Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:01344/11.1BELRS 01164/17
Data do Acordão:10/30/2019
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:NUNO BASTOS
Descritores:AUTOLIQUIDAÇÃO
JUROS INDEMNIZATÓRIOS
ERRO IMPUTÁVEL AOS SERVIÇOS
INCONSTITUCIONALIDADE
Sumário:I – Os juros indemnizatórios são devidos nos termos do n.º 1 do artigo 43.º da Lei Geral Tributária quando se demonstre que houve erro imputável aos serviços;
II - Não é imputável aos serviços o erro na aplicação de uma norma julgada inconstitucional, se não está em causa o desrespeito de normas constitucionais diretamente aplicáveis ou a aplicação de uma norma que já tenha sido declarada inconstitucional com força obrigatória geral.
Nº Convencional:JSTA000P25094
Nº do Documento:SA22019103001344/11
Data de Entrada:10/25/2017
Recorrente:AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA
Recorrido 1:A............, SA
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: Acordam em conferência na Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo:

1. Relatório

1.1. O REPRESENTANTE DA FAZENDA PÚBLICA recorre da sentença proferida pela Mm.ª Juiz do Tribunal Tributário de Lisboa que julgou procedente a impugnação judicial da decisão que indeferiu a reclamação graciosa n.º 3247201004008383, anulou esta decisão e anulou parcialmente a autoliquidação de imposto sobre o rendimento das pessoas coletivas relativa ao exercício de 2008, a que foi atribuído o n.º 20112510002233, e condenou a Administração Tributária no pagamento dos juros indemnizatórios nos termos legais.

Impugnação esta que tinha sido interposta por A…………, S.A., N.I.F. ………, com sede na Rua ………, n.º ……, 1269-…… Lisboa.

O Recorrente não se conforma com a parte da decisão em que foi condenada no pagamento dos juros indemnizatórios.

O Recurso foi admitido, com subida imediata nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.

Notificada da sua admissão, apresentou alegações, que rematou com as seguintes conclusões:

«(…) I – É entendimento da Fazenda Pública que a douta sentença a quo, na parte que respeita à condenação no pagamento de juros indemnizatórios à Impugnante, nos termos do disposto no artigo 43.º da LGT, não faz uma correcta aplicação das normas legais aplicáveis ao caso sub judice, incorrendo em errado julgamento de direito e violação das normas dos n.ºs 1 e 2 daquele preceito legal, por não se verificarem os pressupostos de que depende o pagamento de juros indemnizatórios por parte da Administração Tributária.

II – O reconhecimento do direito aos referidos juros, de acordo com o disposto no n.º 1 do artigo 43.º da LGT, está dependente da determinação em sede de reclamação graciosa ou de impugnação judicial da existência de erro imputável aos serviços, e, tratando-se de erro na autoliquidação, impõe o n.º 2 do mesmo normativo que este tenha resultado de orientações genéricas emitidas pela administração tributária.

III – Ora, resulta do probatório que estamos perante uma situação de autoliquidação de IRC, referente ao exercício de 2008, resultante do preenchimento da declaração de rendimentos de IRC efetuada pela Impugnante, na qual esta procedeu ao apuramento da tributação autónoma correspondente ao exercício em análise, tudo em cumprimento das correspondentes normas legais previstas no CIRC.

IV – Por seu turno a Administração Tributária devia à data da liquidação obediência à lei e, neste caso, ao artigo 5.º nº 1 da Lei n.º 64/2008, de 5 de Dezembro que mandava aplicar às situações previstas na alínea a) do nº 3 do artigo 81.º do CIRC, a taxa de tributação autónoma de 10% aos factos tributários ocorridos desde 1 de Janeiro de 2008.

V – Assim, não poderá entender-se que, no caso dos autos, pelo facto de a norma à qual os Serviços da Administração Fiscal deviam obediência ter sido declarada inconstitucional, que tal se deva traduzir num erro imputável aos serviços, para efeitos do disposto no art.º 43º da LGT, pois que, nenhuma outra conduta lhe ser exigível no caso concreto, senão aquela que efectivamente teve, motivo pelo qual se deve excluir a possibilidade de qualquer actuação culposa dos Serviços.

VI – Faltando no caso em apreço o nexo de imputação do erro à Administração Tributária, não se verificam as condições de que, por força do disposto no artigo 43.º da LGT, dependeria a condenação da Administração Fiscal no pagamento de juros indemnizatórios.

VII – Assim, a interpretação a dar aos normativos legais ínsitos aos n.ºs 1 e 2 do artigo 43.º da LGT, será a de que o erro imputável aos serviços, enquanto pressuposto de facto necessário ao reconhecimento do direito a juros indemnizatórios, exige que se encontre na disponibilidade da Administração Tributária uma actuação diversa da adoptada, o que, manifestamente, não aconteceu e não lhe era exigível.

VIII – A sentença recorrida, ao assim não entender, apresenta-se ilegal por desconformidade com os preceitos acima assinalados, não merecendo por isso ser confirmada».

Concluiu dizendo que deve ser concedido provimento ao recurso e pedindo a revogação da douta sentença recorrida e sua substituição por acórdão que declare a impugnação totalmente improcedente, tudo com as legais e devidas consequências.

A RECORRIDA não apresentou contra-alegações.

1.2. Recebidos os autos neste tribunal, foi ordenada a abertura de vista ao Ministério Público.

A Ex.ma Senhora Procuradora-Geral Adjunta emitiu douto parecer onde, aderindo à posição jurisprudencial, uniforme e constante, deste tribunal, mormente à argumentação aduzida nos acórdãos de 2015/01/21 [processos n.ºs 0703/14 e 0843/14], de 2015/03/04 [processo n.º 01529/14] e de 2016/05/11 [processo n.º 0704/14], concluiu que se mostram verificados os erros de julgamento de direito assacados e, como consequência, que deverá ser revogada a sentença recorrida.

Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.



2. Da questão a decidir

A questão fundamental a decidir no recurso é a de saber se o tribunal recorrido incorreu em erro de julgamento ao concluir que «há lugar ao pagamento de juros indemnizatórios desde a data em que foi indeferida a reclamação graciosa, até à data em que vier a ser emitida a respectiva nota de crédito» e ao condenar a Administração Tributária no seu pagamento à Impugnante.



3. Dos fundamentos de facto

Foi o seguinte o julgamento de facto em primeira instância:

«II. 1- DOS FACTOS PROVADOS

Compulsados os autos e analisada a prova documental apresentada, encontram-se assentes, por provados, os seguintes factos com interesse para a presente decisão:

1. O Impugnante é uma instituição financeira que se dedica à realização de operações bancárias e financeiras e a prestação de serviços conexos, designadamente, à concessão de financiamento, quer a empresas, quer a particulares – Acordo;

2. Em 12/10/2010, o impugnante entregou declaração de IRC-Mod. 22 do exercício de 2008, de substituição, tendo inscrito no quadro 10, campo 365, a título de tributação autónoma o valor de € 119.545,86 – cfr. fls. 15 a 19 dos autos;

3. No exercício de IRC/2008, o impugnante declarou de Encargos com Viaturas o valor de € 1.038.284,28 e, de Despesas de Representação o montante de € 157.174,29 – cfr. fls. 15 a 19 dos autos;

4. A tributação autónoma declarada pela impugnante foi efetuada de acordo com o art. 81º, nº 3 al. A) do CIRC (redação conferida pela Lei n.º 64/2008, de 5/12) – Acordo;

5. A impugnante, no exercício de 2008, declarou e suportou o montante de € 119.545,86 referente a despesas de tributação autónoma calculadas à taxa de 10% - cfr. fls. 101 a 110 e 111 a 126 do processo administrativo em apenso aos autos.

6. Em 30/11/2010, a ora impugnante deduziu reclamação graciosa a que coube o nº 3247201004008383, relativa ao ato de autoliquidação de IRC/2008, alegando erro em matéria de tributação autónoma, por aplicação a determinadas despesas [despesas de representação e com viaturas de passageiros e mistas], superior aquela que considera ser de apenas 5% - cfr. fls. 2 e ss. do processo de reclamação graciosa em apenso aos autos;

7. Por despacho de 16/06/2011, a reclamação graciosa foi indeferida, tendo o impugnante sido notificado dessa decisão em 21/06/2011 – cfr. fls. 101 e 102 do processo de reclamação graciosa em apenso aos autos.

II. 2- DOS FACTOS NÃO PROVADOS

Não existem factos relevantes para a decisão que importe destacar como não provados.

II. 3 – MOTIVAÇÃO

A convicção do tribunal formou-se com base no teor dos documentos não impugnados, juntos aos autos e expressamente referidos no probatório supra».



4. Do Direito

Vem o presente recurso interposto da sentença da Mm.ª Juiz do Tribunal Tributário de Lisboa, na parte em que concluiu que o vício do ato impugnado é imputável aos serviços da Administração Tributária e, em consequência, a condenou no pagamento dos juros indemnizatórios desde a data em que foi indeferida a reclamação graciosa e até à data em que viesse a ser emitida a respetiva nota de crédito.

Com o assim decidido não se conforma o RECORRENTE por entender que não estão reunidos os pressupostos de que depende o pagamento de juros indemnizatórios, elencados no artigo 43.º da Lei Geral Tributária. Por um lado, porque não teve qualquer intervenção no âmbito dos seus poderes de autoridade no apuramento do imposto a entregar pelo contribuinte. Por outro lado, porque não tem competência para decidir da não aplicação de normas relativamente às quais sejam suscitadas dúvidas de constitucionalidade.

A RECORRENTE não identifica os pressupostos que de que depende o pagamento dos juros indemnizatórios que tem por não verificados quando ocorra cada uma das situações que descreve. Mas não está o tribunal de recurso dispensado de o fazer, ainda que de forma sumária, para melhor enquadramento da questão que vem colocada.

O artigo 43.º da Lei Geral Tributária consagra um meio célere e simplificado de o sujeito passivo da relação jurídica tributária ser indemnizado pela prática de atos ilegais por parte da Administração Tributária no próprio procedimento ou processo onde for reconhecida a ilegalidade. Em contrapartida, a indemnização por este meio obtida é atribuída sob a forma de juros calculados a uma taxa legal.

As especificidades deste meio célere e simplificado de aceder à indemnização justifica, por um lado, o recurso a uma série de presunções ou ficções legais para desonerar o sujeito passivo de demonstrar a verificação em concreto de alguns requisitos do direito à indemnização e, por outro lado, a introdução de algumas condições específicas que estreitam os casos em que os juros indemnizatórios são devidos.

Assim, prescinde-se da imputação do facto a um agente em concreto (culpa) e até da demonstração de que não é possível fazer-se essa imputação subjetiva, bastando-se o legislador com uma imputação objetiva a um serviço da Administração Tributária. Também se prescinde da demonstração dos danos (que se presumem em montante igual ao dos juros) e, por consequência, do estabelecimento do nexo causal entre estes o facto.

Em contrapartida, exige-se que o comportamento específico por parte da Administração Tributária: ou um ato tributário de liquidação, ou a emissão de orientações genéricas seguidas pelo contribuinte na sua declaração, ou a omissão do dever de rever essa liquidação ou de restituir o tributo liquidado dentro de determinado prazo. Por outro lado, exige-se uma forma específica de ilicitude: a violação pelos serviços da Administração Tributária da lei tributária substantiva, de que resulte não ser devido o tributo cobrado. Finalmente, exige-se a verificação de um resultado específico: o pagamento do tributo indevido.

O desacordo da RECORRENTE com a sentença recorrida tem a ver com os dois primeiros requisitos. Entende, por um lado, que foi praticado ou omitido algum ato dos que a lei ali prevê. Entende, por outro lado, que não lhe pode ser imputada a ilicitude que determinou a anulação do ato impugnado.

Não foi praticado o ato que a lei prevê porque está em causa uma autoliquidação e esta não tem origem em orientações genéricas emitidas pela Administração Tributária.

Não lhe pode ser imputada a ilicitude porque não estava na disponibilidade da Administração Tributária uma atuação diversa da adotada. E não estava na sua disponibilidade, porque não lhe é concedido o direito de recusa de uma norma entendida inconstitucional.

Ora, embora derive da alínea a) do n.º 2 do artigo 95.º da Lei Geral Tributária que a autoliquidação é também considerada, para os efeitos dessa lei, como «liquidação de tributos», resulta do próprio dispositivo em causa que não deve ser assim interpretado para delimitação dos requisitos do direito a juros indemnizatórios. O n.º 2 do artigo 43.º especifica o caso de a liquidação ter sido efetuada com base na declaração do contribuinte, o que demonstra que o legislador só tinha ali em vista a liquidação administrativa.

O único comportamento que, no caso, poderia ser imputado à Administração Tributária seria a omissão do dever de rever a autoliquidação no próprio procedimento de reclamação graciosa instaurado pela RECORRIDA. Na verdade, se a lei consagra o direito a juros indemnizatórios quando, verificadas certas condições, a própria Administração Tributária revê a liquidação [ver a alínea c) do n.º 3 do mesmo dispositivo], poderia defender-se que, por maioria de razão, deveria existir esse direito quando a Administração Tributária fosse chamada a revê-la e não o fez indevidamente.

Poderia então falar-se na «administrativização»do erro do sujeito passivo: ao sancionar que não existe o erro (substancial) que o sujeito passivo imputou à autoliquidação, a Administração Tributária estaria, por assim dizer, a reincidir no erro que o sujeito passivo quis corrigir.

Mas é uma hipótese que não vale a pena considerar aqui. Porque, na esteira de diversa doutrina, vem sendo entendido por este Tribunal, de forma reiterada e consistente, que a Administração Tributária não pode recusar-se a aplicar uma norma com fundamento na sua inconstitucionalidade, a menos que o Tribunal Constitucional já tenha declarado a inconstitucionalidade da mesma com força obrigatória geral ou esteja em causa o desrespeito por normas constitucionais diretamente aplicáveis e vinculativas, como as que se referem a direitos, liberdades e garantias [ver, por todos, o acórdão deste Tribunal de 12 de outubro de 2011, processo n.º 860/10].

E que, nestes casos, não podendo a Administração Tributária decidir de outro modo, também não lhe pode ser assacada a responsabilidade por decidir no sentido em que decidiu. O que significa que não pode ser condenada no pagamento dos juros indemnizatórios, por falta de um dos requisitos de que depende a atribuição deste direito: a imputação do erro respetivo aos serviços [ver, entre muitos, o Acórdão deste Tribunal de 2017/03/22, Processo n.º 0471/14].

Jurisprudência de cuja fundamentação não se vê agora razão para divergir. É certo que a Lei n.º 9/2019, de 1 de fevereiro veio, entretanto, aditar uma alínea d) ao n.º 3 do artigo 43.º da Lei Geral Tributária, nos termos da qual são devidos juros indemnizatórios em caso de decisão judicial transitada em julgado que declare ou julgue a inconstitucionalidade da norma legislativa em que se fundou a liquidação e que determine a sua devolução. Mas, como deriva do seu artigo 3.º, esta alteração só se aplica a liquidações posteriores a 1 de janeiro de 2011.

Ora, a decisão recorrida, valendo-se da jurisprudência firmada no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 617/2012, de 19 de dezembro, publicado no Diário da República, n.º 22, 2.ª série, de 31 de janeiro de 2013, considerou que a decisão impugnada era ilegal por ter sido proferida com base em norma declarada inconstitucional (a norma prevista no artigo 5.º, n.º 1, da Lei n.º 64/2008, de 5 de dezembro, na parte em que faz retroagir a 1 de janeiro desse ano a alteração ao artigo 81.º, n.º 3, do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas) por violação do artigo 103.º, n.º 3, da Constituição.

E, embora a jurisprudência desse acórdão já tenha sido reafirmada por outro acórdão do mesmo Tribunal de 5 de fevereiro de 2013 [acórdão n.º 85/2013], também tirado em Plenário, não se conhece (nem foi invocada pela RECORRIDA) decisão daquele Tribunal onde fosse declarada a inconstitucionalidade com força obrigatória geral, nos termos do n.º 3 do artigo 281.º da Constituição.

E, assim sendo, a errada consideração desta norma no apuramento do imposto a pagar também não pode legitimar o pagamento de juros indemnizatórios.

Pelo que o recurso merece provimento.



5. Conclusões

I. Os juros indemnizatórios são devidos nos termos do n.º 1 do artigo 43.º da Lei Geral Tributária quando se demonstre que houve erro imputável aos serviços;

II. Não é imputável aos serviços o erro na aplicação de uma norma julgada inconstitucional, se não está em causa o desrespeito de normas constitucionais diretamente aplicáveis ou a aplicação de uma norma que já tenha sido declarada inconstitucional com força obrigatória geral.


6. Decisão

Nos termos e com os fundamentos expostos, acordam os juízes da Secção Tributária deste Tribunal em
a) Conceder provimento ao recurso;
b) Revogar a decisão, na parte recorrida;
c) Julgar, no mesmo segmento, improcedente a impugnação.

Custas do presente recurso pela RECORRIDA, não sendo devida taxa de justiça, por não ter contra-alegado – artigo 7.º, n.º 2, do Regulamento das Custas Processuais.

Custas em primeira instância na proporção do decaimento, que se fixa em 4% para a Impugnante e em 96% para a Fazenda Pública.

Registe e notifique.

Lisboa, 30 de outubro de 2019. – Nuno Bastos (relator) – Ascensão Lopes – José Gomes Correia.