Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:02465/10.3BELRS
Data do Acordão:11/10/2021
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:FRANCISCO ROTHES
Descritores:IVA
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DAS COMUNIDADES EUROPEIAS
PRINCÍPIO DO INQUISITÓRIO
NULIDADE PROCESSUAL
Sumário:I - O TJUE, pelo seu acórdão de 10 de Julho de 2014, proferido no processo C-183/13, considerou que os Estados-Membros podem obrigar um banco que exerce actividades de locação financeira a incluir no numerador e no denominador da fracção que serve para estabelecer um único e mesmo pro rata de dedução para todos os seus bens e serviços de utilização mista, apenas a parte das rendas pagas pelos clientes no âmbito dos seus contratos de locação financeira, que corresponde aos juros, quando a utilização desses bens e serviços seja sobretudo determinada pelo financiamento e pela gestão desses contratos, o que incumbe ao órgão jurisdicional de reenvio verificar.
II - Em face da interpretação fornecida pelo TJUE sobre a questão, cuja doutrina é inteiramente aplicável ao caso em apreço, deve ser considerada a necessidade de apurar se nas operações de locação financeira para o sector automóvel que podem implicar a utilização de certos bens ou serviços de utilização mista, essa utilização é sobretudo determinada pelo financiamento e pela gestão dos contratos de locação e não pela disponibilização dos veículos.
III - Se, previamente à prolação da decisão, que se sustentou na referida jurisprudência do TJUE, que vincula os tribunais nacionais, não foi facultada ao impugnante – que apresentou a petição inicial antes da pronúncia do TJUE – a possibilidade de ajustar a sua alegação de facto à doutrina nele veiculada, designadamente permitindo-se-lhe complementar a factualidade alegada em ordem a determinar se a utilização desses bens e serviços de utilização mista é sobretudo determinada pelo financiamento e pela gestão dos contratos de locação e não pela disponibilização dos veículos, é de julgar procedente a nulidade processual por violação do princípio do inquisitório, a determinar a anulação da decisão recorrida.
Nº Convencional:JSTA000P28500
Nº do Documento:SA22021111002465/10
Data de Entrada:07/03/2019
Recorrente:A................ - INSTITUIÇÃO FINANCEIRA DE CRÉDITO, S.A.
Recorrido 1:AT – AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: Recurso jurisdicional da sentença proferida no processo de impugnação judicial com o n.º 2465/10.3BELRS
Recorrente: “A………….. - Instituição Financeira de Crédito, S.A.”
Recorrida: Autoridade Tributária e Aduaneira (AT)

1. RELATÓRIO

1.1 A sociedade acima identificada recorreu para o Supremo Tribunal Administrativo da sentença proferida no Tribunal Tributário de Lisboa, que julgou improcedente a impugnação judicial por ela deduzida da liquidação adicional de Imposto sobre o Valor Acrescentado (IVA) e respectivos juros compensatórios, que lhe foi efectuada pela AT com referência ao mês de Dezembro de 2007, na parte respeitante ao imposto suportado com bens e serviços de utilização mista ou de afectação promíscua (i.e., utilizados indistintamente nas diversas actividades prosseguidas pela Impugnante, sendo que apenas uma é sujeita a imposto).

1.2 O recurso foi admitido, com subida imediata e nos próprios autos e a Recorrente apresentou a motivação do recurso, que resumiu em conclusões do seguinte teor:

«a. Da decisão do tribunal a quo:

A) A recorrente foi impedida de se pronunciar sobre os argumentos novos invocados no teor da contestação, designadamente, entre outros, sobre o teor do ofício circulado n.º 30108 do IVA, junto ao Processo Administrativo, a folhas 313 a 315 e invocado, ex novo, no artigo 53.º da Contestação (cfr. artigo 53.º ao articulado de contestação – pág. 10 da contestação junta aos autos).

B) E foi também impedida de se pronunciar acerca do teor do acórdão do TJUE n.º C-183/13, o qual foi determinante para a decisão do caso sub judice, conforme resulta do teor da sentença recorrida.

C) A violação do princípio do contraditório, porque no caso concreto ora em apreço influencia o exame e decisão da causa, gera a nulidade da decisão impugnada, nos termos do n.º 1 do artigo 195.º do CPC, aplicável por força do artigo 2.º do CPPT.

D) A primeira e principal questão decidenda é aferir se o valor de amortização do capital em dívida, incluído nas rendas de contratos de locação financeira, deve (ou não deve) ser considerado no numerador e no denominador da fórmula de cálculo da percentagem de dedução do IVA (pro-rata), suportado com a aquisição de bens e serviços afectos à actividade de crédito e de locação financeira.

E) No probatório da sentença recorrida não se vislumbra uma qualquer referência que relacione o nível de consumo dos bens e serviços de utilização mista com as actividades de financiamento e gestão dos contratos de locação financeira e com as actividades de disponibilização e manutenção dos veículos. Esta questão de facto é considerada determinante – no entender do TJUE (Acórdão C-183/13) – para o enquadramento jurídico da situação em apreço.

F) A sentença ora recorrida deve ser anulada na parte que diz respeito à questão decidenda ora em apreço e os autos devem ser devolvidos à 1.ª instância, a fim de se proceder à ampliação da matéria de facto tida por essencial, pelo T.J.U.E. e para que se proceda a novo julgamento quanto à matéria da impugnação.

G) É manifesta a improcedência dos «fundamentos» jurídicos invocados e são ostensivos e grosseiros os erros na parte decisória da sentença do tribunal a quo.

H) Em primeiro lugar, porque a sentença recorrida tenta fundamentar a decisão, ficcionando que os entendimentos da Fazenda Pública, transcritos na parte decisória da sentença recorrida, correspondem a decisões dos tribunais superiores, o que se demonstrou ser uma completa falsidade.

I) Em segundo lugar, porque a decisão do tribunal a quo ao transcrever apenas parcialmente as conclusões do TJUE (Acórdão C183/13) omitiu precisamente, a parte com maior relevância para a decisão do caso em apreço, conforme se evidencia em seguida.

J) A conclusão do acórdão do TJUE proferida no Proc. C-183/13 é a seguinte: «o artigo 17.º, n.º 5... deve ser interpretado no sentido de que não se opõe a que um Estado-Membro, em circunstâncias como as do processo principal, obrigue um banco que exerce, nomeadamente, actividades de locação financeira a incluir, no numerador e no denominador da fracção que serve para estabelecer um único e mesmo pro rata de dedução para todos os seus bens e serviços de utilização mista, apenas a parte das rendas pagas pelos clientes, no âmbito dos seus contratos de locação financeira, que corresponde aos juros, quando a utilização desses bens e serviços seja sobretudo determinada pelo financiamento e pela gestão desses contratos, o que incumbe ao órgão jurisdicional de reenvio verificar».(sublinhado nosso)

K) A parte sublinhada é aquela que foi omitida no teor da sentença do tribunal a quo, e é precisamente a parte sobre a qual o tribunal a quo devia ter emitido pronúncia, apreciando a matéria de facto e se necessário ampliando-a, de modo a responder à questão de facto (que, no entender do TJUE, se afigura determinante para resolver o caso em apreço).

L) Em suma, andou mal a sentença do tribunal a quo ao não apreciar a questão de facto, que é determinante para o enquadramento jurídico-tributário e andou ainda pior a referida sentença ao optar – infundadamente – por um enquadramento jurídico, o qual não tem a mínima correspondência com a factualidade subjacente, nem corresponde ao entendimento jurisprudencial no que a esta matéria diz respeito, pelo que a decisão recorrida, ao manter o acto impugnado, enferma do vício de errónea qualificação dos factos tributários, devendo ser anulada por força do previsto no artigo 99.º alínea a) do CPPT.

M) Em face de tudo o exposto, o presente recurso deve ser julgado procedente e, em consequência, ser anulada a sentença do tribunal a quo, no que a esta matéria diz respeito, e determinar a baixa dos autos ao tribunal a quo, para que a sentença seja substituída por outra que, ampliado a base factual necessária, aplique o direito em conformidade com os factos apurados.

b. Da procedência da impugnação:

Sem nada conceder, os factos e os fundamentos que determinam a procedência da presente impugnação são, sumariamente, os seguintes:

N) No ponto 3 dos Factos Provados, a sentença recorrida considera provados os factos constantes dos artigos 10.º e 11.º da P.I., afirmando, no referido ponto 3. da sentença recorrida, que «desde a fusão, a impugnante constitui-se como sujeito passivo de IVA misto...»

O) Como resulta documentalmente provado no doc. 5 anexo à PI, a ora recorrente, na qualidade de entidade incorporante, realizou duas operações de fusão por incorporação, a saber:
- Em Outubro de 2003 incorporou as sociedades B…………………, S.A., C…………………., S.A. e A………… Serviços Lda. (cfr. doc 5).
- Em Novembro de 2004 incorporou as sociedades A…………… ALD - Comércio e Viaturas de Aluguer, Lda., A…………… Rent - Comércio e Viaturas de Aluguer, Lda. e D………….., S.A. (cfr. doc 5).

P) Está provado que das sete sociedades que foram unificadas (uma sociedade incorporante e seis sociedades incorporadas por fusão) apenas uma dessas sociedades tinha por actividade o financiamento e a gestão dos contratos de financiamento e outra, a sociedade incorporante, tinha como actividade a locação financeira.

Q) Perante estes factos (documentalmente provados, cfr. doc. 5 anexo à P.I.) é manifesto que o nível de consumo dos bens e serviços de utilização mista está sobretudo relacionado com as actividades de disponibilização (aluguer de veículos não financeiro) manutenção, reparação, assistência a veículos, de comércio (compra e venda) de veículos e, menos significativamente, com as actividades de financiamento e gestão dos contratos de crédito e de locação financeira.

R) Assim sendo, a metodologia adoptada pela ora recorrente (pro-rata) para apuramento do IVA dedutível nos gastos comuns, não conduz a uma distorção significativa na tributação. Antes pelo contrário, em face destes factos provados, devidamente documentados, é manifesto que a fórmula de cálculo de dedução do IVA, que pondere a dedutibilidade fiscal do IVA incorporado nos custos comuns unicamente em função dos juros recebidos da actividade de crédito e da actividade de locação conduziria, no caso concreto da Impugnante ora Recorrente, a uma redução artificial do direito à dedução do IVA, desfavorável à Impugnante, atentas as características concretas da respectiva actividade da impugnante.

S) Concluindo, o acto tributário de liquidação impugnado, no que a esta matéria diz respeito, enferma do vício de errónea qualificação dos factos tributários, motivo pelo qual deve ser anulado, com fundamento na alínea a) do artigo 99.º do CPPT.

T) Ainda que se entendesse não estar provada pela ora recorrente a inexistência de distorção significativa na metodologia de cálculo do pro-rata de dedução de IVA utilizada pela recorrente – sem conceder e somente ad cautelem se equaciona – ainda assim, é a AT que tem o ónus de provar que a referida metodologia utilizada pela requerente conduz a uma distorção significativa na tributação.

U) No probatório da sentença recorrida e no relatório de inspecção tributária não se vislumbra uma qualquer referência que relacione o nível de consumo dos bens e serviços de utilização mista com as actividades de financiamento e de gestão dos contratos de financiamento e de locação financeira e com as actividades de disponibilização (aluguer não financeiro) e de manutenção dos veículos, nem se encontra qualquer facto – um único que seja – susceptível de provar a alegada distorção significativa.

V) Em consequência, no que concerne a esta matéria, o acto tributário de liquidação que ora se impugna é anulável, ex vi artigo 99.º alínea c) do CPPT, por ausência de fundamentação legalmente exigida.

W) Acrescente-se, sem nada conceder, mesmo se por mera hipótese académica fosse de admitir que alguma prova havia sido produzida pela AT, é manifesto e notório que a AT não logrou provar a existência de uma distorção significativa, pelo que aplicar-se-ia à situação a regra prevista no n.º 1 do artigo 100.º do CPPT, a saber: «sempre que da prova produzida resulte fundada dúvida sobre a existência e quantificação do facto tributário, deverá o acto impugnado ser anulado».

X) Ainda que se entendesse estarem verificados os pressupostos ínsitos no n.º 3 do artigo 23.º do Código do IVA, nomeadamente estar provada a existência de uma distorção significativa – sem conceder e somente ad cautelem se equaciona – ainda assim AT estaria a aplicar uma metodologia de dedução que não tem acolhimento legal (conforme referido nos artigos 137.º a 142.º da P.I., transcritos no presente articulado de recurso).

Z) É precisamente neste mesmo sentido, que defendemos na P.I. apresentada em 2010, a recente interpretação, de 09-01-2018 do Tribunal Arbitral Colectivo, presidido pelo Venerando Juiz Conselheiro Jubilado Jorge Lopes de Sousa, proferida no âmbito do processo arbitral n.º 309/2017T:
.... «em momento nenhum, em lugar algum, se descortina neste art. 23.º a menção ou a consagração do poder de a Autoridade Tributária, perante um sujeito passivo que opta pelo método do pro rata, lhe impor condições à percentagem de dedução. Isto é, para lá das instruções precisas fornecidas pelo n.º 4 do art. 23.º – e que são objectivas na determinação daquela percentagem – o legislador não habilitou a Autoridade Tributária a contrariar a percentagem de dedução tal como resulta do n.º 4»;

AA) Sem nada conceder, ainda que por mera hipótese de raciocínio académico se admita que a Legislação Portuguesa (mais concretamente o CIVA) transpôs para o nosso ordenamento o que estava previsto na Directiva, ou seja, a possibilidade que a mesma concedia de os Estados Membros efectivamente mitigarem o pro rata, podendo obrigar o Contribuinte a incluir ou excluir determinadas verbas da fórmula de cálculo do pro rata;

AB) Ainda assim, «sempre que as modalidades de cálculo da dedução não tenham em conta uma afectação real e significativa de uma parte dos custos gerais a operações que confiram direito à dedução, não se pode considerar que tais modalidades reflictam objectivamente a parte real das despesas efectuadas com a aquisição dos bens e dos serviços de utilização mista que pode ser imputada a essas operações. Por conseguinte, tais modalidades não são susceptíveis de garantir uma repartição mais precisa do que o que decorreria da aplicação do critério de repartição baseado no volume de negócios» (cfr. Acórdão C-153/17 do TJUE de 18-03-2018).

AC) Ora no caso concreto em apreço, há um conjunto de serviços de utilização mista – custos gerais, nomeadamente com edifícios, mobiliário, electricidade e outros consumíveis – que não são objecto de afectação real para efeitos das operações que conferem direito à dedução.

AD) E relembramos que, a ora recorrente não é um banco nem o conjunto das suas actividades é similar as actividades desenvolvidas pelos bancos, nem os serviços de utilização mista (os gastos gerais) se destinam maioritariamente a actividades de financiamento, antes pelo contrário, conforme anteriormente se demonstrou.

AE) E por ser assim no caso concreto em apreço, a ora recorrente subscreve integralmente, a mais recente decisão do TJUE a respeito da metodologia de cálculo do pro-rata numa sociedade, que tem por actividade a locação financeira de veículos automóveis, que em seguida se transcreve:
«...os Estados-Membros não podem aplicar um método de repartição que não tenha em conta o valor inicial do bem em causa no momento da sua entrega, uma vez que esse método não é susceptível de garantir uma repartição mais precisa do que o que decorreria da aplicação do critério de repartição baseado no volume de negócios» (cfr. Acórdão C-153/17 do TJUE de 18-03-2018).

AF) Por último, sem nada conceder, refira-se que a orientação genérica (o Ofício n.º 30108 da Direcção Geral dos Impostos) invocada pela AT como «fundamento» das liquidações adicionais de IVA não estava «em vigor» no momento do facto tributário (nem sequer estava «em vigor» no momento em que foi emitida a liquidação adicional de imposto), pelo que as referidas liquidações de IVA violam não apenas o artigo 68.º-A n.º 2 da LGT como também violam ostensivamente os princípios da segurança jurídica e da protecção da confiança, subjacentes ao princípio da não retroactividade das regras fiscais que afectam a base de incidência do imposto (cfr. artigo 103.º n.º 3 da CRP).

AG) A respeito dos contratos de locação financeira, cujos créditos que lhe estão subjacentes foram cedidos ao abrigo do regime da titularização, a ora Recorrente (porque não cedeu a posição contratual de locador) continua a ser, mesmo após a cedência do crédito, a entidade locadora, isto é, continua a ter a responsabilidade e a obrigação de conceder o uso do veículo locado e continua a ter o direito de exigir do locatário a renda acordada, pelo que, mesmo após a cedência do crédito, a ora Recorrente continua a efectuar as prestações de serviços que configuram as operações de locação financeira e, consequentemente, continua a emitir as facturas, liquidar e entregar o IVA nos cofres do Estado.

AH) Ou seja, excluir as operações de locação financeira, com as características supra identificadas, do âmbito do conceito de volume de negócios (mencionado no artigo n.º 1 do artigo 19.º da Sexta Directiva e concretizado no n.º 4 do artigo 23.º do Código do IVA) é não respeitar a letra e o espírito dos referidos preceitos, porquanto se afiguram imperativos e sem qualquer margem de discricionariedade para a definição do seu âmbito.

Nestes termos e nos mais de Direito aplicável, requer-se a V. Exas., se dignem julgar procedente o presente recurso, por totalmente provado e, em consequência, ser a douta sentença ora recorrida, revogada e substituída por douto Acórdão que julgue procedente a presente impugnação, tudo com as devidas e legais consequências, assim se fazendo a costumada JUSTIÇA».

1.3 A Recorrida não contra alegou.

1.4 Recebidos os autos neste Supremo Tribunal Administrativo, foi dada vista ao Ministério Público e o Procurador-Geral-Adjunto emitiu parecer no sentido de que a sentença recorrida deve ser «revogada e ordenada a devolução do processo ao tribunal recorrido para proferimento de nova decisão, após ampliação da matéria de facto necessária para a aplicação do direito». Isto, depois de elencar as questões a apreciar e decidir, com a seguinte fundamentação:

«1. Violação do princípio do contraditório (art. 3.º n.º 3 CPC)
Enquanto declinação do princípio do processo equitativo (due process of law, na consagrada expressão anglo-saxónica), o princípio do contraditório substancia-se na imperatividade de as questões de direito e de facto não poderem ser decididas sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem (art. 3.º n.º 3 CPC/art. 2.º al. e) CPPT).
No caso concreto não se verificou qualquer inobservância do princípio do contraditório:
- a invocação pela Fazenda Pública na sua contestação do teor do Ofício circulado n.º 31108, da DSIVA) e pela sentença impugnada do acórdão TJUE proferido no processo C-183/13 em 10 Julho 2014, não emergem da suscitação de questões novas; antes se inscrevendo no perímetro de apreciação da questão enunciada pela impugnante na petição inicial e formulada pelo tribunal como questão decidenda: legalidade da fórmula de cálculo da percentagem de dedução do IVA suportado pela impugnante com a aquisição de bens e serviços afectos a actividade de crédito e locação financeira.
Neste conspecto não ocorreu omissão de formalidade legalmente prescrita, susceptível de influenciar o exame e decisão da causa, constitutiva de nulidade processual determinante da anulação dos termos processuais subsequentes à sua verificação, incluindo a sentença impugnada (art. 195.º n.ºs 1 e 2 CPC/art. 2.º al. e) CPPT).

2. Legalidade do método de cálculo da dedução do IVA suportado na aquisição de bens e serviços de utilização mista (art. 23.º n.º 4 CIVA)
I. Na sequência de um pedido de decisão prejudicial formulado pelo STA no âmbito do processo n.º 1017/12,respeitante à interpretação da Directiva 77/388/CEE do Conselho, de 17 Maio 1977 (Sexta Directiva), alterada pela Directiva 95/7/CE do Conselho, de 19 Abril 1995, por acórdão proferido em 10 Julho 2014 (processo C-183/13) o TJUE emitiu a seguinte pronúncia:
O artigo 17.º, n.º 5, terceiro parágrafo, alínea c), da Sexta Directiva 77/388/CEE do Conselho, de 17 de Maio de 1977,relativa à harmonização das legislações dos Estados-Membros respeitantes aos impostos sobre o volume de negócios – Sistema comum do imposto sobre o valor acrescentado: matéria colectável uniforme, deve ser interpretado no sentido de que não se opõe a que um Estado-membro, em circunstâncias como a do processo principal, obrigue um banco que exerce, nomeadamente, actividades de locação financeira a incluir, no numerador e no denominador da fracção que serve para estabelecer um único e mesmo pro rata de dedução para todos os seus bens e serviços de utilização mista, apenas a parte das rendas pagas pelos clientes, no âmbito dos seus contratos de locação financeira, que corresponde aos juros, quando a utilização desses bens e serviços seja sobretudo determinada pelo financiamento e pela gestão desses contratos, o que incumbe ao órgão jurisdicional de reenvio verificar.
II. A doutrina do acórdão é integralmente transponível para a análise do caso concreto (não obstante a impugnante não exercer a actividade bancária), na medida em que a similitude relevante resulta da intervenção de sujeitos passivos que, no exercício das suas actividades, efectuam operações que conferem direito a dedução e operações que não conferem esse direito, e que tenham suportado a montante IVA na aquisição de bens de serviços de utilização mista.
Embora emitida no domínio da Sexta Directiva do Conselho, 17 Maio 1977 a doutrina do acórdão deve ser integralmente aplicada na vigência da actual Directiva 2006/112/CE, do Conselho, 28 Novembro 2006 que nada inovou quanto ao regime aplicável (arts. 173.º n.º 2 al. c) e 174.º n.º 1).
III. Em casos semelhantes, o STA-SCT tem destilado jurisprudência consolidada no sentido da ampliação da matéria de facto (omissa na sentença impugnada) por forma a apurar se, nas operações de locação financeira para o sector automóvel que implicam a aquisição de bens ou serviços de utilização mista (como edifícios, consumo de electricidade e outros consumos colaterais), essa utilização é sobretudo determinada pelo financiamento e gestão dos contratos de locação financeira celebrados com os clientes locatários; ou pela disponibilização, manutenção, reparação e assistência aos veículos locados
Jurisprudência: acórdãos STA-SCT 4.03.2015 processo n.º 1017/12; 3.06.2015 processo n.º 970/13; 17.06.2015 processo n.º 1874/13; 27.01.2016 processo n.º 331/14;12.12.2018 processo n.º 1116/04.0 BELSB)».

1.5 As questões suscitadas pela Recorrente são as de saber:

a) se o processo enferma de nulidade por violação do princípio do contraditório, por não lhe ter sido concedida a possibilidade de se pronunciar i) sobre os argumentos novos invocados na contestação, designadamente sobre o teor do ofício circulado n.º 30108 do IVA e invocado, pela primeira vez, no art. 53.º da contestação e ii) acerca do teor do acórdão do TJUE n.º C-183/13, o qual foi determinante para a decisão do caso sub judice, conforme resulta do teor da sentença recorrida;

b) se a sentença fez errado julgamento, na medida em que não efectuou julgamento sobre a factualidade relativa à questão da legalidade do método de cálculo da dedução do IVA suportado na aquisição de bens e serviços de utilização mista.


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2. FUNDAMENTAÇÃO

2.1 DE FACTO

A Juíza do Tribunal Tributário de Lisboa deu como provados os seguintes factos:

«Compulsados os autos e analisada a prova documental apresentada, encontram-se assentes, por provados, os seguintes factos com interesse para a presente decisão:

1. A A…………..-Instituição Financeira de Crédito, SA., tem como objecto social, o exercício da actividade de locação financeira mobiliária e das actividades afins ou conexas legalmente permitidas às sociedades de locação financeira mobiliária – cfr. fls. 109 do processo administrativo em apenso aos autos;

2. Em 30/11/2004 foi outorgada “Escritura de Fusão, por Incorporação”, da A………… ALD-Comércio e Viaturas de Aluguer, Lda., D…………, S.A. e A………….. Rent - Comércio de Viaturas de Aluguer, Lda., na A…………..-Instituição Financeira de Crédito, S.A. (sociedade incorporante) abrangendo a sua actividade, a partir daquela data, também, a realização de operações de crédito – cfr. fls. 21 do processo administrativo em apenso aos autos;

3. Desde a fusão, a impugnante constituiu-se como sujeito passivo de IVA “misto”, assim: i) utiliza o método da afectação real relativamente ao IVA dos “inputs” directamente relacionados com a actividade que confere direito à dedução, pelo que recupera integralmente o imposto suportado a montante nas operações efectuadas no âmbito da actividade de locação financeira mobiliária; e ii) utiliza o método do “pro rata” de dedução no que respeita ao IVA suportado na aquisição de bens e serviços indistintamente utilizados a jusante em operações sujeitas com e sem direito a dedução – cfr. fls. 325 do processo administrativo em apenso aos autos;

4. No cálculo do “pro rata”, no exercício de 2007, a impugnante considerou no numerador da fracção, as transmissões de bens e prestações de serviços (imposto excluído) que dão lugar a dedução e, no denominador, todas as operações (imposto excluído) efectuadas incluindo as isentas ou fora do campo do imposto – cfr. fls. 325 do processo administrativo em apenso aos autos;

5. Na sequência da Ordem de Serviço n.º OI201000051, de 18/01/2010, a A.T. iniciou procedimento de inspecção externa, de carácter parcial, à A…………. - Instituição Financeira de Crédito, S.A., tendo apresentado as seguintes conclusões que fundamentaram as correcções ao IVA/Dezº/2007:

(...)

[IMAGEM]

– cfr. fls. 120 a 138 dos autos;

6. Com data limite de pagamento de 31/08/2010, foi efectuada à A……….. - Instituição Financeira de Crédito, S.A., a liquidação adicional de IVA do período 07/12, no valor de € 714.897,14 – cfr. fls. 44 dos autos;

7. Com data limite de pagamento de 31/08/2010, foi efectuada à A………. - Instituição Financeira de Crédito, S.A. a liquidação de juros compensatórios do período de 07/12, no valor de € 64.321,16 – cfr. fls. 45 dos autos.

II. 2- DOS FACTOS NÃO PROVADOS

Não existem outros factos relevantes para a decisão que importe destacar como não provados».


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2.2 DE DIREITO

2.2.1 AS QUESTÕES A APRECIAR E DECIDIR

A sociedade ora Recorrente caracteriza-se, para efeitos de IVA, como sujeito passivo misto.
Com referência ao ano de 2007, a AT inspeccionou a ora Recorrente e considerou, para além do mais, que esta não procedeu correctamente no que respeita à determinação do IVA a deduzir relativamente à aquisição de bens e serviços utilizados para efectuar simultaneamente operações que conferem direito à dedução e operações que não conferem esse direito (bens e serviços de utilização mista); que tendo a ora Recorrente usado como regra de cálculo desse direito à dedução o método da percentagem, mediante a aplicação de um pro rata de dedução, este originou uma distorção, na medida em que incluiu, quer no numerador quer no denominador da fracção por que o mesmo é calculado, a totalidade das rendas recebidas no âmbito dos contratos de locação; sustentou a AT que, no cálculo da percentagem de dedução (pro rata) respeitante ao bens e serviços de utilização mista, a contribuinte deveria ter incluído apenas a parte das rendas pagas pelos clientes, no âmbito dos seus contratos de locação financeira, que corresponde aos juros e já não a parte dessas rendas que corresponde à amortização do capital (ou seja, ao montante respeitante à aquisição dos bens dados em locação).

Assim, corrigiu a autoliquidação de imposto que a ora Recorrente efectuara relativamente àquele ano, procedendo à respectiva liquidação adicional.
Esta discordou desse entendimento e impugnou esse acto tributário.
A sentença julgou a impugnação judicial improcedente.
A Impugnante discorda da sentença e dela recorreu para este Supremo Tribunal Administrativo.
Começa por arguir a nulidade processual por violação do princípio do contraditório, com a seguinte alegação: não lhe foi concedida a possibilidade de se pronunciar i) quer sobre os argumentos novos invocados na contestação, designadamente sobre o teor do ofício circulado n.º 30108 do IVA, que aí foi invocado pela primeira vez, ii) quer sobre o teor do acórdão do Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) com n.º C-183/13, o qual foi determinante para a decisão do caso sub judice,conforme resulta da sentença.
Depois, considera que, quanto à questão de saber se o valor de amortização do capital em dívida, incluído nas rendas de contratos de locação financeira, deve, ou não, ser considerado no numerador e no denominador da fórmula de cálculo da percentagem (pro rata) de dedução do IVA suportado com a aquisição de bens e serviços de utilização mista, a sentença incorreu em erro de julgamento, na medida em que não estabeleceu a factualidade pertinente – que permita relacionar o nível de consumo dos bens e serviços de utilização mista com as actividades de financiamento e gestão dos contratos de locação financeira e com as actividades de disponibilização e manutenção dos veículos – como o impunha o acórdão do TJUE proferido no processo C-183/13. Em consequência, pede que a sentença ora recorrida seja anulada e os autos sejam devolvidos à 1.ª instância, a fim de se proceder à ampliação da matéria de facto tida por essencial pelo TJUE e, depois, a novo julgamento.
Daí termos enunciado as questões a apreciar e decidir nos termos que deixámos expostos em 1.5.

2.2.2 DA VIOLAÇÃO DO PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO

A Recorrente começa por arguir a nulidade, por violação do princípio do contraditório, decorrente de duas omissões: a primeira, porque não lhe foi concedida a possibilidade de se pronunciar sobre os argumentos novos invocados na contestação, designadamente sobre o teor do ofício circulado n.º 30108 do IVA, que aí foi invocado pela primeira vez; a segunda, porque não lhe foi possibilitada a pronúncia sobre o teor do acórdão do TJUE n.º C-183/13 – proferido depois de apresentada a petição inicial e a contestação –, o qual foi determinante para a decisão do caso sub judice, conforme resulta do teor da sentença recorrida, pois não foi notificada para esse efeito, nem sequer foi notificada para alegar ao abrigo do disposto no art. 120.º do CPPT.

2.2.2.1 Relativamente à falta de notificação da contestação é manifesto que, a ter-se verificado, ocorreria nulidade processual, sujeita ao regime dos arts. 195.º, 197.º, e 199.º do Código de Processo Civil (CPC), aplicável subsidiariamente nos termos da referida alínea e) do art. 2.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), a inquinar a validade dos actos ulteriormente praticados e dela dependentes (cf. arts. 195.º, n.ºs 1 e 2 do CPC), incluindo a decisão recorrida. Na verdade, o princípio do contraditório (Hoje entendido, não na sua dimensão negativa, de direito de defesa, oposição ou resistência à actuação alheia, mas na sua dimensão positiva, de direito de influir activamente, no desenvolvimento e no êxito do processo, constituindo um dos mais elementares princípios que enformam todo o direito adjectivo e também o processo tributário. Para maior desenvolvimento quanto ao princípio do contraditório, designadamente de natureza doutrinal, e com citação de jurisprudência, vide o acórdão da Secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo de 3 de Março de 2010, proferido no processo n.º 63/10, disponível em http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/-/1f4bfa574b6a7515802576e10040e44b.) – previsto no n.º 3 do art. 3.º do CPC – impõe a notificação da contestação e do processo administrativo com ela apresentado ao impugnante.
Mas a ora Recorrente foi notificada da contestação, como resulta de fls. 277 do processo electrónico, motivo por que não pode proceder a invocada nulidade por falta de notificação da contestação.

2.2.2.2 Relativamente à invocada falta de possibilidade para se pronunciar sobre o teor do acórdão do TJUE de 10 de Julho de 2014, proferido no processo com o n.º C-183/13, o qual, segundo alega, foi determinante para a decisão do caso sub judice, conforme resulta do teor da sentença recorrida, a questão assume maior complexidade.
Antes do mais, é inegável que o referido acórdão do TJUE foi decisivo no sentido decisório da sentença recorrida, como resulta da leitura da mesma; e bem se compreende que o tenha sido, uma vez que estamos no âmbito do IVA, que é um imposto regulado ao nível da União Europeia, motivo por que, na interpretação das normas que o regulam cumpre aos tribunais nacionais respeitar a jurisprudência do TJUE. Na verdade, sendo aquele acórdão proferido sobre uma questão prejudicial de interpretação, todos os tribunais nacionais do espaço da União ficam vinculados às conclusões e à fundamentação da pronúncia do TJUE. Recorde-se que é a este órgão jurisdicional da União Europeia que cabe garantir o respeito do direito na interpretação e aplicação dos Tratados e decidir sobre a validade e a interpretação dos actos adoptados pelas outras instituições, órgãos e organismos da União (art. 19.º, n.º 1, 2.ª parte, do Tratado da União Europeia e art. 267.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia).
Convém ainda ter presente que o referido acórdão foi proferido no âmbito de um pedido de reenvio prejudicial formulado pelo Supremo Tribunal Administrativo (No âmbito do processo n.º 1017/12 e pelo acórdão proferido em 16 de Janeiro de 2013, disponível em http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/-/f05c76dc05829eac80257b2000385a28
Após a pronúncia do TJUE, o Supremo Tribunal Administrativo decidiu o recurso através do acórdão proferido em 4 de Março de 2015, disponível em http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/-/5e3113f2b07ffb9280257e0a003bd76d, tendo anulado a sentença recorrida e determinado a baixa do processo à 1.ª instância, a fim de aí ser ampliada a matéria de facto e, depois, ser proferida nova sentença. Isto, em síntese, porque considerou que «[i]mporta […] que sobre a matéria de facto se formule um juízo de facto sobre se a utilização desses bens e serviços de utilização mista é ou não, sobretudo determinada pelo financiamento e pela gestão desses contratos. // Impõe-se que sejam reanalisados, à luz do que definiu o Tribunal de Justiça que deveria ser verificado pelo tribunal nacional, os elementos constantes da matéria de facto provada, sobre as duas referidas actividades, para que se possa decidir se a fórmula de cálculo do pro rata utilizada pela Administração Tributária, em concreto, poderia fundamentar as correcções efectuadas e que conduziram aos actos de liquidação impugnados» e que «[o] Tribunal recorrido deverá ouvir ambas as partes sobre a forma de proceder a tal averiguação, convocando-as a nela participarem, por se abrir neste processo uma fase excepcional decorrente da pronúncia do Tribunal de Justiça, já analisada, que haverá de ser dirimida com respeito por todas os princípios que regem o processo como um meio de alcançar a tutela jurisdicional efectiva».), respeitante à interpretação da Directiva 77/388/CEE do Conselho, de 17 de Maio de 1977 (Sexta Directiva), alterada pela Directiva 95/77/CE do Conselho, de 19 Abril de 1995, e que o TJUE, pelo referido acórdão proferido em 10 Julho de 2014, no processo C-183/13, emitiu a seguinte pronúncia:
«O artigo 17.º, n.º 5, terceiro parágrafo, alínea c), da Sexta Directiva 77/388/CEE do Conselho, de 17 de Maio de 1977, relativa à harmonização das legislações dos EstadosMembros respeitantes aos impostos sobre o volume de negócios — Sistema comum do imposto sobre o valor acrescentado: matéria colectável uniforme, deve ser interpretado no sentido de que não se opõe a que um EstadoMembro, em circunstâncias como as do processo principal, obrigue um banco que exerce, nomeadamente, actividades de locação financeira a incluir, no numerador e no denominador da fracção que serve para estabelecer um único e mesmo pro rata de dedução para todos os seus bens e serviços de utilização mista, apenas a parte das rendas pagas pelos clientes, no âmbito dos seus contratos de locação financeira, que corresponde aos juros, quando a utilização desses bens e serviços seja sobretudo determinada pelo financiamento e pela gestão desses contratos, o que incumbe ao órgão jurisdicional de reenvio verificar».
Ou seja, na apreciação do TJUE, o cálculo do direito à dedução em aplicação do método baseado no volume de negócios, que tem em conta os montantes relativos à parte das rendas que os clientes pagam e que servem para compensar a disponibilização dos veículos, leva a determinar um pro rata de dedução do IVA pago a montante menos preciso do que o resultante do método aplicado pela Fazenda Pública, baseado apenas na parte das rendas correspondente aos juros que constituem a contrapartida dos custos de financiamento e de gestão dos contratos suportados pelo locador financeiro, uma vez que estas duas actividades constituem o essencial da utilização dos bens e serviços de utilização mista destinada à realização das operações de locação financeira para o sector automóvel (considerando 34).
Como bem salientou a Recorrente, na economia daquele acórdão assume relevância decisiva a indagação sobre a factualidade respeitante à utilização dos bens e serviços de utilização mista (inputs promíscuos) e à sua distribuição pelas actividades por ela exercidas, indagação que o TJUE coloca a cargo do tribunal nacional.
Tendo recordado o que decidiu o acórdão do TJUE proferido no processo C-183/13, tendo também presente o teor da sentença e sendo inegável que aquele, como se impunha, foi decisivo no teor e sentido desta, afigura-se-nos que se impunha que o Tribunal Central Administrativo Norte, em obediência ao princípio do inquisitório – que impõe ao juiz, não só a consideração dos factos que sejam complemento ou concretização dos que as partes hajam alegado e resultem da instrução da causa, como também o dever de determinar, oficiosamente, a complementação da factualidade alegada [cf., respectivamente, arts. 5.º, n.º 2, alínea b), e 590.º, n.ºs 4 e 6, do CPC] –, tivesse concedido às partes a faculdade de complementar a alegação de facto, em face da interpretação definida pelo TJUE e ulterior à apresentação da petição inicial, de modo a permitir o juízo sobre se a utilização dos bens e serviços de utilização mista é, ou não, sobretudo determinada pelo financiamento e pela gestão dos contrato.
Como alega a Recorrente, essa possibilidade – que, noutros casos, o tribunal de 1.ª instância sempre concedeu, ainda que tivesse já notificado as partes para os efeitos do art. 120.º do CPPT – no caso sub judice não lhe foi concedida.
Ou seja, deveria a ora Recorrente, em face da pronúncia do TJUE sobre a questão a dirimir nos autos, ter sido notificada para se pronunciar sobre a necessidade de ampliar a alegação de facto e/ou aditar a prova apresentada, em ordem a permitir conformar a decisão a proferir sobre a matéria de facto com a pronúncia do TJUE, que exige ao tribunal nacional que formule um juízo de facto sobre se a utilização dos bens e serviços de utilização mista é, ou não, sobretudo determinada pelo financiamento e pela gestão dos contrato de locação.
Nos numerosos casos idênticos com que se tem deparado, este Supremo Tribunal tem vindo a entender uniformemente que quando o probatório fixado pelas instâncias não permite estabelecer se a utilização de bens ou serviços de utilização mista foi sobretudo determinada pelo financiamento e pela gestão dos contratos de locação financeira celebrados com os seus clientes ou, ao invés, pela disponibilização dos veículo, ou seja, quando não foi fixada a factualidade pertinente para a discussão deste aspecto jurídico da causa, haverá de se ordenar a baixa dos processos à 1.ª instância em ordem à ampliação da matéria de facto, para que a sentença seja substituída por outra que decida, após ampliação da base factual necessária para a aplicação do direito (Sem preocupação de sermos exaustivos, vide os seguintes acórdãos da Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo:
- de 4 de Março de 2015, proferido no processo com o n.º 1017/12, disponível em http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/-/5e3113f2b07ffb9280257e0a003bd76d;
- de 4 de Março de 2015, proferido no processo com o n.º 81/13, disponível em http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/-/85642b0e6eba54e680257e0a003fd2e5;
- de 3 de Junho de 2015, proferido no processo com o n.º 970/13, disponível em http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/-/c42b311085d96bc680257e5b004f259c;
- de 17 de Junho de 2015, proferido no processo com o n.º 956/13, disponível em http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/-/70f9d62924a394a080257e6d002f4f58;
- de 17 de Junho de 2015, proferido no processo com o n.º 1874/13, disponível em http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/-/2ddca04bc4bbde1e80257e830035a727;
- de 27 de Janeiro de 2016, proferido no processo com o n.º 331/14, disponível em http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/-/5181a289d324e6f980257f4d0038bf85;
- de 12 de Dezembro de 2018, proferido no processo com n.º 1116/04.0BELSB (1240/17), disponível em
http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/-/b70e699bd5a25d7a8025838b0055982f;
- de 9 de Outubro de 2019, proferido no processo com o n.º 401/14.7BEPRT, disponível em
http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/-/221355cbdc7d0d57802584960054aba1;
- de 17 de Fevereiro de 2021, proferido no processo com o n.º 1077/14.7BEPRT, disponível em
http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/-/a9b18174f7e88a6080258682006fd428;
- de 9 de Junho de 2021, proferido no processo com o n.º 2840/09.6BEPRT, disponível em
http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/-/05fdc847dd3c63e5802586f400430864.).
Tanto mais que, como este Supremo Tribunal tem vindo a afirmar (Por todos, vide o acórdão do Pleno da Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo de 20 de Janeiro de 2021, proferido no processo com o n.º 101/19.1BALSB, disponível em http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/-/91bfabc98c8f5cef802586680048da06, no qual ficou dito: «[…] quando o acto de liquidação adicional do IVA se fundamente no não reconhecimento das deduções declaradas pelo sujeito passivo, cabe a este a prova dos factos constitutivos do direito à dedução. // Caberia, por isso, ao sujeito passivo alegar e demonstrar que, no seu caso concreto, a utilização os bens ou serviços mistos não era sobretudo determinada pela gestão e financiamento dos contratos. Solução que reputamos adequada também porque o sujeito passivo, dada a sua proximidade com a fonte produtora, está mais bem posicionado para expor as especificidades do seu negócio. // Assim, e para concluirmos este ponto, diremos resumidamente que, para o juízo sobre a necessidade e adequação do recurso a «um coeficiente de imputação específico» (para não fugir da expressão do Ofício), competiria ao sujeito passivo alegar e demonstrar que, apesar de ser uma instituição financeira que realiza operações de locação financeira para o sector automóvel utilizando para o efeito bens e serviços de utilização mista, no seu caso, essa utilização não é sobretudo determinada pelo financiamento e pela gestão dos contratos».), o ónus da prova dos factos constitutivos dos direitos da AT e dos contribuintes recai sobre quem os invoque (cf. n.º 1 do art. 342.º do Código Civil e n.º 1 do art. 74.º da LGT), ou seja, sobre o impugnante, pelo que há que permitir-lhe alegar e demonstrar que os custos suportados com bens e serviços de utilização comum respeitam, em parte, à disponibilização dos bens que constituem o objecto das operações de locação financeira e de aluguer de longa duração.
Ou seja, sempre haveria o Tribunal a quo, em face da interpretação definida pelo acórdão proferido pelo TJUE no processo C-183/13, que ter concedido à Impugnante a faculdade de completar a sua alegação de facto, em ordem a permitir responder a questão sobre o modo como são utilizados os bens e serviços de utilização mista, tudo como já referido.
A omissão da notificação que asseguraria essa possibilidade constitui nulidade. Se é certo que a lei não prevê essa notificação em disposição autónoma, a omissão da mesma, como procurámos demonstrar, constitui uma violação do princípio do inquisitório.
Assim, a falta dessa notificação, porque susceptível de influir no exame e decisão da causa, constitui nulidade processual, sujeita ao regime dos arts. 195.º, 197.º, e 199.º do CPC, aplicável subsidiariamente nos termos da referida alínea e) do art. 2.º do CPPT, e inquina a validade dos actos ulteriormente praticados e dela dependentes (cf. arts. 195.º, n.ºs 1 e 2 do CPC), incluindo a sentença recorrida.
Mas ainda que assim não fosse, uma outra nulidade, também arguida pela Recorrente, sempre determinaria a anulação de todo o processado ulterior à notificação da contestação, como este Supremo Tribunal tem vindo a dizer uniforme e repetidamente (Vide os seguintes acórdãos da Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo:
- de 2 de Junho de 2010, proferido no processo com o n.º 26/10, disponível em http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/-/dc5c5275ea7409a38025773c004ca5bd;
- de 28 de Março de 2012, proferido no processo com o n.º 62/12, disponível em http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/-/16d07a69ac046216802579de004a25c9;
- de 21 de Outubro de 2015, proferido no processo com o n.º 309/15, disponível em http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/-/89b7d3f5d1f3057180257eea004eae85;
- de 17 de Maio de 2017, proferido no processo com o n.º 302/17, disponível em http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/-/9079120d4ffb2215802581290049c157;
- de 22 de Novembro de 2017, proferido no processo com o n.º 1063/17, disponível em http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/-/0c87975ec6d2ac53802581e800353ab0;
e do Pleno da mesma Secção
- de 8 de Maio de 2013, proferido no processo co o n.º 1230/12, disponível em http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/-/37c736e2cc76d4d780257b7b0049644a.): a omissão da notificação para as alegações previstas no art. 120.º do CPPT.
Assim, na procedência do primeiro fundamento do recurso, que implica a nulidade consequente da sentença recorrida, fica prejudicado o conhecimento do segundo fundamento.

2.2.3 CONCLUSÕES

Preparando a decisão, formulamos as seguintes conclusões:

I - O TJUE, pelo seu acórdão de 10 de Julho de 2014, proferido no processo C-183/13, considerou que os Estados-Membros podem obrigar um banco que exerce actividades de locação financeira a incluir no numerador e no denominador da fracção que serve para estabelecer um único e mesmo pro rata de dedução para todos os seus bens e serviços de utilização mista, apenas a parte das rendas pagas pelos clientes no âmbito dos seus contratos de locação financeira, que corresponde aos juros, quando a utilização desses bens e serviços seja sobretudo determinada pelo financiamento e pela gestão desses contratos, o que incumbe ao órgão jurisdicional de reenvio verificar.

II - Em face da interpretação fornecida pelo TJUE sobre a questão, cuja doutrina é inteiramente aplicável ao caso em apreço, deve ser considerada a necessidade de apurar se nas operações de locação financeira para o sector automóvel que podem implicar a utilização de certos bens ou serviços de utilização mista, essa utilização é sobretudo determinada pelo financiamento e pela gestão dos contratos de locação e não pela disponibilização dos veículos.

III - Se, previamente à prolação da decisão, que se sustentou na referida jurisprudência do TJUE, que vincula os tribunais nacionais, não foi facultada ao impugnante – que apresentou a petição inicial antes da pronúncia do TJUE – a possibilidade de ajustar a sua alegação de facto à doutrina nele veiculada, designadamente permitindo-se-lhe complementar a factualidade alegada em ordem a determinar se a utilização desses bens e serviços de utilização mista é sobretudo determinada pelo financiamento e pela gestão dos contratos de locação e não pela disponibilização dos veículos, é de julgar procedente a nulidade processual por violação do princípio do inquisitório, a determinar a anulação da decisão recorrida.


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3. DECISÃO

Em face do exposto, os juízes da Secção do Contencioso Tributário deste Supremo Tribunal Administrativo acordam em conceder provimento ao recurso, anular o processado ulterior à notificação da contestação e documentos que a instruíram e ordenar que os autos regressem à 1.ª instância, a fim de aí prosseguirem, designadamente com a notificação da Impugnante e da Fazenda Pública nos termos que acima ficaram referidos.

Custas pela Recorrida [cf. art. 527.º, n.ºs 1 e 2, do CPC, aplicável ex vi da alínea e) do art. 2.º do CPPT], que não paga taxa de justiça neste Supremo Tribunal porque não contra-alegou.

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Lisboa, 10 de Novembro de 2021. – Francisco António Pedrosa de Areal Rothes (relator) – Suzana Maria Calvo Loureiro Tavares da Silva – Nuno Filipe Morgado Teixeira Bastos.