio por negligência, previsto e punido no artigo 137.º do CP devendo ser neste caso considerada a negligência grosseira, prevista no seu n.º 2, por conexão com o artigo 15.º, alínea a), do CP, sendo por isso o agente punido com uma pena de prisão até cinco anos, o que faz com que, tendo em conta o artigo 118.º, n.º 1, alínea b), do CP, o procedimento criminal se extinga, por efeito da prescrição, logo que sobre a prática do crime tiverem decorrido dez anos, quando se tratar de crimes puníveis com pena de prisão cujo limite máximo for igual ou superior a cinco anos, mas não exceda dez – em resultado do que antecede os factos em causa nestes autos ocorreram no dia 10.01.2008, pelo que o direito à indemnização só estaria prescrito em 10.01.2018.
6. Neste sentido, a decisão recorrida também fez uma interpretação e aplicação deficiente dos artigos 15.º, alínea a), 137.º, n.º 2, e 118.º, n.º 1, alínea b), do CP, que violou em matéria de lei substantiva.
7. Acresce que os recorrentes não só não podiam, como não tinham nada que propor ação cível em separado enquanto o processo-crime não tivesse sido arquivado, por a isso se opor o artigo 72.º do CPP, já que até então existia um constrangimento legal ao exercício do direito de dedução de indemnização, pelo que só se iniciou a contagem do prazo prescricional a partir dessa altura, uma vez que enquanto se mantiver pendente a lide processual penal não ocorre a contagem do prazo prescricional [acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 11.06.1986: “enquanto o processo-crime não estivesse parado por mais de 6 meses, arquivado ou o réu absolvido, não podiam os autores propor a ação cível em separado, por a isso se opor o preceituado no art. 30.º do Cód. Proc. Penal; até aí existia um obstáculo legal ao exercício do direito e, portanto, não se iniciara o prazo para a propositura da ação, como se dispõe no art. 306.º, n.º 1, do Cód. Civil” (STJ, 11.06.1986: BMJ, 358.º-447); acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 07.04.1988: “a prescrição do direito de ser indemnizado em virtude de acidente de viação não corre contra menores nem começa a decorrer enquanto estiver pendente processo de natureza criminal, tendente à investigação das circunstâncias do mesmo acidente” (RE, 07.04.1988: BMJ, 376.º-676)].
8. Pelo que a decisão recorrida também errou ao interpretar o regime definido no artigo 72.º do CPP, tendo assim violado lei processual.
9. Nos termos do artigo 326.º, n.º 1, do CC, a interrupção da prescrição tem por efeito a inutilização de todo o tempo decorrido anteriormente, começando a correr novo prazo a partir do ato interruptivo e que, nos termos do artigo 327.º, n.º 1, do CC, se mantém até ao trânsito em julgado da decisão que pôs termo ao processo (que só ocorreu em 10.05.2010); o processo-crime não terminou com o despacho de arquivamento, mas sim com o trânsito em julgado dessa decisão, sendo que o prazo de prescrição continuou interrompido até esse momento, só voltando a correr a partir de então [acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul, proferido em 07.12.2011 no âmbito do processo n.º 00867/05: “à data do despacho de não pronuncia não só o prazo de prescrição não tinha decorrido como tinha sido inutilizado todo o tempo anterior. Logo é evidente que à data em que foi deduzido por banda dos recorrentes, estava em tempo o pedido de indemnização civil contra o Hospital Distrital de Cascais, que teve a virtualidade de manter a interrupção até ao trânsito em julgado da decisão que pôs termo ao processo (art.º 327.º, n.º 1, do CC)” (…); “o processo-crime não terminou com o despacho de não pronúncia, como parece ter sido entendido na primeira instância. Conforme decorre da matéria de facto, tal processo só findou com o trânsito em julgado do Acórdão do STJ” (…) “o prazo de prescrição continua interrompido até ao trânsito da decisão que ponha termo ao processo criminal (…) é manifesto que no caso sub judice o prazo de prescrição só voltou a correr a partir do trânsito em julgado do acórdão do STJ.”].
10. Não tem portanto qualquer suporte legal, havendo mesmo clara violação da lei, o entendimento vertido na decisão a quo, de que o prazo prescricional se deve contar a partir do primeiro despacho de arquivamento, proferido em 19.09.2008, uma vez que este não colocou termo ao processo, tendo sido, uma vez mais, violada a lei substantiva, por interpretação abusiva do referido artigo 327.º, n.º 1, do CC.
11. Em síntese, conclui-se no sentido de que a decisão a quo apenas se preocupou em proteger o Estado, descurando a tutela que os privados reclamam quando estão em causa factos suscetíveis de gerar a responsabilidade civil extracontratual dos entes públicos, sendo culposos e ilícitos e causadores de graves factos lesivos, que exigem a condenação no pagamento da quantia devida, obtida por via da equidade.
12. A decisão recorrida interpretou de forma censurável e absolutamente deficiente o regime que a lei substantiva e processual consagra no artigo 498.º, n.º 3, do Código Civil, nos artigos 15.º, alínea a), 137.º, n.º 2, e 118.º, n.º 1, alínea b), do Código Penal, e no artigo 72.º do Código de Processo Penal.
13. Mais: se o legislador entendeu dever alargar o prazo prescricional relativo à responsabilidade civil por facto ilícito quando esteja em causa um facto simultaneamente suscetível de constituir crime, a decisão recorrida o que fez foi interpretar o contrário, isto é, de forma restritiva, ofendendo sentido teleológico da lei, que procurou minimizar, com isso violando o competente regime normativo.
14. Em parte alguma da lei substantiva decorre que tem de existir um processo-crime, que esse processo terá de originar uma decisão positiva, de acusação ou de pronúncia ou de condenação, em qualquer uma das fases processuais penais, ou que esteja excluída a responsabilidade criminal individual e ou coletiva para que haja lugar ao alargamento do prazo prescricional do direito de indemnizar.
15. Por outro lado em parte alguma a lei obriga a que os sujeitos processuais sejam obrigados a demandar civilmente antes de terminar o tempo da pendência penal, que deve ser considerado até ao trânsito em julgado da última decisão (10.05.2010 no caso), para que seja iniciado, ou reiniciado, o prazo de prescrição antes interrompido; o que leva a ter inexoravelmente de concluir que não há qualquer fator temporal ultrapassado no âmbito destes autos de recurso, tendo em conta que o processo foi iniciado em 18.12.2012.
16. Mais se pode concluir, também para efeitos de síntese, que: (I) o direito de indemnização por responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais pessoas coletivas de direito público prescreve nos termos do artigo 498.º do CC; (II) o direito de indemnização, segundo o disposto no n.º 1 do artigo 498.º do CC, prescreve no prazo de 3 anos a contar da data em que o lesado teve conhecimento da verificação dos pressupostos que condicionam a responsabilidade do lesante, ou seja, o prazo prescricional conta-se a partir da data em que o lesado, conhecendo a verificação dos pressupostos que condicionam a responsabilidade (o facto, a ilicitude, a culpa, o dano e o nexo de causalidade), soube ter direito à indemnização; (III) sendo os réus pessoas coletivas públicas, in casu, entidades públicas empresariais, tal como definido no artigo 11.º, n.ºs 1, 2 e 3 do Código Penal (CP), podem ser responsabilizadas criminalmente em determinadas condições; (IV) sem prejuízo de o crime de homicídio, previsto e punido no artigo 137.º do CP, não se encontrar abrangido na tipologia legal de crimes do disposto no n.º 2 do artigo 11.º do CP, tal não impede, de per si, o apuramento da responsabilidade criminal individual dos seus funcionários ou agentes, nem, tão pouco, a exclusão de aplicação de prazo prescricional mais longo, quando os factos relevantes sejam suscetíveis de integrar, em simultâneo, a responsabilidade civil e criminal que os recorrentes lhes imputam; (V) a circunstância de o processo-crime ter sido iniciado e no mesmo ter sido proferido um ou dois despachos de arquivamento, sem que houvesse imputação de responsabilidade criminal a qualquer dos réus ou arguidos, também isso não é um motivo legalmente válido para excluir a aplicação do prazo prescricional mais longo, quando apenas se exige que o facto ilícito constitua crime; (VI) o que acarreta ser aplicável o n.º 3 do artigo 498.º do CC; (VII) de acordo com o disposto no artigo 72.º, n.º 1 do CPP, o pedido de indemnização civil pode ser deduzido em separado perante o tribunal civil quando “o processo penal não tiver conduzido à acusação dentro de oito meses a contar da notícia do crime ou estiver sem andamento durante esse lapso de tempo”, embora isso seja relevante para a matéria do presente recurso, uma vez que o prazo para deduzir pedido de indemnização civil só começa a correr a partir do trânsito em julgado da última decisão proferida no processo-crime; (VIII) não relevam em relação aos réus os despachos de arquivamento do processo-crime, não importando desde então a imediata contagem do prazo de prescrição, a não ser a partir do trânsito em julgado da última decisão proferida nesse mesmo processo, pelo que não é intemporal o exercício do direito de indemnização pretendido neste recurso.
17. Também se conclui ser agora possível responder às duas questões aqui anteriormente formuladas: 1) para o efeito da responsabilidade civil extracontratual deve ser entendido como prazo limite o de três anos que a lei civil prevê no artigo 498.º, n.º 1, CC, mas também pode ser considerado prazo mais longo, designadamente o que decorre do n.º 3 do mesmo artigo 498.º, se o facto ilícito constituir crime; 2) para as condições de aplicação do prazo mais longo basta que o facto ilícito constitua crime, não sendo excluído o prazo mais largo se não for instaurado um processo-crime ou se o processo-crime for arquivado ou, ainda, quando apenas esteja em causa a responsabilidade criminal individual e não coletiva.
18. Neste sentido, o thema decidendum do presente recurso de revista aponta para a interpretação da norma consignada no artigo 498.º, n.º 3, do CC, em duplo sentido:
(1) A norma do artigo 498.º, n.º 3, do CC é interpretável em termos de se poder aplicar sempre que esteja em causa um facto ilícito que constitua crime e para o qual a lei estabeleça prescrição sujeita a prazo mais longo?
(2) Além disso, é exigível qualquer outro critério, mesmo não previsto naquela norma, como a existência de um processo-crime, o seu desfecho mediante uma decisão judicial positiva (como um despacho de acusação, um despacho de pronúncia ou uma decisão final condenatória), a constituição de arguidos, a inclusão necessária das pessoas coletivas ou outros critérios sem os quais a mesma norma não tenha aplicação legal? 19.... 20. (...)
(1) A NORMA DO ARTIGO 498.º, N.º 3, DO CC É INTERPRETÁVEL EM TERMOS DE SE PODER APLICAR SEMPRE QUE ESTEJA EM CAUSA UM FACTO ILÍCITO QUE CONSTITUA CRIME E PARA O QUAL A LEI ESTABELEÇA PRESCRIÇÃO SUJEITA A PRAZO MAIS LONGO?

(2) ALÉM DISSO, É EXIGÍVEL QUALQUER OUTRO CRITÉRIO, MESMO NÃO PREVISTO NAQUELA NORMA, COMO A EXISTÊNCIA DE UM PROCESSO-CRIME, O SEU DESFECHO MEDIANTE UMA DECISÃO JUDICIAL POSITIVA (COMO UM DESPACHO DE ACUSAÇÃO, UM DESPACHO DE PRONÚNCIA OU UMA DECISÃO FINAL CONDENATÓRIA), A CONSTITUIÇÃO DE ARGUIDOS, A INCLUSÃO NECESSÁRIA DAS PESSOAS COLETIVAS OU OUTROS CRITÉRIOS SEM OS QUAIS A MESMA NORMA NÃO TENHA APLICAÇÃO LEGAL?”

3. Não foram apresentadas Contra-Alegações.

4. O recurso de revista foi admitido pela formação deste STA por acórdão de 23.09.2021, de onde se extrai:

“…Em causa nos autos está a morte, por atropelamento por um comboio, da filha dos Recorrentes, ocorrida no dia 10.01.2008, pela 22h00, na Estação Ferroviária do Cacém, quando procedia ao atravessamento da linha na passagem destinada a esse efeito, após se ter apeado do comboio que circulava no sentido Lisboa/Cacém e com o intuito de se dirigir para o exterior da estação.

Alegaram os AA. que os factos que constituem o objeto da presente ação, foram alvo de uma investigação criminal desencadeada no âmbito de processo-crime, e que culminou com um despacho de arquivamento. Sendo tais factos em causa suscetíveis de integrar o crime de homicídio por negligência, previsto e punido pelo art. 137º do CP.

Assim, alegam que são as Rés responsáveis, nos termos art. 483º, nº 1 do CC – responsabilidade civil por facto ilícito -, por ações ou omissões dos titulares dos órgãos, funcionários e agentes que violem disposições ou princípios constitucionais, legais ou regulamentares ou infrinjam regras de ordem técnica ou deveres objetivos de cuidado e de que resulte a ofensa de direitos ou interesses legalmente protegidos. Ou, por responsabilidade objetiva ou pelo risco - art. 503º do CC, sendo a responsabilidade solidária.

Na presente revista os Autores/Recorrente pretendem discutir a aplicação do prazo de prescrição mais longo por estar em causa um facto ilícito suscetível de constituir crime [o previsto no art. 137º do Código Penal (CP)], conforme previsto no art.º 498º, nº 3 do Código Civil (CC), cujo regime consideram violado ao não ter sido aplicado pelo acórdão recorrido, sendo que as pessoas coletivas públicas, no caso, entidades públicas empresariais, tal como definido no art. 11º, nºs1, 2 e 3 do CP, podem ser responsabilizadas criminalmente em determinadas condições.

Questionam igualmente qual a data (ou facto) a partir da qual se inicia a contagem do prazo de prescrição de três anos, para os efeitos previstos no art. 498º, nº 1, ou superior, no caso do nº 3 do mesmo preceito.”

O acórdão recorrido entendeu que à luz do art. 11°, nºs 1,2 e 3 do CP as Rés, enquanto pessoas coletivas de direito público, não podiam responder criminalmente, por o crime de homicídio previsto e punido nos termos do art. 137° do CP não estar contemplado no nº 2 do referido art. 11 º. Acrescendo a circunstância de os processos-crime que foram instaurados no caso terem sido arquivados.

Por isso, entendeu que a norma relevante em matéria de prescrição do direito de indemnizar é a do nº 1 do art. 498° do CC e não a do respetivo nº 3, como defendem os Recorrentes.

Assim, entendeu o acórdão que aquele prazo de três anos para a instauração da ação teria de contar-se se não desde a data do conhecimento do facto - em 10.01.2008 -, terminando o prazo em 10.01.2011, pelo menos desde as datas do arquivamento dos processos crime que ocorreram, em 12.02.2008 ou em 19.09.2008.

Pelo que, tendo ação sido proposta em 19.12.2012, mesmo contando o prazo desde 19.09.2008, já se encontrava prescrito o direito à indemnização, nos termos do nº 1 do art. 498° do CC. Como se vê as instâncias decidiram a questão da prescrição de forma semelhante. No entanto, a solução encontrada pelo acórdão recorrido quanto a não ser aplicável ao caso a previsão do nº 3 do art. 498º do CC não é isenta de dúvidas [independentemente de as Rés não serem penalmente responsabilizadas), face à jurisprudência deste STA (cfr., v.s. os acs. de 19.04.2005, Proc. nº 0211/05 e de 19.11.2003.)

Importa, assim, que este STA se pronuncie sobre as questões suscitadas na revista, e acima enunciadas, por terem evidente relevância jurídica e social, com suscetibilidade de serem repetíveis, justificando se ainda a revista para uma melhor aplicação do direito, pelo que deve ser admitido o recurso.

4. Decisão
Pelo exposto, acordam em admitir a revista. Sem custas.”

5. O MP emitiu parecer no sentido da procedência do recurso.

6. Após os vistos legais, cumpre decidir.


*

FUNDAMENTAÇÃO

MATÉRIA DE FACTO fixada pelas instâncias com relevância para a decisão da causa:

“1. No dia 10.01.2008, pelas 22h00, na Estação Ferroviária do Cacém, quando procedia ao atravessamento da linha na passagem destinada a esse efeito, após se ter apeado do comboio que circulava no sentido Lisboa/Sintra e com o intuito do se dirigir para o exterior da estação, C…………, de 19 anos de idade, e filha dos demandantes, foi mortalmente colhida pelo comboio nº 27766 que circulava no sentido contrário.

2. Nesta estação não existia, na altura dos factos, qualquer passagem superior ou inferior que permitisse aos utentes sair da gare, pelo que era forçoso atravessar a própria via-férrea.

3. Também não existiam guardas metálicas na plataforma de embarque/ desembarque de modo a impedir a passagem de pessoas na linha férrea.

4. A comunicação social e a Comissão de Utentes da Linha de Sintra já há muito que a designavam como “passagem assassina”- documentos 1 e 2

5. A Comissão dos Utentes da Linha do Sintra, desde 1999, levou a cabo uma campanha junta dos sucessivos Governos, REFER e CP, para que finalizassem a modernização da linha de Sintra, além de terem chamado a atenção, por inúmeras vezes, para o perigo que as passagens niveladas existentes na linha de Sintra, nomeadamente na estação de Agualva-Cacém, representavam - documentos nº 3 a 6.

6. Em 2009 foi criada uma passagem subterrânea para os peões se deslocarem para os vários sentidos da linha de Sintra – facto admitido.

7. Tendo origem em participação policial, foram os factos referentes ao acidente mencionado em 1 investigados nos autos de inquérito NUIC 13/08.4 PDSNT, 5ª secção de Processos, do Círculo Judicial de Sintra (Serviços do MP) – fls. 55 dos autos.

8. Tais autos de inquérito foram arquivados por Despacho de 12/02/2008 - idem

9. Posteriormente, os factos objeto da presente foram alvo de uma nova investigação criminal desencadeada no âmbito do processo-crime nº 1877/08.7 TASNT, que correu termos junto da Comarca da Grande Lisboa – Noroeste - Ministério Público, G.L.N. Sintra – Serviços do Ministério Público, 2ª secção do DIAP, os quais foram arquivados e notificados aos Requerentes em 19/09/2008, nos termos seguintes:

[IMAGEM]

10. Em 08/04/2010 foi proferido novo despacho de arquivamento do inquérito nos autos referidos em 9, desta vez, apenas quanto à eventual responsabilidade do maquinista do comboio interveniente no acidente, D…………, pela prática de um crime de homicídio por negligência, p. e p. no artº 137º do Código Penal - Despacho de arquivamento a fls. 59 a 63, que aqui se dá como reproduzido.

11. A presente ação deu entrada em juízo em 19/12/2012 e o pedido tem como fundamento a responsabilidade civil extracontratual da REFER e da CP, por descurarem deveres objetivos de cuidado e que, no caso em apreço, se traduziram na omissão de precauções reclamadas pela prudência, cuja observância teria evitado o resultado (a morte da filha dos AA, trucidada por um comboio).”


*

O DIREITO

Está em causa nestes autos uma ação de responsabilidade civil extracontratual dos entes públicos que teve por base o atropelamento mortal da filha dos autores por um comboio quando procedia ao atravessamento da linha na passagem destinada a esse efeito, após se ter apeado do comboio que circulava no sentido Lisboa/Sintra e com o intuito do se dirigir para o exterior da estação.

Ambas as instâncias entenderam que a situação dos autos não integrava a previsão do prazo mais longo a que alude o artigo 498.º, n.º 3, do CC.

1. As questões que importa conhecer são, assim:

- A de saber se a causa do pedido de indemnizar, no caso sub judice, um crime um homicídio por negligência ou negligência grosseira de pessoas coletivas públicas, por ser suscetível também de integrar um ilícito penal, não está dependente do efetivo exercício do procedimento criminal, nem do resultado final desse procedimento ou do tipo de pessoa civilmente demandada, devendo ser-lhe aplicável o prazo prescricional a que alude o art. 498º nº3 do CC.

- E se, de qualquer forma, o prazo de prescrição foi interrompido por não ter sido possível propor ação cível em separado enquanto o processo-crime não estivesse arquivado, por a isso se opor o artigo 30.º do CPP, o que, no caso judicie, e atenta a data efetiva do arquivamento do processo-crime, implicava a tempestividade da ação.

1.1. Alegam os recorrentes que os factos aqui em causa são suscetíveis de integrar o crime de homicídio por negligência, previsto e punido no artigo 137.º do CP, ficando demonstrada a negligência grosseira, que faz com que seja aplicável o prazo de prescrição de 10 anos sobre a prática do crime, pelo que, tendo os factos ocorrido em 10/01/2008, o direito à indemnização só estaria prescrito em 10/01/2018.

E que, mesmo que se entenda que esteja em causa um crime de negligência simples, o prazo de prescrição é de cinco anos, terminando em 10/01/2013, sendo a ação tempestiva, porque instaurada em 18/12/2012.

A decisão recorrida proferida pelo TCAS confirmou a decisão de 1ª instância do TAF de Sintra que entendeu não ser aplicável à situação dos autos o nº 3 do artigo 498º do CC e nessa sequência julgou procedente a exceção perentória da prescrição extintiva do direito dos autores.

Extrai-se da mesma:

“(...) Na presente ação foram demandados como Réus duas pessoas coletivas, além de ambas integrarem o conceito de pessoas coletivas públicas.

A REFER foi criada em 1997, pelo D.L. n.º 104/97, de 29/04, como empresa pública responsável pela prestação do serviço público de gestão da infraestrutura integrante da rede ferroviária nacional.

Em 22/07/2008, o D.L. nº 141/2008 alterou a denominação da REFER para Rede Ferroviária Nacional - REFER, EPE e introduziu alterações aos seus estatutos, procedendo à sua republicação e em 01/06/2015, na sequência do D.L. nº 91/2015 de 29/05, a Rede Ferroviária Nacional – REFER, E.P.E. (REFER, E.P.E.) incorporou, por fusão, a EP - Estradas de Portugal, S.A. (EP, S.A.) e foi transformada em sociedade anónima, passando a denominar-se Infraestruturas de Portugal, S.A. (IP, S.A.).

Por sua vez a CP – Comboios de Portugal, é uma empresa portuguesa de transporte ferroviário, criada em 11 de maio de 1860, sofrendo diversas alterações, como a operada pelo D.L. n.º 104/97, de 29/04, quando lhe foi retirada a gestão das infraestruturas (que foi entregue à REFER), ficando a CP somente com a exploração dos serviços ferroviários, e a introduzida pelo D.L. n.º 137-A/2009, de 05/06, ao aprovar o regime jurídico aplicável à CP - Comboios de Portugal, E.P.E., bem como os respetivos Estatutos, passando o nome legal da empresa a ser Comboios de Portugal, E.P.E..

A CP é, por isso, uma entidade pública empresarial, dotada de autonomia administrativa, financeira e patrimonial, com capacidade jurídica. (...)

No caso configurado em juízo, consideram os Recorrentes que estaria em causa a imputação aos Réus do crime de homicídio por negligência grosseira ou por negligência simples, mas sendo ambos as Réus pessoas coletivas públicas, tal como definido no artigo 11.º, n.ºs 1, 2 e 3 do CP, não podem ser responsabilizados criminalmente.

O que acarreta que à luz do disposto no artigo 11.º, n.ºs 1, 2 e 3 do CP, os Réus não possam responder criminalmente.

Sem prejuízo, nem o crime de homicídio, previsto e punido no artigo 137.º do CP, se encontra abrangido na tipologia legal de crimes do disposto no n.º 2 do artigo 11.º do CP, para que os ora recorridos, enquanto pessoas coletivas de direito público, pudessem ser responsabilizados pela prática do crime de homicídio que os ora recorrentes lhes imputam.

A que acresce a circunstância de os processos-crime que no caso foram instaurados terem sido arquivados, não se imputando a responsabilidade criminal a qualquer dos Réus, ora Recorridos.

O que não pode deixar de implicar que a norma legal relevante em matéria de prescrição do direito de indemnizar é o disposto no artigo 498.º, n.º 1 do CC, não sendo aplicável o seu n.º 3, como defendido no presente recurso.

Consequentemente, sendo de três anos o prazo de prescrição do direito à indemnização importa apreciar se ocorre alguma causa de suspensão ou de interrupção da contagem do prazo.(...)”

A este propósito extrai-se do sumário do acórdão deste STA Proc. 01602/03 de 19/11/2003:

“I –(...) II – Não é pelo facto de o R. Município não ser responsabilizado penalmente, nem pelo facto de não se terem individualizado as pessoas físicas sobre as quais deve recair a censura pela omissão causadora do acidente e do dano (tal como descritos na petição), que deixa de se aplicar a previsão do n.º 2 do artigo 498.º do CC., porque tais pessoas ou podiam também ser réus na ação ou se não podiam é por razões específicas da repartição da responsabilidade entre os entes públicos e os seus agentes, sendo certo que se estivessem na ação não poderia existir um prazo diferente de prescrição para cada responsável.”

No mesmo sentido se pronunciou o acórdão deste STA 0211/05 de 19/04/2005:

“E, sendo assim efetuada esta transposição também nada impede, antes se justifica, que para efeitos de apreciação da prescrição desta responsabilidade civil se atenda também à existência de condutas dos servidores da pessoa coletiva, ainda que não individualmente identificados, para averiguar se elas tal como alegadas pelo A. são suscetíveis de integrar o ilícito criminal como se fossem ações ou omissões de uma pessoa física concreta e identificada. No caso de se verificarem os requisitos que seriam aplicáveis à responsabilidade penal das pessoas físicas tem entendido a jurisprudência que é de aplicar o prazo de prescrição mais longo referido no n.º 3 do artigo 498.º do CC., solução que se considera como mais ajustada, visto que de outro modo ficaria injustificadamente sujeito a um tratamento diferente e menos exigente a responsabilidade das pessoas coletivas apenas pelo facto de os interesses ou atividades que estão na origem do dano estarem na orbita do património ou das competências ou dos fins da pessoa coletiva.

Releva também decisivamente a favor da aplicação do prazo do n.º 3º facto de existindo responsabilização conjunta ou mesmo em exercício de direito de regresso da pessoa ou pessoas físicas que deram origem ao dano imputável à esfera da pessoa coletiva em cujo nome e interesse agiram, tal responsabilidade criminal e civil poder ser exercida em cinco anos, pelo que não faria sentido submeter a prazo diferente a responsabilidade de apenas um dos obrigados civilmente a tal reparação dos danos, a pessoa coletiva. Efetivamente, se em muitos casos não são demandados como Réus as pessoas físicas que cometeram a falta que está na origem da responsabilidade do ente publico é apenas pela particular divisão de responsabilidades entre a administração e os atos culposos dos seus funcionários e agentes decorrente dos art.º 2.º n.º 2 e 3.º do DL 48051, de 21.11.67, e não pelo facto de não existir tal responsabilidade pessoal. Daí que o Acórdão indicado pelo M.P., de 2.12.2004, P. 0145/04, em sustentação do decidido não tenha exatamente o sentido que lhe parece emprestar o respetivo sumario, uma vez que ao referir que se devem provar os elementos do crime ainda que imputável a algum ou alguns dos Réus, quer-se significar a algum dos réus em sentido amplo, mesmo aos que podiam ser réus na ação ou demandados por aquela responsabilidade, quer estejam ou não concretamente como Réus na concreta situação em apreciação. Claramente no sentido aqui adotado podem ver-se entre outros os Ac. deste STA de 14.01.2004, P. 01035/03; de 19.11.2003, P. 01602/03; de 16.01.2003, P. 046481; de 12.04.2000, P. 044060 e de 26.06.86, P. 020386.

No caso é pacifico que os factos alegados imputados às pessoas que omitiram a sinalização e os cuidados exigíveis para evitar o acidente constituem o ilícito criminal de ofensas corporais do artigo 148.º n.ºs 1 e 3 do C. Penal, pelo que o prazo de prescrição do respetivo procedimento (artigo 118.º n.º 1 – c) do CP) e também da ação de responsabilidade civil é de cinco anos.”

É certo que o quadro normativo aquando da prolação destes acórdãos era diverso do que estava em vigor à data da prática dos factos, ou seja, o DL n.º 48/95, de 15 de Março, na redação dada pela Lei n.º 59/2007, de 04/09, e que dispunha no seu art.º. 11º que:

“Responsabilidade das pessoas singulares e coletivas

1 - Salvo o disposto no número seguinte e nos casos especialmente previstos na lei, só as pessoas singulares são suscetíveis de responsabilidade criminal.

2 - Previstos nos artigos 152.º-A e 152.º-B, nos artigos 159.º e 160.º, nos artigos 163.º a 166.º, sendo a vítima menor, e nos artigos 168.º, 169.º, 171.º a 176.º, 217.º a 222.º, 240.º, 256.º, 258.º, 262.º a 283.º, 285.º, 299.º, 335.º, 348.º, 353.º, 363.º, 367.º, 368.º-A e 372.º a 374.º, quando cometidos:

a) Em seu nome e no interesse coletivo por pessoas que nelas ocupem uma posição de liderança; ou

b) Por quem aja sob a autoridade das pessoas referidas na alínea anterior em virtude de uma violação dos deveres de vigilância ou controlo que lhes incumbem.

3 - Para efeitos da lei penal a expressão pessoas coletivas públicas abrange:

a) Pessoas coletivas de direito público, nas quais se incluem as entidades públicas empresariais;

b) Entidades concessionárias de serviços públicos, independentemente da sua titularidade;

c) Demais pessoas coletivas que exerçam prerrogativas de poder público.

4 - Entende-se que ocupam uma posição de liderança os órgãos e representantes da pessoa coletiva e quem nela tiver autoridade para exercer o controlo da sua atividade.

5 - Para efeitos de responsabilidade criminal consideram-se entidades equiparadas a pessoas coletivas as sociedades civis e as associações de facto.

6 - A responsabilidade das pessoas coletivas e entidades equiparadas é excluída quando o agente tiver atuado contra ordens ou instruções expressas de quem de direito.

7 - A responsabilidade das pessoas coletivas e entidades equiparadas não exclui a responsabilidade individual dos respetivos agentes nem depende da responsabilização destes.

8 -... 9 - Sem prejuízo do direito de regresso, as pessoas que ocupem uma posição de liderança são subsidiariamente responsáveis pelo pagamento das multas e indemnizações em que a pessoa coletiva ou entidade equiparada for condenada, relativamente aos crimes:

a) Praticados no período de exercício do seu cargo, sem a sua oposição expressa;

b) Praticados anteriormente, quando tiver sido por culpa sua que o património da pessoa coletiva ou entidade equiparada se tornou insuficiente para o respetivo pagamento; ou

c) Praticados anteriormente, quando a decisão definitiva de as aplicar tiver sido notificada durante o período de exercício do seu cargo e lhes seja imputável a falta de pagamento.

10 - ...11...”

Contudo, o que releva não é a possibilidade de responsabilização criminal da pessoa coletiva, mas sim que não haja prazos diferentes para todos os possíveis responsabilizáveis civis (pessoas coletivas e seus funcionários/empregados/mandatários).

Neste sentido e já no âmbito deste quadro normativo, diz-se no acórdão deste STA 0368/08, de 2/7/2020:

«A aplicação do prazo prescricional mais longo previsto no nº 3 do art. 498º do CC apenas depende da prova de que o facto ilícito constituía crime cujo prazo de prescrição do procedimento criminal era superior a três anos, para tal não sendo exigível nem a demonstração de que continua a ser possível a perseguição penal do agente do crime, nem o facto de os entes públicos não estarem sujeitos a responsabilidade criminal».

Assim como no Ac. do STJ 2024/05 de 22/5/2013:

«Não obstante a uma sociedade comercial não lhe poder ser imputada conduta criminosa por força do art. 11º do CP, o prazo prescricional alongado do nº 3 do art. 498º do CC é extensivo aos meros responsáveis civis, porque o aludido preceito ao estabelecer prazo prescricional alongado, apenas o faz depender da natureza criminal, não estabelecendo qualquer distinção entre os vários tipos civilmente responsáveis, e, aliás, como bem observa o citado acórdão de 30-01.1985, publicado in RLJ, "seria inteiramente aberrante sujeitar-se o lesado à contingência de intentar contra cada um dos corresponsáveis civis pelo ressarcimento dos prejuízos resultantes do ilícito criminal, ações em separado conforme entendesse que, em relação a uns o seu direito prescreveria mais cedo, prescrevendo mais tarde em relação a outros».

Assim, se antes de 2007 (à data dos Acórdãos STA citados nos autos), o art. 11º do C.P. não previa a responsabilização criminal das pessoas coletivas ("salvo disposição em contrário") e, depois da redação da Lei 59/2007, de 4/9, passou a prevê-la (nos casos ali expressamente elencados), por maioria de razão deve ser de aplicar a jurisprudência daqueles Acórdãos.

Tendo por base o suprarreferido deve proceder o recurso por ser de aplicar o nº3 do art. 498º do CC e não o seu número 1, ou seja, que o prazo de prescrição do direito à indemnização é de cinco anos por estar em causa um crime de homicídio por negligência simples.

Sendo que, como é jurisprudência constante deste STA não há dependência do efetivo exercício do procedimento criminal nem do resultado final desse procedimento.

Na verdade, a interpretação a fazer daquele n.º 3 do art. 498º, atento o seu teor, alcance e sentido, é a de que não se faz depender a ampliação do prazo prescricional previsto na lei penal à ação instaurada na instância cível, à efetiva instauração do processo penal, mas apenas à alegação pelos autores, na ação cível, de factos que preencham os elementos objetivos e subjetivos típicos de determinado tipo legal de crime, cumprindo ao julgador proceder à integração desses factos na correspondente norma penal incriminadora.

Neste sentido Antunes Varela in RLJ, n.º 123, pág. 45 sustenta que “não é, pois, necessário que haja ou tenha havido ação crime na qual os factos determinantes da responsabilidade civil tenham de vir à barra do tribunal, ainda que observados sob prisma diferente. Basta que haja, em princípio, a possibilidade de instauração do processo criminal, ainda que, por qualquer circunstância (v.g. por falta de acusação particular ou de queixa ou por amnistia entretanto decretada), esse não seja ou não possa ser efetivamente instaurado)”.

Antunes Varela reafirma esta última posição in “Das Obrigações em Geral”, vol. I, ob. já cit., pág. 651, nota 3.

No mesmo sentido, Acs. STJ. de 17/11/98, Proc. 98A863; 03/12/98, Proc. 98B432; 27/12/2004, Proc. 04B3724; 27/12/2004, Proc. 05B2397; RE de 27/09/2007, Proc. 1489/07-2; RL. de 25/03/2010, Proc. 1227/08.2TVLSB-6, todos in base de dados da DGSI.

Desde logo, e só por isso, não estaria a presente ação prescrita.

De qualquer forma, o recorrente alega que o prazo apenas se iniciaria com o trânsito em julgado do despacho de arquivamento, que ocorreu em 10/05/2010 já que a prescrição não corre nem opera enquanto o direito não puder ser exercido pelo respetivo titular, tal como postula o n.º 1 do artigo 306º do C. Civil.

Ou seja, o prazo prescricional de cinco anos apenas se iniciaria após o trânsito do arquivamento do processo-crime contra o maquinista que ocorreu em 08/04/2010 já que apenas a partir desta data não haveria impedimento à instauração de um processo civil contra os aqui recorridos.

A este propósito diz-se na decisão recorrida:

“(...) Embora os Recorrentes invoquem o disposto no artigo 30.º do CPP, por ser o preceito referido no Acórdão do STJ, de 11/06/1986 que indicam na conclusão 10 do recurso, não é esse o CPP aplicável ao presente litígio, considerando a data dos factos, relevando antes o disposto no artigo 72.º, n.º 1 do CPP.

Segundo tal preceito do artigo 72.º, n.º 1 do CPP, o pedido de indemnização civil pode ser deduzido em separado perante o tribunal civil quando “o processo penal não tiver conduzido à acusação dentro de oito meses a contar da notícia do crime ou estiver sem andamento durante esse lapso de tempo”.

Verificada a circunstância factual de não ter sido deduzida acusação dentro do prazo de oito meses a contar da prática dos factos ou de o processo estar sem andamento, os Autores podiam desde logo instaurar a presente ação de responsabilidade civil, o que não fizeram.

O que significa que a ação teria que ser instaurada dentro do prazo de três anos se não a contar desde a data que tiveram conhecimento do facto, em 10/01/2008, cujo prazo para a instauração da ação terminaria em 10/01/2011, pelo menos a contar da data do arquivamento do processo-crime, em 12/02/2008 ou em 19/09/2008.

Não releva, por isso, o despacho de arquivamento de 08/04/2010, a que se refere o ponto 10 do julgamento da matéria de facto assente, por este – ao contrário do que pretendem fazer crer os ora Recorrentes, nos limites da sua boa-fé processual, por invocarem factos cuja falta de fundamento não deviam ignorar, segundo o artigo 542.º, n.º 2, a) do CPC –, respeitar ao apuramento da responsabilidade criminal do maquinista, que não figura como Réu na presente ação, por nela não ser demandado pelos Autores.

O que se atesta segundo o teor do despacho de arquivamento de 08/04/2010 que, erradamente, os ora recorrentes consideravam ser relevante:

“(…) Em cumprimento do despacho da Exma. Sra. Procuradora-Coordenadora, foi proferido o despacho de fls. 67, que determinou o arquivamento parcial dos autos quanto aos factos denunciados contra o Estado Português, o Ministério das Obras Públicas, dos Transportes e Comunicações, a Câmara Municipal de Sintra, as Juntas de Freguesia de Agualva e do Cacém, a Refer, E.P., a C.P. – Comboios de Portugal e que, entre o mais, consubstanciavam a eventual prática de um crime de infração de regras de construção, dano em instalações e perturbação de serviços, p. e p. pelo artigo 277.º do Código penal. Pelo que, quanto a estes factos e crimes não nos voltaremos a pronunciar.

Assim, está apenas em causa apurar da eventual responsabilidade de D………… pela prática de um crime de homicídio por negligência, p. e p. pelo artigo 137.º do Código Penal. (…)” (vide fls. 59 do processo físico).

Em relação aos Réus, ora Recorridos, antes relevam os despachos de arquivamento que constam nos pontos 8 e 9 do julgamento da matéria de facto, ou seja, em 12/02/2008 e em 19/09/2008. (...).

Nestes termos, forçoso se impõe concluir pela improcedência do fundamento do recurso, quanto ao erro de julgamento de direito em que incorre a sentença recorrida no tocante à decisão sobre a exceção de prescrição.”

Desde logo, e como consta de 8 e 9 da matéria de facto, os factos objeto do presente processo foram arquivados contra a Refer e a CP no âmbito do processo-crime nº 1877/08.7 TASNT, que correu termos junto da Comarca da Grande Lisboa – Noroeste - Ministério Público, G.L.N. Sintra – Serviços do Ministério Público, 2ª secção do DIAP, e notificados aos aqui recorrentes em 19/09/2008.

Contudo, e como resulta do Ac. deste STA 01200/16.7BESNT-A de 04/08/2021:

“Segundo o «princípio da adesão», que se encontra consagrado no artigo 71º do CPP, «O pedido de indemnização civil fundado na prática de um crime é deduzido no processo penal respetivo, só o podendo ser em separado, perante o tribunal civil, nos casos previstos na lei», e estes casos são os previstos no artigo 72º, segundo o qual, além do mais, «O pedido de indemnização cível pode ser deduzido em separado, perante o tribunal civil, quando: […] f) For deduzido contra o arguido e outras pessoas com responsabilidade meramente civil, ou somente contra estas haja sido provocada, nessa ação, a intervenção principal do arguido; […]».

Este «princípio geral da adesão» [artigo 71º], que nos casos previstos neste artigo 72º se transmuta num «princípio de opção», fundamenta-se essencialmente em vantagens que dele resultam para a vítima do crime - que economizaria tempo e dinheiro -, e em vantagens de «interesse geral» - com repercussão na descoberta da verdade material, a que tende o processo penal, no afastamento do perigo de contradição de julgados, entre o civil e o penal, e mesmo a nível de prevenção geral e especial, já que à pena, em si, é acrescentada a indemnização pelos danos sofridos.”

Pela mesma razão que se justifica a extensão do prazo em caso de ilícito criminal (a razão de não haver prazos diferentes para os civilmente responsabilizáveis), o prazo prescricional deve também contar-se a partir da data do arquivamento do processo-crime contra o maquinista e não do arquivamento do processo-crime contra a Refer e a CP.

E também não releva o facto de o processo ter estado parado 8 meses (alínea a) do nº 1 do art. 71º do CPP), já que resulta da jurisprudência do STJ na matéria, que os casos excecionais previstos no art. 72º nº 1 concedem uma possibilidade, e não um dever, de o lesado recorrer em separado à jurisdição civil, podendo optar por manter-se no processo criminal, em homenagem ao suprarreferido princípio da adesão, que é a regra.

Como se extrai do Ac.STJ Proc. 206/09 de 13/10/2009:

«Considera-se, assim, acompanhando-se a jurisprudência referenciada, que o prazo de prescrição para instauração da ação cível deve aguardar o desfecho do processo-crime que haja sido instaurado, pois ao lesado assiste o direito de pedir indemnização civil no âmbito da ação penal (art. 71º do CPP). O lesado pode renunciar a uma tal opção, deduzindo o pedido cível em separado em momento anterior, não podendo, no entanto, ser sancionado pelo não exercício de tal faculdade, o que traduziria uma contradição nos termos.

Se o propósito da lei é o de que seja apreciado em conjunto na ação penal o pedido de indemnização civil fundado na prática de crime, é bom de ver que não há inação do lesado que decide aguardar o desfecho do processo-crime, pois, assim procedendo, o lesado está a agir em conformidade com os objetivos da lei e, assim sendo, o prazo de prescrição não se pode iniciar, pois só com o desfecho do inquérito (por arquivamento ou por acusação) fica definido se tais objetivos podem ou não ser atingidos. Ora são estes momentos que importam para se considerar que o direito pode ser exercido (art. 306º nº 1 do CC), pois o direito que aqui se tem em vista é o direito de pedir indemnização cível juntamente com a ação penal».

E como também se diz no Ac. do STJ 2565 de 22/5/2018:

«O prazo de prescrição de 5 anos (aplicável por força das disposições conjugadas dos arts. 498º nº 3 do CC e 118º nº 1 c) do CP) apenas começou a correr, nos termos do art. 306º nº 1 do CC, com o desfecho do inquérito, portanto com a dedução da acusação contra o arguido em tais autos, momento a partir do qual o direito pôde ser exercido na ação civil. Com efeito, curando da responsabilidade conexa com a criminal, o art. 71º do CPP consagra o princípio da adesão da ação civil à ação penal que, mais que uma mera interdependência, das ações, arrasta o pedido de indemnização civil de perdas e danos para a jurisdição penal. Não obstante as diversas salvaguardas à obrigatoriedade de o direito à indemnização ser exercido no procedimento penal plasmadas no art. 72º do CPP, assiste ao lesado o direito de aguardar o termo do inquérito criminal, com o seu arquivamento ou com a dedução da acusação, se, perante qualquer das situações abarcadas em tais ressalvas, não quiser recorrer logo à ação cível em separado. Contudo, deduzida a acusação no inquérito, uma vez que o direito à indemnização tem de ser aí exercido nos prazos perentórios cominados no art. 77º do CPP, sob pena de ficar definitivamente encerrada a possibilidade do exercício da ação cível em conjunto com a penal, cessa o impedimento para o exercício do direito na instância cível e passa a verificar-se a inércia do respetivo titular em que se funda a extinção inerente à prescrição, iniciando-se o cômputo do prazo desta a partir de então».

Assim, o prazo de prescrição para petição de indemnização cível em separado não se inicia enquanto o inquérito crime não findar, por arquivamento ou acusação.

Pelo que, tendo o despacho de arquivamento contra o maquinista ocorrido em 18.04.2010 e tendo a ação administrativa sido intentada em 18/12/2012, ocorreram menos de 5 anos após o acidente, pelo que não ocorreu a prescrição da ação.


*

Em face de todo o exposto acordam os juízes deste STA em:

a) conceder provimento ao recurso e revogar a decisão recorrida;

b) julgar improcedente a exceção da prescrição;

c) determinar a baixa dos autos à 1ª instância para prosseguimento dos mesmos:

Lisboa, 10 de Março de 2022. – Ana Paula Soares Leite Martins Portela (relatora) - Adriano Fraxenet de Chuquere Gonçalves da Cunha – José Augusto Araújo Veloso.