Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0580/18
Data do Acordão:07/04/2018
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:FRANCISCO ROTHES
Descritores:EXECUÇÃO FISCAL
PAGAMENTO EM PRESTAÇÕES
Sumário:I - A referência a “imposto legalmente repercutido a terceiros”, constante do n.º 2 do art. 42.º da LGT e do n.º 2 do art. 196.º do CPPT, inclui o IVA (cfr. art. 37.º do respectivo Código), mas apenas nos casos em que o imposto em dívida foi efectivamente repercutido a terceiros (e já não naqueles em que o imposto liquidado e não entregue não foi repercutido).
II - A exclusão da possibilidade geral do pagamento em prestações de imposto repercutido a terceiros (mantém-se uma possibilidade extraordinária de pagamento em prestações, mas em condições mais restritivas, nos termos do n.º 3 do art. 196.º do CPPT) resulta do juízo de desvalor associado nas leis tributárias a esse tipo de condutas (que podem mesmo ser qualificadas como crime ou contra-ordenação, de acordo com os arts. 105.º e 114.º do RGIT), em que o devedor do imposto, pese embora tenha tido em seu poder o montante do mesmo, que foi suportado por terceiros, o não entregou integral e de uma só vez nos cofres do Estado, como se lhe impunha.
Nº Convencional:JSTA000P23491
Nº do Documento:SA2201807040580
Data de Entrada:06/12/2018
Recorrente:A...
Recorrido 1:AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: Recurso jurisdicional da sentença proferida no processo de reclamação de actos do órgão de execução fiscal com o n.º 570/18.7BEPRT

1. RELATÓRIO

1.1 A…………. (adiante Recorrente, Executado ou Reclamante) recorre para o Supremo Tribunal Administrativo da decisão por que o Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto julgou improcedente a reclamação deduzida, ao abrigo do art. 276.º e segs. do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), contra o despacho por que o Chefe do Serviço de Finanças de Matosinhos 2, deferindo o pedido de pagamento da dívida exequenda em prestações mensais, apenas autorizou 24 prestações, ao invés das 60 que foram requeridas.

1.2 Com o requerimento de interposição do recurso apresentou a respectiva motivação, que resumiu em conclusões do seguinte teor:

«A) O n.º 2 do art. 42.º da LGT e o n.º 2 do art. 196.º do CPPT têm o seu âmbito de aplicação limitado às situações em que, havendo a obrigação legal de repercutir imposto (como é o caso do IVA a mencionar na factura a emitir ao cliente do respectivo sujeito passivo), o imposto foi efectivamente repercutido, sendo inaplicável às situações em que, mesmo existindo o dever de repercutir, o imposto não foi efectivamente repercutido

B) Como se colhe da douta sentença sob recurso, no caso dos autos, o Reclamante, enquanto sujeito passivo de imposto, não repercutiu aos seus clientes o IVA que constitui a dívida exequenda, mesmo que estivesse obrigado a fazê-lo.

C) Assim, a situação da dívida exequenda dos autos não é subsumível à previsão dos invocados preceitos legais, sendo-lhe aplicável o regime-regra do pagamento em prestações, com aplicação, nomeadamente, do disposto nos n.ºs 1, 4 e 5 do art. 196.º do CPPT.

D) Estavam e estão, pois, reunidas todas as condições para que ao Reclamante fosse autorizado o pagamento da dívida exequenda em 60 prestações nos termos conjugados dos n.ºs 1, 4 e 5, bem como do n.º 2, a contrario, do art. 196.º do CPPT e ainda do n.º 2, a contrario, do art. 42.º da LGT.

E) A douta sentença sob recurso, ao julgar improcedente a reclamação, interpretou e violou o disposto nas disposições legais referidas na conclusão anterior.

Nestes termos e nos demais de direito, deve ser concedido provimento ao presente recurso, revogando-se a douta sentença, com as legais consequências, como é de JUSTIÇA».

1.3 O recurso foi admitido a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito suspensivo.

1.4 O Representante da Fazenda Pública não contra-alegou o recurso.

1.5 Recebidos os autos neste Supremo Tribunal Administrativo e dada vista ao Ministério Público, o Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido de que seja negado provimento ao recurso. Isto, após enunciar os termos em que a questão se coloca, com a seguinte fundamentação (As notas que no parecer estavam em rodapé serão agora transcritas no corpo do texto, entre parêntesis rectos.):

«[…]
- Do entendimento a dar a imposto legalmente repercutido previsto no n.º 2 do art. 42.º da LGT e no art. 196.º n.º 2 do C.P.P.T.:

No n.º 2 do art. 42.º da L.G.T. resulta a exclusão do pagamento em prestações quanto a quantias legalmente repercutidas de imposto, “nos termos previstos na lei”.
Por outro lado, semelhante disposição consta do art. 196.º n.º 2 do C.P.P.T.
Ora, percebe-se da leitura dos textos legais que se quis, em princípio, excluir o pagamento em prestações no que respeita a alguns tipos de impostos, como aqueles em que é característica a sua repercussão legal em terceiros, conforme ocorre no caso do IVA (bem como ainda noutros casos, como os dos impostos especiais sobre o consumo).
Essa repercussão tem expressão no art. 37.º do Código do IVA, disposição em que se prevê que o dito imposto deve ser, em regra, adicionado ao valor da factura, podendo ser incluída no preço, para efeitos da sua exigência aos adquirentes dos bens ou destinatários dos serviços.
Ora, conforme assinalam LEITE DE CAMPOS, BENJAMIM RODRIGUES e JORGE SOUSA, “a repercussão efectua-se fora do âmbito da obrigação tributária”, segundo “o ponto de vista da generalidade dos Autores”1 [1 Lei Geral Tributária, 4.ª ed. 2012, p. 189].
Assim, SOARES MARTINEZ defendeu que os repercutidos não são sujeitos passivos de imposto, mas meros contribuintes de facto2 [2 Direito Fiscal, 10.ª ed. Almedina, 2003, p. 227].
No mesmo sentido vai CASALTA NABAIS que considera tratar-se a relação de ordem legal, existindo por parte do repercutido uma obrigação natural3 [3 Direito Fiscal, 7.ª ed. 2012, p. 66 e 237].
BRUNO BOTELHO ANTUNES que dedicou monografia ao tema, considera também que “podemos afirmar que o repercutido só não é sujeito passivo do imposto porque se entendeu – na Doutrina Internacional e na legislação comunitária – que a eficiência do sistema seria posta em causa” 4 [4 Da repercussão fiscal do IVA, ed. Almedina, 2008, p. 99].
JORGE SOUSA assinala ainda que na redacção dada ao n.º 2 do art. 196.º do C.P.P.T., resulta a exclusão de pagamento em prestações ainda “mais abrangente”, na redacção dada pela Lei n.º 53-A/2006, de 29/12, estando incluído no âmbito da proibição de pagamento em prestações dívidas que não tenham sido liquidadas pelos serviços mas resultem da falta de entrega” 5 [5 Código de Procedimento e de Processo Tributário, 6.ª ed., 2011, Áreas Ed., Vol. III, p. 399].
Por outro lado, não se pode deixar de observar ainda que no n.º 3 desse art. 196.º, em que tal pagamento em prestações se encontra previsto ainda no caso de impostos legalmente repercutidos, a título excepcional, nas condições previstas nas alíneas a) e b), consta tal “sem prejuízo da responsabilidade contra-ordenacional ou criminal que ao caso houver”,
É de admitir que, ocorrendo esse tipo de responsabilidade, tal forma de pagamento excepcional em prestações seja a única aplicável quanto ao IVA.
E, sendo manifesto que a al. a) desse n.º 3 não resulta no caso preenchida, só era possível deferir o pagamento em 24 prestações, nos termos da seguinte al. b), com fundamento em dificuldade excepcional e possíveis consequências gravosas.
Concluindo:
O previsto no n.º 2 do art. 42.º da L.G.T. e no n.º 2 do art. 196.º n.º 2 do C.P.P.T. é de interpretar de acordo com o quadro legal em que o IVA se insere, de repercussão legal e em que a obrigação de imposto nasce, em princípio, pela emissão da factura.
Tal leva a considerar como proibido quanto ao IVA o regime geral de pagamento em prestações mesmo no caso do dito imposto não ter sido efectivamente repercutido, sentido em que tem sido entendida a dita obrigação de imposto.
O recurso é de improceder, sendo de confirmar o decidido».

1.6 Com dispensa dos vistos dos Conselheiros adjuntos, atento o carácter urgente do processo, cumpre apreciar e decidir.


* * *

2. FUNDAMENTAÇÃO

2.1 DE FACTO

2.1.1 A sentença recorrida deu como provada a seguinte factualidade:

«1. Foi instaurado, no Serviço de Finanças da Matosinhos - 2, contra a Reclamante, o processo de execução fiscal n.º 3514200901008986, por dívidas de IVA, respeitantes a liquidações adicionais dos anos de 2004, 2005 e 2006, no montante global de € 161.840,43 (cfr. fls. 13 verso, 15 a 55 dos autos cujo teor se dá por integralmente reproduzido).

2. No âmbito desse processo de execução, a Reclamante através do seu mandatário, requereu, em 17/11/2017, o pagamento da dívida em 60 prestações, nos seguintes termos:

«Exmo. Senhor Chefe do Serviço de Finanças de Matosinhos 2
Proc. n.º 3514200901008986
A…………., contribuinte n.º …….., residente na Av……….., ……, ……….., Matosinhos, executado no processo em referência, que esteve suspenso na pendência do contencioso associado às liquidações de que emerge a dívida exequenda, não tendo condições económico-financeiras que lhe permitam efectuar o pagamento de uma só vez da dívida exequenda e respectivo acrescido, vem, nos termos conjugados dos n.ºs 1, 4 e 5 do art. 196.º do CPPT, requerer seja autorizado o pagamento em 60 prestações.
Com efeito, tendo em conta o elevado valor da dívida e a escassa liquidez de que o executado pode dispor, está não só impossibilitado de todo o pagamento integral da dívida de uma só vez como também o pagamento no número máximo de prestações permitido pelo n.º 4 do indicado preceito legal (36).
O executado está, pois, numa situação de notória dificuldade financeira, sendo previsivelmente ruinosas as consequências financeiras da exigência do pagamento da quantia exequenda em período inferior ao que decorre do peticionado número de prestações.
A dívida exequenda e respectivo acrescido encontram-se garantidos por hipoteca voluntária que permitiu a suspensão da execução na pendência do já referido contencioso como está documentado na execução.
Pede deferimento»
(cfr. fls 155 a 167 dos autos).

3. O pedido referido no n.º anterior foi indeferido por despacho de 18/01/2018 da Directora de Finanças Adjunta da Direcção de Finanças do Porto, no qual consta, entre o mais, o seguinte:

«DO PAGAMENTO EM PRESTAÇÕES
11. Dispõe o n.º1 do art. 196.º do Código de Procedimento e Processo Tributário que “as dívidas exigíveis em processo executivo poder ser pagas em prestações mensais e iguais, mediante requerimento a dirigir, até à marcação da venda, ao órgão da execução fiscal,
12. Dispondo-se ainda no n.º 2 daquele normativo, que tal admissibilidade “não é aplicável às dívidas de recursos próprios comunitários e às dívidas resultantes da falta de entrega, dentro dos respectivos prazos legais, de imposto retido na fonte ou legalmente repercutido a terceiros, salvo em caso de falecimento do executado”.
13.Excepcionando-se, contudo, que é “admitida a possibilidade de pagamento em prestações, das dívidas referidas no número anterior, desde que se demonstre a dificuldade financeira excepcional e previsíveis consequências económicas gravosas, não podendo o número das prestações mensais exceder 24 e o valor de qualquer delas ser inferior a 1 unidade de conta no momento da autorização.”
14. Conclui-se, assim, que as dívidas exigíveis em processo de execução fiscal, no que respeita ao IVA – imposto legalmente repercutido a terceiros, são excepcionalmente passíveis de serem pagas prestacionalmente, desde que se demonstre a dificuldade financeira excepcional e previsíveis consequências económicas gravosas.
15. Tendo em conta que o executado juntou elementos de prova do alegado, nomeadamente o Balanço a 31-12-2016 e Balancete actualizado dos quais se retira que os valores das obrigações da empresa, no que diz respeito a Fornecedores e Financiamentos Obtidas ultrapassam e muito o somatório dos valores a receber, nomeadamente quanto a Clientes, desvalorizando-se a rubrica Inventários, por se tratarem de activos circulantes de menor liquidez, considerando-se assim demonstrada, que existe uma notória dificuldade financeira e previsíveis consequências económicas gravosas para o executado, caso o pedido seja indeferido»
(cfr. fls. 169 a 170 verso dos autos)

4. Tal despacho foi levado ao conhecimento do Reclamante, em 22/01/2018 (cfr. fls. 187 dos autos).

5. Em 25/01/2018, o Reclamante deduziu junto do Serviço de Finanças de Matosinhos - 2 a presente reclamação (cfr. fls. 1 a 10 dos autos).

6. Por despacho de 19/02/2018 da Directora de Finanças Adjunta da Direcção de Finanças do Porto, foi mantido o acto reclamado (cfr. fls. 13 dos autos)».

2.2.1 Com interesse, a sentença deu também como provado, embora já não no segmento onde se propôs efectuar o julgamento da matéria de facto, que o Executado não repercutiu a terceiros o IVA que lhe está ser exigido coercivamente na execução fiscal dita em 1, como resulta da afirmação que deixou expressa: «[a] circunstância de o sujeito passivo não ter, na prática, repercutido esse imposto a terceiros, como sucedeu in casu» (cfr. 3.º parágrafo da pág. 11 da sentença, a fls. 236 dos autos).


*

2.2 DE DIREITO

2.2.1 A QUESTÃO A APRECIAR E DECIDIR

No âmbito de uma execução fiscal instaurada para cobrança de dívidas provenientes de liquidações adicionais de IVA, a sociedade executada veio pedir o pagamento em 60 prestações mensais, invocando, para além do mais, a impossibilidade de pagamento de uma só vez, a dificuldade financeira excepcional e as previsíveis consequências económicas gravosas do pagamento noutros moldes, tudo mediante a invocação dos termos conjugados dos n.ºs 1, 4 e 5 do art. 196.º do CPPT.
O órgão da execução fiscal deferiu o pedido, mas apenas no máximo de 24 prestações, por entender que, verificando-se embora os requisitos legais para o pagamento prestacional, resulta dos n.ºs 2 e 3, alínea b) do art. 196.º do CPPT que o número máximo permitido de prestações não pode exceder aquele. Isto porque estamos perante uma dívida por “imposto legalmente repercutido a terceiros”.
Discordando dessa decisão, por considerar que o pedido devia ter sido deferido nos termos peticionados, ou seja em 60 prestações, o Executado reclamou da decisão do órgão da execução fiscal para o Juiz do Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto, ao abrigo do disposto no art. 276.º e segs. do CPPT. Considerou o Executado, em síntese, que a restrição do n.º 2 do art. 196.º apenas logra aplicação nos casos em que o imposto foi efectivamente repercutido e já não naqueles em que o «imposto o deveria ser, mas não foi, legalmente repercutido a terceiros», pois estes últimos casos não são subsumíveis à previsão do n.º 2 do referido art. 196.º, motivo por que nada obsta a que lhes seja aplicado o disposto no n.º 5 ainda do mesmo artigo (pagamento em prestações até 5 anos).
A reclamação subiu de imediato a juízo e foi proferida sentença pelo Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto, que indeferiu a reclamação.
No que ora nos interessa, entendeu a Juíza daquele Tribunal que a dívida se refere a um imposto legalmente repercutido a terceiros, sendo que «[a] circunstância de o sujeito passivo não ter, na prática, repercutido esse imposto a terceiros, como sucedeu in casu, em nada afecta a qualificação da natureza do mesmo como sendo um imposto com repercussão legal a terceiros». Assim, considerou que ao pedido formulado pelo Executado é aplicável o disposto nos n.ºs 2 e 3, alínea b) do art. 196.º do CPPT, que impede que no pagamento em prestações estas excedam o número de 24. Invocou ainda em abono da sua tese o acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 20 de Dezembro de 2011, proferido no processo n.º 1074/11 (Disponível em
http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/d259b3bb6eb475fc802579810059ef1a.). Mais considerou que o pagamento em prestações, na medida em que constitui uma moratória, só pode ser autorizado nos termos previstos da lei, como prescreve o n.º 3 do art. 85.º do CPPT. Por tudo isso, manteve o acto reclamado, que considerou não enfermar de ilegalidade alguma.
O Reclamante não se conformou com a sentença e dela recorreu para este Supremo Tribunal, sustentando que a sentença não fez a melhor interpretação dos preceitos legais aplicáveis, a qual imporia a aceitação do pagamento em 60 prestações mensais, uma vez que na previsão legal do n.º 2 do art. 196.º do CPPT só cabem os casos em que o imposto foi efectivamente repercutido a terceiros e já não aqueles, como o sub judice, em que, «mesmo existindo o dever de repercutir, o imposto não foi efectivamente repercutido».
Começa o Recorrente por argumentar que a interpretação adoptada na sentença não tem apoio na letra da lei, na medida em que nesta se refere o imposto repercutido e não o imposto repercutível, o que significa «imposto que foi ou tenha sido repercutido», por oposição a «imposto que deva ou devesse ser ou ter sido repercutido», sendo que a utilização do particípio passado do verbo repercutir se refere a «uma acção que já se encontra finalizada».
Mais salienta que não é apenas o elemento literal a apontar nesse sentido, mas também e decisivamente, a ratio legis que, no caso, se prende com o desvalor que a lei tributária associa às condutas que se traduzem na apropriação de prestações tributárias recebidas de terceiros ou retidas; complementarmente, considera que também o elemento sistemático constitui um subsídio interpretativo nesse sentido, na medida em que as normas que prevêem o crime de abuso de confiança fiscal também exigem que as importâncias não entregues ao Estado tenham sido efectivamente retidas ou repercutidas, não se bastando com o dever legal de o terem sido. Em abono da sua tese convoca ANTÓNIO LIMA GUERREIRO (Lei Geral Tributária Anotado, Editora Rei dos Livros, Lisboa, 2000, pág. 202.).
Assim, a questão que cumpre apreciar e decidir é a de saber se a restrição ao pagamento em prestações consagrada no n.º 2 do art. 196.º do CPPT para as dívidas de imposto legalmente repercutido a terceiros, se refere exclusivamente ao imposto que tenha sido efectivamente repercutido de acordo com a lei ou também engloba o imposto que, devendo ter sido repercutido à face da lei, o não foi.

2.2.2 DO PAGAMENTO EM PRESTAÇÕES DO IVA

Por regra, as dívidas tributárias devem ser pagas integralmente e de uma só vez. No entanto, a lei – que não é alheia às dificuldades económicas dos devores e à necessidade de assegurar a efectiva cobrança dos impostos e, assim, a arrecadação da receita em ordem à satisfação das necessidades financeiras do Estado – permite, nalgumas circunstâncias e observado que seja determinado condicionalismo, que o pagamento seja feito em prestações. Esta forma de pagamento, porque constitui uma moratória, só é admissível nos termos da lei, pois o princípio da indisponibilidade dos créditos tributários, como decorrência dos princípios da legalidade e igualdade tributárias, impede que a AT conceda quaisquer facilidades de pagamento que não estejam expressamente consagradas na lei, como bem salientou a Juíza do Tribunal a quo [cfr. arts. 36.º, n.ºs 2 e 3, da Lei Geral Tributária (LGT) e art. 85.º, n.º 3, do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT) (Sobre a indisponibilidade dos créditos tributários, vide o acórdão da Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo de 15 de Abril de 2015, proferido no processo n.º 331/15, disponível em
http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/8f39892319921bde80257e2a0034dbeb.)].
O pagamento em prestações das dívidas tributárias está previsto no art. 42.º da LGT nos seguintes termos:
«1- O devedor que não possa cumprir integralmente e de uma só vez a dívida tributária pode requerer o pagamento em prestações, nos termos que a lei fixar.
2- O disposto no número anterior não se aplica às dívidas de recursos próprios comunitários e, nos termos da lei, às quantias retidas na fonte ou legalmente repercutidas a terceiros ou ainda quando o pagamento do imposto seja condição da entrega ou transmissão dos bens».
Deste artigo resulta, desde logo e sem mais, a exclusão deste regime de pagamento em prestações relativamente às dívidas de recursos próprios comunitários (Os quais são regulados pelas normas de direito da União Europeia que, de acordo com o art. 8.º da Constituição da República Portuguesa, com o art. 1.º da LGT e com o art. 1.º do CPPT, prevalecem sobre o direito interno.); resulta também, que «nos termos da lei» – ou seja, nos termos da lei que regular o pagamento em prestações desse tipo de dívidas –, não será possível o pagamento das quantias que provenham de retenção na fonte, das quantias «legalmente repercutidas a terceiros» e daquelas que resultem de imposto que houvesse de ser pago como «condição da entrega ou transmissão dos bens».
Cumpre agora considerar a regulamentação do pagamento em prestações das quantias que respeitam a quantias «legalmente repercutidas a terceiros».
Essa regulamentação, no que respeita ao pagamento em prestações requerido depois de instaurada a execução fiscal, consta do art. 196.º do CPPT que, no que ora nos interessa, dispõe:
«1- As dívidas exigíveis em processo executivo podem ser pagas em prestações mensais e iguais, mediante requerimento a dirigir, até à marcação da venda, ao órgão da execução fiscal.
2- O disposto no número anterior não é aplicável às dívidas de recursos próprios comunitários e às dívidas resultantes da falta de entrega, dentro dos respectivos prazos legais, de imposto retido na fonte ou legalmente repercutido a terceiros, salvo em caso de falecimento do executado.
3- É excepcionalmente admitida a possibilidade de pagamento em prestações das dívidas referidas no número anterior, sem prejuízo da responsabilidade contra-ordenacional ou criminal que ao caso couber, quando:
a) O pagamento em prestações se inclua em plano de recuperação no âmbito de processo de insolvência ou de processo especial de revitalização, ou em acordo sujeito ao regime extrajudicial de recuperação de empresas em execução ou em negociação, e decorra do plano ou do acordo, consoante o caso, a imprescindibilidade da medida, podendo neste caso haver lugar a dispensa da obrigação de substituição dos administradores ou gerentes, se tal for tido como adequado pela entidade competente para autorizar o plano; ou
b) Se demonstre a dificuldade financeira excepcional e previsíveis consequências económicas gravosas, não podendo o número das prestações mensais exceder 24 e o valor de qualquer delas ser inferior a 1 unidade de conta no momento da autorização.
4- O pagamento em prestações pode ser autorizado desde que se verifique que o executado, pela sua situação económica, não pode solver a dívida de uma só vez, não devendo o número das prestações em caso algum exceder 36 e o valor de qualquer delas ser inferior a 1 unidade de conta no momento da autorização.
5- Nos casos em que se demonstre notória dificuldade financeira e previsíveis consequências económicas para os devedores, poderá ser alargado o número de prestações mensais até 5 anos, se a dívida exequenda exceder 500 unidades de conta no momento da autorização, não podendo então nenhuma delas ser inferior a 10 unidades da conta.
[…]
8- A importância a dividir em prestações não compreende os juros de mora, que continuam a vencer-se em relação à dívida exequenda incluída em cada prestação e até integral pagamento, os quais serão incluídos na guia passada pelo funcionário para pagamento conjuntamente com a prestação.
[…]».
Deste regime resulta que para as dívidas provenientes de imposto “legalmente repercutido a terceiros” a regra é a da não possibilidade de pagamento em prestações, como resulta dos n.ºs 1 e 2 do citado artigo. No entanto, nos termos do n.º 3 do mesmo artigo, a lei consagra excepções a essa regra, sendo uma delas a prevista na alínea b) daquele n.º 3: quando «[s]e demonstre a dificuldade financeira excepcional e previsíveis consequências económicas gravosas, não podendo o número das prestações mensais exceder 24 e o valor de qualquer delas ser inferior a 1 unidade de conta no momento da autorização».
O Recorrente sustenta que a situação sub judice não é subsumível à previsão do n.º 2 do art. 196.º do CPPT, motivo por que o pedido de pagamento em prestações deve ser apreciado e decidido à luz das regras gerais e não à luz do regime especial do n.º 3 do mesmo artigo.
Como vimos, a controvérsia reside na subsunção da dívida ao conceito de imposto “legalmente repercutido a terceiros”. Defende o Recorrente que nessa previsão legal cabe apenas o imposto que, tendo a sua repercussão legalmente imposta (O advérbio legalmente utilizado imediatamente antes de repercutido terá como finalidade restringir a previsão da norma à repercussão legal, ou juridicamente prevista, por oposição à repercussão económica ou de facto.), tenha sido efectivamente repercutido e não o que, mesmo devendo sê-lo, não o foi. Quid iuris?
Antes do mais, impõem-se alguns breves considerandos sobre a repercussão tributária, «fenómeno que consiste na transferência do peso económico de um tributo para pessoa diferente do sujeito passivo e com quem este está em relação, através na sua integração no preço de um qualquer bem» (SÉRGIO VASQUES, Manual de Direito Fiscal, Almedina, 2.ª edição, pág. 399.), característico dos impostos indirectos e que é usado como critério de distinção relativamente aos impostos directos. Assim, os impostos sobre o consumo «tomam como sujeito passivo pessoa distinta do titular da riqueza que se quer ver onerada, só se atingindo este por meio da repercussão. O IVA dir-se-á assim um imposto indirecto na medida em que, sendo por regra exigido do vendedor, o legislador pressupõe que através da repercussão sobre os preços ele acabe “indirectamente” por ser suportado pelo comprador, cuja riqueza se pretende afinal onerar» ( SÉRGIO VASQUES, idem, pág. 217.). O facto de a lei pôr a cargo de outrem, que não aquele que pretende tributar, a obrigação da entrega do imposto prende-se, essencialmente, com razões de praticabilidade (Como diz SÉRGIO VASQUES, idem, pág. 400, «seria impraticável exigir o imposto de um número incontável de compradores, muitos deles sem preparação sequer para o efeito, mostrando-se indispensável concentrar a gestão do imposto nos vendedores, em número mais limitado e com melhor organização». ), mas também de anestesia fiscal.
Em sede de IVA a repercussão está consagrada no art. 37.º do respectivo Código, que dispõe no seu n.º 1: «A importância do imposto liquidado deve ser adicionada ao valor da factura, para efeitos da sua exigência aos adquirentes dos bens ou destinatários dos serviços».
Esta exigência legal de repercussão do IVA tem duas finalidades: uma, a de garantir que o imposto incida exclusivamente sobre o valor acrescentado em cada fase do circuito económico até à oneração do consumidor final e, assim, obviar a que se produza o efeito cumulativo ou “de cascata” típico dos impostos plurifásicos; outra, que seja o consumidor (que é o titular da riqueza que se visa tributar) a suportar o encargo tributário (Cfr. SÉRGIO VASQUES, idem, págs. 401/402.).
Tendo isto presente, não podemos deixar de observar que, como bem salientou o Recorrente, a letra da lei aponta no sentido de que só as dívidas resultantes da falta de entrega, dentro dos respectivos prazos legais, do imposto efectivamente repercutido impede que as mesmas sejam sujeitas ao regime geral do pagamento em prestações dos créditos tributários.
Na verdade, caso a intenção do legislador fosse a de referir-se ao imposto susceptível de repercussão legal, por certo teria optado uma expressão verbal que melhor traduzisse essa intenção [cfr. art. 9.º, n.º 3, do Código Civil (CC)]: v.g., «o imposto legalmente repercutível», «o imposto cuja repercussão esteja legalmente prevista» ou outra de sentido equivalente.
Por outro lado, como pertinentemente observa o Recorrente, a utilização do particípio passado do verbo repercutir refere-se a «uma acção que já se encontra finalizada»; parece-nos inclusive que a noção de conclusão da acção verbal comportada pelo particípio passado se refere a um concreto acto, afastando a possibilidade de se referir à repercussão legal em abstracto.
É certo que a letra da lei, constituindo o ponto de partida da tarefa hermenêutica e limite para extrair o sentido da norma (Com a função de «eliminar aqueles sentidos que não tenha qualquer apoio, ou pelo menos uma qualquer “correspondência” ou ressonância nas palavras da lei» (BAPTISTA MACHADO, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, Almedina, 1983, págs. 182 e 189).), não é o elemento decisivo, nem sequer o mais importante, papel que está reservado à unidade do sistema, nos termos do n.º 2 do art. 9.º do CC. Na verdade, na interpretação da lei, para além do referido elemento gramatical, há ainda que atender ao elemento lógico, exigindo este, designadamente, que se considere o fim visado pelo legislador ao elaborar a norma (elemento teleológico) e que se atente nas demais disposições que regulam o pagamento em prestações, designadamente as por dívidas de imposto retido, a fim de perscrutar a sua natureza e o seu âmbito de relevância, bem como haverá também que atender ao lugar que aí ocupa a norma interpretanda (elemento sistemático), sendo que apenas da conjugação de todos esses elementos interpretativos surgirá o verdadeiro sentido daquela norma (Cfr. BAPTISTA MACHADO, Idem, págs. 175 a 192.).
Interroguemo-nos, pois, sobre a teleologia da norma: porque impede o n.º 2 do art. 196.º o pagamento em prestações sob o regime geral do imposto legalmente repercutido?
A nosso ver – e buscando apoio também no impedimento paralelo que existe relativamente ao imposto retido –, o que se pretende impedir é que o devedor do imposto que já o recebeu de terceiro, seja porque o repercutiu seja porque o reteve, se aproprie do respectivo montante, não o entregando de uma só vez e integralmente nos cofres do Estado, conduta que tem associado um desvalor que a lei pune como crime ou contra-ordenação [cfr. arts. 105.º e 114.º do Regime Geral das Infracções Tributárias (RGIT)] ( Neste sentido, LIMA GUERREIRO, Lei Geral Tributária Anotado, Editora Rei dos Livros, Lisboa, 2000, pág. 202.).
A não ser assim, i.e., caso a lei autorizasse o pagamento em prestações do imposto repercutido a terceiros (ou do imposto retido) ao abrigo do regime geral de pagamento em prestações, estaria a permitir-se ao devedor do imposto financiar-se à custa do repercutido (contribuinte de facto) e da AT, com as consequentes distorções na mecânica do IVA e na concorrência entre as empresas. Por outro lado, admitir-se-ia que quem recebeu de terceiros a totalidade do imposto, com a obrigação de o entregar integralmente e de uma só vez, o entregasse faseadamente em igualdade de circunstâncias com quem tivesse de suportar ele mesmo o encargo com o imposto, numa solução que o legislador não pode ter querido.
Vista a letra da lei e a sua teleologia, concluímos, com o Recorrente, que a lei apenas veda o recurso ao regime geral do pagamento das dívidas em prestações quando o imposto em cobrança coerciva tenha sido efectivamente repercutido a terceiro pelo devedor, nada obstando a que quando o não tenha sido, apesar da previsão legal o impor, o devedor usufrua daquele regime.
A sentença, que deu como assente que o IVA que está a ser cobrado coercivamente ao ora Recorrente não foi por este repercutido a terceiros – e, nessa parte, transitou em julgado – desvalorizou o facto de esse imposto não ter sido efectivamente repercutido e, nessa medida, não fez a melhor interpretação e aplicação da lei aplicável. Note-se que o acórdão deste Supremo Tribunal que invocou não dá apoio à desvalorização desse facto, pois no caso aí sub judice não se questionava a efectiva repercussão do IVA.
Assim, nada obsta a que o Executado, ora Recorrente, usufrua do regime geral de pagamento em prestações. A sentença recorrida, que entendeu que o despacho do órgão da execução fiscal que recusou o pagamento da dívida exequenda ao abrigo desse regime não enferma de ilegalidade, não pode manter-se.

2.2.3 CONCLUSÕES

Por tudo quanto ficou dito, o recurso merece provimento e, preparando a decisão, formulamos as seguintes conclusões:
I - A referência a “imposto legalmente repercutido a terceiros”, constante do n.º 2 do art. 42.º da LGT e do n.º 2 do art. 196.º do CPPT, inclui o IVA (cfr. art. 37.º do respectivo Código), mas apenas nos casos em que o imposto em dívida foi efectivamente repercutido a terceiros (e já não naqueles em que o imposto liquidado e não entregue não foi repercutido).
II - A exclusão da possibilidade geral do pagamento em prestações de imposto repercutido a terceiros (mantém-se uma possibilidade extraordinária de pagamento em prestações, mas em condições mais restritivas, nos termos do n.º 3 do art. 196.º do CPPT) resulta do juízo de desvalor associado nas leis tributárias a esse tipo de condutas (que podem mesmo ser qualificadas como crime ou contra-ordenação, de acordo com os arts. 105.º e 114.º do RGIT), em que o devedor do imposto, pese embora tenha tido em seu poder o montante do mesmo, que foi suportado por terceiros, o não entregou integral e de uma só vez nos cofres do Estado, como se lhe impunha.


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3. DECISÃO

Em face do exposto, os juízes deste Supremo Tribunal Administrativo, em conferência, acordam em conceder provimento ao recurso, revogar a sentença e, julgando procedente a reclamação judicial, anular o despacho reclamado.

Custas pela Recorrida, que não paga taxa de justiça neste Supremo Tribunal porque não contra-alegou o recurso.

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Lisboa, 4 de Julho de 2018. – Francisco Rothes (relator) – Aragão Seia – Ascensão Lopes.