Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0856/20.0BELRA
Data do Acordão:02/17/2021
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:GUSTAVO LOPES COURINHA
Descritores:DEVER DE CONFIDENCIALIDADE
DIREITO À INFORMAÇÃO
Sumário:I – Com a introdução, em 2013, de uma nova exceção ao dever de confidencialidade - constante da alínea e) do n.º 2 do artigo 64.º da LGT - forçoso se torna concluir que o legislador não só configura as duas informações ali previstas (NIF e domicílio fiscal) enquanto “dados pessoais”, como apenas parece aceitar a transmissão das mesmas nas circunstâncias estritas ali expressamente previstas.
II - O direito à informação a que se reportam aqueles normativos não é um direito absoluto e não pode, sem mais, prevalecer sobre a tutela outorgada, também constitucionalmente, à reserva da intimidade da vida privada.
Nº Convencional:JSTA000P27211
Nº do Documento:SA2202102170856/20
Data de Entrada:01/27/2021
Recorrente:A............
Recorrido 1:AT - AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: Acordam na Secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo


I – RELATÓRIO

I.1 Alegações
A…………, melhor identificado nos autos, vem recorrer da decisão do Tribunal Administrativo e Fiscal de Leiria proferida 03 de Dezembro de 2020 que julgou improcedente o pedido de intimação para prestação de informações por si deduzido contra Autoridade Tributária e Aduaneira – Serviço de Finanças de Alcobaça.
Apresenta as suas alegações de recurso, formulando as seguintes conclusões:
16. Nestes termos, deve de ser julgado procedente o presente recurso e ser revogada a sentença recorrida, por violação do artigo 5º e do artigo 6º, número 5 alínea b) e número 9 da Lei n.º 26/2016, de 22 de Agosto, e do ponto 2 do artigo 268º da Constituição da República Portuguesa.
17. Não estando o NIF do titular de um determinado prédio sujeito ao sigilo fiscal nos termos do artigo 64º da LGT, interpretou mal o tribunal a quo aquele preceito, porque aquele dado do contribuinte não configurar a situação prevista no nº 1 do dito preceito (situação tributária dos contribuintes ou elementos de natureza pessoal obtidos no procedimento), que tem que ser interpretado, necessariamente, à luz do ponto 2 do artigo 268º da Constituição da República Portuguesa. Sendo antes um dado público e por isso não respeitante à “intimidade das pessoas”, conforme obriga o artigo 108º do Código do Registo Predial, tem que o tribunal a quo intimar a AT a faculta-lo.
18. Por isso, deve a sentença recorrida ser substituída por outra em que o tribunal a quo intime a AT a divulgar o NIF de B…………, titular inscrito na Conservatória do Registo Predial de Alcobaça no prédio que na matriz predial rústica da freguesia de São Martinho do Porto, concelho de Alcobaça, tem o n.º de artigo 1257.

I.2 – Contra-alegações
A Recorrida, Autoridade Tributária e Aduaneira apresentou contra-alegações a fls. 108 e seguintes do SITAF, sustentando, em suma, que deve ser negado provimento ao recurso, mantendo a decisão do tribunal “a quo” de acordo com o preceituado no artigo 64.º da LGT, conjugado com as Leis n.ºs 58/2019 e 59/2019, ambas de 8 de Agosto, e com os princípios constitucionais previstos no artigo 26.º, 35.º e 266º da CRP, sustenta em síntese que é legitima a recusa da AT nos termos da Lei, devendo ser absolvida do pedido com as legais consequências.

I.3 – Parecer do Ministério Público
É o seguinte o teor do Parecer junto ao presente Recurso:
«A…………, veio, inconformado com a Sentença proferida em 03/12/2020, no processo supra e à margem referenciado interpor o recurso; nos termos da Sentença recorrida o tribunal a quo julgou improcedente a acção de intimação para prestação de informações por si proposta e absolveu a Ré do pedido.
Desde logo importa considerar que o aqui recorrente requereu à Autoridade Tributária e Aduaneira, em 17/09/2020, através do e-balcão que lhe fosse fornecido “o número de identificação fiscal (NIF) de B………… ”.
Para justificar o seu pedido o requerente alegou que B………… é titular inscrito no prédio vizinho ao seu, necessitando do respectivo NIF “a fim de o contactar para verificação de extremas”.
Em 21/09/2020 a ATA enviou ao recorrente a seguinte informação:
“(…)
Em resposta ao mail infra, informo que na consulta efetuada à matriz, as confrontações registadas desde 1957 do artigo rústico 1261 da Freguesia de S. Martinho do Porto, do qual V.Exa. é atualmente titular, são:
Norte com Estrada Nacional; Sul e Nascente com Caminho e do Poente com Agueiro.
Consultada a matriz do artigo rústico nº 1257 da mesma Freguesia constatou-se que nenhuma das confrontações registam como confinantes quaisquer nomes dos antepossuidores do artigo rústico 1261 de S. Martinho do Porto.
Assim sendo, e tendo em conta que os elementos solicitados estão abrangidos pelo sigilo fiscal nos termos do artigo 64º da LGT e pela Lei de Proteção de Dados, não tem legitimidade para efetuar o pedido.”
Inconformado o recorrente propôs contra a Autoridade Tributária e Aduaneira – Serviço de Finanças de Alcobaça (Ré), com invocação dos art.ºs 146.º, n.º 1 do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), e 104.º e 105.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA, pedindo, a final, que a Ré seja intimada a “divulgar o NIF de B…………, casado com C………… no regime de Comunhão geral, morador em ………, Monte Real, Leiria, ainda que para isso tenha que fazer uma pesquisa por nome de cidadão a fim de o encontrar.”
Como supra já se referiu o tribunal a quo julgou improcedente a acção de intimação para prestação de informações e absolveu a Ré do pedido.
São as conclusões da Alegação da Recorrente que definem o objecto e delimitam o âmbito do recurso, ressalvando-se as questões que, sendo de conhecimento oficioso, encontram nos autos os elementos necessários à sua consideração (cf. artº 635º nº 4 do CPC, ex vi artº 1º do CPTA).
Nas conclusões da alegação do recorrente, consta o seguinte:
“…
16 Deve de ser julgado procedente o presente recurso e ser revogada a sentença recorrida, por violação do artigo 5º e do artigo 6º, número 5 alínea b) e número 9 da Lei n.º 26/2016, de 22 de Agosto, e do ponto 2 do artigo 268º da Constituição da República Portuguesa.
17. Não estando o NIF do titular de um determinado prédio sujeito ao sigilo fiscal nos termos do artigo 64º da LGT, interpretou mal o tribunal a quo aquele preceito, porque aquele dado do contribuinte não configurar a situação prevista no nº 1 do dito preceito (situação tributária dos contribuintes ou elementos de natureza pessoal obtidos no procedimento), que tem que ser interpretado, necessariamente, à luz do ponto 2 do artigo 268º da Constituição da República Portuguesa. Sendo antes um dado público e por isso não respeitante à “intimidade das pessoas”, conforme obriga o artigo 108º do Código do Registo Predial, tem que o tribunal a quo intimar a AT a facultá-lo.
18. Por isso, deve a sentença recorrida ser substituída por outra em que o tribunal a quo intime a AT a divulgar o NIF de B…………, titular inscrito na Conservatória do Registo Predial de Alcobaça no prédio que na matriz predial rústica da freguesia de São Martinho do Porto, concelho de Alcobaça, tem o n.º de artigo 1257. “
Defende o recorrente que deve ser concedido provimento ao presente recurso e, por via dele, ser revogada a sentença recorrida, tudo com as legais consequências.
Analisando as conclusões:
Defende o recorrente que a Sentença violou os art.ºs 5º e 6º, n.º 5 al. b) e número 9 da Lei n.º 26/2016 e bem assim o art.º 268º n.º 2 da Constituição da Republica Portuguesa (CRP).
É certo que de acordo com o artº 268.º da CRP os cidadãos têm o direito de ser informados pela Administração, sempre que o requeiram, sobre o andamento dos processos em que sejam directamente interessados, bem como o de conhecer as resoluções definitivas que sobre eles forem tomadas (cf. n.º 1);
2.Os cidadãos têm também o direito de acesso aos arquivos e registos administrativos, sem prejuízo do disposto na lei em matérias relativas à segurança interna e externa, à investigação criminal e à intimidade das pessoas.
Do preceito constitucional resulta, desde logo, que o direito à informação não é um direito absoluto, encontrando-se eventualmente, limitado por direitos de outrem, como seja um direito de personalidade; em consequência o interessado pode ter de alegar e demonstrar que tem um direito legítimo à obtenção da informação ou do documento que pretende.
O “direito de acesso” previsto no art.º 5.º da Lei n.º 26/2016 respeita a documentos administrativos e realiza-se independentemente da integração dos documentos administrativos em arquivo corrente, intermédio ou definitivo. O art.º 6.º n.º 5 al. b) estipula por seu lado que um “terceiro” só tem direito de acesso a documentos nominativos se demonstrar, fundamentadamente, ser titular de um interesse directo, pessoal, legítimo e constitucionalmente protegido, suficientemente relevante, após ponderação, no quadro do princípio da proporcionalidade, de todos os direitos fundamentais em presença e do princípio da administração aberta, que justifique o acesso à informação.
O número de contribuinte de um cidadão não é seguramente um documento administrativo e não cabe, seguramente, na previsão do art.º 5º Lei n.º 26/2016.
De notar que o número de identificação fiscal (NIF) foi instituído pelo Decreto-Lei n.º 14/2013 (cf. art.º 1.º) e de acordo com o art.º 2.º o número de identificação fiscal, abreviadamente designado por NIF, é um número sequencial destinado exclusivamente ao tratamento de informação de índole fiscal e aduaneira. Assim sendo nem sequer pode ser utilizado para fim diferente daquele para que foi instituído. O NIF está expressamente mencionado no art.º 35.º no Capítulo II, “Da protecção de Dados Pessoais”, donde concluímos com segurança que ele consubstancia um “dado pessoal”, beneficiando da protecção inerente.
Aqui chegados, teremos necessariamente de incluir o NIF, enquanto elemento de natureza pessoal, na previsão de confidencialidade constante do art.º 64.º da Lei Geral Tributária (LGT) cujo n.º 1 estabelece que “os dirigentes, funcionários e agentes da administração tributária estão obrigados a guardar sigilo sobre os dados recolhidos sobre a situação tributária dos contribuintes e os elementos de natureza pessoal que obtenham no procedimento, nomeadamente os decorrentes do sigilo profissional ou qualquer outro dever de segredo legalmente regulado”.
Veja-se, a este propósito o Ac. proferido pelo TCAS em 25/06/2020 no processo n.º 2796/19.7BELRS segundo o qual “I - O Número de Identificação Fiscal a atribuir automaticamente é um elemento de identificação do contribuinte e como tal, encontra-se protegido pelo dever de sigilo fiscal, previsto no artigo 64.º/1 da LGT.
2. Poderá ser revelado pela AT, entre outras, nas situações previstas na alínea d) do n.º 2 do art. 64º da LGT, em colaboração com a justiça nos termos do Código de Processo Civil”.
Aliás, o recorrente não demonstrou cabalmente em que medida o NIF pretendido é importante para que ele possa proceder ao reconhecimento das extremas do seu prédio rústico, sendo certo que da informação fornecida pela ATA resulta que o seu prédio nem confina com o prédio do titular do NIF que ele pretende. Como bem se referiu na Sentença recorrida o aqui recorrente nem sequer demonstrou ter legitimidade para obter a informação que pretende.
E não se compreende a relevância da obtenção do NIF, se ele tem todos os elementos de identificação dos donos do prédio que ao que diz é confinante com o seu.
O recorrente não demonstrou que tem interesse directo pessoal e legítimo em obter a informação que pretende.
Sendo assim, pelas razões que, sinteticamente deixámos expostas, resulta o nosso entendimento de que o recurso não merece provimento uma vez que a Sentença não padece de qualquer vício e não merece a censura que lhe faz o recorrente.»

I.4 - Com dispensa de vistos, dada a natureza urgente do processo, cabe apreciar.


II - FUNDAMENTAÇÃO

II.1 – De facto
O tribunal a quo deu como provada a seguinte matéria de facto:
1) Pela AP. 16 de 1996/04/02, B…………, casado com C…………, no regime de comunhão geral, com morada na ………, Monte Real, Leiria, registou na Conservatória do Registo Predial de Alcobaça, a aquisição a D…………, casado com E…………, do prédio rústico situado em ………, inscrito na matriz predial rústica da freguesia de São Martinho do Porto, concelho de Alcobaça, sob o n.º 1257, composto de terra de pinhal e mato, confrontando a norte e nascente com Caminho, a sul com …………, e a poente com Caminho e Agueiro (cfr. teor da certidão junta com a p.i., de fls. 4 e 5 do documento do SITAF n.º 005221953, e certidão de teor de prédio rústico, Modelo A, constante do cadastro da AT, de fls. 49 do SITAF, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido).
2) Consta dos dados do Cadastro da AT que B……….., faleceu em 26/01/2000 – (cfr. artigos 32.º e 55.º da contestação).
3) Pela AP. 3044 de 2020/08/25, o Autor registou na Conservatória do Registo Predial de Vila Nova de Poiares, a aquisição a F…………, do prédio rústico denominado de “………”, inscrito na matriz predial rústica da freguesia de São Martinho do Porto, concelho de Alcobaça, sob o n.º 1261, composto de pinhal e mato, confrontando a norte com a Estrada Nacional, a sul e nascente com Caminho, e a poente com Agueiro (cfr. teor da certidão junta com a p.i., de fls. 2 e 3 do documento do SITAF n.º 005221953, , e certidão de teor de prédio rústico, Modelo A, constante do cadastro da AT, de fls. 50 do SITAF, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido).
4) Em 17/09/2020, o Autor solicitou através do e-balcão, no sítio da internet da sua área pessoal da AT, o seguinte:
“(…)
Nos termos do art 268º nº2 da Constituição da República Portuguesa, do art 130º nº 1 do Código do IMI, e por ser titular do prédio rústico com o nº artigo 1261, vizinho do rústico com o nº artigo 1257, ambos da freguesia de São Martinho do Porto, concelho de Alcobaça, solicito:
O NIF de B…………, casado com C………… no regime de Comunhão geral, morador em ………, Monte Real, Leiria, ainda que para isso tenha que fazer uma pesquisa por nome de cidadão a fim de o encontrar.
Ele é o titular inscrito no prédio vizinho e preciso saber o seu NIF, a fim de o contactar para verificação de extremas. Mesmo que o NIF não esteja na matriz, deve de me fornecer essa informação, porque o NIF é um elemento a levar a registo e que deve de constar na matriz. O meu NIF também consta publicitado no registo predial.
Junto 5 anexos: planta, registo do meu e do prédio vizinho, email da conservatória que considera obrigatório o NIF para o registo, e parecer do MP do Supremo que considera que o NIF deve de ser dado (ainda que não esteja registado).”
(…)” - (cfr. documento junto com a p.i., de fls. 1 do documento do SITAF n.º 005221952, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido).
5) Em 21/09/2020, a AT, em resposta ao pedido a que se alude no ponto anterior, pronunciou-se nos seguintes termos:
“(…)
Em resposta ao mail infra, informo que na consulta efetuada à matriz, as confrontações registadas desde 1957 do artigo rústico 1261 da Freguesia de S. Martinho do Porto, do qual V.Exa. é atualmente titular, são:
Norte com Estrada Nacional; Sul e Nascente com Caminho e do Poente com Agueiro.
Consultada a matriz do artigo rústico nº 1257 da mesma Freguesia constatou-se que nenhuma das confrontações registam como confinantes quaisquer nomes dos antepossuidores do artigo rústico 1261 de S. Martinho do Porto.
Assim sendo, e tendo em conta que os elementos solicitados estão abrangidos pelo sigilo fiscal nos termos do artigo 64º da LGT e pela Lei de Proteção de Dados, não tem legitimidade para efetuar o pedido.

(…)” - (cfr. documento junto com a p.i., de fls. 1 do documento do SITAF n.º 005221952, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido).
6) a presente ação deu entrada neste Tribunal em 12/10/2020 – (cfr. fls. 1 a 3 do SITAF).

II.2 – De Direito
I. Vem o presente recurso interposto da decisão do Tribunal Administrativo e Fiscal do Leiria, de 03 de Dezembro de 2013, que julgou improcedente o pedido de informação formulado pelo recorrente A………… à Autoridade Tributária para que lhe seja facultado o número de identificação fiscal (doravante, NIF) de B…………, seu suposto vizinho, a fim de o contactar para verificação de extremas de terrenos alegadamente adjacentes.
Vejamos, então, se assiste razão ao Recorrente.

II. Comecemos por recordar que não é a primeira vez que esta questão vem endereçada a este Supremo Tribunal.
Com efeito, pelo acórdão lavrado no âmbito do Processo n.º 0838/11, de 16 de Novembro de 2011, foi então sufragado entendimento segundo o qual o NIF não integrava a esfera da intimidade da vida privada, cuja tutela se encontrava suportada no artigo 64.º da Lei Geral Tributária. E, na linha da leitura que então se fez deste preceito, assim como do enquadramento constitucional da questão, foi esclarecido que: “II - A consagração da regra do sigilo fiscal, constante do artigo 64.º da Lei Geral Tributária, corresponde, precisamente, à extensão e reconhecimento do direito à privacidade no âmbito da actividade tributária, estando por ele abrangidos os dados de natureza pessoal dos contribuintes (pessoa singular ou colectiva) e os dados expressivos da sua situação tributária, os quais só podem ser revelados a terceiros - outros sectores da Administração ou particulares - nos casos expressamente previstos na lei, para responder a um motivo social imperioso, e só na medida estritamente necessária para satisfazer o equilíbrio entre os interesses em jogo.
III - Podem, contudo, ser revelados os dados pessoais livremente cognoscíveis (dados públicos ou dados pessoais constantes de documento público oficial, como acontece, por exemplo, com o número de identificação fiscal, com a identificação dos bens inscritos na matriz predial ou no registo predial e comercial) bem como os dados fiscais que não reflictam nem denunciem a situação tributária dos contribuintes.” Era o caso, precisamente, do NIF, informação que, pelas suas próprias características - desde logo pela sua sequencialidade, automaticidade e inocuidade - não configurava informação susceptível de revelar qualquer traço ou aspecto da vida económica-fiscal-patrimonial do sujeito passivo, podendo por isso ser transmitida pela AT sem violação do dever de sigilo a que esta se encontra vinculada.
Tratava-se, como está fácil de ver, de jurisprudência que se encontrava solidamente ancorada numa conceção funcional e, assim, flexível de abordagem ao dever de confidencialidade e à protecção dos dados do contribuinte.
Sucede que, entretanto (mais precisamente, em 2013), o legislador interveio; e, em nossa opinião, ao fazê-lo, alterou estruturalmente os dados que enquadram esta problemática, tornando assim esta referida jurisprudência inaplicável.

III. Com efeito, na leitura que fazemos da regulação trazida a esta sede pelo Decreto-Lei n.º 14/2013, de 28 de Janeiro, o legislador passou a adotar uma posição muito mais rígida a respeito desta informação.
Assim, como bem sublinha o Parecer do Ministério Público, e se bem lemos o propósito da nova regulação vertida em lei – que, em larga medida, transpõe uma crescente preocupação com a tutela e tratamento de dados individuais - o NIF é considerado como um dado pessoal (artigo 2.º deste diploma), tutelado nos termos do Capítulo II, “Da protecção de Dados Pessoais” do mesmo diploma, estabelecendo o artigo 37.º que, com exceção de desideratos estatísticos e de investigação, só deve ser transmitido nos termos do artigo 64.º da LGT – norma que se torna, deste modo, decisiva.
Aliás, tal leitura apresenta conformidade com o próprio conceito de “dado pessoal”, vertido actualmente no Regulamento EU 2016/678, de 27 de Abril de 2016, e que, em termos muito amplos, é definido como: “informação relativa a uma pessoa singular identificada ou identificável («titular dos dados»); é considerada identificável uma pessoa singular que possa ser identificada, direta ou indiretamente, em especial por referência a um identificador, como por exemplo um nome, um número de identificação, dados de localização, identificadores por via eletrónica ou a um ou mais elementos específicos da identidade física, fisiológica, genética, mental, económica, cultural ou social dessa pessoa singular”.
Ora, é no artigo 64.º da LGT que vamos, por conseguinte, encontrar a leitura que o legislador passou a fazer a este respeito.

IV. Sucede que este normativo foi alterado, também em 2013, passando a dispor que: “1 - Os dirigentes, funcionários e agentes da administração tributária estão obrigados a guardar sigilo sobre os dados recolhidos sobre a situação tributária dos contribuintes e os elementos de natureza pessoal que obtenham no procedimento, nomeadamente os decorrentes do sigilo profissional ou qualquer outro dever de segredo legalmente regulado.
2 - O dever de sigilo cessa em caso de:
a) …;
b) …;
c) …;
d) …;
e) Confirmação do número de identificação fiscal e domicílio fiscal às entidades legalmente competentes para a realização do registo comercial, predial ou automóvel.” (sublinhado nosso)
Ora, tendo esta alteração, ocorrida em 2013, passado pela introdução de uma nova exceção, constante da alínea e) do n.º 2 do artigo 64.º da LGT, forçoso se torna concluir que o legislador não só configura aquelas duas informações (NIF e domicílio fiscal) enquanto “dados pessoais”, como apenas parece aceitar a transmissão das mesmas nas circunstâncias estritas ali expressamente previstas.
Podemos, é certo, questionar se o actual regime não se revela desnecessariamente garantístico; mas não vemos como seja possível concluir que é distinta a solução decorrente da lei, a qual foi, igualmente, subscrito pela sentença recorrida. E sublinhe-se, ainda, que tal sentença se estribou, para tal efeito, numa recentíssima decisão do Tribunal Central Administrativo Sul, proferida no processo n.º 2796/19, de 25 de Junho de 2020, onde esta matéria foi densa e devidamente abordada, em termos que não merecem qualquer reparo.
Conclui-se, portanto, que não incorre em qualquer ilegalidade a decisão da AT em negar o fornecimento de tal informação ao ora Recorrente.

V. Defende, ainda, o Recorrente que a Sentença violou os artigos 5.º e 6.º, números 5, alínea b) e 9 da Lei n.º 26/2016 e, bem assim, o artigo 268.º, n.º 2 da Constituição da República Portuguesa (CRP).
Ora, a este respeito, importa esclarecer que o direito à informação a que se reportam aqueles normativos não é um direito absoluto e que, em consequência, não pode prevalecer sobre a tutela outorgada, também constitucionalmente, à intimidade da vida privada e à exigência de um correspondente dever de sigilo imposto à AT quanto aos dados elevados por lei à condição de “dados pessoais”.
Aliás, pela solução adotada pelo legislador, desde 2013, entendemos inevitável concluir que se reforçou, assumidamente, a tutela deste direito constitucional à intimidade da vida privada em detrimento daquele direito constitucional à informação em termos exigentes, mas não desproporcionais.

VI. Cumpre, assim, negar provimento ao presente Recurso.


III. Conclusões
I – Com a introdução, em 2013, de uma nova exceção ao dever de confidencialidade - constante da alínea e) do n.º 2 do artigo 64.º da LGT - forçoso se torna concluir que o legislador não só configura as duas informações ali previstas (NIF e domicílio fiscal) enquanto “dados pessoais”, como apenas parece aceitar a transmissão das mesmas nas circunstâncias estritas ali expressamente previstas.
II - O direito à informação a que se reportam aqueles normativos não é um direito absoluto e não pode, sem mais, prevalecer sobre a tutela outorgada, também constitucionalmente, à reserva da intimidade da vida privada.

IV. Decisão
Termos em que acordam os Juízes da Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo em negar provimento ao Recurso.

Custas pela Recorrente.


Lisboa, 17 de Fevereiro de 2021. – Gustavo André Simões Lopes Courinha (relator) - Anabela Ferreira Alves e Russo – José Gomes Correia.