Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0276/11.8BELRS
Data do Acordão:02/03/2021
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:SUZANA TAVARES DA SILVA
Descritores:FALTA
DECLARAÇÃO
PRINCÍPIO DA CAPACIDADE CONTRIBUTIVA
RENDIMENTO
Sumário:I - Nos casos em que o sujeito passivo não apresenta a declaração de rendimentos, e sem prejuízo do poder-dever que a AT tem de promover a liquidação oficiosa provisória imposto à luz do disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 83.º do CIRC, para evitar que dessa falta (independentemente das sanções aplicáveis pela violação dos deveres acessórios declarativos a que possa dar lugar) resulte uma vantagem futura para o sujeito passivo inadimplente; é dever da AT inteirar-se, por via do exercício dos seus poderes inspectivos, da real situação económica do sujeito passivo, de modo a poder promover a liquidação adicional ou a anulação de parte do imposto devido segundo o determinado naquela liquidação provisória.
II - Não tem qualquer arrimo legal uma solução que preconiza a tributação de rendimento inexistente – comprovadamente inexistente – pela circunstância de não estar cumprida uma obrigação acessória de entrega de declaração de rendimentos.
Nº Convencional:JSTA000P27100
Nº do Documento:SA2202102030276/11
Data de Entrada:02/10/2020
Recorrente:AT - AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA
Recorrido 1:A............ E OUTROS
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: Acordam na secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo

I - Relatório

1 – O Representante da Fazenda Pública, inconformado com a sentença proferida pelo Tribunal Tributário de Lisboa, de 5 de Junho de 2019, que julgou procedente a impugnação judicial contra as liquidações oficiosas do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas (IRC), relativas aos exercícios entre 2002 a 2006, deduzida A………… e B…………, como responsáveis subsidiários da execução n.º 4227200601084321, recorre para o Tribunal Central Administrativo Sul (TCAS).
Por requerimento, datado de 21 de Outubro, o recorrente alega que, por lapso, dirigiu as alegações de recurso ao TCAS, embora estas devessem ter sido dirigidas ao Supremo Tribunal Administrativo por estar em causa, no presente recurso, matéria exclusivamente de direito, pelo que vem requerer a retificação.
Por despacho de 3 de Fevereiro de 2020 foi determinado que os autos subissem a este Tribunal.
As alegações do recurso jurisdicional, apresentado pela Fazenda Pública, foram concluídas do seguinte modo:
I - Visa o presente recurso reagir contra a douta decisão que julgou procedente a impugnação judicial, intentada por A………… e B…………, já devidamente identificados nos autos e que, em consequência, ordenou a anulação das liquidações oficiosas de IRC dos exercícios de 2002 a 2006, relativas à sociedade “C…………, Lda., ”, executada no processo de execução fiscal n.º 4227200601084321, tendo os ora recorridos sido revertidos na referida execução fiscal, e tendo a presente impugnação judicial sido deduzida nos termos e em sequência do disposto n.º 4 do artigo 22.º da LGT. Entende a Fazenda Pública que a douta sentença, na subsunção dos factos dados como provados ao direito, promoveu uma errónea aplicação do direito.
II - A Fazenda Pública não se conforma com a sentença do Tribunal Tributário de Lisboa porquanto a mesma não encerra um correto entendimento da lei em vigor, porquanto entendeu que as liquidações oficiosas relativas aos exercícios de 2002 a 2006 deveriam ser anuladas perante a “demonstrada inexistência de rendimentos da sociedade extinta, desde 2001, inclusive, e até que foi dissolvida e encerrada a sua liquidação, pela simples mas suficiente razão de não ter exercido atividade alguma então, gerando rendimentos e lucros que pudessem consubstanciar o pressuposto daquele tributo.
III - A emissão das liquidações oficiosas em questão teve origem na não entrega, dentro do prazo legal, das declarações periódicas de IRC por parte do sujeito passivo (devedor originário), relativa aos anos de 2002 a 2006. Decorre ainda da matéria de facto dada como provada na sentença recorrida que não ocorreu até à data de entrada da presente impugnação em juízo (28/01/2011) a entrega de qualquer declaração de rendimentos que viesse atestar a inexistência de rendimentos por parte do sujeito passivo e que pudesse legitimar a emissão de um ato administrativo-fiscal substitutivo das liquidações impugnadas. Nos termos do disposto nas als. b) e c) do n.º 1 do artigo 83.º do CIRC, vigente à data dos factos trazidos a juízo, tal omissão de declaração de rendimentos tem por consequência a liquidação oficiosa do IRC por parte da Administração Tributária, dentro dos prazos previstos e nas condições mencionadas nas referidas als. a) e b). Verificada a omissão, por parte do contribuinte coletivo, da entrega da declaração periódica de IRC, a Administração Tributária encontra-se legalmente vinculada a efetuar oficiosamente uma liquidação, de acordo com os parâmetros constante nas referidas als. a) e b) do n.º 1 do artigo 83.º do CIRC. E foi o que aconteceu in casu, não se vislumbrando, aqui chegados, qualquer ilegalidade que a Administração Tributária possa ter cometido ao efetuar as liquidações oficiosas em questão, designadamente no que se refere aos exercícios de 2002 a 2006.
IV - No entanto, entendeu o Ilustre Tribunal a quo que as liquidações efetuadas ao abrigo do disposto nas als. b) e c) do n.º 1 do artigo 83.º do CIRC não deveriam ter sido emitidas porquanto, tendo sido apresentada uma declaração de cessação de atividade para efeitos de IVA com efeitos reportados ao ano fiscal de 2001, deveria a Administração Tributária assumir que desde então inexistiriam rendimentos sujeitos a IRC, como se os rendimentos sujeitos a IRC fossem unicamente aqueles decorrentes da prática de atos conexos com o objeto social da sociedade e que se traduzissem em vendas ou prestações de serviço sujeitas a IVA, ignorando assim que, sem prejuízo da atividade cessada para efeitos de IVA, poderiam existir outras modalidades de proveitos que, não sujeitos a IVA, ainda assim estariam sujeitos a IRC, designadamente aqueles previstos nas alíneas b) a c) do n.º 1 do art.º 20.º do CIRC na versão coeva. Entendeu assim o Tribunal a quo que a Administração Tributária deveria ter o “dom da adivinhação” e presumir a inexistência de lucro tributável em sede de IRC perante a apresentação de uma declaração de cessação de atividade para efeitos de IVA e, por consequência, deveria a Administração Tributária abster-se de liquidar oficiosamente o IRC referente aos anos fiscais em causa, julgando verificada a ausência de rendimentos do sujeito passivo provenientes da prática de atos conexos com o seu objeto social.
V - Atenta a matéria de facto dada como provada na sentença, certo é que até à data em que a presente impugnação deu entrada em juízo, inexistiu declaração alguma de rendimentos que, ainda que apresentada após a emissão das declarações oficiosas em causa, viesse a pôr em causa os rendimentos presumidos pela Administração Fiscal aquando destas liquidações. Se é verdade que as liquidações oficiosas efetuadas pela Administração Tributária, nos termos do artigo 83.º, n.º 1, als. a) e b), do CIRC à data vigente podem ser modificadas, por correção, ou mesmo extintas, por revogação, pela Administração Tributária, conforme o disposto no n.º 10 do referido artigo 83.º do CIRC, não menos verdade é que tal circunstância apenas pode ter lugar dentro do prazo de 4 anos, contados a partir do facto tributário, conforme flui do disposto neste mesmo n.º 10 do artigo 83.º do CIRC, dispositivo legal este que remete para o artigo 93.º do mesmo diploma legal, e que por sua vez faz depender a validade de uma nova liquidação (ainda que a zeros) da sua efetivação dentro do prazo de caducidade do direito à liquidação, ao remeter para o disposto nos artigos 45.º e 46.º da LGT.
VI - Atendendo à factualidade tida por provada na decisão ora em crise, afere-se que não poderia a Administração Tributária (e por conseguinte o próprio Tribunal a quo) provocar qualquer alteração à realidade jurídico tributária plasmada naquelas liquidações, pois que, só à data de apresentação da impugnação judicial, a Administração Tributária, através da Representação da Fazenda Pública, tomou conhecimento da alegação de novos factos tendentes a comprovar a inexistência de qualquer rendimento nos referidos anos fiscais, sendo já nessa altura inviável qualquer alteração à ordem jurídico-fiscal estabelecida relativamente às liquidações de IRC dos anos de 2002 a 2006. E assim é dado que, não se vislumbrando quaisquer causas interruptivas ou suspensivas do decurso do prazo de caducidade do direito à liquidação, quando os impugnantes, ora recorridos, intentaram a presente Impugnação Judicial (28/01/2017), já havia decorrido o prazo de caducidade do direito a uma nova liquidação por parte da Administração Tributária relativamente aos anos em questão, conforme previsto no n.º 1 do artigo 45.º da LGT, e contado nos termos do n.º 4 deste mesmo artigo 45.°; caducidade esta que se verificou, para cada um dos referidos exercícios (2002 a 2006) entre os dias 01-01-2007 e 01-01-2011.
VII - Assim sendo, é manifesta a circunstância de não poderem as liquidações referentes aos exercícios de 2002 a 2006 aqui em causa sofrerem qualquer alteração da ordem nelas estabelecidas, por se terem consolidado na ordem jurídica, conforme o disposto nas als. a) e b) do n.º 1 do artigo 83.º, e 93.º do CIRC, na versão à data vigente, e ainda do artigo 45.º da LGT. Razão pela qual não se vislumbra qualquer ilegalidade que possa ter sido cometida pela Administração Tributária relativamente às liquidações oficiosas de IRC em questão, pois não podia a Administração Tributária (e o próprio Tribunal a quo) provocar qualquer alteração às mesmas na data em que a presente Impugnação Judicial foi proposta, designadamente através da emissão de uma nova liquidação com base em nova declaração de rendimentos que evidenciasse uma matéria tributável nula.
VIII - Deveria, pois, o Ilustre Tribunal a quo, no modesto entendimento da Fazenda Pública e salvo sempre melhor entendimento, ter-se decidido pela declaração de subsistência das liquidações oficiosas de IRC dos exercícios de 2002 a 2006, porque já consolidadas na ordem jurídica nos termos supra expostos. Ao não decidir deste modo, o Tribunal recorrido incorreu em erro de julgamento da causa, ao nível da matéria de direito, violando o disposto nas als. a) e b) do n.º 1 do artigo 83.º, e 93.º do CIRC, e artigo 45.º da LGT.
TERMOS EM QUE, CONCEDENDO-SE PROVIMENTO AO RECURSO, DEVE A DECISÃO RECORRIDA SER REVOGADA COM AS LEGAIS CONSEQUÊNCIAS.
PORÉM, V. EX.AS, DECIDINDO, FARÃO A COSTUMADA JUSTIÇA!

2 - Não foram produzidas contra-alegações.

3 - O Excelentíssimo Senhor Procurador-Geral Adjunto junto deste Tribunal emitiu parecer no sentido de ser negado provimento ao recurso.

4 - Substituídos os vistos legais pela entrega das competentes cópias aos Ex.mos Juízes Conselheiros Adjuntos, vem para decisão em conferência.


II – Fundamentação

1. De facto
Na sentença recorrida deu-se como assente a seguinte factualidade concreta:
1. A sociedade C…………, L.da, que houve sede no ……… ……, na ………, [2675] Odivelas e o número de identificação de pessoa coletiva ………, foi fundada pelos Impugnantes, B………… e A…………, no dia 20 de julho de 1992 e teve como objeto «pinturas e decorações; todos os trabalhos de construção civil».
2. Sobrevindo porém um desentendimento entre ambos os sócios (e gerentes), eles decidiram cessar a atividade da sociedade no final de 2000; e cada um deles fundaria no ano seguinte uma nova sociedade, cada uma delas com objeto social análogo ao daquela, as sociedades D…………, Unipessoal, L.da [com o número de identificação de pessoa coletiva ………], e E…………, Unipessoal, L.da. [com o número de identificação de pessoa coletiva ………], cujos inícios de atividade ocorreram na sequência da cessação da anterior sociedade comum.
3. Na sequência daquela cessação de atividade da antiga sociedade, foi apresentada à Administração Tributária a competente declaração para efeitos de Imposto sobre o Valor Acrescentado, com efeitos reportados ao termo do ano de 2000.
4. Contudo, a sociedade cessada na sua atividade apenas seria liquidada e encerrada a respetiva liquidação em 18 de fevereiro de 2011.
5. Nesse conspecto, como tal ente sem atividade também não apresentava as declarações periódicas para efeitos de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas, a Administração Tributária foi-lhe elaborando liquidações oficiosas deste tributo mal deu conta da situação, ano após ano, com concomitante liquidação dos juros compensatórios conexos, sob invocação do disposto no art.83° corpo e alíneas b)-c) do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas:
· relativamente a 2002, com n.° [2005]8310056591, de que resultou uma dívida de imposto de €8.721,94 e de juros compensatórios no montante de €173,00;
· relativamente a 2003, com n.° [2005]8310094500, de que resultou uma dívida de imposto de €8.721,94 e de juros compensatórios no montante de €174,91;
· relativamente a 2004, com n.° [2006]8310012343, de que resultou uma dívida de imposto €7.235,09 e de juros compensatórios no montante de €145,09;
· relativamente a 2005, com n.° [2007]831005099, de que resultou uma dívida de imposto €7.235,09 e de juros compensatórios no montante de €145,09; e
· relativamente a 2006, com n.° [2008]831008633, de que resultou uma dívida de imposto €7.201,90 e de juros compensatórios no montante de €145,43.
6. Tais dívidas não foram pagas nos respetivos prazos de pagamento voluntário, pelo que no Serviço de Finanças de Odivelas viriam a ser sucessivamente instaurados os processos executivos para sua cobrança coerciva, a que couberam os n.os 4227200601098667 [dívida proveniente da liquidação respeitante ao ano de 2002, cujo prazo de pagamento voluntário terminara a 30 de julho de 2006], 4227200601181262 [dívida proveniente da liquidação respeitante ao ano de 2003, cujo prazo de pagamento voluntário terminara a 4 de setembro de 2005], 4227200601084321 [dívida proveniente da liquidação respeitante ao ano de 2004, cujo prazo de pagamento voluntário terminara a 23 de junho de 2006], 4227200701109790 [dívida proveniente da liquidação respeitante ao ano de 2005, cujo prazo de pagamento voluntário terminara a 28 de junho de 2007] e 4227200801199021 [dívida proveniente da liquidação respeitante ao ano de 2006, cujo prazo de pagamento voluntário terminara a 5 de julho de 2008].
7. Apensados que foram depois tais processos, não tendo o Órgão de Execução Fiscal achado bens pertencentes à sociedade executada, que pudessem servir as finalidades das execuções, enxertou então procedimento de eventual reversão das execuções sobre os Impugnantes que haviam sido seus gerentes.
8. No seu termo o Órgão de Execução Fiscal reverteu as execuções sobre eles, por despacho de 10 de dezembro de 2010, a título de responsabilidade subsidiária à da sociedade.
9. Citados que foram ambos a 17 de dezembro de 2010 para os termos da execução e seus apensos, no dia 28 de janeiro seguinte apresentaram a petição na origem dos presentes autos.

Não há outra matéria provada, nomeadamente alegados, que relevem para apreciação e decisão das questões. E, com essa pertinência, não resultou já provado:
1. Quando, como e onde foi a sociedade notificada das liquidações mencionadas na matéria de facto provada.».
2. Questões a decidir
A única questão que vem suscitada no presente recurso é a de saber se existe erro de julgamento da sentença recorrida ao anular as liquidações de IRC respeitantes aos exercícios de 2002, 2003, 2004, 2005 e 2006 da sociedade comercial fundada pelos impugnantes e revertidos, cuja actividade comercial cessou em 2000, não obstante a mesma apenas ter sido liquidada e encerrada em 18 de Fevereiro de 2011.

3 – Do direito
3.1. No âmbito do presente recurso, o Representante da Fazenda Pública insurge-se contra a anulação judicial das liquidações efectuadas pela AT ao abrigo do disposto nas alíneas b) e c) do artigo 83.º do CIRC nos exercícios de 2002 a 2006.

À data dos factos a dispunham as referidas normas o seguinte:

Artigo 83.º

Procedimento e forma de liquidação

1 - A liquidação do IRC processa-se nos termos seguintes:

(…)

b) Na falta de apresentação da declaração a que se refere o artigo 112.º, a liquidação é efectuada até 30 de Novembro do ano seguinte àquele a que respeita ou, no caso previsto no n.º 2 do referido artigo, até ao fim do 6.º mês seguinte ao do termo do prazo para a apresentação da declaração aí mencionada e tem por base a totalidade da matéria colectável do exercício mais próximo que se encontre determinada;

c) Na falta de liquidação nos termos das alíneas anteriores, a mesma tem por base os elementos de que a administração fiscal disponha.

Segundo o Recorrente, o Tribunal Tributário teria errado ao considerar que pela circunstância de se ter dado como provado que a sociedade a que se reportam as liquidações não tinha actividade desde 2000, daí resultaria o afastamento da liquidação oficiosa de rendimentos ao abrigo das mencionadas alíneas b) e c) do artigo 83.º do CIRC. E esta fundamentação da sentença estaria errada na medida em que, não tendo sido apresentada pela sociedade em causa qualquer declaração de rendimentos, a AT não teria base factual nem jurídica para anular, corrigir ou revogar aqueles actos de liquidação (ex vi do n.º 10 do artigo 83.º e do artigo 93.º, ambos do CIRC) – aquelas liquidações oficiosas constituíam actos legalmente vinculados – e o mesmo se aplicaria ao Tribunal.

Nas suas alegações, o Recorrente alega ainda que a declaração de cessação de actividade para efeitos de IVA, apresentada por aquela sociedade, com efeitos reportados ao ano fiscal de 2000, não seria adequada (uma vez que a sociedade poderia ter continuado a exercer a sua actividade, obtendo rendimentos legalmente isentos ou não sujeitos a IVA) e ainda que, no momento em que foi proferida a sentença já o acto de liquidação se estabilizara, e não sendo possível emitir novo acto de liquidação à luz do artigo 45.º da LGT, por já terem decorrido os quatro anos, também não seria possível anular os actos já praticados.

3.2. Da leitura destes argumentos facilmente se percebe que o recurso é manifestamente improcedente e que a anulação dos actos de liquidação corresponde à reposição da legalidade, tendo em conta que resultou provado nos autos que não existiu qualquer rendimento daquela sociedade no período a que se reportam as liquidações.

Vejamos.

3.2.1. Os sócios, chamados a pagar as dívidas tributárias da sociedade, por efeito da reversão do processo de execução fiscal, impugnaram as liquidações ao abrigo do direito previsto no n.º 4 do artigo 22.º da LGT, provando que nos exercícios a que correspondiam aquelas dívidas a sociedade não obtivera quaisquer rendimentos. Com base nestes factos, o Tribunal a quo anulou aquelas liquidações.

A Fazenda Pública insurge-se contra a decisão por considerar que aqueles actos de liquidação se consolidam juridicamente uma vez decorrido o prazo de caducidade do direito à liquidação previsto no artigo 45.º da LGT, o que inviabilizaria aquela anulação.

Mas sem razão.

3.2.2. Primeiro, em jurisprudência pretérita deste Supremo Tribunal Administrativo (v., por todos acórdão de 11 de Maio de 2016, processo 0442/15), a respeito da natureza do prazo para liquidação oficiosa do imposto à luz do disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 83.º do CIRC, pode ler-se o seguinte:

“[…] Quanto à natureza desta liquidação oficiosa, permitimo-nos aqui citar RUI DUARTE MORAIS: «Pensamos que o seu sentido mais não é do que prevenir uma eventual caducidade do direito à (a qualquer) liquidação.

O montante assim fixado será, necessariamente, provisório (como de resto é também a autoliquidação, uma vez que fica sempre sujeita a uma eventual correcção posterior pela administração tributária). Na realidade, não faria qualquer sentido que a liquidação oficiosa feita em tais termos pudesse ser havida como adequado substituto da declaração a que o sujeito passivo não procedeu. Para além de tal poder redundar numa vantagem incompreensível do contribuinte faltoso (ao ser tributado com base no resultado de um exercício anterior poderia pagar menos do que aquilo a que estaria obrigado, por ter acontecido uma evolução positiva dos resultados do seu negócio), significaria abdicar de qualquer pretensão de basear a tributação em causa no lucro (no resultado) real ou, mesmo, normal, desse sujeito passivo.

A falta de cumprimento pelo sujeito passivo parece impor à administração, para além de proceder oficiosamente a uma tal liquidação “provisória”, o dever funcional de, dentro do prazo de caducidade de tal direito, efectuar uma acção inspectiva visando determinar qual o lucro obtido por esse sujeito passivo no exercício em causa e, também, a sua situação actual» (Apontamentos ao IRC, Almedina, 2007, págs. 208/209.).

De tudo o que vimos de dizer, resulta manifesto que o prazo previsto para a liquidação oficiosa de IRC no caso de falta de apresentação pelo contribuinte da declaração de rendimentos não é um prazo de caducidade. É, isso sim, um prazo meramente dirigido aos serviços da AT, impondo-lhes um prazo curto para a liquidação oficiosa, em ordem a prevenir a caducidade do direito de liquidar (que fica sujeita ao prazo normal).

Mas, como resulta do que deixámos já dito, a AT não só pode, como deve, diligenciar, designadamente através de acção inspectiva, no sentido de apurar qual a matéria tributável do período em causa (o valor real ou presumido dos rendimentos sujeitos a tributação), de modo a, dentro do prazo da caducidade do direito de liquidar, proceder às correcções que se mostrem pertinentes e à consequente liquidação adicional ou anulação da liquidação oficiosa (consoante seja positiva ou negativa a diferença entre o montante de imposto liquidado oficiosamente nos referidos termos e o que venha a mostrar-se devido) […]”.

Resulta do excerto transcrito que, nos casos em que o sujeito passivo não apresenta a declaração de rendimentos, e sem prejuízo do poder-dever de proceder a esta liquidação oficiosa provisória para evitar que dessa falta (independentemente das sanções aplicáveis pela violação dos deveres acessórios declarativos a que possa dar lugar) resulte uma vantagem futura para o mesmo, é dever da AT inteirar-se, por via do exercício dos seus poderes inspectivos, da real situação económica do sujeito passivo, de modo a poder promover a liquidação adicional ou a anulação de parte do imposto devido segundo a liquidação provisória.

3.2.3. Segundo, este Tribunal pôde também esclarecer já que, mesmo que o sujeito passivo venha posteriormente a apresentar uma declaração de rendimentos, fora do prazo, com valores inferiores aos que constam da liquidação provisória, ela [essa declaração] já não beneficia da presunção de verdade do artigo 75.º da LGT, podendo ser livremente valorada – neste sentido acórdão de 4 de Maio de 2016 (proc. 0415/15) – o que, uma vez mais, mostra que o determinante não é haver ou não haver declaração apresentada nos termos do n.º 10 do artigo 83.º do CIRC, mas sim existirem ou não rendimentos reais que sustentem o imposto liquidado. Por isso se afirma no aresto que acabámos de referir que a impugnação da liquidação provisória não pode ser substituída pela apresentação de uma declaração de rendimentos tardia.

3.2.4. Ora, não só a AT tinha a obrigação de indagar da real situação económica do sujeito passivo – o que não fez, tendo-se limitado, durante todos aqueles anos, a emitir liquidações provisórias na sequência da falta de declaração de rendimentos Modelo 22 –, como seria manifestamente violador do princípio da tributação pelo rendimento real (artigo 104.º, n.º 2 da CRP), admitir que, uma vez provada a falta de rendimentos do sujeito passivo (tendo os impugnantes preenchido o ónus que sobre eles impedia nesta impugnação segundo o n.º 1 do artigo 74.º da LGT), as liquidações não pudessem ser anuladas por inexistir uma declaração de rendimentos a zeros para aqueles anos.

Por outra palavras, não tem arrimo legal uma solução que preconiza a tributação de rendimento inexistente – comprovadamente inexistente – pela circunstância de não estar cumprida uma obrigação acessória de entrega de declaração de rendimentos. De resto, a jurisprudência pretérita deste Supremo Tribunal Administrativo não deixa dúvidas a respeito da inadmissibilidade de uma tributação que incida sobre um facto tributário inexistente [neste sentido v., por todos, acórdãos de 22 de Abril de 2015 (proc. 0826/13), de 22 de Março de 2011 (proc. 0988/10) e de 4 de Novembro de 2011 (proc. 0553/09)].

3.2.5. E também não procede a objecção a respeito do prazo de caducidade do direito à liquidação, pois o que está aqui em causa é a anulação de uma liquidação que, como vimos, por incidir sobre um facto tributário inexistente, viola não apenas o princípio fundamental da tributação das empresas pelo rendimento real, como, mais do que isso, um princípio basilar e estrutural da tributação, que é o princípio da capacidade contributiva. Assim, o único prazo que poderia relevar aqui seria o prazo de caducidade do direito de acção por tais liquidações não serem impugnadas atempadamente, o que não se verifica.


III - Decisão

Pelo exposto, acordam os juízes que compõem esta Secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo em negar provimento ao recurso.


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Custas pelo Recorrente [nos termos dos n.ºs 1 e 2 do artigo 527.º do Código de Processo Civil, aplicável ex vi a alínea e), do artigo 2.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário].
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Lisboa, 3 de Fevereiro de 2021. - Suzana Maria Calvo Loureiro Tavares da Silva (relatora) - Aníbal Augusto Ruivo Ferraz - Francisco António Pedrosa de Areal Rothes.