Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0401/14.7BEPRT
Data do Acordão:10/09/2019
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:NEVES LEITÃO
Descritores:IVA
LOCAÇÃO FINANCEIRA
CÁLCULO PRO RATA
INDEMNIZAÇÃO
Sumário:I - Por Acórdão de 10.07.2014, proferido no processo C-183/13 considerou o TJUE que os Estados-Membros em circunstâncias como as do referido processo, podem obrigar um banco que exerce, nomeadamente, actividades de locação financeira a incluir, no numerador e no denominador da fracção que serve para estabelecer um único e mesmo pro rata de dedução para todos os seus bens e serviços de utilização mista, apenas a parte das rendas pagas pelos clientes, no âmbito dos seus contratos de locação financeira, que corresponde aos juros, quando a utilização desses bens e serviços seja sobretudo determinada pelo financiamento e pela gestão desses contratos, o que incumbe ao órgão jurisdicional de reenvio verificar.
II - Em face da interpretação fornecida pelo Tribunal de Justiça sobre a questão, cuja doutrina é inteiramente aplicável ao caso em apreço, por serem idênticos os pressupostos de facto e de direito, deve ser considerada a necessidade de apurar se nas operações de locação financeira para o sector automóvel, como as que estão em causa nos presentes autos, que podem implicar a utilização de certos bens ou serviços de utilização mista, como edifícios, consumo de electricidade ou outros serviços transversais, essa utilização é sobretudo determinada pelo financiamento e pela gestão dos contratos de locação financeira celebrados com os seus clientes, e não pela disponibilização dos veículos.
III - As indemnizações, no caso de sancionarem a lesão de qualquer interesse sem carácter remuneratório, porque não remuneram qualquer operação, antes se destinam a reparar um dano, não são tributáveis em IVA, na medida em que não têm subjacente uma transmissão de bens ou uma prestação de serviços.
IV - Considerando que não foram fixados na sentença proferida no tribunal de 1ª instância os factos materiais suficientes para a aplicação dos regimes jurídicos supra enunciados, deve a sentença recorrida ser revogada e ordenada a devolução do processo ao tribunal recorrido para ampliação da matéria de facto (art.682º nºCPC)
Nº Convencional:JSTA000P24992
Nº do Documento:SA2201910090401/14
Data de Entrada:02/22/2019
Recorrente:A..........., SA
Recorrido 1:AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: 1. RELATÓRIO
1. A…………, S.A. e a Fazenda Pública interpuseram recursos para o Supremo Tribunal Administrativo da sentença proferida no Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto, a qual julgou parcialmente procedente a impugnação judicial deduzida pela primeira recorrente contra as liquidações adicionais de IVA (exercícios de 2009 e 2011) no montante global de € 343.618,86.

1.1 A recorrente A…………, S.A. apresentou alegações que sintetizou com a formulação das seguintes conclusões:
A. O presente recurso vem interposto da sentença proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto que julgou parcialmente improcedente a impugnação judicial das liquidações adicionais do IVA emitidas por referência aos exercícios de 2009 e 2011, na parte em que a Recorrente decaiu, nomeadamente no que respeita ao cálculo da percentagem de dedução do IVA a considerar para os referidos exercícios.
B. Salvo o devido respeito, a decisão proferida em 1ª. instância, na parte em que julgou improcedente a pretensão da aqui Recorrente, (i) assentou numa errada interpretação e aplicação do Direito interno português e da jurisprudência comunitária, errando nos seus pressupostos de facto e de Direito, (ii) viola ainda o princípio da neutralidade e da igualdade de tratamento fiscal e, bem assim (iii) assenta, por fim, numa errada interpretação dos factos.

Da redação do artigo 173.º da Diretiva IVA e da sua transposição para o direito interno nacional
C. O artigo 23.º do Código do IVA consagra dois métodos distintos para os sujeitos passivos efetuarem a dedução do imposto suportado, nos casos em os mesmos, no exercício da sua atividade, realizam operações que conferem direito à dedução e operações que não conferem esse direito: o método da afetação real, utilizado nas situações em que o sujeito passivo consegue perfeitamente identificar bens e serviços que são apenas parcialmente afetos a operações não decorrentes do exercício de uma atividade económica, podendo, nestes casos, efetuar a dedução do imposto na exata medida da afetação parcial dos aludidos bens e serviços a atividades económicas que confiram o direito à dedução, e o método pro-rata, utilizado nas situações em que o sujeito passivo não consegue identificar claramente em que medida determinados bens e serviços são utilizados para fins económicos, podendo deduzir o imposto suportado com base na percentagem que tais bens e serviços têm no montante anual das operações do sujeito passivo que dão lugar à dedução.
D. A alínea c) do n.º 2 do artigo 173.º da Diretiva IVA prevê que os Estados-Membros possam adotar medidas que, quando seja aplicado o método pro-rata, autorizem ou obriguem os sujeitos a efetuar a dedução com base na afetação da totalidade ou parte dos bens e dos serviços.
E. A norma da Diretiva IVA supra referida não é de aplicação direta, na medida em que as disposições constantes das Diretivas vinculam os Estado-Membros quanto ao resultado a alcançar e carecem, para a sua aplicação, da necessária transposição, ao abrigo do disposto no artigo 288.º do TFUE, pelo que a sua aplicação no direito interno português teria de ser efetuada por via legislativa, nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 103.º e alínea i) do n.º 1 do artigo 165.º da CRP e do artigo 8.º da LGT, em conjugação com o já mencionado artigo 288.º do TFUE.
F. O artigo 23.º do Código do IVA apenas prevê para o método de afetação real a possibilidade de a AT impor condições especiais ou fazer cessar a aplicação do referido método quando tal possa provocar distorções significativas na tributação.
G. Tal possibilidade não está expressamente prevista para os casos de aplicação do método da percentagem de dedução ou pro rata, sendo o respetivo cálculo determinado nos termos do n.º 4 do artigo 23.º do Código do IVA, o qual não prevê a possibilidade de desconsiderar a totalidade ou uma parte dos bens ou serviços da fórmula aí prevista.
H. A letra da norma consagrada no n.º 2 do artigo 23.º do Código do IVA, ponto de partida e limite da interpretação da lei (cf. artigo 9.º do CC), refere, expressamente, que é apenas relativamente à aplicação do método da afetação real que é permitido à AT efetuar correções ao mesmo, nos casos em que a aplicação do aludido método provoque distorções na tributação, não sendo permitido a aplicação da mesma possibilidade por analogia ao método da percentagem de dedução, ao abrigo do disposto no n.º 4 do artigo 11.º da LGT, que proíbe a interpretação analógica em matéria tributária.
I. A falta de transposição por parte do legislador nacional da possibilidade conferida pela alínea c) do n.º 2 do artigo 173.º da Diretiva IVA resulta que foi sua intenção de, perante a aludida norma facultativa, optar por não a acolher, nem adotar no ordenamento jurídico nacional.
J. A legislação interna portuguesa não transpôs internamente a faculdade prevista na Diretiva IVA [v.g., a atual alínea c) do n.º 2 do artigo 173.º da referida Diretiva] que permite aos Estados-Membros obrigar os sujeitos passivos a efetuar a dedução com base na afetação da totalidade ou de parte dos bens e dos serviços, pelo que não existe, na letra da lei, nomeadamente no artigo 23.º do Código do IVA, a possibilidade de aplicação de uma percentagem de dedução diferente da que se indica no n.º 4 do artigo 23.º do Código do IVA.
K. A decisão proferida pelo TJUE no Caso Banco Mais assentou numa errada interpretação do direito interno português, uma vez que não confirmou se a legislação nacional consagrou, efetivamente, a possibilidade conferida pela alínea c) do n.º 2 do artigo 173.º da Diretiva IVA e, assume que a lei portuguesa previu efetivamente a possibilidade de a AT impor outros métodos de dedução de IVA para bens e serviços de utilização mista, o que não corresponde à realidade.
L. A posição do STA vertida no âmbito do Acórdão proferido no Processo n.º 0485/17, de 15 de novembro de 2017, bem como no Acórdão proferido no Processo n.º 01874/13, de 17 de junho de 2015, não merece acolhimento no caso em apreço, na medida em que não analisou, em concreto, se a legislação interna portuguesa permitia à AT efetuar correções ao método de cálculo da percentagem de dedução.
M. Tal posição é corroborada pela jurisprudência emanada pelo CAAD, nomeadamente nos Acórdãos proferidos no âmbito dos Processos n.º 311/2017-T, de 9 de janeiro de 2018, n.º 309/2017-T, de 20 de novembro de 2017 e n.º 312/2017-T, de 16 de janeiro de 2018, que aqui se acolhem.
N. O entendimento do Tribunal a quo encontra-se inquinado por uma errada interpretação e aplicação do Direito interno português e da jurisprudência comunitária, errando nos seus pressupostos de Direito e de facto, pelo que a sentença aqui posta em crise enferma de vício de violação de lei, razão pela deve ser revogada em conformidade.

Da violação do princípio da neutralidade pela decisão recorrida
O. Em sede de IVA, o valor tributável a considerar no âmbito de operações de locação financeira é, ao abrigo do disposto na alínea h) do n.º 2 do artigo 16.º do Código do IVA, o valor da totalidade da renda recebida ou a receber do locatário.
P. Não existe na legislação aplicável qualquer distinção entre juro e capital para efeitos de liquidação do IVA, na medida em que o legislador estabeleceu que a base tributável das referidas operações engloba as duas componentes da renda como uma só, fundindo-as no conceito geral de contrapartida.
Q. A Recorrente liquida IVA sobre a totalidade das rendas, ao abrigo da aplicação das disposições previstas no Código do IVA, pelo que a não consideração da componente correspondente ao capital amortizado no volume de negócios para efeitos de determinação do pro-rata tem como consequência que seja a Recorrente, que não é o sujeito passivo final para efeitos deste imposto, a suportar efetivamente uma parte do IVA, concretamente, a componente do IVA suportado relativamente ao capital amortizado.
R. O cálculo da Recorrente não se mostra incoerente por incluir na determinação da percentagem de dedução em causa o capital reembolsado nas operações de locação financeira e ALD e já não as operações de crédito, uma vez que as operações de crédito encontram-se isentas do imposto em crise, ao abrigo da alínea a) do n.º 27 do artigo 9.º do Código do IVA, ao contrário do que acontece com as operações de locação financeira e ALD, que são operações tributáveis na íntegra.
S. A posição do Tribunal a quo vertida na sentença recorrida causa graves distorções na tributação, afetando a neutralidade do imposto e atentando contra o princípio da igualdade de tratamento fiscal, na medida em que nega à Recorrente, que não tem que suportar o encargo final do imposto em apreço, por não ser ela o sujeito passivo final, o direito a considerar, para efeitos de determinação do pro-rata de dedução, a totalidade das, alegadamente, distintas componentes que compõe os contratos de locação financeira e ALD, as quais são sujeitas a IVA na sua totalidade.
T. Na prática, na posição corroborada pela decisão recorrida, a AT impõe que as operações de locação financeira e ALD em causa sejam operações tributáveis na íntegra, mas já não aceita que o sejam também para efeitos de determinar a proporção ou peso dessas operações tributáveis que conferem direito à dedução no cômputo da atividade global do sujeito passivo.
U. A posição do Tribunal a quo resulta num claro enviesamento da realidade tributária e onera a aqui Recorrente com um custo efetivo de IVA que não é seu encargo, em desrespeito pelo princípio da neutralidade e da igualdade de tratamento fiscal, causando assim uma distorção significativa de tributação, razão pela qual deve ser revogada em conformidade.
V. Caso assim não se entenda, requer-se que, nos termos do artigo 267.º do TFUE, a presente instância seja suspensa e se proceda ao reenvio do processo ao TJUE para que esta instância se pronuncie sobre as questões prejudiciais, que se sugerem nos seguintes termos:
• O artigo 288.º do TFUE opõe-se a que um Estado-Membro que não transpôs na sua legislação interna uma disposição facultativa prevista na Sexta Diretiva de IVA [em concreto, da respetiva alínea c) do n.º 5 do artigo 17.º, atual alínea c) do n.º 2 do artigo 173.º da Diretiva IVA] a possa aplicar contra os seus contribuintes?
• O princípio da neutralidade fiscal subjacente à Diretiva IVA e respetivo sistema do Imposto sobre o Valor Acrescentado opõe-se a que um Estado-Membro que sujeita a este imposto a totalidade das rendas decorrentes de operações de locação financeira e de aluguer de longa duração do ramo automóvel, obrigue à exclusão, da fração que serve para determinar o pro-rata de dedução do locador, da parte dessas rendas não associada a juros?
W. Tal como resulta dos factos provados, o Tribunal a quo limita-se a citar os Relatórios de Inspeção Tributária emitidos com referência aos exercícios de 2009 e 2011, não tendo dado como provado que, efetivamente, o cálculo da percentagem de dedução utilizado pela Recorrente se mostrava incoerente e/ou causava distorções significativas na tributação, requisito essencial para que, caso se admitisse que a AT tinha poderes para efetuar correções ao cálculo da percentagem - no que não se concede -, pudesse efetivamente corrigir o cálculo da Recorrente.
X. Não basta a AT alegar simplesmente que um determinado cálculo "causa distorções significativas na tributação" ou "provoca vantagens injustificadas", sem concretizar em que medida é que tais distorções ou vantagens se verificam especificamente no caso concreto, para se considerar suficientemente fundamentada a correção empreendida a esse respeito.
Y. A jurisprudência do TJUE, que constitui a base de toda a argumentação do Tribunal a quo, defende que a legislação comunitária não se opõe a que um Estado-Membro obrigue os sujeitos passivos a corrigir o cálculo da percentagem de dedução, quando se comprove que a utilização dos bens e serviços de utilização mista foi sobretudo determinada pela componente de financiamento subjacente aos contratos de locação financeira ou ALD, o que incumbe aos respetivos órgãos jurisdicionais verificar.
Z. A AT, no caso concreto, não logrou demonstrar que os bens e serviços de utilização mista da Recorrente se encontravam sobretudo influenciados pela componente do financiamento associado aos contratos de locação financeira ou ALD, o que igualmente não resulta dos factos dados por provados ou não provados pelo Tribunal a quo.
AA. Caso a AT tivesse procurado averiguar se, no caso concreto da Recorrente, os bens e serviços de utilização mista são sobretudo influenciados pela componente de financiamento subjacente às operações de locação financeira e ALD, facilmente teria concluído que, quer os contratos de locação financeira, quer os contratos de ALD celebrados pela Recorrente, consubstanciam contratos únicos, que não segregam, nas obrigações assumidas pelas partes, uma componente de "disponibilização" dos veículos da componente de "financiamento".
BB. ln casu, ambas as componentes se fundem nos tipos de contratos específicos aqui em causa e na prestação única que é assumida pela Recorrente nestes contratos de locação financeira automóvel e ALD celebrados, que se reconduz à "entrega para uso e fruição" do locatário de um determinado veículo automóvel, conforme ademais decorre do próprio regime jurídico do contrato de locação financeira 28 [(28) Decreto-Lei n.º 149/95, de 24 de junho (na redação que lhe foi dada pelo Decreto-Lei n.º 30/2008, de 25 de fevereiro].
CC. Para o cumprimento das obrigações emergentes dos contratos celebrados e exercício dos direitos que o(s) regime jurídico/contratos em causa lhe atribui, a Recorrente utiliza recursos, entre os quais bens ou serviços de utilização mista, como edifícios, consumo de eletricidade, serviços de telecomunicações, ou certos serviços transversais, sendo inegável que é por disponibilizar os veículos automóveis aos locatários que a Recorrente celebra, mantém em vigor e gere os contratos em causa.
DD. O TJUE apenas admite que um Estado-Membro possa impor aos sujeitos passivos a consideração de apenas parte das rendas associadas aos juros nos contratos de locação financeira e ALD quando se constatar que a utilização de bens e serviços seja sobretudo determinada pelo financiamento e pela gestão desses contratos, requisito que não foi considerado nem pela AT nem pelo Tribunal a quo.

Da reforma quanto a custas
EE. A Recorrente decaiu apenas em 56% da ação, na medida em que o Tribunal a quo acolheu a pretensão da Recorrente no que respeita aos montantes auferidos a título de indemnização aquando da perda total de veículos objeto de contratos de locação financeira e ALD, pelo que não poderá ser condenada no pagamento integral das custas do processo, mas apenas na proporção do respetivo decaimento, devendo a decisão ser reformada quanto a custas em conformidade.

1.2. A Fazenda Pública interpôs recurso na parte em que a decisão lhe foi desfavorável, respeitante às anulações das liquidações de IVA incidentes sobre as indemnizações por perda total dos veículos objecto de contratos de locação financeira e aluguer de longa duração (ALD)
Apresentou alegações com a formulação das seguintes conclusões:
A. Vem o presente recurso interposto contra o segmento procedente da sentença proferida nos presentes autos que julgou a impugnação parcialmente procedente e, em consequência anulou as liquidações adicionais de IVA de 2010, referente aos períodos de Janeiro, Fevereiro, Março, Abril, Maio, Agosto, Setembro, Outubro e Dezembro.

B. A Fazenda Pública não se conforma com o decidido, relativamente à liquidação de IVA sobre os montantes auferidos aquando da perda total dos bens locados, pois entende que a douta sentença incorreu em erro de julgamento de facto e de direito, nomeadamente dos artigos 16º, nº 6-a) e 1º, nº 1, e 4º, nº 1, do CIVA.

Vejamos,

B. A presente impugnação foi deduzida pela ora impugnante contra os actos tributários consubstanciados nas referidas liquidações adicionais de IVA, processadas após a conclusão da acção inspectiva externa levada a cabo à impugnante a coberto das ordens de serviço n.ºs 01201300031 (para 2009, correcção no montante final de €64.156,82) e 0120300050 (para 2011, correcção no montante final de € 73.074,53), em ambos no cap. III.2.2, na sequência da qual foram efectuadas diversas correcções quer em sede de IRC quer em sede de IVA.

Relativamente à matéria aqui objecto de recurso [ordens de serviço n.ºs 01201300031 (para 2009, correcção no montante final de € 64.156,82) e 0120300050 (para 2011, correcção no montante final de € 73.074,53)], das referidas acções inspectivas resultou que:

C. No âmbito do exercício normal da actividade de locação financeira, ocasionalmente os contratos são resolvidos, em consequência de perda total dos bens objecto de locação, motivada por sinistro, da qual resultam obrigações e fluxos financeiros entre locador e locatário.

D. Da análise da listagem de contratos, relativamente aos quais ocorreram perdas totais, verificou-se que o sujeito passivo não procedeu à liquidação de IVA sobre o valor em dívida.

E. De acordo com o clausulado contratual, o bem locado é objecto de apólice de seguro, o qual será suportado directamente pelo locatário, mas fazendo sempre figurar o locador como tomador/beneficiário do mesmo.

F. Deste modo, a indemnização atribuída pela seguradora é paga à locadora, cabendo a esta prestar contas ao locatário, restituindo ou exigindo a diferença, caso o valor da indemnização recebida seja superior ou inferior ao valor da dívida, respectivamente.

G. Logo, o encontro de contas efectuado entre a locadora e o locatário, após o recebimento da indemnização, consubstancia, em si mesmo, o cumprimento de duas obrigações distintas, sendo uma, o pagamento à locadora, por parte do locatário, do capital em dívida no momento da perda do bem, e outra, a restituição pela locadora ao locatário do valor da indemnização recebido da seguradora.

H. Estão sujeitas a Imposto sobre o Valor Acrescentado as prestações de serviços efectuadas no território nacional de acordo com a al. a) do n.º 1 do art.º 1.º do CIVA, sendo, nos termos do n.º 1 do art.º 4.º do mesmo código, consideradas como prestações de serviços as operações efectuadas a título oneroso que não constituem transmissões, aquisições intracomunitárias ou importações de bens.

I. Do carácter residual do conceito de prestação de serviços, resulta a sujeição a IVA de vantagens/realidades económicas que nem sempre correspondem a uma qualificação jurídica definida.

J. A qualificação de prestação de serviços é aqui de natureza económica e ultrapassa a definição jurídica dada pelo art.º 1154.º do Código Civil, abrangendo a transmissão de direitos, a obrigação de conteúdo negativo (não praticar determinado ato) e ainda a prestação de serviços coactiva (conforme n.º 1 do art.º 24.º e art.º 25.º da Directiva 2006/112/CE do Conselho, de 28 de Novembro de 2006 - Esta Directiva veio revogar a Directiva n.º 77/388/CEE, de 17 de Maio de 1977, conhecida com a “Sexta Directiva”. Assim sendo, todas as referências àquela nos textos legislativos e doutrina administrativa devem ler-se, actualmente, como Directiva n.º 2006/112/CE, de 28 de Novembro de 2006).

K. Por outro lado, o art.º 562.º do Código Civil estabelece o princípio geral da obrigação de indemnização, dispondo que “Quem estiver obrigado a reparar um dano deve reconstituir a situação que existiria, se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação.”.

L. Por sua vez, o n.º 1 do art.º 564.º daquele Código estipula que o dever de indemnizar compreende não só o prejuízo causado, como os benefícios que o lesado deixou de obter em consequência da lesão.

M. Assim, o devedor que não cumpriu a prestação a que estava contratualmente vinculado, vê-se na necessidade de reconstituir a situação que existiria se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação, isto é, deverá satisfazer o interesse que resultaria do cumprimento perfeito do contrato — interesse positivo ou de cumprimento (Mota Pinto, Dir. Civil, 1980-158).

N. No enquadramento da sujeição ou não a IVA das quantias recebidas a título de indemnização, por parte da locadora, há que ter em conta o princípio subjacente ao IVA, enquanto imposto sobre o consumo, pretendendo tributar a contraprestação de operações tributáveis e não a indemnização de prejuízos, que não tenham carácter remuneratório.

O. Assim, são tributáveis em IVA as indemnizações que tenham subjacente uma transmissão de bens ou prestação de serviços, por configurarem uma contraprestação a obter do adquirente de uma operação sujeita a imposto.

P. Pelo contrário, as indemnizações que sancionam a lesão de qualquer interesse, sem carácter remuneratório porque não remuneram qualquer operação, antes se destinam a reparar um dano (como as indemnizações pagas pelas companhias de seguro, decorrente da ocorrência da perda total do veículo, facto que corresponde a um dos riscos cobertos pelo seguro), não são tributáveis em sede de IVA, na medida em que não têm subjacente uma transmissão de bens ou prestação de serviços.

Q. Deste modo, o valor do pagamento a efectuar pelo locatário à locadora referente ao montante em dívida (valor das rendas vincendas e valor residual, actualizados ao momento da perda total do bem), configura a compensação de réditos (ou proveitos) que deixaram de se obter (lucros cessantes), pelo que deverá entender-se o seu pagamento como uma contraprestação de uma operação sujeita a imposto.

R. Ora, se nos termos da alínea a) do n.º 6 do art.º 16.º do CIVA, são excluídas da base tributável “...as quantias recebidas a título de indemnização declarada judicialmente, por incumprimento total ou parcial de obrigações;” resulta, “a contrario sensu”, que as indemnizações/compensações desta natureza, se não declaradas judicialmente, encontram-se sujeitas a IVA.

S. Face ao exposto, e não tendo a impugnante liquidado IVA sobre o valor em dívida pago pelos locatários na sequência da perda total dos bens locados, será de apurar imposto em falta, em cumprimento do art.º 1º, n.º 1 do art.º 4º, alínea h) do n.º 2 e alínea a) do n.º 6 “a contrario” do art.º 16º, conjugado com a alínea c) do n.º 1 do art.º 18.º 7, todos do CIVA, nos montantes de €64.156,82 e €73.074,53.

T. Deste modo, com a resolução do contrato de locação financeira em resultado da perda total do bem locado e com o recebimento da indemnização, paga pela seguradora, a Exponente não exerce a cláusula penal prevista naqueles contratos, e consequentemente, não cobra quaisquer montantes suplementares aos locatários (nem rendas vencidas, nem eventuais valores residuais); Limita-se a transferir para os locatários a diferença positiva entre o Valor recebido da seguradora e o valor do capital em dívida ao abrigo do contrato de financiamento, já que não faria qualquer sentido registar, na sua esfera, um proveito equivalente aquela diferença, uma vez que tal procedimento se traduziria numa vantagem patrimonial.

U. Este acerto de contas assenta no facto da impugnante ter de ser ressarcida dos danos associados à perda do bem locado através do recebimento de uma indemnização paga pela seguradora (limitando-se a anular contabilisticamente os registos subjacentes aos contratos de locação financeira) e pelo facto do valor excedente não lhe pertencer.

V. Porém, as cláusulas de resolução dos contratos de locação financeira apenas se destinam a assegurar que, nos casos em que a indemnização paga pela seguradora seja inferior ao valor real e contabilístico do bem perdido, o prejuízo decorrente dessa perda, não será suportado pela locadora mas sim pelo locatário.

W. A impugnante conclui que a perda total dos bens locados determina, por um lado, a resolução dos contratos, e, por outro, o pagamento, pela seguradora à locatária, de uma indemnização de montante equivalente ao salvado.

X. Adicionalmente, a locadora, após a recepção da indemnização, opta por entregar ao locatário o montante correspondente à diferença positiva entre a indemnização e o valor contabilístico do veículo.

Y. Ora, o encontro de contas efectuado entre a locadora e o locatário, após o recebimento da indemnização, consubstancia, em si mesmo, o cumprimento de duas obrigações distintas, sendo uma o pagamento à locadora, por parte do locatário, do capital em dívida no momento da perda do bem, e outra, a restituição pela locadora ao locatário do valor da indemnização recebido da seguradora.

Z. Atendendo à argumentação da impugnante, estas duas operações não podem ser analisadas de forma isolada, na medida em que o valor a restituir ao locatário dependerá sempre do montante atribuído a título indemnizatório pela seguradora, ou seja, corresponde à diferença positiva entre o valor da indemnização e o valor em dívida.

AA. Deste modo, e não obstante o alegado pela impugnante, somos a considerar que o valor sujeito a IVA é sempre o valor em dívida à data da perda total do veículo e não o valor relativo à indemnização recebida da seguradora, porque não tem subjacente uma operação sujeita a imposto, nunca é tributado em sede de IVA.

BB. Ora, os SIT não pretendem sujeitar a tributação em sede de IVA, o valor indemnização paga pela seguradora à locadora, até porque, de acordo com o texto da própria correcção vertida no ponto III.2.2 dos RIT.

CC. Prosseguindo, cabe-nos referir que a obrigação de pagamento do valor em dívida à data da perda total do veículo se encontra prevista na alínea d) da cláusula 11.ª (Procedimentos em caso de sinistro) das “Condições Gerais de um contrato de locação financeira”, “Se de acordo com a peritagem da Companhia de Seguros, se tratar de sinistro com Perda Total do Bem, o contrato caducará, devendo o Locatário pagar na mesma data ao Locador o valor do capital ainda não recuperado, acrescido de todos os débitos vencidos e não pagos, bem como dos juros correspondentes ao período que mediar entre o momento em que o contrato caduca e o efectivo pagamento. O Locador devolverá ao Locatário o valor da indemnização paga pela Companhia de Seguros, logo após haver recebido do Locatário as importâncias anteriormente referidas”. Até do conteúdo do próprio contrato indemnização, consubstancia, em si mesmo, o cumprimento de duas obrigações distintas, sendo uma, o pagamento à locadora, por parte do locatário, do capital em dívida no momento da perda do bem, e outra, a restituição pela locadora ao locatário do valor da indemnização recebido da seguradora”.

DD. Na verdade, o objecto do contrato de seguro não é a cobertura do risco da própria operação financeira de “per si”, mas sim a cobertura dos riscos inerentes ao uso e fruição por parte do locatário relativamente ao bem locado.

EE. Efectivamente, nos termos da alínea I) do n.º 1 do artº. 10.º do Decreto-Lei n.º 149/95 de 24 de Junho, sucessivamente actualizado pelos Decretos-Lei n.º 265/97, de 2 de Outubro, 285/2001 de 3 de Novembro e 30/2008, de 25 de Fevereiro, e conforme decorre do clausulado (alínea b) da cláusula 10.2) das condições gerais dos contratos celebrados pela instituição locadora, é imposta ao locatário a obrigação de segurar o bem locado contra o risco de sua perda ou deterioração.

FF. Assim, determinada a natureza do risco assumido, o seguro é efectuado pelo locatário que indica e identifica directamente na apólice, não o próprio (tomador), mas a locadora como beneficiária, sendo os prémios pagos por aquele.

GG. Deste modo, havendo a ocorrência de facto que, causando a deterioração ou perda total do bem, constitua condição resolutiva do contrato de locação, a entidade seguradora, por indicação prévia do tomador do seguro (locatário), entregará à entidade beneficiária (locadora) as quantias correspondentes à indemnização que, caso não estivesse estipulada a transferência, seria entregue directamente ao locatário.

HH. Com a entrega deste valor, a locadora como que a título de antecipação do contrato, efectua a dedução relativa às importâncias que lhe sejam devidas, nomeadamente a título de rendas, juros e outras despesas efectuadas por conta do locatário e, após, sendo caso disso, entregará ao locatário o remanescente.

II. As indemnizações em apreço, pagas pelas companhias de seguros, quando as mesmas sancionam a lesão de qualquer interesse, sem carácter remuneratório porque não remuneram qualquer operação, antes se destinam a reparar um dano, não são tributáveis em IVA, na medida em que não têm subjacente uma transmissão de bens ou prestação de serviços.

JJ. Já quando as indemnizações têm subjacente uma transmissão de bens ou prestação de serviços, então configuram uma contraprestação a obter do adquirente de uma operação sujeita a imposto e são assim tributáveis em sede de IVA.

KK. Assim, o valor a pagar à locadora pelo locatário referente ao valor em dívida actualizado ao momento da perda total do bem, configura a compensação de réditos que deixaram de se obter (lucros cessantes) pelo que deverá entender-se o seu pagamento como contraprestação de uma operação sujeita a IVA.

LL. Por tudo o exposto, torna-se claro que, relativamente aos contratos identificados, o sujeito passivo não se encontra a proceder em conformidade com a lei, pelo que deveria ter procedido à liquidação do IVA sobre os montantes em dívida à data da perda total, nos termos do art.º 1º, n.º 1 do art.º 40, alínea h) do n.º 2 e alínea a) do n.º 6 a contrario do art.º 16º conjugado com a alínea c) do nº 1 do artº. 18º, todos do CIVA.

MM. Pelos motivos expostos, se conclui que as correcções efectuadas, tiveram em consideração todos os elementos, pois foram efectuadas em rigoroso respeito pelas disposições aplicáveis, e se deverá manter.

NN. Concomitantemente, entende a Fazenda Pública que os actos tributários anulados devem permanecer na sua estabilidade e vigência no ordenamento jurídico, revogando-se, neste segmento, a douta sentença recorrida.

OO. Deste modo, verifica-se que a liquidação impugnada não padece de qualquer vício, reflectindo a situação jurídico-tributária do aqui impugnante, pelo que deverá manter-se, encontrando-se a presente impugnação votada ao insucesso.

PP. Por esta razão, se considera que o tribunal incorreu em erro de julgamento de direito.

QQ. Concomitantemente, entende a Fazenda Pública que os actos tributários anulados devem permanecer na sua estabilidade e vigência no ordenamento jurídico, revogando-se a douta sentença recorrida.

RR. Deste modo, verifica-se que a correcção impugnada não padece de qualquer vício, reflectindo a situação jurídico-tributária do aqui impugnante, pelo que deverá manter-se, encontrando-se a presente impugnação votada ao insucesso.

SS. Por esta razão, se considera que o tribunal incorreu em erro de julgamento de facto e de direito por violação, nomeadamente, do disposto nos artigos 16°, nº 6-a) e 1º, nº 1, e 4º, nº 1, do CIVA.


2. A recorrida A…………, SA apresentou contra-alegações que sintetizou com a formulação das seguintes conclusões:
A. O Tribunal a quo, no aresto posto em crise no presente recurso interposto pela Fazenda Pública, julgou parcialmente procedente a impugnação judicial apresentada pela ora Recorrida contra as liquidações adicionais de IVA, na parte relativa aos montantes auferidos a título de indemnização aquando da perda total de veículos objeto de contratos de locação financeira e ALD, tendo, anulado, em consequência, as correções em sede deste imposto, as quais ascenderam ao valor de EUR 64.156,82 relativamente ao exercício de 2009 e ao valor de EUR 73.074,53 relativamente ao exercício de 2011, o que, acrescido dos respetivos juros compensatórios, perfaz um total de EUR 149.569,36 (valor de sucumbência que deverá corresponder, portanto, ao valor dos presentes autos de recurso, o que se requer).
B. As alegações de recurso apresentadas pela Fazenda Pública não são mais do que uma cópia, quase integral, do RIT e da contestação apresentada nos presentes autos, traduzindo a clara falta de fundamento da Fazenda Pública para recorrer da sentença em apreço, uma vez que (i) não contesta a matéria de facto dada como provada ou não provada na sentença recorrida; (ii) os argumentos de Direito que invoca já tinham sido todos evidenciados no RIT ou na contestação, tendo sido, por conseguinte, devida e escrupulosamente escalpelizados pelo Tribunal recorrido; e, bem assim, (iii) parece inclusivamente corroborar, nos pontos P., U., DD. ou II. das conclusões das suas alegações de recurso, a posição do Tribunal a quo e da aqui Recorrida.
C. A Fazenda Pública, à semelhança do que já tinha feito no âmbito da contestação apresentada e ao contrário do que se infere do RIT, parece querer dar a entender que não pretende sujeitar a IVA as indemnizações recebidas pela Recorrida, mas sim um ficcionado pagamento, por parte dos locatários, do valor referente ao montante do capital em dívida à data da perda do bem locado.
D. Acontece que, conforme decorre do RIT, a AT fundamentou a correção em apreço com base na legislação aplicável à sujeição a IVA das indemnizações auferidas, e com esse fundamento, assim como a própria Fazenda Pública, nas suas alegações de recurso, sustenta o seu juízo de desconformidade (ou suposto erro de Direito em que considera ter incorrido o Tribunal a quo) numa alegada violação do disposto no artigo 16.º, n.º 6, alínea a), do Código do IVA, relativo à incidência deste imposto sobre as quantias recebidas a título de indemnização.
E. O próprio Tribunal a quo não teve qualquer dúvida a este respeito, na medida em que, ao definir na sentença em crise as questões a decidir no âmbito do processo de impugnação judicial, esclareceu que, no caso sub judice, a questão a decidir a este respeito prendia-se com saber "se as indemnizações pela perda total de veículos objeto de contratos de locação financeira e ALD constituem facto tributário sujeito a IVA".
F. Estando em causa a questão da sujeição a IVA das indemnizações recebidas pela Recorrida na sequência da perda dos bens locados, sempre terá de se concluir, conforme refere quer o Tribunal a quo, quer a própria Fazenda Pública (!), que as referidas indemnizações, na medida em que visam ressarcir a Recorrida por um dano ocorrido na sua esfera - a perda do veículo locado de que é proprietária -, não se encontram sujeitas ao referido imposto.
G. A este propósito, a Fazenda Pública converge com a posição acolhida na decisão do Tribunal a quo no sentido de que os valores recebidos a título de indemnização que tenham caráter ressarcitório não preenchem os pressupostos de incidência objetiva em sede de IVA (cf., especial, conclusões P. e II. das alegações de recurso).
H. Em face da inexistência de qualquer divergência de entendimento por parte da Fazenda Pública quanto ao tema de Direito em causa, o presente recurso por si interposto padece, desde logo, de razão de ser, devendo ser julgado improcedente.
Em todo o caso,
I. A Fazenda Pública pretende dar a entender, acrobaticamente, que os contratos de seguro em causa visarão, de alguma forma, cobrir o risco de incumprimento dos contratos financeiros por parte dos locatários e que, como tal, as indemnizações recebidas pela Recorrida teriam uma natureza remuneratória, que estaria evidenciada, em especial, no facto de a Recorrida efetuar um encontro de contas com os locatários aquando do recebimento de uma indemnização superior ao valor contabilístico dos veículos a que respeitam os contratos de locação financeira ou ALD.
J. As indemnizações recebidas visam ressarcir, todavia, o dano causado à locadora pela perda do bem, e não o incumprimento de obrigações contratuais dos locatários (conforme, aliás, é paradoxalmente reconhecido pela Fazenda Pública na conclusão DD. das respetivas alegações e decorre, ademais, do regime jurídico dos contratos de locação financeira - alínea j) do n.º 1 do artigo 10.º do Decreto-Lei n.º 149/95, de 24 de junho).
K. Aliás, o cálculo das indemnizações pagas pelas seguradoras não tem em conta o capital em dívida por parte dos locatários; caso não visasse ressarcir a Recorrida do dano causado pela perda dos bens locados, mas remunerá-Ia pelo incumprimento do contrato por parte dos locatários, o valor a receber seria correspondente ao valor do capital em dívida, o que, conforme constatado pela própria Fazenda Pública, não acontece - cf., por exemplo, conclusões U, W ou X.
L. O encontro de contas efetuado entre a locadora e os locatários aquando do recebimento de uma indemnização superior ao valor contabilístico do veículo perdido tem como objetivo assegurar que não é registado na esfera da Recorrida uma vantagem patrimonial a que não tem direito, o que sempre seria suscetível de configurar um enriquecimento sem causa, nos termos e para os efeitos do artigo 473.º do Código Civil.
M. A Fazenda Pública reconhece igualmente nas suas alegações de recurso (cf. respetiva conclusão T.) que, na ocorrência da perda total do bem locado, os respetivos contratos são resolvidos, o que espelha uma vez mais o quão errada está a sua tentativa de argumentação, pois "Com o acidente dá-se a intervenção de um evento externo que interrompe a relação locadora-locatário [resolução automática do contrato de locação ou ALD] e constitui a causa da indemnização a pagar pela seguradora à locadora. […] O pagamento a efectuar pela seguradora é motivado por um evento exógeno que não está de modo algum relacionado com a operação tributável que constitui a locação do veículo" - cf. Ac. STA, de 31.10.2012, proc. 01158/11, www.dgsi.pt.
N. Mais reconhece a Fazenda Pública que a Recorrida não exerce a cláusula penal prevista nos referidos contratos e, consequentemente, não cobra quaisquer montantes suplementares aos locatários (nem rendas vencidas, nem eventuais valores residuais) - cf. conclusão T. das alegações de recurso.
O. O facto de ser a Recorrida a beneficiária de um contrato de seguro realizado por terceiros (os locatários, em cumprimento de uma obrigação imposta pelo já referido regime jurídico da locação financeira), não altera, igualmente, a natureza das indemnizações que sejam contratadas e tem apenas em vista que, em caso de perda total dos bens, a seguradora pague à locadora - a proprietária do bem - enquanto beneficiária do seguro, a quantia correspondente à indemnização pela perda do bem de que é proprietária.
P. Em todo o caso, tal como referido na sentença recorrida, cumpriria à AT demonstrar que a indemnização em causa tinha natureza remuneratória e não ressarcitória, o que não sucedeu e sempre não corresponderia à realidade em causa - cf. página 42/46 da sentença recorrida.
Q. A perda do bem locado constitui um dano sofrido pela locadora (neste caso, pela Recorrida) e a indemnização paga pela seguradora visa reparar esse mesmo dano, pelo que as quantias recebidas a este título, porque não visam remunerar qualquer prestação de serviços ou transmissão de bens, têm apenas caráter ressarcitório e, consequentemente, não são sujeitas a IVA - conforme decidido pelo STA, em Ac. de 31.10.2012, proc. n.º 01158/11.

3.O Ministério Público emitiu parecer no sentido da negação de provimento ao recurso interposto pela Fazenda Pública e do provimento do recurso interposto pela impugnante, pugnando pela substituição da sentença por outra que proceda à ampliação da matéria de facto (processo físico fls.343)

4. Após os vistos dos juízes conselheiros adjuntos cumpre decidir em conferência

2. FUNDAMENTAÇÃO
2.1. DE FACTO
A sentença recorrida julgou provados os seguintes factos:
1. A Impugnante é uma sociedade que se dedicava, em 2009 e 2011, ao financiamento de aquisição a crédito de bens ou serviços, através da denominação B…………, SA – cfr. relatório de inspeção [RIT], a fls. 45 do PA apenso;
2. Em 22 de Janeiro de 2013, a Impugnante alterou a sua denominação social de “B…………, SA” para “A…………, SA” – cfr. AP.147/20130116, junta a fls. 157 dos autos físicos como documento n.º 44 da PI, e RIT, a fls. 44 do PA apenso;
3. Foi realizada, entre 19 de Fevereiro e 22 de Julho de 2013, uma ação inspetiva externa à sociedade B…………, SA, de âmbito geral e referente ao período de 2009, tendo sido apurado IVA em falta no valor de €172.949,78 – cfr. RIT, a fls. 42 e 44 do PA apenso;
4. As correções referidas em 3] decorreram de dedução indevida de imposto, no valor de €108.792,96, “pelo facto do Sujeito Passivo ter utilizado uma percentagem de dedução do IVA incorrido nos bens e serviços indistintamente alocados a operações sujeitas com e sem direito a dedução que, provocando distorções na tributação, foi alterada pela Inspecção Tributária (IT) (…) de 45% para o coeficiente de imputação específico de 19%”, e resolução antecipada de contratos de locação financeira, no valor de €64.156,82, “montante de IVA (indevidamente) não liquidado (pelo Sujeito Passivo) sobre o valor em dívida aquando da resolução dos contratos de locação financeira por ocorrência de perda total dos bens locados” – cfr. Pontos I.4.2, III.2.1 e III.2.2 do RIT, fls. 43 a 44 e 52 a 62 do PA apenso e que se dão por integralmente reproduzidos;
5. A alteração da percentagem de dedução do IVA referida em 4) fundamenta-se na verificação “que a sociedade considerou, para a determinação da percentagem de dedução, tanto no numerador como no denominador da fração, a amortização financeira de capital. A Autoridade Tributária (AT), face a tudo quanto foi supra exposto, entende que o critério adotado pelo Sujeito Passivo não é o mais adequado para servir os propósitos que enformam o IVA, devendo ser aplicado, para efeitos de dedução do IVA suportado na aquisição de bens e serviços objeto de utilização conjunta nos vários tipos de atividades em apreço, o método da afectação real, o qual, quando não seja possível a aplicação de critérios objectivos de imputação dos custos comuns, deverá utilizar um coeficiente de imputação constituído por um rácio em que as respectivas variáveis (no numerador e no denominador), sendo não só homogéneas e coerentes entre si como especialmente direccionadas às atividades em apreço permitirá – através de uma percentagem específica de dedução (ou coeficiente de imputação específico) – espelhar com objectividade o grau de utilização desses bens e serviços, de modo a determinar o montante de IVA a deduzir relativamente ao conjunto das atividades (isto é, permitirá determinar o grau de utilização dos bens e serviços adquiridos a montante nas operações a jusante sujeitas com e sem direito a dedução), em cumprimento do n.º 2 do artigo 23.º do CIVA. Pelo que antecede, não concordando a AT com o rácio utilizado pelo Sujeito Passivo, relativamente à atividade de Leasing e ALD, procedeu à sua reformulação. Assim, atendendo a que nas operações de Leasing e ALD, o locador assume o papel de intermediário entre o fornecedor e o locatário na transacção do em, os ganhos decorrentes da atividade consubstanciam-se apenas nos juros recebidos no âmbito dos respectivos contratos, dado que a amortização financeira é um mero reembolso da quantia gasta pelo locador na aquisição do bem locado. E, do mesmo modo, o valor do capital recuperado no âmbito da venda de viaturas recebidas por via da rescisão antecipada/anulação de contratos de Leasing e ALD, não deve contribuir para o apuramento da percentagem de dedução específica, por igualmente mais não consistir que um mero reembolso do (valor do) capital emprestado/financiamento concedido para a aquisição (valor de aquisição) do bem locado. Assim, tendo determinada viatura sido adquirida com vista a integrar um contrato de locação financeira ou ALD, todo o capital que vier a ser recuperado não irá acrescentar valor (“valor acrescentado”) à sua atividade. Pelo que antecede, a percentagem de dedução específica de imposto, deverá excluir do seu cálculo o capital subjacente aos contratos de Leasing e ALD incluído naquelas bases.(…) Assim, no cálculo do coeficiente de imputação específico agora apurado apenas se considera o montante correspondente aos juros e outros rendimentos (incluindo neste rendimento o valor acrescentado resultante da diferença positiva entre o valor de venda de cada ativo alienado e o respectivo valor do capital em dívida), pelo que se subtraiu ao valor apurado pelo sujeito passivo (já no decurso do presente procedimento inspetivo – aquando da passagem dos 45% para os 47%) relativo a operações tributadas (incluído no numerador e denominador) o montante de €23.623.976,85 correspondente ao (i) valor do capital contido nas rendas (€22.305.433,62), bem como ao (ii) valor do “capital em dívida” (€1.318.543,23) incluído no valor de venda dos equipamentos recuperados pela resolução de contratos (conta 25011) – ativos não correntes detidos para venda – na medida em que, até esse limite, não existe qualquer “valor acrescentado [mais não sendo o valor de venda desses ativos, até esse limite, do que a recuperação do capital que estava em dívida aquando do recebimento (pela B…………) das viaturas aquando da rescisão antecipada de contratos Leasing e ALD], donde resultou a percentagem de dedução de 19%, apurada conforme Anexo 7 (1 folha), e que se sintetiza no quadro infra. – cfr. RIT, a fls. 57 a 59 do PA apenso;
6. A não liquidação de IVA referida em 4) fundamenta-se na consideração que “são tributáveis em IVA as indemnizações que tenham subjacente uma transmissão de bens ou prestação de serviços, por configurarem uma contraprestação a obter do adquirente de uma operação sujeita a imposto. Pelo contrário, as indemnizações que sancionam a lesão de qualquer interesse, sem caráter remuneratório porque não remuneram qualquer operação, antes se destinam a reparar um dano (como as indemnizações pagas pelas companhias de seguro, decorrente da ocorrência da perda total do veículo, facto que corresponde a um dos riscos cobertos pelo seguro), não são tributáveis em sede de IVA, na medida em que não têm subjacente uma transmissão de bens ou prestação de serviços. Deste modo, o valor do pagamento a efectuar pelo locatário à locadora referente ao montante em dívida (valor das rendas vincendas e valor residual, actualizados ao momento da perda total do bem), configura a compensação de réditos (ou proveitos) que deixaram de se obter (lucros cessantes), pelo que deverá entender-se o seu pagamento como uma contraprestação de uma operação sujeita a imposto. Isto é, este pagamento efectuado pelo locatário ao locador está integralmente sujeito e não isento de IVA, só assim se obtendo a neutralidade do imposto. É que, de outra forma nunca o Estado recuperaria o valor que lhe foi reclamado na altura da aquisição do bem, por via do mecanismo da dedução. Ora, se nos termos da alínea a) do n.º 6 do art.º 16.º do CIVA, são excluídas da base tributável “…as quantias recebidas a título de indemnização declarada judicialmente, por incumprimento total ou parcial de obrigações;” resulta, “a contrario”, que as indemnizações/compensações desta natureza, se não declaradas judicialmente, se encontram sujeitas a IVA. Face ao exposto, e não tendo a B………… liquidado IVA sobre o valor em dívida pago pelos locatários na sequência da perda total dos bens locados, será de apurar imposto em falta, em cumprimento do art.º 1; do n.º 1 do art.º 4.º da alínea h) do n.º 2 e alínea a) do n.º 6 “a contrario”, ambos do art.º 16.º, em conjugação com a alínea c) do n.º 1 do art.º 18, todos do CIVA, no montante de €64.773,32, conforme se discrimina por valor e período de imposto no Anexo 11 (3 folhas)” – cfr. RIT, a fls. 61 e 62 do PA apenso, e anexo 11, que se dá por reproduzido, a fls. 92 a 94 do PA apensado aos autos físicos;
7. Foi realizada, entre 01 de Abril e 22 de Julho de 2013, uma ação inspetiva externa à sociedade B…………, SA, de âmbito geral e referente ao período de 2011, onde foi apurado IVA em falta no valor de €139.694,72 – cfr. RIT, a fls. 108 e 111 do PA apenso;
8. As correções referidas em 7) decorreram de dedução indevida de imposto, no valor de €66.620,19, “pelo facto do Sujeito Passivo ter utilizado uma percentagem de dedução do IVA incorrido nos bens e serviços indistintamente alocados a operações sujeitas com e sem direito a dedução que, provocando distorções na tributação, foi alterada pela Inspecção Tributária (IT) (…) de 63% para o coeficiente de imputação específico de 35%” e resolução antecipada de contratos de locação financeira, no valor de €64.156,82, “Montante de IVA (indevidamente) não liquidado (pelo Sujeito Passivo) sobre o valor em dívida aquando da resolução dos contratos de locação financeira por ocorrência de perda total dos bens locados” – cfr. Pontos I.4.2, III.2.1 e III.2.2 do RIT, fls. 110 e 117 a 127 do PA apenso e que se dão por integralmente reproduzidos;
9. A alteração da percentagem de dedução do IVA referida em 8) fundamenta-se na verificação “que a sociedade considerou, para a determinação da percentagem de dedução, tanto no numerador como no denominador da fração, a amortização financeira de capital. A Autoridade Tributária (AT), face a tudo quanto foi supra exposto, entende que o critério adotado pelo Sujeito Passivo não é o mais adequado para servir os propósitos que enformam o IVA, devendo ser aplicado, para efeitos de dedução do IVA suportado na aquisição de bens e serviços objeto de utilização conjunta nos vários tipos de atividades em apreço, o método da afectação real, o qual, quando não seja possível a aplicação de critérios objectivos de imputação dos custos comuns, deverá utilizar um coeficiente de imputação constituído por um rácio em que as respectivas variáveis (no numerador e no denominador), sendo não só homogéneas e coerentes entre si como especialmente direccionadas às atividades em apreço permitirá – através de uma percentagem específica de dedução (ou coeficiente de imputação específico) – espelhar com objectividade o grau de utilização desses bens e serviços, de modo a determinar o montante de IVA a deduzir relativamente ao conjunto das atividades (isto é, permitirá determinar o grau de utilização dos bens e serviços adquiridos a montante nas operações a jusante sujeitas com e sem direito a dedução), em cumprimento do n.º 2 do artigo 23.º do CIVA. Pelo que antecede, não concordando a AT com o rácio utilizado pelo Sujeito Passivo, relativamente à atividade de Leasing e ALD, procedeu à sua reformulação. Assim, atendendo a que nas operações de Leasing e ALD, o locador assume o papel de intermediário entre o fornecedor e o locatário na transacção do em, os ganhos decorrentes da atividade consubstanciam-se apenas nos juros recebidos no âmbito dos respectivos contratos, dado que a amortização financeira é um mero reembolso da quantia gasta pelo locador na aquisição do bem locado. E, do mesmo modo, o valor do capital recuperado no âmbito da venda de viaturas recebidas por via da rescisão antecipada/anulação de contratos de Leasing e ALD, não deve contribuir para o apuramento da percentagem de dedução específica, por igualmente mais não consistir que um mero reembolso do (valor do) capital emprestado/financiamento concedido para a aquisição (valor de aquisição) do bem locado. Assim, tendo determinada viatura sido adquirida com vista a integrar um contrato de locação financeira ou ALD, todo o capital que vier a ser recuperado não irá acrescentar valor (-valor acrescentado-) à sua atividade. Pelo que antecede, a percentagem de dedução específica de imposto, deverá excluir do seu cálculo o capital subjacente aos contratos de Leasing e ALD incluído naquelas bases. (…) Assim, no cálculo do coeficiente de imputação específico agora apurado apenas se considera o montante correspondente aos juros e outros rendimentos (incluindo neste rendimento o valor acrescentado resultante da diferença positiva entre o valor de venda de cada ativo alienado e o respectivo valor do capital em dívida), pelo que se subtraiu ao valor apurado pelo sujeito passivo (já no decurso do presente procedimento inspetivo – aquando da passagem dos 63% para os 69%) relativo a “operações tributadas” (incluído no numerador e denominador) o montante de €40.555.923,00 correspondente ao (i) valor do capital contido nas rendas (€39.032.882,78), bem como ao (ii) valor do “capital em dívida” (€1.523.040,22) incluído no valor de venda dos equipamentos recuperados pela resolução de contratos (conta 25011) – ativos não correntes detidos para venda – na medida em que, até esse limite, não existe qualquer “valor acrescentado” [mais não sendo o valor de venda desses ativos, até esse limite, do que a recuperação do capital que estava em dívida aquando do recebimento (pela B…………) das viaturas aquando da rescisão antecipada de contratos Leasing e ALD], donde resultou a percentagem de dedução de 35%, apurada conforme Anexo 8 (1 folha), e que se sintetiza no quadro infra” - cfr. RIT, a 122 a 124 do PA apenso;
10. A não liquidação de IVA referida em 4) fundamenta-se na consideração que “são tributáveis em IVA as indemnizações que tenham subjacente uma transmissão de bens ou prestação de serviços, por configurarem uma contraprestação a obter do adquirente de uma operação sujeita a imposto. Pelo contrário, as indemnizações que sancionam a lesão de qualquer interesse, sem caráter remuneratório porque não remuneram qualquer operação, antes se destinam a reparar um dano (como as indemnizações pagas pelas companhias de seguro, decorrente da ocorrência da perda total do veículo, facto que corresponde a um dos riscos cobertos pelo seguro), não são tributáveis em sede de IVA, na medida em que não têm subjacente uma transmissão de bens ou prestação de serviços. Deste modo, o valor do pagamento a efectuar pelo locatário à locadora referente ao montante em dívida (valor das rendas vincendas e valor residual, actualizados ao momento da perda total do bem), configura a compensação de réditos (ou proveitos) que deixaram de se obter (lucros cessantes), pelo que deverá entender-se o seu pagamento como uma contraprestação de uma operação sujeita a imposto. Isto é, este pagamento efectuado pelo locatário ao locador está integralmente sujeito e não isento de IVA, só assim se obtendo a neutralidade do imposto. É que, de outra forma nunca o Estado recuperaria o valor que lhe foi reclamado na altura da aquisição do bem, por via do mecanismo da dedução. Ora, se nos termos da alínea a) do n.º 6 do art.º 16.º do CIVA, são excluídas da base tributável “…as quantias recebidas a título de indemnização declarada judicialmente, por incumprimento total ou parcial de obrigações;” resulta, “a contrario”, que as indemnizações/compensações desta natureza, se não declaradas judicialmente, se encontram sujeitas a IVA. Face ao exposto, e não tendo a B………… liquidado IVA sobre o valor em dívida pago pelos locatários na sequência da perda total dos bens locados, será de apurar imposto em falta, em cumprimento do art.º 1; do n.º 1 do art.º 4.º: da alínea h) do n.º 2 e alínea a) do n.º 6 “a contrario”, ambos do art.º 16.º, em conjugação com a alínea c) do n.º 1 do art.º 18, todos do CIVA, no montante de €73.074,53, conforme se discrimina por valor e período de imposto no Anexo 10 (3 folhas)‖ – cfr. RIT, a fls. 126 e 127 do PA apenso, e anexo 10, que se dá por reproduzido, a fls. 154 a 156 do PA apenso.

2.2. DE DIREITO
2.2.1 Recurso de A…………, SA

2.2.1.1. Questão decidenda: legalidade do método de cálculo da dedução do IVA suportado na aquisição de bens e serviços de utilização mista (art.23º nº 4 CIVA)

2.2.1.2. Na sequência de um pedido de decisão prejudicial formulado pelo STA no âmbito do processo nº 1017/12, respeitante à interpretação da Diretiva 77/388/CEE do Conselho, de 17 maio 1977 (Sexta Diretiva), alterada pela Diretiva 95/7//CE do Conselho, de 19 abril 1995, por acórdão proferido em 10 julho 2014 (processo C-183/13) o TJUE emitiu a seguinte pronúncia:
O artigo 17º, nº 5, terceiro parágrafo, alínea c), da Sexta Diretiva 77/388/CEE do Conselho, de 17 de Maio de 1977, relativa à harmonização das legislações dos Estados-Membros respeitantes aos impostos sobre o volume de negócios – Sistema comum do imposto sobre o valor acrescentado: matéria coletável uniforme, deve ser interpretado no sentido de que não se opõe a que um Estado-membro, em circunstâncias como a do processo principal, obrigue um banco que exerce, nomeadamente, atividades de locação financeira a incluir, no numerador e no denominador da fração que serve para estabelecer um único e mesmo pro rata de dedução para todos os seus bens e serviços de utilização mista, apenas a parte das rendas pagas pelos clientes, no âmbito dos seus contratos de locação financeira, que corresponde aos juros, quando a utilização desses bens e serviços seja sobretudo determinada pelo financiamento e pela gestão desses contratos, o que incumbe ao órgão jurisdicional de reenvio verificar.
A doutrina do acórdão é integralmente transponível para a análise do caso concreto, na medida em que a similitude relevante resulta da intervenção de sujeitos passivos que, no exercício das suas actividades, efectuam operações que conferem direito a dedução e operações que não conferem esse direito, e que tenham suportado a montante IVA na aquisição de bens de serviços de utilização mista
Embora emitida no domínio da Sexta Directiva do Conselho,17 maio 1977 a doutrina do acórdão deve ser integralmente aplicada na vigência da actual Directiva 2006/112/CE, do Conselho, 28 novembro 2006 que nada inovou quanto ao regime aplicável (arts.173º nº 2 al. c) e 174º nº 1)
Em casos semelhantes, o STA-SCT tem destilado jurisprudência consolidada no sentido da ampliação da matéria de facto (omissa na sentença impugnada) por forma a apurar se, nas operações de locação financeira para o sector automóvel que implicam a aquisição de bens ou serviços de utilização mista (como edifícios, consumo de electricidade e outros consumos colaterais), essa utilização é sobretudo determinada pelo financiamento e gestão dos contratos de locação financeira celebrados com os clientes locatários (com contrapartida financeira na componente de juros da renda); ou pela disponibilização, manutenção, reparação e assistência aos veículos locados (com contrapartida financeira na componente de capital da renda)
Jurisprudência: acórdãos STA-SCT 4.03.2015 processo nº 1017/12; 3.06.2015 processo nº 970/13; 17.06.2015 processo nº 1874/13; 27.01.2016 processo nº 331/14; 12.12.2018 processo nº 1116/04.0 BELSB

É improcedente a argumentação da recorrente vertida nas conclusões G./N. das alegações de recurso, na medida em que a fundamentação do acórdão do TJUE expressamente teve em conta a legislação nacional aplicável, designadamente a norma constante do art.23º nº 4 CIVA; coonestando a possibilidade de a Administração Tributária proceder à correcção do método de cálculo da percentagem de dedução utilizado pelo sujeito passivo, baseado no volume de negócios (com inclusão dos montantes correspondentes à componente capital das rendas dos contratos), porque menos preciso do que o resultante da utilização de um método baseado apenas na componente das rendas correspondente aos juros, enquanto contrapartida dos custos de financiamento e gestão dos contratos suportado pelo locador financeiro (acórdão TJUE considerandos 5 e 34)
Neste contexto, é imperativa a ampliação da matéria de facto nos termos enunciados, no exercício dos poderes conferidos ao STA na qualidade de tribunal de revista, com cognição restrita a matéria de direito (arts.674º nº 3 e 682º nºs 1/3 CPC)

2.2.2 Recurso da Fazenda Pública

2.2.2.1. Questão decidenda: legalidade da liquidação de IVA incidente sobre as indemnizações por perda total de veículos objecto de contratos de locação financeira e de ALD

2.2.2.2 A questão decidenda foi apreciada com fundamentação convincente em jurisprudência do STA destilada nos acórdãos 18.06.2008 processo nº 1144/06, 31.10.2012 processo nº 1158/11, 27.01.2016 processo nº 331/14 e 12.12.2018 processo nº 01116/04.0BEPRT, com pronúncia unânime no sentido de que as indemnizações, no caso de sancionarem a lesão de qualquer interesse sem carácter remuneratório, porque não remuneram qualquer operação e se destinam a reparar um dano, não são tributáveis em IVA, na medida em que não têm subjacente uma transmissão de bens ou uma prestação de serviços
Com relevância para a compreensão da solução da questão, transcreve-se excerto do acórdão 27.01.2016 processo nº 331/14:
No que concerne à incidência do IVA sobre indemnizações a regra geral, nos termos do artº 16º, nº 6 do CIVA, é a de que são excluídas do valor tributável das operações aquelas que forem declaradas judicialmente por incumprimento total ou parcial de obrigações, dado não terem uma relação directa com a prestação.
A doutrina vem, contudo, afirmando que esta norma deverá ser interpretada de forma cautelosa, especialmente no domínio da responsabilidade contratual, na medida em que não se pode considerar que apenas as indemnizações em que houve um reconhecimento judicial expresso não são sujeitas a IVA.
Como referem Afonso Arnaldo e Pedro Vasconcellos Silva (“O IVA e as indemnizações”, Fisco, nº 107/108, p. 88.).), o conceito de indemnização encontra aí uma referência expressa, mas tal indicação não deverá constituir um qualquer sinal de exclusividade, o que teria por consequência a sujeição a IVA das restantes indemnizações. Tal constituiria uma interpretação incorrecta, de um ponto de vista sistemático (atenta a contrariedade aos preceitos iniciais do Código), e frontalmente ofensiva das regras e princípios consagrados na Sexta Directiva (Neste sentido também Clotilde Celorico Palma, Introdução ao IVA, Cadernos IDEFF, nº 1, 5ª edição, Almedina, pag. 196 e Ana Rita Costa Machado, IVA nas Indemnizações, edição da Faculdade de Direito da Universidade do Porto, Publicações on line, 2011, p. XV.).
Assim é também pacífico o entendimento de que, atentas as especificidades do sistema de IVA vigente na União Europeia, o desiderato tributário reside apenas em abranger as operações que são remuneradas através de uma contrapartida e não as meras compensações ressarcitórias. (A. Arnaldo e Pedro Vasconcellos Silva, ob.citada, pág.88)
(…)
Vejamos agora o caso que nos ocupa que é o das indemnizações pagas, no âmbito do contrato de locação financeira pela companhia seguradora à locadora beneficiária.
De harmonia com o disposto no artº 1º do DL 149/95 de 24 de Junho (Regime Jurídico da Locação Financeira (Alterado pelos Decreto-Lei n.º 265/97, 2 de Outubro, Decreto-Lei n.º 285/2001, de 3 de Novembro e Decreto-Lei n.º 30/2008, de 25 de Fevereiro.)) a locação financeira é o contrato pelo qual uma das partes se obriga, mediante retribuição, a ceder à outra o gozo temporário de uma coisa, móvel ou imóvel, adquirida ou construída por indicação desta, e que o locatário poderá comprar, decorrido o período acordado, por um preço nele determinado ou determinável mediante simples aplicação dos critérios nele fixados.
De acordo com o artº 10º, nº 1, al. j) do DL 149/95 é obrigação do locatário efectuar o seguro do bem locado, contra o risco da sua perda ou deterioração e dos danos por ela provocados
(…)
O contrato de seguro é celebrado com o locatário (tomador do seguro), o qual paga os prémios respectivos, sendo beneficiária a locadora.
Em caso de perda total do veículo, configurando condição resolutiva do contrato, a companhia seguradora paga à locadora beneficiária as quantias correspondentes às indemnizações, de acordo com o capital constante das apólices.
Ora, como se sublinhou no já citado Acórdão 1158/11, de 31.10.2012, «(….) em ambas as situações a responsabilidade pelo seguro pertence ao cliente, mas contratualmente a indemnização é paga directamente pelas seguradoras à locadora que, posteriormente, procede ao encontro de contas com o locatário, restituindo ou exigindo a diferença, caso o valor da indemnização recebida seja respectivamente superior ou inferior ao capital afecto.
Do quadro jurídico exposto, verifica-se que a locadora obriga-se a prestar um serviço traduzido na disponibilidade do veículo ao locatário recebendo como contrapartida uma prestação. Em caso de acidente com perda do veículo, este evento implica a resolução automática do contrato de locação e, por conseguinte, a interrupção da relação sinalagmática existente entre locadora e locatário.
Neste caso, há que distinguir entre a prestação que o locatário paga à locadora e que respeita ao montante de eventuais rendas vencidas e não pagas e respectivos juros de mora e aquela que vai ser paga pela seguradora.
Na primeira situação, a prestação em causa ainda tem a sua fonte no contrato (rendas já vencidas e respectivos juros) e, por conseguinte, na relação sinalagmática que existia entre locador e locatário, que está normalmente sujeita a IVA, porquanto a locação financeira configura a cedência, mediante retribuição, do gozo temporário de uma coisa móvel ou imóvel, pelo que constitui uma prestação de serviços sujeita a imposto, nos termos do nº 1 do art. 4º do CIVA.
Na verdade, aplicando ao caso o que ficou dito sobre o critério identificador do conceito de indemnização remuneratória, vemos que nas relações entre locador e locatário havia uma relação sinalagmática e onerosa enquanto a locadora propiciava ao locador, no âmbito do contrato de locação, o uso do veículo.
(….).
Pelo contrário, o valor pago pela seguradora visa apenas indemnizar a recorrida do capital afecto às operações, compensando-se da saída do seu activo dos bens que se perderam
Dito por outras palavras, o que está coberto pelo seguro não são os contratos de leasing ou de aluguer de longa duração, mas os veículos, que constituem o objecto da actividade da recorrida, tendo a indemnização em causa o propósito de reparar o prejuízo sofrido pela locadora na sequência da perda dos veículos, substituindo os bens perdidos em espécie pelo valor equivalente em termos monetários

No caso concreto a matéria fáctica apurada é insuficiente para aplicação do regime jurídico supra definido, porque não estão discriminados os montantes resultantes das correcções efectuadas pela Administração Tributária que correspondem aos valores das indemnizações pagas pelas companhias seguradoras (sem incidência de IVA) e os montantes que correspondem a quantias complementarmente pagas pelos locatários à locadora, em cumprimento dos respectivos contratos de locação financeira, abrangendo rendas vencidas e não pagas e os respectivos juros de mora (com incidência de IVA)
Neste contexto é imperativa a ampliação da matéria de facto nos termos enunciados, no exercício dos poderes conferidos ao STA na qualidade de tribunal de revista, com cognição restrita a matéria de direito (arts. 674º nº 3 e 682º nºs1/3 CPC)

3.DECISÃO
Acordam na Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo em conceder provimento aos recursos interpostos por A…………, SA e pela Fazenda Pública;
em consequência
- revogar a sentença recorrida e ordenar a substituição por outra que seja proferida com observância dos regimes jurídicos definidos para cada uma das questões decidendas, após ampliação da matéria de facto nos termos enunciados
Custas pelas recorridas em cada um dos recursos (sem taxa de justiça pela Fazenda Pública no recurso interposto pela impugnante, por não ter contra-alegado)

Lisboa, 9 de Outubro de 2019. – Neves Leitão (relator) – Francisco Rothes – Ascensão Lopes.