Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0431/16
Data do Acordão:04/27/2016
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:FRANCISCO ROTHES
Descritores:RECLAMAÇÃO
INTERPRETAÇÃO DO ACTO
Sumário:I - Na interpretação das peças processuais são aplicáveis, por força do disposto no art. 295.º do CC, os princípios da interpretação das declarações negociais, valendo, por isso, aquele sentido que, segundo o disposto nos arts. 236.º, n.º 1, do CC, o declaratário normal ou razoável deva retirar das declarações nelas escritas.
II - Relativamente aos articulados, impõe-se também observar que os rigores formalistas na interpretação das peças processuais estão hoje vedados pelos princípios do moderno direito adjectivo e, bem assim, pelo princípio constitucional da tutela jurisdicional efectiva (cfr. art. 20.º da CRP), motivo por que, na apreciação da petição, o tribunal deve procurar indagar da real pretensão do peticionante, interpretando-a no sentido mais favorável aos interesses do peticionante que a mesma comporte.
III - Permitindo a petição deduzida ao abrigo do art. 276.º e segs. do CPPT perceber qual o acto praticado pelo órgão da execução fiscal que se pretende impugnar contenciosamente, não pode o juiz indeferi-la in limine, mesmo depois de o reclamante não ter acedido à solicitação que lhe foi feita, de «vir juntar cópia do acto reclamado».
Nº Convencional:JSTA00069678
Nº do Documento:SA2201604270431
Data de Entrada:04/08/2016
Recorrente:A... LDA
Recorrido 1:FAZENDA PÚBLICA
Votação:UNANIMIDADE
Meio Processual:REC JURISDICIONAL
Objecto:SENT TAF SINTRA
Decisão:PROVIDO
Área Temática 1:DIR PROC TRIBUT CONT - EXEC FISCAL.
Legislação Nacional:CPPT ART276 ART278 ART67 ART277.
CCIV66 ART295 ART236.
CPTA ART78 ART7.
CONST76 ART20 ART268 N4.
Jurisprudência Nacional:AC STA PROC0154/13 DE 2013/05/15.; AC STA PROC0032/13 DE 2014/01/08.
Referência a Doutrina:JORGE LOPES DE SOUSA - CÓDIGO DE PROCEDIMENTO E PROCESSO TRIBUTÁRIO ANOTADO E COMENTADO - ÁREAS EDITORA 6ED VOLIV PAG288-292.
Aditamento:
Texto Integral: Recurso jurisdicional do despacho de indeferimento liminar proferido no processo de reclamação de actos do órgão de execução fiscal com o n.º 3124/15.6BESNT

1. RELATÓRIO

1.1 A sociedade denominada “A…………., Lda.” (doravante Reclamante ou Recorrente) recorreu para o Tribunal Central Administrativo Sul do despacho por que o Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra indeferiu liminarmente a reclamação por ela deduzida ao abrigo do disposto nos arts. 276.º e 278.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), com o fundamento de que na petição inicial não foi identificado (Pese embora no despacho recorrido a Juíza do Tribunal a quo diga que a Reclamante não cumpriu o despacho anterior, «no sentido de […] vir juntar o acto de que pretende reclamar», e nesse ter ordenado a notificação da Reclamante para «vir juntar cópia do acto ora reclamado», interpretamos essas afirmações com o sentido de que a Reclamante foi notificada para identificar o acto reclamado e não fez tal identificação.) o acto reclamado e que a Reclamante, convidada a fazer essa identificação, não anuiu ao convite.

1.2 Com o requerimento de interposição do recurso apresentou a respectiva motivação, que resumiu em conclusões do seguinte teor:

«A. A causa de pedir na reclamação dos autos encontra-se bem identificada no requerimento inicial e o mesmo se passa com o pedido.

B. Outra obrigação não compete à requerente, nem é causa de indeferimento liminar da sua petição.

C. Compete ao órgão da execução (serviço de Finanças de Cascais) não só a identificação do acto reclamado, como posição sobre o seu indeferimento, antes da subida da Reclamação ao tribunal competente o que ao que tudo indica não foi feito no presente processo.

D. O despacho sub judice violou de forma grosseira, entre outras que V. Ex.as doutamente suprirão as constantes do art. 552.º do CPC ex vi art. 2.º do CPPT e n.º 2 do art. 277.º do CPPT.

Termos em que,

Deve o presente recurso ser julgado procedente e em consequência ser revogada a decisão recorrida com os legais efeitos, com o que se fará a esperada Justiça».

1.3 O recurso foi admitido a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito suspensivo.

1.4 Não foram apresentadas contra-alegações.

1.5 O Tribunal Central Administrativo Sul declarou-se hierarquicamente incompetente e declarou que a competência em razão da hierarquia para conhecer do presente recurso é deste Supremo Tribunal Administrativo, ao qual foi remetido o processo, a requerimento da Recorrente.

1.6 Recebidos os autos neste Supremo Tribunal Administrativo e dada vista ao Ministério Público, o Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido de que seja concedido provimento ao recurso, revogada a decisão recorrida e devolvido o processo à 1.ª instância, para aí prosseguir, se a tal nada mais obstar, com a seguinte fundamentação:

«[…]
Da petição de reclamação deve constar, além do mais, a indicação do acto de que se reclama, nos termos do disposto no artigo 78.º/2 do CPTA, ex vi do artigo 2.º/c) do CPPT (Código de Procedimento e de Processo Tributário, 6.ª edição, 2011, anotado e comentado, IV volume, página 289, Juiz Conselheiro Jorge Lopes de Sousa).
Se o interessado não der cumprimento a tal normativo deve a secretaria recusar a PI, nos termos do preceituado no artigo 80.º/1 do CPTA (Obra citada, páginas 290/291).
Se, porventura, a secretaria não recusar a PI, então deverá o tribunal convidar o reclamante a suprir tal irregularidade, nos termos do disposto nos artigos 110.º/2 do CPPT, 88.º/1/2 do CPTA e 590.º do CPC.
Na eventualidade do reclamante não dar cumprimento ao convite formulado pelo tribunal, a PI deverá ser indeferida, pois ela deve considerar-se nula, nos termos do disposto no artigo 195.º/1 do CPC (Código de Procedimento e de Processo Tributário, 6.ª edição 2011, anotado e comentado, II volume, páginas 213/214, Juiz Conselheiro Jorge Lopes de Sousa).
O tribunal recorrido convidou a reclamante a juntar cópia do acto reclamado (fls. 25) e porque a ora recorrente não deu cumprimento a tal convite, ao abrigo do disposto no artigo 88.º/4 do CPTA rejeitou liminarmente a reclamação.
Vejamos.
Como resulta da PI (fls. 7) a reclamante sindica, claramente, o despacho do Chefe do Serviço de Finanças de Cascais 1 que ordenou a venda, devidamente identificada (venda n.º 1503.2015355) dos bens dados de garantia no PEF ali, também, devidamente, identificado (n.º 1503200901014510) e pede a anulação de todos os actos que ponham em causa a manutenção da suspensão do PEF, por via das garantias, oportunamente, prestadas.
O OEF, no despacho de sustentação a que se refere o artigo 277.º/2 do CPPT, que faz fls. 16/18, não tem dúvidas sobre o acto que a recorrente sindica e que descreve como “despacho nos termos do qual foi determinada a venda judicial do prédio penhorado nos autos”, despacho esse que faz fls. 394 do apenso PEF notificado à recorrente nos termos de fls. 397 do mesmo PEF.
Ou seja, o acto sindicado encontra-se suficientemente identificado na PI de RAOEF, e tendo, ainda, em relevo que a substância deve prevalecer sobre a forma, em nosso entendimento não há fundamento legal para a notificação efectuada à recorrente para juntar cópia do acto sindicado (que consta de fls. 394 do apenso PEF).
A decisão recorrida merece, pois, censura».

1.7 Dispensaram-se os vistos dos Juízes adjuntos, atento o carácter urgente do processo.

1.8 A questão que cumpre apreciar e decidir é a de saber se o despacho recorrido, que indeferiu liminarmente a petição de reclamação deduzida ao abrigo do disposto no art. 276.º do CPPT, incorreu em erro de julgamento na medida em que considerou que a Reclamante não indicou (Ver nota anterior.) qual o acto reclamado, apesar de convidada para o efeito.


* * *

2. FUNDAMENTAÇÃO

2.1 DE FACTO

Com interesse para a decisão a proferir, há a considerar o seguinte circunstancialismo processual:

a) Em 21 de Setembro de 2015, a sociedade denominada fez dar entrada no Serviço de Finanças de Cascais - 1 a petição inicial que deu origem aos presentes autos (cfr. fls. 5 a 11);

b) O Serviço de Finanças pronunciou-se pela manutenção do acto, ao abrigo do n.º 2 do art. 277.º do CPPT, e remeteu os autos ao Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra (cfr. fls. 16 a 18);

c) Em 9 de Outubro de 2015, a Juíza do Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra proferiu despacho do seguinte teor:
«Antes do mais, notifique a Reclamante para vir juntar cópia do acto ora reclamado.
Prazo: 5 dias» (cfr. fls. 25/26);

c) Para notificação desse despacho o Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra, em 12 de Outubro de 2015, remeteu carta registada ao Mandatário da Reclamante (cfr. fls. 27);

d) Em 5 de Novembro, a Juíza do Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra proferiu decisão do seguinte teor:
«A……………., Lda., com melhor identificação nos autos, veio deduzir reclamação nos termos do artigo 276.º e seguintes do CPPT.
Recebida a petição, foi proferido despacho no sentido de a Reclamante vir juntar o acto de que pretende reclamar, no prazo de 5 dias.
Decorrido o prazo fixado no despacho, a Reclamante nada veio dizer, ou seja, não veio dar cumprimento ao despacho de fls. 25, não tendo, por isso, vindo suprir as irregularidades do requerimento inicial.
A falta de suprimento de irregularidades da petição inicial é motivo de rejeição liminar, nos termos do preceituado no n.º 4 do artigo 88.º do CPTA ex vi artigo 2.º do CPPT, pelo que se rejeita liminarmente a presente reclamação.
Custas pela Reclamante» (cfr. fls. 29).


*

2.2 DE DIREITO

2.2.1 A QUESTÃO A APRECIAR E DECIDIR

A questão suscitada no presente recurso é a de saber se a Juíza do Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra decidiu bem quando indeferiu liminarmente a reclamação deduzida ao abrigo do art. 276.º e segs. do CPPT com o fundamento de que a Reclamante e ora Recorrente não acedeu à notificação que lhe foi feita «para vir juntar cópia do acto ora reclamado», o que, na tese do despacho de indeferimento liminar, constitui «falta de suprimento de irregularidades da petição inicial» e «é motivo de rejeição liminar, nos termos do preceituado no n.º 4 do artigo 88.º do CPTA ex vi artigo 2.º do CPPT».
Antes do mais, convém ter presente que, como este Supremo Tribunal tem vindo a afirmar (Vide, por mais recentes, os seguintes acórdãos desta Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo:
– de 15 de Maio de 2013, proferido no processo n.º 154/13, publicado no Apêndice ao Diário da República de 15 de Abril de 2014 (http://www.dre.pt/pdfgratisac/2013/32220.pdf), págs. 2010 a 2012, também disponível em
http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/9fd626d6071eab7780257b7f0054b163;
- de 8 de Janeiro de 2014, proferido no processo n.º 32/13, publicado no Apêndice ao Diário da República de 15 de Setembro de 2014 (http://www.dre.pt/pdfgratisac/2014/32210.pdf), págs. 2 a 9, também disponível em
http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/05f925c2f9dbfb7e80257c62005ae50a.), na interpretação das peças processuais (articulados e decisões judiciais) são aplicáveis, por força do disposto no art. 295.º do Código Civil («Aos actos jurídicos que não sejam negócios jurídicos são aplicáveis, na medida em que a analogia das situações o justifique, as disposições do capítulo precedente».) (CC), os princípios da interpretação das declarações negociais (comuns à interpretação das leis), valendo, por isso, aquele sentido que, segundo o disposto no art. 236.º, n.º 1, do mesmo Código («A declaração negocial vale com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante, salvo se este não puder razoavelmente contar com ele».), o declaratário normal ou razoável deva retirar das declarações escritas constantes da peça processual (() Por outro lado, vale também aqui o princípio aplicável aos negócios formais, denominado do mínimo de correspondência verbal, de que «não pode a declaração valer com um sentido que não tenha um mínimo de correspondência no texto do respectivo documento, ainda que imperfeitamente expresso» (art. 238.º, n.º 1, do CC).).
Tendo presente este entendimento, diremos que, apesar de o despacho recorrido apresentar como fundamento para a rejeição liminar da petição inicial o facto de a Reclamante não ter juntado cópia do acto reclamado, mesmo depois de ter sido notificada para o efeito, interpretamos essa decisão com o sentido de que a Reclamante não identificou qual o acto de que vinha reclamar. Na verdade, a referida junção do acto ou junção de cópia do acto, não só não faz sentido (na medida em que tal acto integrará o próprio processo de execução fiscal ou, pelo menos, constará do mesmo), como também inexiste norma ou princípio legal que suporte outra exigência que não a da indicação do acto reclamado [cfr. art. 78.º, n.º 2, alínea d), do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA), na redacção aplicável, que é a da Lei n.º 15/2002, de 22 de Fevereiro] («2. Na petição, deduzida por forma articulada, deve o autor: […] d) Identificar o acto jurídico impugnado, quando seja o caso; […]».).
É certo que também a Recorrente, na motivação do recurso e nas conclusões que nele formulou, se exprime de modo que requer algum esforço hermenêutico para que se possa concluir, como concluímos, que sustenta que identificou o acto reclamado. Na verdade, numa primeira leitura das conclusões, maxime a vertida sob a alínea C) – onde deixou dito «Compete ao órgão da execução (serviço de Finanças de Cascais) não só a identificação do acto reclamado, como posição sobre o seu indeferimento, antes da subida da Reclamação ao tribunal competente o que ao que tudo indica não foi feito no presente processo» –, parece resultar que a Recorrente entende que a identificação do acto reclamado competiria ao órgão da execução fiscal. Mas a Reclamante afirma também, na conclusão A) do presente recurso, que «[a] causa de pedir […] encontra-se bem identificada no requerimento inicial».
Ou seja, tendo presente o que acima deixámos dito quanto à interpretação das peças processuais e tendo ainda em conta que os rigores formalistas nessa tarefa hermenêutica são vedados pelos princípios que enformam a actual lei adjectiva [cfr. art. 7.º do CPTA («Para efectivação do direito de acesso à justiça, as normas processuais devem ser interpretadas no sentido de promover a emissão de pronúncias sobre o mérito das pretensões formuladas».)] e bem assim pelo princípio constitucional da tutela jurisdicional efectiva [cfr. arts. 20.º e 268.º, n.º 4, da Constituição da República Portuguesa (CRP)] – que impõem que o tribunal extraia dos requerimentos que lhe são apresentados o sentido mais favorável aos interesses do peticionante, indagando da sua real pretensão – entendemos poder e dever interpretar as alegações de recurso e respectivas conclusões no sentido de que à ora Recorrente bastava identificar o acto impugnado, impondo-se ao órgão da execução fiscal a junção de cópia dos actos processuais ou outros que integrem o acto reclamado, obrigação esta que se refere, aliás, a todo o processo de execução fiscal, nos termos do n.º 5 do art. 278.º do CPPT («A cópia do processo executivo que acompanha a subida imediata da reclamação deve ser autenticada pela administração tributária».), na redacção que lhe foi dada pela Lei n.º 82-B/2014, de 31 de Dezembro (Lei do Orçamento do Estado para 2015).
Assim, entendemos que a questão a dirimir nos presentes autos, como adiantámos em 1.8, é a de saber se a Juíza do Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra incorreu em erro de julgamento ao considerar que a Reclamante não indicou o acto impugnado, mesmo depois de expressamente notificada para o efeito, e ao indeferir liminarmente a petição de reclamação deduzida ao abrigo do disposto no art. 276.º do CPPT com fundamento no alegado incumprimento dessa obrigação.
Temos, pois, antes do mais, que verificar, em face da petição inicial, se a ora Recorrente identificou ou não o acto impugnado.

2.2.2 DA IDENTIFICAÇÃO DO ACTO RECLAMADO

Como bem referiu o Procurador-Geral Adjunto neste Supremo Tribunal Administrativo, é inequívoco que quem reclama ao abrigo do disposto no art. 276.º do CPPT tem a obrigação de indicar qual o acto impugnado (Note-se que, pese embora a denominação legal adoptada pelo art. 276.º do CPPT (reclamação), o meio processual aí previsto deve ser encarado, designadamente quanto aos requisitos da respectiva petição, como uma acção de impugnação, natureza que lhe é atribuída pelos arts. 49.º, n.º 1, alínea a), subalínea iii), e 49.º-A, n.ºs 2, alínea a), subalínea iii), e 3, alínea a), subalínea iii), do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais de 2002.)-(Nos termos do disposto no art. 78.º, n.º 2, alínea d), do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA), na redacção anterior à do Decreto-Lei n.º 214-G/2015, de 2 de Outubro, a que hoje corresponde, na redacção introduzida por este diploma, a alínea e) do mesmo artigo e número.) e, não o fazendo, caso a petição inicial não tenha sido recusada pela secretaria com esse fundamento (Como o deve ser, atento o disposto no art. 80.º, n.º 1, alínea c), do CPTA.), deve o juiz convidar o reclamante a sanar a irregularidade, sendo que, se este não anuir ao convite, a petição inicial deverá ser indeferida (Cfr. JORGE LOPES DE SOUSA, Código de Procedimento e de Processo Tributário anotado e comentado, Áreas Editora, 6.ª edição, IV volume, anotação 3 ao art. 276.º, págs. 288 a 292, que refere, detalhadamente, o regime jurídico relativamente à falta de requisitos da petição da reclamação prevista no art. 276.º e segs. do CPPT.).
Quanto ao regime legal aplicável, não há, pois, qualquer dúvida; a dúvida existe, sim, relativamente a saber se a Reclamante identificou ou não o acto reclamado: a Juíza do Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra entendeu que não, enquanto a Reclamante, ora Recorrente, sustenta que sim. É essa a questão que urge dirimir.
É certo que a praxis aconselha que a identificação do acto impugnado seja feita, precisa e inequivocamente, logo na parte inicial da petição inicial ou mesmo no cabeçalho. A Reclamante, em ordem a satisfazer esse desígnio, optou por uma formulação dúbia que mais parece referir-se à notificação que lhe foi feita, na sua qualidade de «garante» (Leia-se de entidade que garantiu o pagamento da dívida exequenda e do acrescido em ordem à suspensão da execução fiscal durante a pendência de contencioso sobre a liquidação que deu origem à dívida exequenda.) – «notificada do despacho do Chefe do Serviço de Finanças no sentido da venda dos bens dados em garantia o pagamento da dívida exequenda até à decisão final do processo de impugnação judicial requerido pela executada ….., S.A.» –, sem que afirme peremptoriamente qual o acto impugnado. A boa técnica impunha-lhe que o fizesse através de modo inequívoco. É também para evitar estas dificuldades provocadas pelo desconhecimento das regras jurídicas e da praxis do foro que o n.º 1 do art. 6.º do CPPT impõe a constituição de advogado em 1.ª instância quando o valor do processo exceda o dobro do valor da sua alçada, como no caso sub judice.
A falta de precisão ao identificar o acto reclamado nem sequer se pode considerar colmatada pela formulação do pedido: a fórmula utilizada – «ordenando-se a anulação de todos os actos que ponham em causa a manutenção da suspensão da execução» – peca também ela por ser genérica e vaga.
No entanto, tendo presente o que acima deixámos dito relativamente à interpretação das peças processuais, a leitura da petição inicial, conjugada com a consulta do processo executivo e com as informações prestadas pelo Serviço de Finanças de Cascais 1 quando, em observância do disposto no n.º 2 do art. 277.º do CPPT, se pronunciou pela não revogação do acto impugnado, permitem concluir, com segurança, que o acto de que a ora Recorrente pretende reclamar é o despacho que ordenou a venda, designando dia para o efeito. Nesse sentido também se pronunciou o Procurador-Geral Adjunto neste Supremo Tribunal Administrativo.
Assim, não se justifica o despacho proferido nos presentes autos, para a Reclamante «vir juntar cópia do acto reclamado», o qual, há que concedê-lo, também não prima pela clareza.
Por outro lado, também mal se compreende que, em face dessa notificação, a Reclamante tenha optado por se manter em silêncio. O dever de cooperação [cfr. art. 8.º do CPTA] recomendava o esclarecimento junto do Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra.
Uma correcta interpretação e assumpção dos princípios da lei adjectiva pelos intervenientes processuais – aos quais se impõem uma actuação leal e de boa-fé, em cooperação – poderia facilmente ter evitado o conflito que ora somos chamados a dirimir.
Seja como for, e como deixámos já dito, a interpretação da petição inicial, tarefa na qual há que atender não só ao teor dessa peça processual, como também aos elementos constantes do processo de execução fiscal, permitiam determinar o objecto da presente reclamação: a ora Recorrente visava a impugnação do despacho por que foi ordenada a venda dos bens que tinham sido dados em garantia na execução fiscal.
Neste sentido, e como também bem notou o Procurador-Geral Adjunto no seu parecer, não podemos ignorar que o próprio órgão da execução fiscal – o Serviço de Finanças de Cascais 1, inequivocamente indicado na petição inicial como autor do acto impugnado – não teve dificuldade alguma em entender qual o acto por ele praticado contra o qual o ora Recorrente se vinha insurgir, pedindo a sua anulação. Na verdade, na informação prestada ao abrigo do n.º 2 do art. 277.º do CPPT, para justificar por que não revogava o acto reclamado, aquele Serviço de Finanças, não só não revela dificuldade alguma na identificação desse acto, como afirma expressamente que ele é «o despacho nos termos do qual foi determinada a venda judicial do prédio penhorado nos autos» (cfr. fls. 16).
Assim, perante a comprovada possibilidade de identificar o acto impugnado em face da petição inicial, somos levados à conclusão de que não se impunha a notificação da Reclamante para identificar o acto impugnado e, mais do que isso, que a falta de resposta a essa solicitação não pode acarretar consequência negativa alguma para a Reclamante, designadamente a decretada e ora controvertida rejeição liminar.
Por tudo o que ficou dito, o recurso será provido, o despacho recorrido será revogado e os autos deverão regressar à 1.ª instância, a fim de aí prosseguirem, se a tal nada mais obstar.

2.2.3 CONCLUSÕES

Preparando a decisão, formulamos as seguintes conclusões:
I - Na interpretação das peças processuais são aplicáveis, por força do disposto no art. 295.º do CC, os princípios da interpretação das declarações negociais, valendo, por isso, aquele sentido que, segundo o disposto nos arts. 236.º, n.º 1, do CC, o declaratário normal ou razoável deva retirar das declarações nelas escritas.
II - Relativamente aos articulados, impõe-se também observar que os rigores formalistas na interpretação das peças processuais estão hoje vedados pelos princípios do moderno direito adjectivo e, bem assim, pelo princípio constitucional da tutela jurisdicional efectiva (cfr. art. 20.º da CRP), motivo por que, na apreciação da petição, o tribunal deve procurar indagar da real pretensão do peticionante, interpretando-a no sentido mais favorável aos interesses do peticionante que a mesma comporte.
III - Permitindo a petição deduzida ao abrigo do art. 276.º e segs. do CPPT perceber qual o acto praticado pelo órgão da execução fiscal que se pretende impugnar contenciosamente, não pode o juiz indeferi-la in limine, mesmo depois de o reclamante não ter acedido à solicitação que lhe foi feita, de «vir juntar cópia do acto reclamado».


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3. DECISÃO

Face ao exposto, os juízes deste Supremo Tribunal Administrativo acordam, em conferência, em conceder provimento ao recurso, revogar o despacho recorrido e ordenar que os autos regressem à 1.ª instância, a fim de aí prosseguirem, se a tal nada mais obstar.

Sem custas.

Lisboa, 27 de Abril de 2016. – Francisco Rothes (relator) – Fonseca CarvalhoCasimiro Gonçalves.