Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0747/09.6BEPRT
Data do Acordão:06/03/2020
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:PAULO ANTUNES
Descritores:RETROACTIVIDADE DA LEI FISCAL
Sumário:O aditamento que ocorreu ao art. 9.º do Código de Imposto de Selo (CIS) por efeito da Lei n.º 60-A/2005 de 30.12 ao artigo 9.º do C.I.S., mais não fez do que transpor para o C.I.S. o que já decorria do regime transitório imposto pela reforma do património.
Nº Convencional:JSTA000P26009
Nº do Documento:SA2202006030747/09
Data de Entrada:12/02/2019
Recorrente:A... SA
Recorrido 1:AT – AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: Acordam na Secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo
I. Relatório

I.1. A…………, S.A., com os sinais dos autos, interpõe recurso da sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto, exarada em 27/06/2019, que julgou improcedente a impugnação que deduzira da liquidação adicional do Imposto de Selo n.º 000750449, no valor de €25.232,10.
I.2. Apresentou alegações que rematou com as seguintes conclusões:
1. A liquidação adicional impugnada teve por fundamento o n.º 4 do art.º 9.º do CIS, aditado pela Lei 60-A/2005 de 30 de Dezembro.
2. Aquela norma entrou em vigor em 1.1.2006, ou seja, em data posterior à do facto tributário.
3. A norma foi aplicada com carácter retroactivo.
4. No momento da verificação do facto tributário, não havia qualquer norma da qual resultasse que a Impugnante pudesse vir a ser tributada como foi.
5. A norma em causa é uma norma retroactiva disfarçada, é uma norma que o legislador designa de interpretativa para ocultar a retroactividade da lei.
6. A norma é substancialmente retroactiva uma vez que modifica o direito já existente, agravando a posição jurídica do destinatário.
7. Como tal a norma viola o n.º 3 do art.º 103.º da Constituição da República Portuguesa.
8. Sendo certo que a norma, nesta perspectiva, é inconstitucional por violação do n.º 3 do art.º 103.º, colocando em causa o princípio da segurança jurídica e o da não retroactividade da lei fiscal.
9. Consequentemente, a liquidação impugnada é ilegal.
Termos em que a sentença recorrida deve ser revogada e, em consequência, anulada a liquidação em causa, com a consequente restituição da quantia já entretanto paga e a condenação da AT ao pagamento de juros legais sobre a quantia em causa desde a data em que a recebeu e até à data em que a restituir.

I.3. O recurso foi admitido por despacho de 26/9/2019, com subida imediata, nos próprios autos e efeito meramente devolutivo.
I.4. Não foram aduzidas contra-alegações.
I.5. A Exm.ª Magistrada do Ministério Público emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso, dizendo, em síntese: “(…) De facto, face ao conteúdo dos autos, nomeadamente dos pontos assentes no probatório, que não foi questionado, dada a data da liquidação em causa e o disposto na Lei nº 60-A/2005, de 30.12, artigos 47º, nº1 e 13º, nº 2, por outro caminho não era de enveredar. A douta decisão recorrida mostra-se, quanto a nós, correcta. Fez correcta análise e interpretação dos factos e correcta se mostra a sua subsunção jurídica, mostrando-se devidamente fundamentada e apoiada em pertinente jurisprudência deste STA e TC bem como em doutrina que cita, não sendo passível de quaisquer censuras.
O fundamento do presente recurso não se mostra patente.(…)”.
I.6. Os Exm.ºs Conselheiros adjuntos tiveram vista dos autos através do S.I.T.A.F. aquando do projeto remetido.

II. Objeto do recurso.

Sendo de delimitar o objeto do recurso, de acordo com as conclusões da recorrente, resulta para decidir se o art. 9.º n.º 4 do Código de Imposto do Selo (CIS), aditado pela Lei n.º 60-A/2005, de 30/12, foi aplicado com carácter retroactivo, sendo inconstitucional por violação do n.º 3 do art.º 103.º da C.R.P. e dos princípios da segurança jurídica e o da não retroactividade da lei fiscal e, sendo assim, se é ilegal a liquidação ao contrário do decidido na sentença recorrida.
III. Fundamentação.
III.1. De facto.
A sentença recorrida deu como assentes os seguintes factos:
“1. Em 29.11.2004 foi outorgada escritura de compra e venda entre B………….. na qualidade de procurador e em representação da sociedade C……….., como 1º outorgante e D…………, E…………. rente, F…………, na qualidade de administradores e em representação da sociedade A………….., SA como segundos outorgantes relativamente à venda do terreno inscrito na matriz predial urbana sob o artigo 3894, pelo valor de €3.439.808, 13 – cfr. fls. 12 a 16 do processo físico.

2. Para efeitos de Imposto Municipal sobre as Transmissões Onerosas de Imóveis, foi entregue a declaração para liquidação, Modelo 1 relativamente ao imóvel descrito em 1. – cfr. fls. 29 do procedimento de reclamação graciosa (RG) junto aos autos.

3. Ao terreno para construção descrito em 1., foi atribuído em 11.07.2005 o valor patrimonial tributário de €6.593.820,00 – cfr. fls. 18 do processo físico e fls. 29 e 30 do procedimento de RG junto aos autos.

4. Em resultado do valor patrimonial tributário a que se alude em 3., foi emitida em 19.12.2007 a liquidação de Selo n.º 2008 000010386 no montante de €25.232,10 – cfr. fls. 9 do processo físico.

5. A…………., SA deduziu em 12.06.2008 reclamação graciosa da liquidação descrita em 4. – cfr. fls. 2 a 4 do procedimento de RG junto aos autos.

6. Sob a reclamação graciosa a que se alude em 5., recaiu despacho de indeferimento em 27.02.2009 – cfr. fls. 41 do procedimento de RG junto aos autos.

7. A liquidação descrita em 4. foi paga no âmbito do processo de execução fiscal n.º 3190200801015249 em 30.04.2008 – cfr. verso de fls. 50 e fls. 51 do processo físico.”
III. 2. De direito.
Pelo n.º 1 do artigo 47.º da Lei n.º 60-A/2005 de 30.12, cuja aplicação é posta em causa e que foi inserido na Lei de Orçamento de Estado para 2006, foi aditado o n.º 4 do artigo 9.º do Código do Imposto de Selo (C.I.S.), para vigorar desde 1-1-2006, passando este a dispor o seguinte:
-“À tributação dos negócios jurídicos sobre imóveis, prevista na tabela geral, aplicam-se as regras de determinação da matéria tributável do Código do Imposto Municipal sobre as Transmissões Onerosas de Imóveis”.
A tal alteração se referia ainda o n.º 2 do artigo 13.º da Lei n.º 60-A/2005 de 30.12, nos seguintes termos:
- “A redacção dada pela presente lei ao artigo 9.º do Código do Imposto de Selo aprovado pela Lei n.º 150/99, de 11 de Setembro, tem carácter interpretativo.”
De acordo com a recorrente, resulta inconstitucionalidade por violação do n.º 3 art. 103.º da Constituição da República Portuguesa (C.R.P.) e dos princípios da segurança jurídica e da não retroactividade, na aplicação efetuada do dito art. 9.º n.º 4 do C.I.S. à liquidação que veio a ser efetuada – cuja data é de 2007 -, sendo os factos tributários - transmissão do imóvel - de 29-11-2004.
Ora, segundo o n.º 3 do artigo 103.º da C.R.P., “ninguém pode ser obrigado a pagar impostos que não hajam sido criados nos termos da Constituição, que tenham natureza retroactiva ou cuja liquidação e cobrança se não façam nos termos da lei”.
De acordo com a jurisprudência dominantes, nomeadamente, do S.T.A. e do Tribunal Constitucional (T.C.), no dito n.º 3 do art. 103.º da C.R.P., está consagrada não uma regra de proibição de retroatividade, mas um princípio de não retroactividade da lei fiscal, a aplicar com outros, como outros princípios como o da segurança jurídica e o da protecção da tutela da confiança - assim, nos acórdãos de 28-9-2011 do S.T.A. no processo n.º 0790/11, acessível em www.dgsi.pt e nos n.ºs 399/2010, 18/2011, 137/2014, 171/2017 e 395/2017, do T.C., acessíveis, em www.tribunalconstitucional.pt.
À não retroactividade da lei fiscal se refere também o artigo 12.º da Lei Geral Tributária (L.G.T.), conforme se fundamenta na sentença recorrida.
No caso do I.S., que é imposto de obrigação única, assume ainda pertinência os n.ºs 1, 3 e 4 desse artigo 12.º: “não podem ser criados quaisquer impostos retroactivos” (n.º 1); “as normas sobre procedimento e processo são de aplicação imediata, sem prejuízo das garantias, direitos e interesses anteriormente constituídos” (n.º 3); “não são abrangidas pelo disposto no número anterior as normas que, embora integradas no processo de determinação da matéria colectável, tenham por função o desenvolvimento das normas de incidência” (n.º 4).
Ora, no Decreto-Lei n.º 287/2003 de 12.11, em que se procedeu à reforma da tributação do património, aprovando o Código de Imposto Municipal Sobre as Transações Onerosas Sobre Imóveis (CIMT), o Código do Imposto Municipal sobre Imóveis (CIMI) e alterando o C.I.S., foi estabelecido no seu artigo 27.º o seguinte:
“2 - O imposto do selo é liquidado, sem prejuízo das regras especiais previstas no respectivo Código, nos seguintes termos: a) No caso de prédios urbanos, com base no valor da avaliação prevista no n.º 1 do artigo 15.º do presente diploma; (…) 3 - Havendo lugar a transmissão para efeitos de IMT que não envolva mudança de sujeito passivo em sede de IMI, o adquirente apresenta a declaração prevista no artigo 37.º do CIMI, conjuntamente com a referida no artigo 19.º do CIMT. 4 - O valor patrimonial tributário resultante da avaliação efectuada com base na declaração referida na primeira parte do número anterior só produz efeitos no IMI quando se operar a mudança de sujeito passivo deste imposto”.
Por sua vez, no n.º 1 do artigo 15.º do mesmo Diploma estabeleceu-se ainda:
-Enquanto não se proceder à avaliação geral, os prédios urbanos já inscritos na matriz serão avaliados, nos termos do CIMI, aquando da primeira transmissão ocorrida após a sua entrada em vigor, sem prejuízo, quanto a prédios arrendados, do disposto no artigo 17.º “
Neste quadro legal, resulta que à data da transmissão efectuada, 29-11-2004, já se encontrava previsto que o valor a considerar, para efeitos de Imposto de Selo, tivesse de resultar da avaliação a efectuar ao imóvel transmitido, o que, antes da avaliação geral, era de efectuar após a 1.ª transmissão do bem imóvel, nos termos previstos no art. 27.º n.º 2 do dito Dec.-Lei n.º 287/2003.
Aliás, para que se procedesse a tal avaliação, a ora recorrente apresentou modelo próprio.
Assim sendo, o aditamento que ocorreu ao art. 9.º do C.I.S. por efeito da Lei n.º 60-A/2005 de 30.12 ao artigo 9.º do C.I.S., mais não fez do que transpor para o C.I.S. o que já decorria do regime transitório imposto pela reforma do património.
Não se trata, pois, de autêntica retroactividade, nem era expectável por parte do sujeito passivo que a liquidação não viesse a ser efetuada, de acordo com a avaliação a efectuar ainda ao imóvel.
Conforme se pode ler no acórdão do Tribunal Constitucional n.º 18/2011, “não existe uma expectativa constitucionalmente tutelada no sentido de considerar que qualquer agravamento fiscal é apenas aplicável a factos tributários futuros. De outro modo, por efeito do princípio da protecção da confiança, tornar-se-á inoperante o entendimento formulado pelo Tribunal Constitucional quanto ao âmbito de proibição constitucional da retroactividade, implicando que sempre que ocorresse uma situação de retrospectividade ou retroactividade inautêntica haveria de julgar-se verificada a inconstitucionalidade”.
Aliás, a recorrente não invoca sequer que quanto à aplicação do dito regime transitório tenha resultado controvérsia, o que, segundo certa jurisprudência do Tribunal Constitucional ainda releva – assim, no acórdão n.º 395/2017-, invocando tratar-se de uma retroactividade disfarçada.
O que aconteceu foi o legislador ter vindo ainda a esclarecer o sentido da lei já existente e em vigor desde 1-12-2003, nos termos do art. 23.º do referido Dec.-Lei n.º 287/2003, antecipando eventuais decisões contraditórias por parte dos órgãos decisores e dos próprios Tribunais.
E na medida em que lhe conferiu força interpretativa, criou segurança para o futuro e igualdade na aplicação da lei.
O n.º 4 do art. 9.º do C.I.S., na redacção dada pelo artigo 47.º da Lei n.º 60-A/2005 de 30.12, não se tratando de uma norma verdadeiramente inovadora, conforme acima referido, podia integrar-se na lei interpretada, conforme previsto no art. 13.º n.º 1 do Código Civil.
É tempo de concluir que, conforme decidido na sentença recorrida, não ocorre a violação do dito n.º 3 do art. 103.º da C.R.P., nem dos princípios da segurança jurídica e da não retroactividade, aliás, tal como já decidido também no acórdão do S.T.A. de 30-5-2018, proferido no processo n.º 0534/15, acessível em www.dgsi.pt.
IV – Decisão:
Nos termos expostos, os Juízes Conselheiros da Secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo acordam em negar provimento ao recurso e em confirmar a sentença recorrida.
Custas pela recorrente.
Lisboa, 3 de junho de 2020. – Paulo José Rodrigues Antunes (relator) - Paula Fernanda Cadilhe Ribeiro – Jorge Miguel Barroso de Aragão Seia.