Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0833/16
Data do Acordão:02/08/2017
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:DULCE NETO
Sumário:
Nº Convencional:JSTA000P21440
Nº do Documento:SA2201702080833
Data de Entrada:06/30/2016
Recorrente:MINISTÉRIO PÚBLICO E FAZENDA PÚBLICA
Recorrido 1:A............
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: Acordam na Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo:

1. A FAZENDA PÚBLICA e o MINISTÉRIO PÚBLICO recorrem para o Supremo Tribunal Administrativo da decisão proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto no âmbito de recurso judicial apresentado pelo arguido A………… contra quatro decisões administrativas de aplicação de coima aplicadas em quatro processos de contraordenação, decidiu que «não podendo o procedimento do Serviço de Finanças sobrepor-se à vontade do Recorrente (que apresentou um único recurso), devem os presentes autos ser devolvidos ao Serviço de Finanças de Gondomar 2, para aí serem incorporados no (único e original) recurso de contra-ordenação que foi apresentado.».

1.1. A Fazenda Pública rematou as alegações com o seguinte quadro conclusivo:

QUESTÃO PRÉVIA - Requerimento (art. 74º, nº. 2 do RGCO)

A. Vem o presente recurso interposto da sentença que decidiu pela existência de uma questão prévia que obsta ao conhecimento mérito da causa e, em consequência, decidiu anular “a decisão administrativa que aplicou a coima” e ordenar “a baixa dos presentes autos ao Serviço de Finanças de Gondomar 2, para que seja organizado um só processo (ou efectuada a apensação dos processos) de modo a apreciar a conduta da Recorrente de modo integrado, proferindo uma decisão de aplicação de coima (única) que, caso se verifiquem os pressupostos da infracção continuada, deverá atender ao disposto no artigo 79º do C.R, e, caso tal não aconteça, ao regime consagrado no artigo 25º do R.G.I.T”, qual se circunscreve à questão de direito da anulação da decisão administrativa, apreciada pelo douto Tribunal a quo.

B. Para assim decidir, considerou o Tribunal a quo, em síntese que, “é, pois, inegável, que o Serviço de Finanças estava legalmente obrigado a organizar um único processo contraordenacional, ou, pelo menos, o proceder à apensação dos processos, concluindo que a omissão destes procedimentos e operações determinam a anulação da decisão administrativa.

C. Quanto à anulação da decisão administrativa determinada pelo douto Tribunal a quo, entende a Fazenda Pública, salvo melhor opinião, que não pode proceder o argumento expendido na douta decisão a quo, não se conformando a Fazenda Pública com a mesma e considerando que tal decisão judicial padece de erro de direito, urgindo assim, a promoção da uniformização da jurisprudência face ao inerente perigo de repetição e desigualdade na aplicação entre os diversos tribunais tributários de 1ª instância, tudo nos termos do disposto no art. 83° do RGIT, em conformidade com o art. 73º, nº 2, do RGCO, aplicável por força da alínea b) do art. 3° do RGIT — cfr. Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 07-11-2012, proc.0704/12; Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 17-01-2007, proc. 01124/06 (in www.dgsi.pt).

D. A questão da legalidade da apensação e da subsequente anulação da decisão por falta de realização do cúmulo material não é pacífica, aliás, como já constatou o Venerando Supremo Tribunal Administrativo nos recentes acórdãos n°s 074/15, de 11-03-2015, nº 01557/14 de 11-03-2015 e 01396/14 de 04-03-2015, nos seguintes termos: “Este Supremo Tribunal tem conhecimento, por dever de ofício, que a questão que aqui vem colocada, e outras semelhantes, se colocam, e virão a colocar-se, em centenas ou milhares de processos que já se encontram pendentes nos TAFS e outros ainda que se encontram na fase procedimental administrativa, pelo que, havendo a necessidade premente de definir o direito aplicável a todas a estas situações, sendo certo que nos vários Tribunais se tem decidido de forma diferente, com esse fundamento admite-se o recurso que nos vem dirigido, nos termos do artigo 73º, nº 2 do RGIMOS” - in Ac. STA n.º 074/15, de 11-03-2015.

E. O recurso que se pretende interpor ao abrigo do n.º 2 do art. 73º do RGCO, ex vi art. 3.°, alínea b) do RGIT, respeitando a uma questão que não é pacífica na jurisprudência, configura-se como manifestamente necessário à melhoria da aplicação do direito por forma a garantir a eficácia do princípio da igualdade dos cidadãos nesta questão, visando-se assim alcançar a sua uniformidade e estabilidade no nosso ordenamento jurídico, pelo que o seu conhecimento realiza interesses de ordem pública, motivo pelo qual, desde já se requer a sua admissão, conforme disposto nos n.ºs 2 e 3 do art. 74º do RGCO.

QUESTÃO PRINCIPAL

F. Quanto à legitimidade da Fazenda Pública para interpor o presente recurso, importa ter em conta que, com a proposta de Lei n.° 496/2012, de 10 de Outubro de 2012, de aprovação do Orçamento do Estado para 2013, foi alterada a redacção do art. 83º do RGIT, passando o representante da Fazenda Pública, por força do n° 1 da referida norma, a ter legitimidade para interpor recurso da decisão proferida pelo tribunal, ampliando-se, deste modo, a sua possibilidade de intervenção no processo de contraordenação, que antes se limitava à produção de prova, nos termos do art. 81°, n° 2 do RGIT.

G. Deste modo, e tendo em conta a unidade do sistema jurídico e a aplicação subsidiária do RGCO neste âmbito, por força do art. 3º, alínea b) do RGIT, com a alteração legislativa ocorrida, a Fazenda Pública tem também legitimidade para recorrer nos recursos de processos de contraordenação tributária, ao abrigo do nº 2 do art. 73º do RGCO.

H. Quanto ao efeito do presente recurso, entende a Fazenda Pública que, no regime previsto nos artigos 83º e 84º, ambos do R.G.I.T.”, complementado pelo R.G.C.O., mormente os artigos 70°, 73°, 74°, 75º, 79º, 88º e 89º, de aplicação subsidiária, não é possível a execução das coimas e sanções acessórias antes do trânsito em julgado ou de se ter tornado definitiva a decisão administrativa que as aplicar, sendo esta a única interpretação que assegura a constitucionalidade material deste art.84º do R.G.I.T., nos casos em que o recurso é interposto de decisão condenatória, assim não sendo necessária a prestação de garantia para que o mesmo recurso goze de efeito suspensivo da decisão recorrida — conforme se doutrinou no Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul, de 15-11-2011, processo nº 04847/11; e na esteira do entendimento dos Conselheiros Jorge Lopes de Sousa e Simas Santos em “Regime Geral das Infracções Tributárias anotado”, 4ª edição, 2010, em anotação ao art. 84°, página 582 e seguintes.

I. Neste sentido, não deverá ser considerada exequível a decisão judicial proferida nestes autos, que decidiu pela anulação da decisão administrativa e que determina que a Autoridade Administrativa proceda à apensação dos processos do(a) arguido(a)/recorrente, face à pendência do presente recurso, sob pena de se afectar o efeito útil do mesmo.

J. Considerou o douto Tribunal a quo estar verificado um vício da decisão de aplicação da coima, determinada pelo Chefe do Serviço de Finanças competente, que obsta ao conhecimento do mérito, unicamente por não ter procedido à apensação dos processos de contraordenação que correm contra o(a) mesmo(a) arguido(a) e que estejam na mesma fase, nos termos do art. 25° do RGIT, procedendo de seguida à fixação de uma coima única.

K. As nulidades insupríveis a ocorrer no âmbito do processo de contraordenação tributário, são taxativas e têm a sua previsão no art. 63º do RGIT, o qual, salvo melhor opinião, não abarca o regime do cúmulo material, a aplicar em caso de concurso de contraordenações.

L. Os “requisitos legais” [cfr. art. 63º, nº 1, alínea d)], da decisão de aplicação das coimas que possam estar em falta e que se reportam à fase administrativa do processo de contra-ordenação tributário, são os constantes do art. 79º do RGIT, os quais foram integralmente respeitados pela entidade administrativa competente na decisão de aplicação de coima constante nestes autos.

M. A falta de aplicação do regime do concurso, previsto no art. 25º, não constitui um requisito legal da decisão, susceptível de configurar uma nulidade conducente à anulação da decisão.

N. A relevar-se a sua falta, o que não se concede, como se desenvolverá, sempre seria uma mera nulidade dependente de arguição dos interessados, na fase administrativa, conforme estabelece o art. 120º do Código de Processo Penal - CPP, aplicável por força do preceituado na al. b) do art. 3º do RGIT e do nº 1 do art. 41º do RGCO, entendendo-se, contudo, pelos motivos explanados, que se está perante uma mera irregularidade a arguir pelos interessados, a contar da notificação para apresentação de defesa (cfr. art. 70º e 76º do RGIT), fazendo-se assim a aplicação do invocado art. 123º do CPP, com as necessárias adaptações ao processo de contraordenação tributário, porquanto,

O. É competência exclusiva da autoridade administrativa, a apreciação e decisão pela existência ou não do concurso de infracções e subsequente aplicação do art. 25º do RGIT, na fase administrativa, pressupondo, a montante, a verificação do elemento de conexão entre os processos nos termos do art. 36º do RGCO, o que consubstancia um acto exclusivamente administrativo, face ao disposto no art. 33º do RGCO, aplicável ex vi art. 3°, alínea b) do RGIT.

P. A imposição judicial de análise e tramitação conjunta de processos na fase administrativa, consubstancia a violação do princípio da separação de poderes, limitando a actuação da administração fiscal, o seu conhecimento e apreciação dos processos que são da sua competência, no sentido em que, o Tribunal “não pode ofender a autonomia do poder administrativo (o núcleo essencial da sua discricionariedade), enquanto medida definida pela lei daquilo que são os poderes próprios de apreciação ou decisão conferidos aos órgãos da Administração”, porquanto, “os poderes dos tribunais administrativos abarcam apenas as vinculações da Administração por normas e princípios jurídicos, ficando de fora da sua esfera de sindicabilidade o ajuizar sobre a conveniência e oportunidade da actuação da Administração, mormente o controlo actuação ao abrigo de regras técnicas ou as escolhas/opções feitas pela mesma na e para a prossecução do interesse público, salvo ofensa dos princípios jurídicos enunciados no art. 266º nº 2 da CRP.” - conforme Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte de 01-10-2010, proc. nº 00514/08.4BEPNF, in www.dgsi.pt.

Q. Não há nenhuma omissão legal que justifique e fundamente a aplicação subsidiária dos artigos 24º, 25º e 29º do CPP, na fase administrativa, conforme consta da douta decisão a quo, atento o disposto no art. 36º do RGCO.

R. A douta sentença, ao fazer apelo ao Acórdão deste Venerando Supremo Tribunal, de 30-03-2011, processo nº 0757/10, bem como ao Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte de 15-02-2013, processo nº 01097/08.OBEVIS, desconsidera a relevante alteração legislativa ocorrida com a Lei nº 55-A/2010, de 31 de Dezembro, que aprovou o Orçamento do Estado para 2011, e que veio repor a regra do cúmulo material, em detrimento do regime do cúmulo jurídico, sem prejuízo, claro está, da aplicação do regime abstractamente mais favorável ao contribuinte, no caso de actos praticados ainda na vigência da lei anterior, o que claramente não é o caso, pelo que os invocados Acórdãos assentam integralmente em pressupostos diversos face ao actual regime legal.

S. In casu, seria ilegal a aplicação do cúmulo jurídico dado que todos os factos em apreço, são posteriores à alteração ocorrida na norma do art. 25º do RGIT, com a Lei do Orçamento para 2011 (Lei 55-A/2010, de 31 de Dezembro).

T. Conforme o douto entendimento dos Conselheiros Jorge Lopes de Sousa e Simas Santos em “Regime Geral das Infracções Tributárias anotado”, 4ª edição, 2010, em anotação ao art. 25°, página 291, “no regime do cúmulo material, a coima única a aplicar é a soma das coimas aplicadas a cada uma das contraordenações, não havendo lugar a qualquer redução”, salvaguardando claramente que, “estando a regra do cúmulo material expressamente estabelecida na redacção inicial deste art. 25º do Regime Geral das Infracções Tributárias e na introduzida Lei do Orçamento para 2011 não há lacuna de regulamentação sobre a forma de efectuar o cúmulo das coimas, pelo que não há suporte para fazer apelo ao RGCO, pois este diploma, como legislação subsidiária que é [art. 3º, alínea b) do RGIT], apenas é de aplicação em matérias em que o RGIT não contenha normas próprias."

U. Não há nenhuma omissão legal que justifique e fundamente a aplicação subsidiária do RGCO, quanto ao regime do concurso, através do qual se aplicaria subsidiariamente o CPP, ao contrário do douto entendimento vertido na decisão a quo, desde logo, porque neste âmbito, o legislador optou no RGCO por manter a aplicação de um regime de cúmulo jurídico, vertido no seu art. 19º, distanciando-se assim de forma clara e deliberada no actual regime jurídico aplicável às contraordenações tributárias.

V. Não pode igualmente a autoridade administrativa tributária, aferir a existência de eventual contraordenação continuada, cujo preceituado nos artigos 30º e 79º do Código Penal, subsidiariamente aplicável nos termos do art. 32° do RGCO, não têm aplicação face à actual redacção do art. 25º do RGIT, seguindo-se neste âmbito, de perto, as decisões do Tribunal Central Administrativo Sul de 27-11-2007, processo nº 01804/07 e de 23-09-2008, proc. nº 01767/07, ambas consultáveis in www.dgsi.pt.

W. Conforme refere o Professor Doutor Germano Marques da Silva, in “Direito Penal Português”, Parte Geral II - Teoria do Crime, Verbo, 1998, pág. 315 e seguintes, “o crime continuado constitui realmente uma pluralidade de crimes, apenas unificados para efeitos de punição e parece-nos ser esta a construção que convém à face da lei portuguesa...” (cfr. pág. 319).

X. Em caso de concurso, o actual regime limita-se sempre ao do cúmulo material, valendo a máxima, “quot delicta tot poenae”, sendo que a cada infracção é imputada a coima correspondente, ou seja, as sanções são aritmeticamente somadas, depois de se ter procedido à determinação individualizada de cada uma.

Y. Neste âmbito, releva a decisão do Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul de 19/06/2007, proc. nº 01768/07 (in www.dgsi.pt), no sentido em que “no actual RGIT não há lugar ao concurso de infracções com a cominação de uma coima única” e que “deixou de existir a principal característica que enforma o regime do concurso de crimes - a aplicação de uma pena única em cúmulo jurídico - desta forma se perdendo o principal interesse no concurso, a não ser de índole de eventual economia processual”.

Z. Importa ainda ter em conta, para compreensão dos regimes em apreço, a análise do Professor Doutor Taipa de Carvalho, in “Direito Penal Parte Geral - Questões Fundamentais”, Publicações Universidade Católica, Porto, 2003, pág. 172, que se transcreve: “Também não parece aceitável o regime do cúmulo jurídico estabelecido, no art. 19°, para o concurso de contra-ordenações. As razões subjacentes ao regime do cúmulo jurídico, no caso de concurso de crimes (CP, art. 7º), não procedem no caso das coimas. Essas razões são, especialmente, as seguintes: a um determinado aumento de duração da pena de prisão corresponderá um aumento muito maior do sofrimento que é conatural a esta pena de privação da liberdade (...); sendo conatural à pena de prisão um efeito de dessocialização (...). Mas, como nenhuma destas razões se verifica em relação à aplicação de coimas, é meu entendimento que, aqui, deveria vigorar o regime do cúmulo material, em que a coima final seria igual à soma das coimas concretamente aplicadas ao conjunto das contraordenações praticadas.”

AA. Não existe no RGIT, nem no RGCO, norma legal que preveja a apensação de processos de contraordenação, todavia, o artigo 36º do RGCO, aplicável subsidiariamente ao RGIT, prevê a “competência por conexão” em caso de concurso efectivo de contraordenações.

BB. E o art. 25º do RGIT, sendo de aplicação na fase administrativa, pressupõe necessariamente a apreciação e decisão sobre a conexão entre os processos a que se aplicará o regime do cúmulo material, por conjugação do disposto no art. 36º do RGCO e 25º do RGIT, inclusivamente, se os processos administrativos se encontram na mesma fase e se são da mesma competência territorial.

CC. Neste âmbito importa observar o entendimento do Ilustre Juiz do TEDH Paulo Pinto de Albuquerque, in “Comentário do Regime Geral das Contraordenações à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem”, Universidade Católica Editora, 2011, em anotação ao art. 36º, p. 128: “O critério do artigo 36º só opera relativamente aos processos que se encontrem na fase administrativa. (...) Na fase judicial, a conexão rege-se pelo disposto nos artigos 24º e seguintes do CPP.”

DD. Sucede que, não houve nenhuma apensação de processos do(a) arguido(a)/recorrente, pela autoridade tributária, tendo sido este processo de contraordenação tramitado autonomamente.

EE. Com todo o respeito que nos merece a fundamentação expendida pelo douto Tribunal a quo, entende a Fazenda Pública que a decisão que determina a anulação da decisão da coima aplicada, por falta de apensação dos processos do mesmo contribuinte e por falta da fixação de uma coima única, é ilegal por falta de previsão legal.

FF. Face a todo o exposto, entende a Fazenda Pública, com a ressalva do devido respeito, que é muito, que a douta sentença sob recurso enferma de erro na aplicação do direito, fazendo errónea interpretação e aplicação do disposto nas normas legais aplicáveis, mais concretamente as que regem a aplicação do cúmulo material às contraordenações em concurso, concretamente os artigos 25º, 63º e 79º, todos do RGIT e ainda o artigo 36º do RGCO, norma esta por sua vez aplicável ao abrigo do disposto na alínea b) do art. 3º do RGIT, atendendo a que, a autoridade administrativa competente não procedeu à apensação de quaisquer processos de contraordenação do(a) arguido(a)/recorrente, o que não constitui um vício que possa afectar o valor da decisão administrativa, que deva ser conhecido oficiosamente (cfr. artigos 120º a 123º do CPP, aplicáveis por força do preceituado na al. b) do art. 3º do RGIT e do nº 1 do art. 41º do RGCO), atendendo ao actual regime em vigor do cúmulo material, aplicável aos processos de contraordenação tributária.

1.2. Por seu turno, o Ministério Publico rematou as alegações do seu recurso com as seguintes conclusões:

1. QUESTÃO PRÉVIA: o recurso deve ser admitido, apesar do valor da coima aplicada e do disposto no artigo 83º nº 1 do RGIT, atento o disposto no artigo 73º nº 2 do RGCO aprovado pelo DL 433/82 de 27/10.

2. Nos autos foi aplicada à arguida e impugnante uma coima que não ultrapassa um quarto (€ 1.250,00) da alçada fixada para os Tribunais Judiciais da Primeira Instância, pelo que nos termos do art. 83º, nº 1 do RGIT, não seria admissível recurso do despacho em crise.

3. Todavia, o STA tem vindo a entender ser admissível recurso em casos justificados, com base nos fundamentos previstos no art. 73º nº 2 do RGCO, aplicável por força do disposto no art. 3º alínea b) do RGIT, quando tal se afigurar manifestamente necessário à melhoria da aplicação do direito ou à promoção da uniformidade da jurisprudência (cf. acórdãos do STA de 9/5/2012, 19/9/2012, 08/05/2013 e de o 5/02/2014, proferidos nos P. 243/12, 703/12, 655/13 e 1071/13, disponíveis em www.dgsi.pt.

4. Ora, nos termos daquele art. 73º n° 2 do RGCO, poderá ser admissível recurso quando tal se afigure manifestamente necessário à melhoria da aplicação do direito ou à promoção da uniformidade da jurisprudência, que se afigura ser o caso da decisão ora recorrida, sendo que há manifesta necessidade para melhoria de aplicação do direito quando ocorrem erros claros na decisão judicial, de tal forma que repugne manter na ordem jurídica a decisão recorrida, por ela constituir uma afronta ao direito, o que acontece com a solução jurídica encontrada pela decisão recorrida, pelo que é manifestamente necessário a admissão do recurso para melhoria da aplicação do direito.

5. A QUESTÃO OBJETO DE RECURSO: o despacho recorrido proferido nestes autos, ordenou a baixa dos mesmos ao SF “para aí serem incorporados no (único e original) recurso de contraordenação que foi apresentado”.

6. Ora, conhecedor o Tribunal da existência neste TAF de vários recursos de contraordenação, por ilícitos da mesma natureza e em que o arguido é o mesmo, e sendo o recurso judicial de contraordenação um misto de recurso e de julgamento de facto em primeira instância, por força do disposto no art. 25º do CPPP, aplicável subsidiariamente por força do disposto nos artigos 41º nº 1 do RGCO e artigo 3º, al. b) do RGIT, o Tribunal recorrido deveria ter ordenado primeiramente a apensação de todos os recursos interpostos por este arguido, pendentes neste TAF, observando-se as normas de antiguidade previstas na al. c) do art.º 28 do CPP.

7. Por outro lado, a apensação destes recursos de contraordenação justifica-se também pela aplicação da regra da economia e da boa gestão processual prevista no art. 130º do CPC, aplicável subsidiariamente ao CPP por força do seu art. 4º e ao RGCO e ao RGIT, de modo a impedir que se pratiquem repetidos atos de prolação de sentenças e notificações absolutamente iguais, para os mesmos intervenientes, com evidentes prejuízos para uma boa e célere administração da justiça, para além, dos inerentes e consequentes prejuízos orçamentais e financeiros que daí resultam.

8. Assim sendo, impõe-se que se proceda à apensação de todos os recursos ou impugnações judiciais de contraordenação, por ilícitos da mesma natureza e em que o arguido é o mesmo, por força do disposto no art. 25º do CPPP, aplicável subsidiariamente por força do disposto nos artigos 41º, nº 1 do RGCO e artigo 3º, al. b) do RGIT, pendentes neste TAF, observando-se as normas de antiguidade previstas na al. c) do art. 28º do CPP.

9. São neste sentido os recentes acórdãos do STA, de 04/03/2015, proferido no P. 1396/14, de 11/03/2015, proferido no P. 1557/14 e de 08/04/2019, proferido no P. 75/15, disponíveis em www.dgsi.pt, onde no primeiro se escreveu:

“No momento em que a impugnação da decisão administrativa que aplicou uma sanção relativa a uma infração como a dos autos dá entrada em Tribunal, conjuntamente com outras respeitantes ao mesmo infrator, ou quando relativamente a esse infrator já se encontrem pendentes nesse Tribunal processos por infrações idênticas, o juiz deve ordenar a apensação de processos, assim cumprindo a regra estabelecida no artigo 25º do Código de Processo Penal. Na fase judicial a apensação deve ser ordenada no despacho liminar ou em qualquer momento antes de ser designada data para o julgamento ou antes da prolação da decisão por mero despacho - cf. artigo 64º do RGIMOS e 82º do RGIT.”

10. Foram violados os artigos 4º, 24º, 25º, 28º e 29º do CPP, 130º do CPC, 41º nº 1 do RGCO, 3º al. b) do RGIT e 8º nº 8 do RCP.

1.3. Não foram apresentadas contra-alegações.

1.4. O Exmº Magistrado do Ministério Público junto do STA emitiu douto parecer no sentido de que devia ser dado provimento aos recursos.

2. Questão prévia da admissibilidade do recurso

Como questão prévia importa apreciar e decidir da admissibilidade destes dois recursos jurisdicionais, interpostos ao abrigo do disposto no nº 2 do art. 73º do Regime Geral do Ilícito de Mera Ordenação Social, subsidiariamente aplicável - para melhoria da aplicação do direito ou promoção da uniformidade da jurisprudência -, porquanto o valor da causa é de € 11,41, ou seja, é claramente inferior ao da alçada, e o STA não se encontra vinculado pela decisão de admissão do recurso proferida pelo Tribunal “a quo”.

Com efeito, segundo o disposto no art.º 83º do Regime Geral das Infrações Tributárias (RGIT), o arguido e o Ministério Público podem recorrer da decisão do Tribunal Tributário de 1.ª instância para o Tribunal Central Administrativo, ou para o Supremo Tribunal Administrativo se o recurso tiver por exclusivo fundamento matéria de direito, excepto se o valor da coima aplicada não ultrapassar 1/4 da alçada fixada para os tribunais judiciais de 1.ª instância (€ 1.250,00) e não for aplicada sanção acessória.

O que se compreende, como forma de evitar que o tribunal superior seja colocado em situação de resolver inúmeros casos de pouca importância, com prejuízo da sua disponibilidade para a apreciação de outros casos de maior relevo.

Admite-se, contudo, que em casos justificados se receba o recurso com base em fundamentos previstos no art.º 73º Lei Quadro das Contraordenações (LQC), aplicável ex vi da alínea b) do art.º 3º do RGIT, designadamente quando tal seja manifestamente necessário à melhoria da aplicação do direito ou à promoção da uniformidade da jurisprudência.

Vejamos.

A decisão recorrida tem o seguinte teor:

«Compulsados os autos, verifico, através da análise da petição de recurso (fls. 7 e ss dos autos) que A…………, contribuinte nº (...), veio interpor, ao abrigo do artigo 80º do RGIT, um único recurso contra quatro decisões de aplicação de coimas proferidas nos quatro processos de contraordenação instaurados pelo Serviço de Finanças de Gondomar 2, que identifica na sua petição: (...)

Não obstante, o Serviço de Finanças, entendendo que teria de ser apresentado um recurso por cada decisão de fixação de coima (ou seja, por cada processo de contraordenação), notificou o Recorrente para apresentar 4 recursos, tendo o impetrante remetido e-mail com a petição já apresentada.

Ora, decorre dos elementos dos autos e da consulta (através do SITAF) dos outros processos instaurados neste Tribunal em nome do Recorrente, que o Serviço de Finanças, desconsiderando a vontade do impetrante fez cópias da petição de recurso (que instruiu com cada um dos processos de contraordenação), que autuou separadamente, e remeteu a este Tribunal, ficcionando, assim, a existência de um recurso para cada um dos quatro processos de contraordenação.

Com esse procedimento, o Serviço de Finanças criou um recurso para cada uma das decisões proferidas em cada um dos processos contraordenacionais, contrariando a intenção do Recorrente que era a de intentar um único recurso para os quatro processos de contraordenação (e não um por cada).

Ora, a petição inicial “é o articulado em que o demandante propõe a acção, deduzindo certa pretensão de tutela jurisdicional, com a menção do direito a tutelar e dos fundamentos respectivos”. // A petição inicial é, assim, um acto processual que só o demandante/Autor pode praticar, que decorre de um comportamento voluntário seu. Por conseguinte, apenas o demandante/Autor pode dar início à instância, constituindo a petição inicial o principal e indispensável veículo do exercício do direito de acção, até porque sem petição não há processo judicial (pois a tutela judicial não é oficiosa).

Face ao exposto, e tendo o Recorrente apresentado apenas uma petição inicial de recurso, e não quatro petições, o procedimento adoptado pelo Serviço de Finanças não pode prevalecer.

Decisão

Face ao exposto, e não podendo o procedimento do Serviço de Finanças sobrepor-se à vontade do Recorrente (que apresentou um único recurso), devem os presentes autos ser devolvidos ao Serviço de Finanças de Gondomar 2, para aí serem incorporados no (único e original) recurso de contra-ordenação que foi apresentado.».

Perante o teor da decisão recorrida e motivação factual e jurídica que a suporta, afigura-se-nos que não se verificam os pressupostos enunciados no art.º 73º, nº 2, da LQC para que o recurso possa ser submetido à apreciação deste Supremo Tribunal.

Como tem sido sublinhado pela jurisprudência desta Secção, a expressão «melhoria da aplicação do direito» usada no art.º 73º, nº 2, do RGCO deve interpretar-se como abrangendo todas as situações em que há «erros claros na decisão judicial», situações essas em que, «à face de entendimento jurisprudencial amplamente adoptado, repugne manter na ordem jurídica a decisão recorrida, por ela constituir uma afronta ao direito» - cfr. Acórdãos do STA de 25.03.2009, rec. n.º 0106/09, de 20.06.2007, rec. n.º 0411/07, de 08.06.2011, rec. nº 0420/11 e de 19.09.2012, rec. nº 703/12.

O que significa que a possibilidade de recurso com esta amplitude tem essencialmente em vista assegurar eficazmente os direitos do arguido, permitindo o controlo jurisdicional dos casos em que haja erros claros na decisão judicial ou seja comprovadamente duvidosa a solução jurídica.

E não é seguramente essa a situação em causa no caso sub judice, já que não se nos afigura que a decisão recorrida tenha adotado entendimento contrário ao sufragado na jurisprudência ou que integre um erro clamoroso que importe corrigir sob pena de “afronta ao direito”.

De facto, e ao contrário do que sustentam os recorrentes, não estamos perante situação igual ou semelhante a todas as que têm sido apreciadas pelo STA e que se traduziam em saber se o juiz pode ordenar a apensação de outros recursos judiciais interpostos pelo mesmo arguido de decisões administrativas de aplicação de coimas em distintos processos de contraordenação, ou se ocorre a nulidade insuprível da decisão de aplicação da coima por esta não conter o cúmulo das coimas aplicadas às infrações em concurso.

Não sendo esse o caso, carece de todo o sentido invocar entendimento contrário à jurisprudência deste tribunal sobre a referida matéria.

Ademais, a decisão recorrida, podendo ser objeto de controvérsia jurídica, não se nos afigura constituir um erro clamoroso que importe necessariamente corrigir, sob pena de “afronta ao direito”.

E porque também não resulta que dela emane, de alguma forma, entendimento contrário à jurisprudência dos tribunais superiores, designadamente do STA, conclui-se que não está demonstrado que o conhecimento do presente recurso seja manifestamente necessário para a melhoria da aplicação do direito e para a promoção da uniformidade da jurisprudência, único fundamento que sustentaria a sua admissibilidade ao abrigo do art.º 73.º, n.º 2, da LQC.

Razão por que não se verificam, in casu, os requisitos de que depende a admissão do presente recurso jurisdicional.

3. - Face ao exposto, acordam os juízes da Secção do Contencioso Tributário deste Supremo Tribunal Administrativo em não admitir o recurso.

Custas apenas pela recorrente Fazenda Pública, tendo em conta que o Ministério Público delas se encontra isento.

Lisboa, 8 de Fevereiro de 2017. - Dulce Neto (relatora) - Ascensão Lopes - Ana Paula Lobo.