Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:01485/14
Data do Acordão:06/30/2016
Tribunal:1 SECÇÃO
Relator:MARIA DO CÉU NEVES
Descritores:ACIDENTE DE VIAÇÃO
MORTE
DIREITO DE INDEMNIZAÇÃO
ALIMENTOS
DANO NÃO PATRIMONIAL
CÁLCULO DE INDEMNIZAÇÃO
NASCITURO
Sumário:I - O legislador, ao consagrar no artigo 496º do CC, que por morte da vítima, o direito à indemnização por danos não patrimoniais cabe (…) aos filhos, não distinguiu consoante se trate de filhos já nascidos à data da morte do pai, ou filhos já concebidos, mas só nascidos em data posterior.
II – E não o fez de forma consciente. É que, por um lado, o legislador não podia ignorar que os danos morais decorrentes da morte do pai são precisamente iguais para o filho que nasceu um dia antes desse óbito ou para o que nasceu um dia depois dele, pelo que desta igualdade não deveriam brotar efeitos jurídicos distintos. Por outro lado, é sempre enquanto filho, já nascido e vivente e, não enquanto nascituro, que o filho apenas concebido à data da morte do pai, reclama uma indemnização, «jure próprio», ao lesante.
III – Tudo indicia, pois, que o vocábulo «filhos», abranja quer os nascidos, quer os filhos apenas concebidos à morte do pai – que depois nascem e vivem [artº 66º, nº 1 do CC], sem o que não pediriam, como «filhos» qualquer indemnização.
IV – O nº 2 do artigo 496º do CC, admitindo-se que alude aos «filhos» com tal amplitude, [em que até a palavra «filhos» é tomada no sentido comum] passa a consagrar – embora impliciter - mais um caso em que um direito (aqui, indemnizatório) provisoriamente se radica num nascituro [nº 2 do artigo 66º do CC]; direito que – como é habitual e típico nestes casos – se actualizará, quando, após o nascimento completo e com vida, surgir plenamente a qualidade de filho da vítima.
V – É esta a representação que melhor se ajusta – e a mais fiel – aos cânones interpretativo, assegurando a igualdade e a justiça, sem ferir a letra da lei, uma vez que, na verdade, o nº 2 do artº 496º do CC não distingue nunca se os filhos ali referidos são apenas os existentes à data da morte do pai. Deste modo, entendendo a norma como incluindo todos os «filhos» da vítima, quer os que já tenham nascido à data da morte daquele ou ainda não, mas já concebidos, caminha-se e encontra-se uma solução equilibrada, que não fere a lei e que vai ao encontro igualmente do senso comum; interpretar-se de outra forma, seria negar aos filhos nascidos após a morte do pai, a qualidade de filhos a quem já se encontrava concedido e que vem efectivamente a ser filho da vítima, de pleno direito.
VI - Nesta interpretação, é para nós inequívoco que um nascituro (strito sensu) adquire retroactivamente todos os direitos que pertençam ou sejam reconhecidos ao filho biológico, a partir do seu nascimento completo e com vida.
Nº Convencional:JSTA00069787
Nº do Documento:SA12016063001485
Data de Entrada:12/05/2014
Recorrente:A...... (REP. POR B......) E C....., S.A.
Recorrido 1:OS MESMOS
Votação:UNANIMIDADE
Meio Processual:REC JURISDICIONAL.
Objecto:SENT TAF PORTO.
Decisão:NEGA PROVIMENTO.
Área Temática 1:DIR ADM GER.
Área Temática 2:DIR ADM CONT - RESPONSABILIDADE EXTRA.
Legislação Nacional:CRP ART22 ART24 ART25 ART13.
DL 48051 ART1 ART4 ART6.
CCIV66 ART483 ART563 ART2031 ART496 ART66 ART564 ART2009 ART1878.
CPC13 ART412 ART66 ART1905 ART2003.
DUDH ART6.
CPC ART66.
L 122/2015.
Jurisprudência Nacional:AC STA PROC0991/11 DE 2013/04/04.; AC STJ PROC436/07.6BVRL.P1S1 DE 2014/04/03.; AC STJ PROC08A2124 DE 2009/02/17.
Referência a Doutrina:ANTUNES VARELA - DAS OBRIGAÇÕES EM GERAL VOLI 10ED PAG578.
CASTRO MENDES - TEORIA GERAL DO DIREITO CIVIL VOLI.
OLIVEIRA ASCENSÃO TEORIA GERAL DO DIREITO CIVIL VOLI.
LEITE DE CAMPOS - LIÇÕES DE DIREITO DA PERSONALIDADE 2ED PAG43.
CARLOS ALBERTO MOTA PINTO - TEORIA GERAL DO DIREITO CIVIL 4ED PAG193-194 PAG201.
MANUEL ANDRADE - TEORIA GERAL DA RELAÇÃO JURÍDICA TI PAG29-30.
LUÍS CARVALHO FERNANDES - TEORIA GERAL DO DIREITO CIVIL TI PAG206.
Aditamento:
Texto Integral: Acordam na Secção do Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo
1. RELATÓRIO

B……… e A…….., menor de idade e representado por sua mãe 1ª autora, intentaram no TAF do Porto, contra o então ICERR, e depois C………, S.A., acção comum, com processo ordinário, para efectivação de responsabilidade civil extra contratual, pedindo a condenação deste no pagamento de uma indemnização, pela morte do seu companheiro e pai do seu filho menor, indemnização esta, fraccionada da seguinte forma:

-17.500.00€ a título de danos não patrimoniais pelo desgosto e angústia da vítima D……... que se apercebeu que ia morrer e que abandonaria para sempre o seu filho;

-50.000.00€ a título de danos não patrimoniais pelo dano morte;

- 25.000.00€ e 37.500,00€ respectivamente para a 1ª e 2º autores, a título de dano não patrimonial pelo facto de terem ficado privados da companhia da vítima, como companheiro e pai, respectivamente, ficando o 2º autor privado de o conhecer e dos seus carinhos, crescendo sem o seu amparo.

-256.980,67€ a título de danos referentes à contribuição por parte da vítima ao longo dos anos, à 1ª autora, para sustento desta, que nunca teve emprego, com quem projectava casar, atendendo a uma esperança de vida de mais de 46 anos de idade

-94.272,00€ a título de danos referentes à prestação de alimentos ao 2º autor, até aos 27 anos de idade deste.

Em suma:

I.IURE HERIDITÁRIO:

A……….. [17.500,00€+50.000,00€=67.500,00€]

II JURE PRÓPRIO

B…………. [25.000,00€+174.579,26€=199.579,26€]

A…………. [37.500,00+94.272,80€=131.772.80€]

Num total de 398.852,06€.

Os autos seguiram os seus termos e o TAF do Porto veio a proferir a sentença recorrida que [na parte que interessa]:

(i) absolveu a Ré C………. de todos os pedidos realizados pela autora B……..;

(ii) condenou a Ré C……….. a indemnizar o 2º autor, A……., pela privação do direito à vida (dano morte) no montante de 50.000,00€, quantia acrescida de juros de mora, contados desde a citação, à taxa legal que sucessivamente esteve em vigor.

(iii) improcedeu o demais peticionado.

Inconformados com esta decisão, interpuseram os autores e a ré, o respectivo recurso jurisdicional.

O autor/recorrente A…….., representado por sua mãe B………., finalizou o seu recurso, com as seguintes conclusões:

«1ª. No presente recurso não está em causa a culpa na produção do acidente de trânsito que está na origem da presente acção.

2ª. De acordo com os factos provados, após a realização da audiência de discussão e julgamento, a culpa na produção do acidente é exclusivamente imputável à Ré/recorrida E.P. – Estradas de Portugal, E.P.E.

3ª. O presente recurso tem, por essa razão, a ver com os montantes indemnizatórios/compensatórios reclamados e não fixados pela sentença recorrida.

4ª. Aceita-se a quantia de 50.000,00€ fixada pela sentença recorrida a título de indemnização pela perda do direito à vida de D………..

5ª. Bem como se aceita que os juros contados sobre essa quantia sejam incidentes, à taxa legal vigente em cada momento, desde a data da citação até efectivo pagamento.

6ª. A morte não é um fenómeno instantâneo.

7ª. Entre o facto ilícito lesivo e o exacto momento da morte, medeia sempre um espaço de tempo mais ou menos longo.

8º. Durante o qual, a vítima sente dores e tem plena consciência que vai morrer.

9ª. A morte, numa sociedade em que prevalecem os valores judaico-cristãos, é o que de mais terrível pode suceder para um ser humano.

10ª. O autor/recorrente peticionou a este título a compensação de 17.500,00€.

11ª. A sentença recorrida não fixou qualquer quantia a este título.

12ª. Deve, pois, ser fixada, a este título, a compensação de 17.500,00€.

13ª. Acrescida de juros de mora, contados à taxa legal desde a data da citação, até efectivo pagamento.

14ª. O nascituro não é uma mera massa orgânica.

15ª. Mas, pelo contrário, é um verdadeiro ser humano.

16ª. Com dignidade de pessoa humana.

17ª. Mesmo na fase intra-uterina, os efeitos da supressão da vida paterna, fazem-se sentir no nascituro – ser humano.

18ª. E, no momento do seu nascimento, completo e com vida, as lesões sofridas pelo nascituro tornam-se lesões do próprio ser humano.

19ª. O autor/recorrente A……….. peticionou a título de compensação pelos danos de natureza não patrimonial por ele sofridos a quantia de 17.500,00€.

20ª. A sentença recorrida não fixou, a este título, qualquer quantia compensatória/indemnizatória.

21ª. Deve, pois, ser fixada a este título a quantia de 17.500,00€.

22ª. Acrescida de juros, contados à taxa legal em cada momento vigente, desde a citação até efectivo pagamento.

23ª. O autor/recorrente peticionou, ainda, a indemnização de 94.500,00€ a título de alimentos que lhe eram devidos pelo seu progenitor D………..

24ª. O autor era o único filho da vítima D………...

25ª. O qual, como motorista de veículos automóveis pesados, auferia o ordenado de 798,00€/mês.

26ª. O autor ia continuar a carecer de alimentos, que o seu pai lhe ia prestar e que incidia sobre o dever legal de lhos prestar, até aos vinte e sete anos de idade.

27ª. À razão de 250.00 por mês.

28ª. É, assim, devida a quantia a este título reclamada de 94.500,00€ - prestação alimentar.

29ª. Sobre essa quantia, são devidos juros de mora, contados à taxa legal em cada momento vigente, desde a data da citação, até efectivo pagamento.

30º. Decidindo de forma diversa, fez a sentença recorrida má aplicação do direito à matéria de facto provada.

31ª. E violou, além de outras, as normas dos artigos 66º, nº 1, 495º, nº 3, 496º, nº 1, 562º, 564º, 805º, 2009º, al. c), 2031º e 2133º do Código Civil e artigo 24º, nº 1 da Constituição da República Portuguesa».


*

A E.P. – Estradas de Portugal, E.P.E., contra alegou no sentido da improcedência do recurso, formulando a final as seguintes conclusões:

1. «Todas as considerações tecidas nas presentes contra-alegações são independentes e não prejudicam o conteúdo do recurso (fls…) que a R. E.P. – Estradas de Portugal, E.P.E. interpôs da sentença (ora recorrida também pelo A.) emitida pelo tribunal a quo.
2. Um dos motivos que levaram o recorrente a contestar a sentença decretada pelo tribunal a quo foi a circunstância de esta não lhe ter concedido qualquer quantia indemnizatória a título de danos de natureza não patrimonial sofridos pelo seu pai (D……….) no hiato temporal que decorreu desde o acidente até ao momento da sua morte.
3. Como fundamento da sua discordância face ao teor da sentença ora recorrida no que a este ponto atine, alega – em termos sintéticos - o ora apelante que “(…) é facto notório que a morte não é um fenómeno instantâneo”, e que “[e]ntre o momento da lesão e o facto morte, medeia sempre um espaço de tempo mais ou menos longo, conforme as circunstâncias”.
4. Salvo o devido respeito, tais considerações além de imprecisas, acabam por não ter qualquer fundamento jurídico ou factual.
5. Segundo a aflorada lição de Piero Calamandrei um facto é notório quando é do conhecimento comum de um grupo de pessoas pertencentes a uma determinada esfera social. A doutrina processualista tem classificado os factos notórios em duas espécies: Na primeira inserem-se os acontecimentos de que a generalidade das pessoas tomou conhecimento pela sua magnitude e escala (v.g. uma inundação, uma revolução, etc.), enquanto na segunda se inserem factos que adquiriram o carácter de “notórios” por via indireta, ou seja, através de raciocínios desenvolvidos a partir de factos do conhecimento comum.
6. Podemos assim afirmar que o conhecimento de determinado facto notório resulta de um processo de apreensão (do referido facto) operado pelo julgador, na posição de cidadão comum, regularmente informado, sem necessitar de recorrer a operações lógicas e cognitivas, nem a juízos presuntivos.
7. Ora, basta olharmos para as características de consolidação de determinado facto como notório (acabadas de enunciar) para com toda a segurança podermos afirmar que - além de não ser do conhecimento geral da população - nenhum cidadão comum, regularmente informado, pode concluir, sem mais, que toda e qualquer morte adveniente de um acidente de viação não pode ter carácter instantâneo.
8. Mais ainda, no seguimento da ideia que acabamos de sublinhar e concretizando o que até aqui viemos referindo, não é também do conhecimento geral da população que a morte do Sr. D…………. não teve carácter instantâneo.
9. Ficando assim claro que a asserção que o Recorrente classificou como sendo um “facto notório” não configura mais do que um mero juízo presuntivo.
10. Ademais, a matéria que a recorrente classificou como “notória” foi mesmo considerada como não provada pelo Meritíssimo Juiz a quo na resposta aos quesitos 21º a 27º da Base Instrutória (cfr. fls…).
11. De modo que não tendo o recorrente conseguido efetuar a prova dos factos constitutivos do direito em que se arroga (cfr. art. 342º CC), nem beneficiando – por tudo quanto já expusemos - do regime estatuído no 412º CPC para os factos notórios, deve manter-se inalterada a este passo a sentença do tribunal a quo.
12. A. A………… peticionou (também) à R. E.P., no âmbito da presente lide, uma indemnização:
• Pelos danos morais por si próprio sofridos, no valor de 37.500,00 € (trinta e sete mil e quinhentos euros).
• Pela privação da prestação alimentar em consequência da morte de seu pai (D………..), no valor de 94.272,80€ (noventa e quatro mil duzentos e setenta e dois euros e oitenta cêntimos).
13. Não obstante, o tribunal a quo entendeu em não atender a nenhum dos pedidos elencados por não haver qualquer fundamento legal que lhes permitisse dar provimento, em virtude do ora recorrente ser nascituro à data da morte do seu pai.
14. Cumpre referir, em primeiro lugar, que o art. 66º do nosso Código Civil nos diz que – limitando-se a reproduzir o art. 1º do Anteprojeto Manuel de Andrade - a personalidade jurídica se adquire no momento do nascimento completo e com vida (nº 1, dependendo os direitos que a lei reconhece aos nascituros do seu nascimento (nº 2).
15. O teor do referido preceito não levanta quaisquer dúvidas de que o nascituro (concebido) é afastado, pelo direito constituído, para efeitos de reconhecimento de personalidade jurídica, parecendo apenas resultar da fórmula do artigo 66º nº 2 do Código Civil e da sua conjugação com o disposto nos artigos 952º e 2033º do mesmo diploma a possibilidade de serem feitas doações aos nascituros, bem como o reconhecimento aos mesmos de capacidade sucessória.
16. Ademais, o próprio facto de a lei estatuir que a atribuição dos direitos que são reconhecidos aos nascituros depende do seu nascimento completo e com vida sublinha a excecionalidade daquelas previsões que conferem a referida proteção patrimonial aos nascituros.
17. De tal modo, o nascituro não pode ser titular de direitos, posto que tal titularidade decorre da personalidade jurídica, e esta só se adquire com o nascimento completo e com vida nos termos do nº 1 do art. 66º do nosso C.C..
18. Sendo que por conseguinte, a responsabilidade civil decorrente da violação ilícita de um direito de outrem pressuporá uma personalidade contemporânea da lesão, pelo que não havendo ainda terceiro no momento da prática do facto ilícito, nenhum dever de indemnizar se formou, não sendo o eventual e posterior nascimento da pessoa que pode fazer radicar na mesma um crédito indemnizatório e constituir o infrator no dever de satisfazer.
19. Não obstante, e por mera cautela académica, cumpre-nos também analisar a posição dos autores que, contrariando a clareza subjacente ao referido inciso legal (art. 66º CC), admitem que o nascituro é titular de personalidade jurídica desde a sua conceção.
20. É inegável que a vida humana tem início com a conceção, e que o nascituro, desde esse momento, se desenvolve de progressiva e ininterruptamente.
21. Não obstante, e salvo devido respeito, ao contrário do que é defendido no Acórdão do STJ de 3 de Abril de 2014 - já junto aos presentes autos (fls…) -, cremos que o nascimento é também um acontecimento de importância maior no que diz respeito ao processo de desenvolvimento do ser humano.
22. É a partir do momento que o ser humano abandona o útero da sua mãe que fica sujeito à influência do meio que o rodeia, dando então início à dimensão relacional da sua existência.
23. Desde esse instante, o nascituro perde o contacto e a proteção que o corpo da sua mãe lhe forneceu até então, passando o Direito a conceder-lhe, por esse motivo, a integral tutela do seu direito geral de personalidade.
24. Não obstante, o Direito interessa-se pelo nascituro desde o momento da sua conceção. Simplesmente, até ao momento do seu nascimento, a sua tutela é efetuada por via reflexa através da integral tutela do Direito Geral de Personalidade da sua mãe e de algumas disposições normativas que tutelam o bem vida humana em formação, residindo nesta circunstância, a nosso ver, a justificação da diferenciação de tratamento entre o “dia antes” e o “dia depois” do nascimento de determinada criança.
25. A admitir-se que “o nascituro é já uma pessoa jurídica”, como justificar o subordinar do gozo dos direitos do nascituro a uma condição legal resolutiva – o seu nascimento?
26. No fundo, isto seria dizer que embora a titularidade de personalidade jurídica por parte do nascituro seja algo de incondicional e ilimitável, esta está sujeita a um estatuto envolto em provisoriedade.
27. Atento o exposto, e salvo devido respeito, a referida posição doutrinal – bem como outras que acabam por ir na sua senda – belisca assim a unidade do sistema jurídico, de tal modo que face à justificação que apresentámos supra, o regime estatuído no art. 66.º não deve ser alvo de qualquer tipo de interpretação que não seja de natureza declarativa.
28. Não se pode atribuir ao legislador aquilo que ele não quis e expressamente afastou (cfr. art. 9º CC) de modo que caso se deseje ver consagrada a tese da personalidade jurídica pré-natal, esta terá que ser feita através de uma revisão legislativa e de uma revisitação do conceito de pessoa.
29. Neste conspecto, capacidade de gozo de direitos do nascituro compreende apenas os direitos que a lei expressamente lhe atribui.
30. Assim sendo, e uma vez que a tese da personalidade jurídica pré-natal apresenta inúmeros problemas sistemáticos, deve considerar-se que a plena capacidade de gozo – e portanto, à luz da legislação vigente, a própria personalidade jurídica – só se adquire com o nascimento, de forma que a sentença ora recorrida decidiu bem em não atribuir qualquer tipo de indemnização ao ora A. A………..
31. Também por mera cautela académica, cabe salientar que mesmo houvesse algum fundamento legal que permitisse conceder os valores peticionados pelo ora Recorrente, estes pecariam por excessivos (37.500,00€ a título de danos não patrimoniais por si sofridos e 94.272,80€ a título de alimentos a exigir à herança do falecido).
32. O montante exigido a título de danos não patrimoniais por si sofridos – em consequência da morte do seu pai no sinistro em causa nos presentes autos - é circunstancialmente exagerado, não tendo qualquer critério a nível jurisprudencial, sendo que o montante máximo que alguma vez foi concedido a este título fixou-se em 20.000,00€ e teve como suporte determinada matéria de facto que não foi dada como provada nos autos em apreço.
33. A indemnização peticionada pelo A. a título de alimentos é completamente exorbitante atenta a circunstancialidade fáctica em apreço nos presentes autos e a inverossimilidade dos critérios utilizados para se chegar ao valor apurado - quer o número de anos que se estimou que o ora apelante A………. ia depender financeiramente do seu pai (27) , quer o montante mensal que se presume que o falecido ia despender com o seu filho até essa data (250,00€) afiguram-se manifestamente exagerados.
34. Por conseguinte, a ser concedida alguma compensação ao ora recorrente a título de danos patrimoniais por si sofridos ou a título de alimentos em virtude da morte do seu pai (D…………), devem os montantes peticionados ser substancialmente reduzidos».

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Por sua vez, a ré/recorrente E.P. - Estradas de Portugal E.P.E. finalizou o seu recurso, com as seguintes conclusões:

1. «O presente recurso vem interposto da sentença proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto, que considerou parcialmente procedente a pretensão ressarcitória fundada em responsabilidade civil extracontratual apresentada pelos AA. (ora Recorridos) contra a R. Estradas de Portugal, E.P.E. (ora recorrente).
2. Bem como da respetiva decisão sobre a matéria de facto dada como provada nos presentes autos.
3. Nas respostas aos quesitos 10º e 11º da base instrutória, o Meritíssimo Juiz a quo deu como provado que a tampa de saneamento que existia no local do sinistro já tinha, outrora, causado outros acidentes de trânsito (resposta ao quesito 10º (fls…)), sendo que de um dos referidos acidentes resultaram ferimentos graves numa pessoa (resposta ao quesito 11º (fls…)).
4. Acontece que não deveria ter sido considerado provado os quesito 10º e consequentemente o 11º, uma vez que os elementos que fundaram a formação da convicção pessoal do julgador não oferecem, à luz das máximas de experiência - e dos depoimentos das testemunhas E………. e F………. -, a segurança necessária para se conseguir imputar os referidos acidentes única e exclusivamente à famigerada tampa de saneamento existente no local onde ocorreu o sinistro.
5. Foram pois desconsiderados elementos – principalmente os fatores excesso de velocidade, distração e uma eventual não coincidência entre o local dos sinistros - que, ressaltando indiretamente dos depoimentos das testemunhas em causa, acabaram por ser no mínimo potenciadores (se não mesmo as verdadeiras e únicas causas) dos acidentes que se deram (atenta a formulação do quesito 10º) como imputáveis sem mais à referida tampa de saneamento.
6. Em conformidade com o expendido, os quesitos 10º e 11º da base instrutória devem ser considerados como não provados pelo tribunal ad quem e, consequentemente, eliminados os pontos 28 e 29 da decisão constante da sentença do tribunal a quo sobre a matéria de facto dada como provada.
7. O Meritíssimo Juiz a quo deu também com provado que ao chegar ao quilómetro nº 24,900, no lugar de Barrosas, o veículo QJ embateu com a roda da frente, do lado direito, contra o conjunto composto pela tampa de visita e sua estrutura metálica – situada a uma altura de cerca de cinco centímetros, em relação ao pavimento asfáltico da faixa de rodagem (cfr. pontos 25 e 34 da decisão sobre a matéria de facto constante na sentença ora recorrida (fls…) e quesitos 7º e 18º da Base Instrutória (fls…)).
8. Cumpre-nos, desde logo, salientar que de uma breve leitura da matéria de facto dada como provada se infere imediatamente uma ligeira contradição entre o provado em resposta ao quesito 7º e a provado em resposta ao quesito 18º (cfr. pontos 25 e 34 da matéria da decisão sobre a matéria de facto constante na sentença ora recorrida (fls…)).
9. É que se por um lado na resposta dada ao quesito 7º o tribunal a quo considerou que a tampa de saneamento em causa tinha uma altura de cerca de 5 cms, já na resposta ao quesito 18º, de forma algo diversa (e até contraditória), foi mais além e considerou que a tampa tinha uma altura superior a 5 cms.
10. Não obstante, torna-se também difícil admitir que a referida tampa teria à data do sinistro uma elevação de 5 ou mais cms.
11. Dado que, se de facto a tampa tivesse a referida altura naquele local, teriam sido inúmeros os estragos provocados por ela - nomeadamente rasgos de pneus, jantes amolgadas, etc. – e, consequentemente, segundo máximas de experiência, numerosas as queixas feitas à R.
12. Como pudemos comprovar pelo depoimento do Sr. G………. (depoimento gravado em suporte magnético, com início às 2h:44m de gravação no referido suporte de áudio, tendo o mesmo sido prestado na sessão de julgamento de 6 de Janeiro de 2014), o único problema na zona que foi comunicado à E.P. referia-se a uma situação diferente (o facto de haver carros a fazer uma curva pela berma da estrada, em virtude de excesso de trânsito) e em local diverso.
13. Por conseguinte, considera-se que a resposta ao quesito nº 7 deveria ter ido no sentido de se considerar este como não provado.
14. Ou então, de que a saliência da tampa em relação ao pavimento da estrada a existir não poderia ser superior a 5 cms.
15. De igual modo, é de todo questionável e - salvo o devido respeito – mesmo erróneo o teor da resposta dada pelo tribunal a quo ao quesito 18º.
16. Segundo o que resulta do teor da motivação da resposta dada ao quesito 18.º da Base Instrutória, o Meritíssimo Juiz a quo fundou-se única e exclusivamente no depoimento da testemunha H………., que alegadamente viu o veículo QJ embater com a roda do seu lado direito contra a referida tampa de saneamento, e em consequência, a despistar-se, indo bater contra um peão de pedra, tendo ficado posteriormente enfaixado contra um pinheiro.
17. Não obstante, as declarações da referida testemunha são marcadas por alguma parcialidade e apresentam contradições, atento o circunstancialismo fáctico que alegadamente se verificava naquele sítio aquando da ocorrência do sinistro, o que nos leva convictamente a crer que não presenciou o sinistro que envolveu o veículo QJ.
18. Por conseguinte, o Meritíssimo Juiz a quo não deveria ter considerado provado o quesito 18º, uma vez que os elementos que fundaram a formação da sua convicção pessoal não oferecem, à luz das máximas de experiência e da argumentação supra expendida, a segurança necessária para se imputar acidente do sinistrado à tampa de saneamento existente no local.
19. Em conformidade, o quesito 18º da base instrutória deve ser considerado pelo tribunal ad quem como não provado e, consequentemente, eliminado o ponto 34 da decisão constante da sentença do tribunal a quo sobre a matéria de facto dada como provada.
20. O Meritíssimo Juiz a quo considerou também que não se conseguia provar que o veículo QJ circulava a uma velocidade superior a 50 Km/h (cfr. resposta ao quesito 65.º da base instrutória (fls…)).
21. Não obstante, e salvo o devido respeito, cremos que a sentença ora recorrida também se encontra viciada por um erro de apreciação da matéria de facto no que atine a este ponto.
22. Do teor da motivação de resposta ao quesito 15º da base instrutória – que é aplicável ao quesito 65º por remissão do Meritíssimo Juiz a quo – podemos concluir que o veículo QJ ultrapassou o Sr. H……….. quando este seguia a uma velocidade de 50/55 km/h (ou superior).
23. Se apelarmos às máximas de experiência que devem reger a livre valoração probatória por parte do julgador, podemos concluir que para um veículo ultrapassar outro terá que circular a uma velocidade superior à deste, sob pena de não conseguir realizar a referida manobra.
24. Acontece que se o veículo do Sr. H………. circulava a 55 km/h “ou mais um bocadito” (como o mesmo refere) numa reta que segundo vários depoimentos – inclusive o do próprio Sr. H………. – não teria muito mais que 100m, o veículo QJ teria que ter atingido uma velocidade de no mínimo 65 km/h para realizar a sua ultrapassagem.
25. Ora, atentas as características do referido carro, a velocidade a que o veículo ultrapassado seguia e a distância que o veículo QJ ganhou do carro do Sr. H……….. finda a ultrapassagem, será justo estimar que o veículo QJ demorou entre 15 a 20 segundos a realizar a manobra de ultrapassagem - tempo este em que o carro circulou a uma velocidade estimada de cerca de 65 km/h.
26. Sendo que tendo circulado a essa velocidade nesse espaço de tempo, o carro teria percorrido cerca de 270 metros! De forma que acaba por ser de todo inverosímil, tal como acabamos de demonstrar, que tendo o veículo QJ realizado uma ultrapassagem naquele sítio, ao entrar na curva o carro não estivesse a uma velocidade superior a 50 km/h.
27. Neste conspecto, deve o quesito 65º da Base Instrutória (fls…) ser considerado provado pelo tribunal e, consequentemente, adicionado à matéria de facto dada como provada no caso em apreço.
28. Independentemente das conclusões que acabámos de enunciar quanto à impugnação da matéria de facto que levámos a cabo nas alegações supra expendidas, a própria matéria de facto dada como assente no Acórdão recorrido impunha, a nosso ver, que não fosse imputada à ora recorrente qualquer tipo de responsabilidade, visto não se vislumbrar um nexo de causalidade suficiente (563º CC) entre a conduta da R. C………. e o dano morte sofrido pelo Sr. D………...
29. Mesmo que, por meras razões académicas (mas sem conceder), considerássemos a hipótese de a (alegada) saliência da tampa de saneamento ter sido condição naturalística do dano verificado – i.e., da ocorrência do sinistro.
30. O passar por cima de uma tampa de saneamento - a uma velocidade razoável para o local onde se deu o sinistro, estimada em cerca de 50 km/h – não constitui objetivamente uma causa adequada de um despiste de um carro, e, mais ainda, da morte do seu condutor.
31. Uma vez que não se pode estender a responsabilidade do lesante aos efeitos danosos excecionais, cuja gravidade esteja em enorme desproporção com a gravidade do ilícito praticado.
32. A morte do Sr. D………… consubstanciou, pois, aquilo que podemos apelidar de efeito danoso excecional oriundo da ocorrência do sinistro.
33. De modo que tendo o requisito do nexo de causalidade além de uma função positiva de imputação também uma função negativa de delimitação de danos indemnizáveis.
34. Não pode a morte do Sr. D………… ser imputada à R. C…….., em virtude de não se verificar entre o facto por si praticado e a morte do condutor do veículo QJ um nexo de causalidade suficiente.
35. Não tendo por conseguinte (e salvo melhor entendimento) sido assim interpretado de forma correta pelo tribunal a quo o art. 563º do C.C..»

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Por sua vez o autor/recorrente contra alegou no sentido da improcedência do recurso intentado pela C………..

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Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

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2. FUNDAMENTAÇÃO

2.1. MATÉRIA DE FACTO

A decisão recorrida deu como assentes os seguintes factos, que aqui se reproduzem:

«1. No dia 09 de Março de 1998, ocorreu um acidente de trânsito na Estrada Nacional nº 202, no lugar de Barrosas de Arcozelo, Ponte de Lima.

2. Nesse acidente foi interveniente o veículo automóvel ligeiro de passageiros, de matrícula QJ-…..-…… (de ora em diante QJ) conduzido por D………., residente que foi no ………, freguesia de ……., Ponte de Lima.

3. A faixa de rodagem da EN nº 202, no local do sinistro, apresentava à data da ocorrência do acidente, a largura de 6,70m.

4. O pavimento da faixa de rodagem da EN nº 202, é asfáltico e de um modo geral, encontrava-se em razoável estado de conservação.

5. O tempo estava bom e o piso seco.

6. Pela margem direita da faixa de rodagem, tendo em conta o sentido de Arcos de Valdevez/Ponte de Lima, existia uma valeta, cavada no solo marginal, com uma largura de 0,80 metros e com uma profundidade de 0,40m metros.

7. A faixa de rodagem no local do acidente configura um traçado curvilíneo, descrito para o lado direito, tendo em conta o sentido de Arcos de Valdevez/Ponte de Lima.

8. A visibilidade no local do sinistro é reduzida (não se consegue avistar a faixa de rodagem da EN nº 202, em toda a sua largura, em qualquer dos dois sentidos de marcha ao longo de uma distância superior a vinte e cinco metros), em consequência do traçado curvilíneo que se descreve para o lado direito, tendo em conta o sentido Arcos de Valdevez/Ponte de Lima e de se tratar de terrenos montanhosos, com árvores frondosas e de copas espessas implantadas de forma ininterrupta, ao longo das duas margens.

9. Num percurso de 500 metros a contar do local do acidente, ao longo da faixa de rodagem, nos dois sentidos, inexiste todo e qualquer tipo de iluminação.

10. No local do acidente e à data do mesmo, não existiam marcações no pavimento asfáltico na linha média da faixa de rodagem, apresentando-se esta de cor absolutamente escura.

11. À data do acidente, tendo em conta o sentido Nascente/Poente (Arcos de Valdevez/Ponte de Lima) existia uma tampa de saneamento de forma circular e com um diâmetro de 0,55 metros construída em ferro fundido, de cor preta, assente numa estrutura cilíndrica de cimento.

12. O condutor do veículo QJ, D……….., em consequência do acidente sofreu lesões corporais de extrema gravidade, nomeadamente feridas lineares múltiplas paralelas, no ombro direito, escoriações nas duas mãos, traumatismo crâniano, fractura múltipla do crânio e hematoma retro external, que lhe determinaram de forma directa e necessária, a sua morte.

13. A vítima, D……………, foi transportado de ambulância para o hospital Conde de Bertiandos, de Ponte de Lima.

14. D…………. nasceu no dia 13 de Maio de 1972 e faleceu no dia 09 de Março de 1998, com 25 anos de idade (doc. de fls. 39 e 42, assento de óbito e de nascimento, respectivamente).

15. A autora, à data do acidente, encontrava-se grávida de A………., que viria a nascer no dia 06 de Dezembro de 1998.

16. A………. é o único filho de D……….. (vide assento de nascimento de fls. 40 dos autos).

17. D………… faleceu no estado de solteiro.

18. A autora B……….. nasceu no dia 14 de Outubro de 1971, perfazendo então 26 anos de idade.

19. A……….. encontrava-se já concebido, à data da ocorrência do acidente.

20. O A……….. percorreu todo o período de tempo da 1ª infância, desde a amamentação até ao berço, absolutamente privado dos carinhos, dos abraços e das carícias do seu pai, e vai continuar o seu crescimento e vida adulta privado da companhia, dos conselhos, do apoio, dos ensinamentos e do acompanhamento do seu progenitor.

21. D……….. tinha uma esperança de vida activa de 46 anos.

22. A faixa de rodagem no local do acidente, é sombria e escura.

23. A tampa da caixa de visita, do tipo de saneamento referenciada em 11) ocupava com cerca de metade do seu diâmetro a faixa de rodagem, na parte dianteira da EN nº 202, tendo em conta o sentido de arcos de Valdevez/Ponte de Lima.

24. Tampa essa imperceptível para quem circulasse naquela via, em qualquer um dos seus dois sentidos, no período nocturno.

25. E com uma altura de cerca de 5 centímetros em relação ao pavimento da estrada.

26. Na data e local do acidente, nem imediatamente antes desse mesmo local, não existia para quem circulava em qualquer dos dois sentidos de marcha, qualquer sinal de trânsito, ou qualquer outro, que avisasse ou assinalasse a presença da tampa e da sua estrutura e encaixe metálicos.

27. A situação descrita em 26, 28 e 29, verifica-se há mais de um ano e meio, com referência à data do acidente.

28. E havia já causado outros acidentes de trânsito, para além do acidente descrito nos autos.

29. Um dos quais, resultaram, além de danos materiais ferimentos graves numa pessoa.

30. A Ré, C……… após a ocorrência do acidente, colocou no local onde se encontra instalada a tapa da visita e respectiva estrutura, uma camada de asfalto betuminoso.

31. O veículo QJ circulava no sentido Arcos de Valdevez/Ponte de Lima, pela metade da sua faixa de rodagem.

32. Com os faróis traseiros e dianteiros acesos.

33. O acidente ocorreu de noite - 00,30 horas da madrugada.

34. Ao chegar ao Km 24,900 no Lugar de Barrosas, o QJ embateu com a roda da frente, do lado direito, contra o conjunto composto pela tampa de visita e sua estrutura metálica - situada a uma altura superior a cinco centímetros, em relação ao pavimento asfáltico da faixa de rodagem.

35. O condutor do QJ D………… perdeu o controlo da direcção e domínio do veículo, o qual desgovernado inflectiu para o seu lado esquerdo, transpôs a faixa de rodagem, derrubou um marco existente e embateu contra um pinheiro existente na margem esquerda da faixa de rodagem atento o sentido arcos de Valdevez/Ponte de Lima.

36. D………… era um rapaz saudável, ágil e robusto.

37. Não bebia bebidas alcoólicas, não fumava e era um amante da natureza e das actividades ao ar livre.

38. Alegre, bem disposto e agarrado à vida.

39. Rodeava de atenção e carinho a B………...

40. A morte de D……….. causou desgosto a B………..

41. O A………… tem desgosto resultante da morte do pai e de nunca o ter chegado a conhecer.

42. Sente a diferença em relação às outras crianças da sua idade.

43. D……… exercia a profissão de motorista, por conta da sociedade "I………., Ldª", - com sede na cidade de Leiria.

44. Encontrava-se a trabalhar, por conta da sua referida entidade patronal, na área da comarca de Ponte de Lima, efectuando transportes de betão em camião betoneira para a construção do troço da auto-estrada que liga a cidade do Porto à Vila de Valença.

45. Auferia um vencimento médio do seu trabalho, incluindo o ordenado e ajudas de custo, no valor de esc. 160.000,00 (798,08€ mensais).

46. Auferia um rendimento médio do seu trabalho, incluindo o ordenado e ajudas de custo no valor de esc. 160.000.00 (798,08€).

47. A autora mantém-se no estado de solteira.

48. Seus pais, irmãos e restantes familiares são pessoas pobres.

49. D……….. morreu sem deixar quaisquer bens ou rendimentos ou outros bens de fortuna.

50. A curva que antecede o despiste do veículo é de visibilidade reduzida.

51. O acidente ocorreu na EN nº 202, ao Km 24,9.

52. A tampa de ferro referida no esboço do auto de participação de acidente de viação não pertence à rede de infraestruturas da "…….. Comunicações".

53. As tampas utilizadas pela ……….., para acesso às câmaras de visita subterrâneas, construídas em faixas de rodagem, correspondem a um diâmetro de 0,67cm.

54. No auto de participação do acidente de viação e no depoimento prestado pelo agente de autoridade no âmbito do inquérito, não é feita qualquer referência ao esvaziamento do pneu da frente do lado direito».


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2.2. O DIREITO

Atendendo a que no recurso interposto pela ré/recorrente C…………, vem assacada à decisão recorrida o erro de julgamento sobre a matéria de facto, impõe-se, no conhecimento dos recursos, que o tribunal se debruce, prioritariamente sobre este recurso, deixando para um momento posterior o recurso intentado pelo autor.

i. DO RECURSO INTERPOSTO PELA C…………

QUESITOS 10º e 11º

No que a este aspecto concerne alega a recorrente que houve um erro na apreciação da matéria de facto, no que respeita à resposta dada aos quesitos 10º e 11º que deveriam ter tido resposta negativa face à prova produzida em audiência de discussão e julgamento.

Vejamos, pois, em concreto, do alegado erro de julgamento da matéria de facto, esclarecendo, desde já, que como vem sendo decidido neste Supremo Tribunal, e se encontra sumariado no Acórdão proferido em 04/04/2013, in proc. nº 0991/11: «(i) a garantia de duplo grau de jurisdição em matéria de facto (art. 712º CPC) deve harmonizar-se com o princípio da livre apreciação da prova (art. 655º/1 do CPC), (ii) Assim, tendo em conta que o tribunal superior é chamado a pronunciar-se privado da oralidade e da imediação que foram determinantes da decisão em 1ª instância e que a gravação/transcrição da prova, por sua natureza, não pode transmitir todo o conjunto de factores de persuasão que foram directamente percepcionados por quem primeiro julgou, deve aquele tribunal, sob pena de aniquilar a capacidade de livre apreciação do tribunal a quo, ser particularmente cuidadoso no uso dos seus poderes de reapreciação da decisão de facto e reservar a modificação para os casos em que a mesma se apresente como arbitrária, por não estar racionalmente fundada, ou em que for seguro, segundo as regras da ciência, da lógica e/ou da experiência comum que a decisão não é razoável».

Em concreto, perguntava-se nos artigos 10º e 11º a propósito da existência e sinalização da tampa de saneamento existente na faixa de rodagem:

«Artº 10º - E, havia já causado outros acidentes de trânsito, para além do acidente descrito nos autos?»

Respondeu-se “Provado”

«Artº 11º - Um dos quais no dia 30 de Novembro de 1996, do qual resultaram além de danos materiais, ferimentos graves em duas pessoas?»

Respondeu-se “Provado apenas que, um dos quais, resultaram, além de danos materiais, ferimentos graves numa pessoa.

E estas respostas, mereceram o seguinte discurso fundamentador:

«A resposta ao item 10º resulta do depoimento de E…………, o qual referiu ter tido um acidente naquele local devido a ter embatido na tampa que estava saliente na estrada. Resulta, ainda, do depoimento de F………… que disse ter tido um acidente naquele local ao passar por cima de uma tampa que estava levantada. Que passava diariamente naquele local, que sabia da tampa, mas só naquele dia é que pisou a tampa e teve o acidente.

A resposta ao item 11º resulta da ausência de prova documental sobre a data do acidente mencionado no quesito. Afigura-se que o item se quererá referir ao acidente tido pela testemunha E………., mas este não conseguiu precisar a data do mesmo, nem referiu ter tido ferimentos graves. Apenas mencionou que o condutor da viatura contra quem embateu é que teve ferimentos graves, que o levaram a uma incapacidade profissional. Tratava-se do agente J………. da GNR. Por sua vez, o agente da GNR K………. participante do acidente que envolveu a testemunha E……….., não logrou precisar a data do acidente. Contudo, também precisou que o Agente J…….. esteve muito mal e internado muito tempo no Hospital Militar. No que concerne a danos materiais, a testemunha E………, referiu que o seu carro foi para a sucata»

Alega a recorrente que a testemunha E………. nunca respondeu a velocidade a que seguia quando embateu na referida tampa ou qualquer outro elemento que seria(m) indispensáveis para se aferir da causalidade relevante do acidente, nem tão pouco se a tampa se encontrava totalmente na faixa de rodagem, pelo que a resposta nunca deveria ter sido a que resultou provada.

Mais alega que o depoimento da testemunha F………… desconsiderou qualquer outro elemento causal do acidente, pelo que o julgador nunca poderia ter considerado que a tampa foi o elemento causal dos referidos acidentes.

Porém, não assiste razão à recorrente no que respeita a esta alegação, uma vez que as perguntas referidas nos quesitos 10º e 11º visavam tão só saber da existência da tampa, não se perguntando ali por quaisquer outros elementos que poderiam ou não ter sido causais de qualquer acidente, pelo que, a alegada distracção dos condutores ou a velocidade a que circulavam os condutores/testemunhas não se mostravam formulados nos referidos quesitos.

Improcede, pois, este segmento recursivo.


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QUESITOS 7º e 18º

Em concreto, perguntava-se nos artigos 7º e 18º a propósito da altura da tampa em relação ao pavimento da estrada:

«Artº 7º - E, com uma altura de cerca de 5 centímetros em relação ao pavimento da estrada?»

Respondeu-se “Provado»

«Artº 18º - Ao chegar ao Km nº 42,80, no lugar de Barrosas, o QJ embateu com a roda da frente, do lado direito, contra o conjunto composto pela tampa de visita e sua estrutura metálica – situada a uma altura superior a cinco centímetros, em relação ao pavimento asfáltico da faixa de rodagem?»

Responde-se: Provado, com o esclarecimento de que se trata do Km nº 24,900.

E estas respostas, mereceram o seguinte discurso fundamentador:

«A resposta ao item 7º resulta dos depoimentos das testemunhas, tendo todos referido (à excepção das duas testemunhas arroladas pela Ré C........) que a tampa estava elevada 4, 5, 6 ou 7 centímetros. Não obstante ninguém ter medido a altura da tampa, são bastantes depoimentos a referir a elevação da tampa, pelo que é de concluir que a mesma estava subida em relação ao solo. Tendo em conta que as testemunhas referem uma elevação que varia de 4 a 7 centímetros, é admissível que se possa dizer ter a tampa uma altura de cerca de 5 centímetros. Assim, a testemunha Cabo Chefe da GNR L………. que referiu que a tampa estaria elevada 5/6 centímetros, mas que nunca a mediu. Por sua vez a testemunha M……….., agente da GNR referiu que seriam 4/5. A testemunha H……….. referiu que seriam 5 ou 7 centímetros. A testemunha K………., agente da GNR referiu apenas que a tampa estava saliente. A testemunha E……….. referiu que teve um acidente no local devido a uma tampa saliente. A testemunha F……….. que também teve um acidente no local devido a uma tampa referiu que a tampa estava levantada. Por sua vez, as testemunhas indicadas pela «C………» G………. referiu que nunca viu desnível da tampa; e N…………, disse que não tinha conhecimento da elevação da tampa. Da forma como se encontram realizados estes dois últimos depoimentos, não permitem infirmar os demais depoimentos que referem a elevação da tampa».

A resposta ao item 18º resulta do depoimento da testemunha H………, o qual referiu que o QJ se despistou por ter embatido na tampa. Não obstante a instâncias do advogado da Ré, aquela testemunha ter referido «não pode ser outra coisa», poder-se-ía admitir tratar-se de uma conclusão da testemunha; contudo, considera-se que se trata de uma afirmação produzida num contexto de firmeza da sua posição, ao invés do que poderia parecer pela simples audição daquela frase. Assim, quando a testemunha refere que «não pode ser outra coisa» é porque está convicta da sua percepção (de que o pneu embateu na tampa) e não que está a interpretar algo que alegadamente ocorreu.

Alega, desde logo, a recorrente que existe contradição entre a resposta dada ao quesito 7º em relação à dada ao quesito 18º, pois, numa considera-se uma altura de «cerca de 5 centímetros» e noutra uma altura «superior a 5 centímetros».

Mas, não cremos que essa contradição exista, pese embora, se verifique um menor rigor; com efeito, o «cerca de» apenas significa «mais ou menos», «de uma maneira aproximada», não se podendo falar numa contradição que se revele fatal para a decisão tomada. Aliás, face à demais prova produzida, e analisada no seu conjunto, mostra-se irrelevante a correcção da resposta ao quesito 18º, como pretendido pela recorrente, uma vez que o julgador percebe perfeitamente que se está perante uma tampa saliente cerca de 5 centímetros de altura do asfalto, sendo igualmente irrelevante que um centímetro a mais em relação aos 5, tivesse sido a causa única do embate.

Acresce que, da leitura da sentença recorrida, se constata desde logo que a altura tida em consideração foi sempre a de «cerca de 5 centímetros, sem que tal saliência estivesse sinalizada» - cfr. fls. 10 da decisão recorrida.

Mas, insurge-se, ainda, a recorrente contra o facto de ter sido dado como provado que a tampa tivesse, à data do embate, uma elevação de 5 ou mais centímetros, alegando que tal facto nunca lhe foi comunicado e que se assim sucedesse muitos acidentes ali teriam ocorrido e lhe teriam sido reportados.

Contudo, importa desde logo referir, que o facto da elevação da tampa, não ser do conhecimento das testemunhas da ré/recorrente, tal não significa que a mesma não existisse, como parece fazer crer a recorrente; por outro lado, o facto de nenhuma testemunha ter medido a elevação da tampa em relação ao solo, tal não impede o julgador, de avaliar o teor dos depoimentos das testemunhas e valorá-los em conformidade com as regras da experiência comum, de acordo com a razão de ciência de cada uma, que como se demonstra da fundamentação da resposta ao quesito 7º, foi precisamente o que sucedeu, não vislumbrando este tribunal de recurso, que tal resposta se mostre errada e, por conseguinte deva ser alterada.

Em relação à resposta dada ao quesito 18º, a recorrente não se insurge quanto à correcção efectuada no que respeita ao Km em que ocorreu o acidente e que se mostra bem esclarecida na resposta ao quesito 1º [escreveu-se 42, quando se pretendia escrever 24].

Mas já se insurge quanto ao depoimento prestado pela testemunha H………, por entender que as suas declarações são falsas ou parciais, para além de contraditórias.

Mas sem razão. Com efeito, o facto de a testemunha ter referido ao longo do seu depoimento que a zona carecia de iluminação, não a impedia, como não impediu, de descrever a dinâmica do acidente tal qual a descreveu, atendendo à iluminação dos próprios veículos e ao facto de ser um conhecedor daquela zona, por onde passava algumas vezes, motivo pelo qual não vislumbramos razões que levem à desconsideração deste depoimento.

Quanto à velocidade a que seguiria o condutor do veículo acidentado, também não vemos motivos para pôr em causa o depoimento da testemunha, sendo que, além do mais, essa matéria exorbitava o conteúdo do quesito 18º.

Por outro lado, este depoimento analisado no seu conjunto, não deve ser descredibilizado, pelo facto da testemunha ter dito que entre si e o veículo acidentado [que o havia ultrapassado] seguiam 3 ou 4 carros, pois, conseguiu descrever que o embate só poderia ter sido na tampa, vendo-o de seguida aos “esses” até se imobilizar, referindo a marca no pavimento e na jante; aliás, o depoimento neste tocante é devidamente esclarecido na fundamentação dada pelo juiz que presidiu à audiência de julgamento, onde são afirmados os motivos da sua convicção, argumentos estes, em relação aos quais, este Tribunal de recurso, no âmbito dos seus poderes de reapreciação, e seguindo a jurisprudência que supra se referiu, não vislumbra motivos que conduzam à sua alteração.

Igualmente, não vemos motivos para alterar a resposta ao quesito 18º, apenas pelo facto da testemunha não figurar como testemunha do acidente na participação policial junta aos autos, uma vez que, por um lado, explica e identifica a pessoa que ligou para os bombeiros e, por outro lado, apresenta factos credíveis que justiçam a sua ausência, após a comparência no local da GNR.

E assim, improcede, também, este segmento recursivo.


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QUESITO 65º

Em concreto, perguntava-se no artigo 65º:

«Artº 65º - O veículo QJ circulava a velocidade superior a 50Km?»

Respondeu-se “Não Provado»

E esta resposta, remeteu a sua fundamentação para a do quesito 15º, que por sua vez, mereceu o seguinte discurso fundamentador:

«A resposta ao artº 15º resulta do depoimento da testemunha H………, o qual referiu que circulava na sua camioneta a uma velocidade de cerca de 50 a 55 Km ou «mais um bocadito» e que foi ultrapassado pelo veículo sinistrado. Assim, tendo o QJ ultrapassado a camioneta que H………. conduzia a 50/55Km ou mais, não era possível que o QJ pudesse circular à mesma velocidade, porque senão não teria realizado a ultrapassagem. Aliás, tendo apenas reta que antecede a curva como local que permite a ultrapassagem, o QJ teria de acelerar rápida e consistentemente para poder ultrapassar a camioneta antes da curva seguinte (sendo que, segundo a testemunha G………., indicada pela C………, a reta tem cerca de 300metros), pelo que não é possível dar como assente que pudesse circular a 50Km. Resulta, ainda, admitindo-se que o QJ pudesse ter reduzido a velocidade ao chegar à curva, não é possível, dizer-se que circulava a 50Km, por falta de elementos mais precisos, como por exemplo, a verificação a que a quilometragem parou o ponteiro do velocímetro»

Alega a recorrente no que a este aspecto concerne que, o quesito 65º teria de ter sido dado como provado, pois resulta das regras da experiência e da prova produzida que o QJ conduzia a uma velocidade superior a 50Km e, por isso, completamente desajustada, sendo a velocidade a causa do acidente.

Porém, também quanto a esta questão, da prova produzida e analisada na sua globalidade, e nunca esquecendo que estamos em sede de reapreciação da prova, destituídos de princípios fundamentais como os da imediação e oralidade, não encontra este Tribunal argumentos suficientes para alterar a resposta dada; aliás, os argumentos da recorrente são baseados em meras presunções [nem os danos sofridos no veículo QJ, destituídos de outra prova são suficientes, para justificar qualquer alteração, uma vez que o carro era pequeno, leve e frágil na sua estrutura] que nunca poderiam justificar a alteração da resposta, pelo que se impõe manter a resposta dada pelo tribunal a quo.


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Decidido este segmento recursivo, cumpre agora conhecer do erro de julgamento de direito que igualmente é assacado pela recorrente C………., à decisão recorrida.

Alega a recorrente no que a este aspecto concerne, que não lhe pode ser assacada nenhuma responsabilidade na produção do dano, visto não se mostrar provada a existência do nexo causal suficiente, que justifique o dano morte sofrido pelo condutor do QJ.

Vejamos:

O artº 22º da CRP dispõe: “O Estado e as demais entidades públicas são civilmente responsáveis, em forma solidária com os titulares dos seus órgãos, funcionários ou agentes, por acções ou omissões praticadas no exercício das suas funções e por causa desse exercício, de que resulte violação dos direitos, liberdades e garantias ou prejuízo para outrem”.

A presente acção encontra-se configurada em sede de causa de pedir e pedido como uma verdadeira acção administrativa comum (condenatória) para efectivação responsabilidade civil extracontratual no domínio dos actos da denominada “gestão pública”, através da qual os AA. visam fazer valer o seu pretenso direito a uma indemnização, alegadamente da responsabilidade da recorrente por danos sofridos em consequência de actos ilícitos e culposos que imputam à conduta omissiva dos órgãos ou agentes administrativos da ré, no exercício das suas funções e por causa desse exercício, responsabilidade essa que se regia à data dos factos pelo DL nº 48.051 de 21/11/67, “em tudo o que não esteja previsto em leis especiais” (artº 1º), sendo por isso necessário recorrer também às normas previstas a este respeito no Código Civil.

Esse diploma legal, entre outras responsabilidades, estabelecia o regime da responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais entes públicos por actos de gestão pública, ilícitos e culposos, prevista no seu artº 2º, onde expressamente se refere: “O Estado e demais pessoas colectivas públicas respondem civilmente perante terceiros pelas ofensas dos direitos destes ou das disposições legais destinadas a proteger os seus interesses, resultantes de actos ilícitos culposamente praticados pelos respectivos órgãos ou agentes administrativos no exercício das suas funções e por causa desse exercício”.

O nºs 1 e 2 do artº 4º do mesmo diploma legal, concretizam esta responsabilidade determinando que «a culpa dos titulares do órgão ou dos agentes, é apreciada nos termos do artº 487º do Código Civil e se houver pluralidade de responsáveis, é aplicável o disposto no artigo 497º do Código Civil».

E o artº 6º dispunha: «Para os efeitos deste diploma, consideram-se ilícitos os actos jurídicos que violem as normas legais e regulamentares ou os princípios gerais aplicáveis e os actos materiais que infrinjam estas normas e princípios e, ainda as regras de ordem técnica e de prudência que devam ser tidas em consideração».

É, pois, sabido que a responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais pessoas colectivas públicas por factos ilícitos, praticados pelos seus órgãos ou agentes assenta nos pressupostos de idêntica responsabilidade, prevista na lei civil, que são o facto, a ilicitude, a imputação do facto ao lesante, o prejuízo ou dano e o nexo de causalidade entre este e o dano.

E conforme dispõe o artº 483º do Código Civil «aquele que com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação».

E quanto ao nexo de causalidade, é acolhida a teoria da causalidade adequada prevista no artº 563º do Código Civil, segundo a qual, a condição só é causa do dano quando, tomada na sua natureza geral (abstraindo das circunstâncias não cognoscíveis, nem conhecidas do agente) não é indiferente ou favorece a produção do dano, ou nas palavras de Galvão Telles, apud Pires de Lima e Antunes Varela, Das Obrigações em geral, Vol I, 10º edª Almedina, Coimbra, 2000, pág 578, «determinada acção ou omissão será causa de certo prejuízo, se, tomadas em conta todas as circunstancias conhecidas do agente e as mais que um homem normal poderia conhecer, essa acção ou omissão se mostrava, à face da experiência comum, como adequada à produção do referido prejuízo, havendo fortes probabilidades de o originar».

Deste modo, o artigo 563º do CC consagrou a doutrina da causalidade adequada na formulação negativa, nos termos da qual a inadequação de uma dada causa para um resultado deriva da sua total indiferença para a produção dele, que, por isso mesmo, só ocorreu por circunstâncias excepcionais ou extraordinárias. E de acordo com esta doutrina, o facto gerador do dano só pode deixar de ser considerado causa adequada se se mostrar inidóneo para o provocar ou se apenas o tiver provocado por intercessão de circunstâncias anormais, anómalas ou imprevisíveis.


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Como já se enunciou, a presente acção intentada pelos AA visa efectivar a responsabilidade civil extra contratual contra a Ré, invocando-se que o acidente automóvel que causou a morte ao pai do recorrente A.......... foi provocado pela existência de uma tampa de caixa de visita, saliente no pavimento, que por sua vez ao ter sido embatida, causou o rebentamento de um pneu e consequente despiste do automóvel conduzido pela vítima, caixa esta que não se encontrava sinalizada.

Alega a recorrente que o «passar por cima de uma tampa de saneamento a uma velocidade estimada em cerca de 50Km não constitui uma causa adequada de um despiste de um carro e, mais, ainda, a morte do seu condutor», pelo que ocorre a violação do disposto no artigo 563º do CC.

Não cremos que assista razão à recorrente nesta sua tentativa de não ver demonstrado o nexo causal entre o facto e o dano morte.

Com efeito, para uma rigorosa análise desta questão, impõe-se ao julgador que aprecie todos os factos que possam conduzir ou não a esta conclusão, sendo de excluir conjecturas que não se traduzem em factos provados e nem de presunções legais.

E o tribunal a quo pronunciou-se sobre esta questão aduzindo os seguintes fundamentos: «Compete agora saber, (…) se nas circunstâncias concretas o evento é passível de gerar este tipo de responsabilidade: ora o facto típico, as mais das vezes compreende a análise de uma multiplicidade de factos e situações.

Considerando que, muito embora não ficasse cientificamente provada a velocidade em que seguia o veículo, deve-se considerar que o mesmo não ultrapassava os limites de velocidade para o local que eram os correspondentes a uma estrada nacional, ou seja, 90km. Nem circulava a velocidade desapropriada para o lugar (…)

Não sendo o veículo conduzido em excesso de velocidade, compete saber se o mesmo ao embater na tampa saliente podia ter o despiste que teve e respectivas consequências.

Resulta da prova produzida que era possível um veículo ligeiro embater na parte elevada da tampa e perder o controlo da direcção, mesmo a uma velocidade normal para o lugar, ou seja, dentro do limite de velocidade, mesmo abaixo do limite máximo. Foi o que sucedeu com alguns condutores, dois deles assim depuseram em Tribunal (…), depoimentos que se julgam credíveis (…). Tendo em conta que se tratava de um veículo utilitário de pequena cilindrada e sem segurança passiva adicional; bem assim como pelo facto de ter embatido duas vezes em obstáculos consistentes (marco em granito e pinheiro), o despiste por pisar a tampa elevada em relação ao solo, com a colisão contra aqueles dois obstáculos e atento não se tratar de veículo robusto, é admissível que seja causador da morte do condutor (…)

Não fora a tampa saliente, nunca o veículo a teria embatido; dessa sorte nunca se teria despistado da forma como aconteceu; e consequentemente, não teria falecido o condutor. Dessa forma, também no seguimento do que acima fica referido, considera-se que existe nexo de causalidade, porque a omissão da Ré provocou o resultado em análise nos autos, ou seja, o acidente do qual resultou a morte do D………».

Cremos que o assim decidido se mostra conforme à doutrina vertida no artº 563º do CC.

Com efeito, no caso sub judice, e com relevo para a apreciação desta questão, mostra-se provado que a faixa de rodagem da EN 202 no local do sinistro apresentava à data da ocorrência do acidente, uma largura de 6,70 [ponto 3] pela margem direita da faixa de rodagem, tendo em conta o sentido Arcos de Valdevez/Ponte de Lima, existia uma valeta, cavada no solo marginal, com uma largura de 0,80m e com uma profundidade de 0,40metros [ponto 6] a visibilidade no local do sinistro é reduzida [ponto 8] a faixa de rodagem no local do acidente é sombria e escura [ponto 22] no local do acidente e à data do mesmo não existiam marcações no pavimento asfáltico na linha média da faixa de rodagem, apresentando-se esta de cor absolutamente escura e preta [ponto 10], à data do acidente, tendo em conta o sentido nascente-poente (Arcos de Valdevez/Ponte de Lima) existia uma tampa de caixa de visita do tipo saneamento de forma circular e com um diâmetro de 0,55 construída em ferro fundido, de cor preta, assente numa estrutura cilíndrica de cimento [ponto 11] a tampa de caixa de visita, do tipo de saneamento referenciada em 11, ocupava com cerca de metade do seu diâmetro a faixa de rodagem, na parte direita da EN 202, tendo em conta o sentido de Arcos de Valdevez/Ponte de Lima [ponto 23], tampa essa imperceptível para quem circulasse naquela via, em qualquer um dos seus dois sentidos, no período nocturno [ponto 24] e com uma altura de cerca de 5 centímetros em relação ao pavimento da estrada [ponto 25] na data e local do acidente, nem imediatamente antes desse local, não existia para quem circulava em qualquer dos dois sentidos de marcha, qualquer sinal de transito ou qualquer outro que avisasse ou assinalasse a presença da tampa e da sua estrutura e encaixe metálico [ponto 26] o veículo QJ circulava no sentido Arcos de Valdevez/Ponte de Lima, pela metade da sua faixa de rodagem, com os faróis traseiros e dianteiros acessos, o acidente ocorreu de noite – 00,30horas da madrugada, ao chegar ao Km 24,900, o QJ embateu com a roda da frente, do lado direito, contra o conjunto composto pela tampa de visita e sua estrutura metálica – situada a uma altura superior a cinco centímetros, em relação ao pavimento asfáltico da faixa de rodagem, o condutor do QJ perdeu o controlo da direcção e domínio do veículo, o qual desgovernado inflectiu para o seu lado esquerdo, transpôs a faixa de rodagem, derrubou um marco existente e embateu contra um pinheiro existente na margem esquerda da faixa de rodagem atento o sentido Arcos de Valdevez/Ponte de Lima [pontos 31, 32, 33, 34 e 35] o condutor do QJ D……….. em consequência do acidente sofreu lesões corporais de extrema gravidade, nomeadamente, feridas lineares múltiplas paralelas, no ombro direito, escoriações nas duas mãos, traumatismo craniano, fractura múltipla do crânio e hematoma retro external, que lhe determinaram de forma directa e necessária, a sua morte [ponto 12], pelo que não restam dúvidas que a existência da tampa foi causal à perda de controlo da viatura e, esta por sua vez, dos embates ocorridos, que foram determinantes da morte do condutor do veiculo QJ, nos termos consagrados no artº 563º do CC, pois foi o facto que actuou como condição do dano, em termos de causalidade adequada, constituindo a tese da recorrente uma mera configuração desprovida da factualidade concreta que por isso não pode ser tida em conta.

Improcede, pois, in totum, o recurso interposto pela E.P. – Estradas de Portugal. E.P.E.


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Decidido este recurso, analisemos agora o recurso interposto pelo autor A………., menor, representado por sua mãe B…….

Na presente acção, como supra se deixou dito, o recorrente A……….. peticionou a seguinte indemnização:

-danos morais sofridos pelo seu pai D…………., nos momentos que precederam a sua morte – 17.500,00€

-perda do direito à vida do seu pai – 50.000,00€

-danos morais por si próprio sofridos (A………….) pela morte do pai, por ter ficado privado dos seus carinhos e crescendo sem a sua companhia, conselhos e apoio, sentindo permanentemente a sua falta – 37.500,00€ [e não 17.500,00€ como certamente, por erro, consta das conclusões de recurso apresentadas sob os nºs 19º e 21º, que pelo facto de se constatar tratar de mero lapso, se corrigirá e se atenderá ao valor peticionado no corpo das alegações].

-prestação alimentar devida em consequência da morte do seu pai – 94.272,80€ [e não 94.500.00€, como por aparente arredondamento é peticionado nas conclusões de recurso]

A sentença recorrida apenas julgou procedente o pedido referente ao dano morte, ou seja, a indemnização pela perda do direito à vida do pai do menor, por via sucessória [artigo 2031º do CC] no valor de 50.000,00€, pelo que, pretende o autor/recorrente neste recurso ser ressarcido dos demais danos peticionados.

Vejamos, cientes que as normas aplicáveis são as supra enumeradas, designadamente as previstas no DL nº 48051 de 21 de Novembro de 1967, à data vigentes, que exige conforme se referiu, como pressupostos, a verificação do facto, da ilicitude, da culpa do dano e do respectivo nexo causal entre o facto e o dano, interpretados à luz das previstas no Código Civil.

Acresce que, no presente recurso apenas se mostra questionada a questão dos danos que não foram considerados na decisão recorrida, e não os demais requisitos da responsabilidade civil culpa referenciados.

Começando pelo pedido referente à reparação dos danos próprios decorrentes do sofrimento que a vítima alegadamente teria sofrido no hiato temporal que mediou entre o acidente e a morte [17.500,00€], a decisão recorrida considerou que seriam danos indemnizáveis, por via sucessória, nos termos do disposto no artigo 2031º do Código Civil, só que não concedeu qualquer quantia a esse título, porque considerou que não se havia provado que a vítima tivesse sofrido tais danos.

E fê-lo referindo concretamente que os artigos 21º a 27, onde se perguntava se a vítima tinha, no momento do acidente e nos instantes que o precederam, sofrido um enorme susto, receando pela sua vida, tendo consciência que ia sofrer lesões de extrema gravidade e que as mesmas eram susceptíveis de lhe causar a morte, sofrendo desgosto e angústia por se ter apercebido de que em consequência das lesões lhe ía advir a morte e que não chegaria a conhecer o filho, mereceram resposta negativa, justificando tal resposta, em sede de fundamentação, com a total ausência de prova sobre esta matéria, bem como, o depoimento da testemunha H……… que circulava atrás e referiu ter-se dirigido logo ao veículo sinistrado, afirmando que o condutor já estava morto, concluindo que resulta deveras improvável que num tão pequeno hiato de tempo, o condutor tenha tido tempo para pensar tantas coisas, isto para além de ser deveras inverosímil que o acidentado soubesse já da gravidez da mãe do seu filho, atenta a data do acidente e a data do nascimento, ou seja, exactamente, nove meses, menos três dias, após o acidente.

Discorda o recorrente desta decisão, considerando que a morte não é um fenómeno instantâneo e que entre o momento da lesão e o facto morte decorre sempre um espaço de tempo mais ou menos longo e, que durante esse período, a vítima sofre dores, apercebendo-se que vai morrer e sofre por isso a angústia e o desespero da sua morte, concluindo que a vítima sofreu dores e pressentiu a morte.

Mas não cremos que lhe assista razão nesta discordância.

Com efeito, é natural que se a vítima esteve consciente aquando do despiste e primeiro embate, tivesse sofrido a angústia da morte, permitindo ao julgador fazer uso da presunção prevista no artº 412º do Código do Processo Civil [factos que não carecem de alegação ou de prova].

Só que, no caso sub judice, não cremos que a prova produzida, seja de molde a poder fazer uso da presunção ali prevista, pois não estamos perante factos de conhecimento geral, nem factos notórios.

Com efeito, toda a matéria alegada com o propósito de ver ressarcido este dano, foi dada como não provada e justificada a sua não prova [matéria que não se mostra impugnada]; por outro lado, da matéria de facto assente, também não resultam factos que permitam concluir que este sofrimento se tenha verificado, sendo insuficiente a prova efectuada respeitante ao despiste, perda de controlo do veículo e depoimentos de testemunhas que não foram levados à matéria de facto assente, como seja o alegado rasto de travagem.

Igualmente, é insuficiente, porque desprovido de outra prova relevante, que se mostre provado que o acidente ocorreu às 00,30h e que de acordo com o declarado no assento de óbito, a morte ocorreu às 00,40h, ou seja, dez minutos mais tarde, pois este facto só por si, ou melhor esta declaração, não permite recorrer às regras da experiência comum, para concluir que entre o despiste/embate até ao momento em que foi declarado o óbito, a vítima tenha estado consciente, designadamente pensando que ía morrer e sofrendo com esse facto.

Impõe-se pois manter o que a este respeito foi decidido na sentença recorrida, por ausência de prova que permita concluir pela existência dos alegados danos.


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Fitemos, agora, o recurso no que concerne aos danos peticionados pelo autor, no que respeita aos danos morais por si próprios sofridos [37.500,00€] e pela privação da prestação alimentar em consequência da morte do seu pai [94.272,80€]:

A este respeito, a decisão recorrida entendeu que não se mostra previsto no nosso sistema jurídico, maxime no nº 2, do artigo 66º do CPC, que o nascituro tenha os mesmos direitos que uma pessoa nascida com vida, mas apenas previsto que possui os direitos que a lei lhe reconhece, não vislumbrando norma legal que obrigue a herança do falecido a contribuir com alimentos para nascituro; ora, uma vez que D………. é pré-falecido ao seu filho, inexiste segundo a decisão recorrida obrigação daquele para com este, bem como qualquer direito deste que não esteja expressamente consagrado em norma legal, pois segundo a sentença recorrida, a obrigação prevista no artigo 495º do CC abrange apenas a obrigação de exigir alimentos ao lesado, que os deva já no momento do evento e não que essa obrigação surja após a sua morte.

Igualmente, entendeu a decisão recorrida no que concerne aos danos não patrimoniais referentes à vivência do autor A………., sem a presença do pai, por não o ter conhecido e ter sido privado da sua companhia e amparo, que tais danos não são ressarcíveis quando se trata, como no caso, de um nascituro, ainda não dotado de personalidade jurídica, pelo que na sua esfera jurídica não existia o direito indemnizatório em apreço.

Insurge-se o recorrente contra esta posição, fazendo alusão ao Acórdão proferido pelo STJ em 03 de Abril de 2014, no âmbito do processo nº 436/07.6BVRL.P1 S1, almejando através desta jurisprudência obter ganho de causa nos pedidos indemnizatórios que formula relativos aos danos próprios que sofreu, pese embora, ainda não ter nascido à data da morte do pai.

Estamos, pois, no âmbito da questão de saber se, para efeitos de atribuição de indemnização por danos não patrimoniais, nos termos previstos no nº 1, do artº 496º do CC, deve atender-se ou não à privação sofrida pelo filho da vítima, nascido após o falecimento desta, ou seja, se a lei reconhece ao nascituro um direito próprio que se manterá ao longo da vida, por sofrer a dor de não ter sequer chegado a conhecer o pai, nem a poder partilhar da sua companhia e afecto ou de se sentir desamparado de conselhos e protecção.

A questão de saber se o nascituro é titular originário de um direito de indemnização, por danos não patrimoniais próprios, decorrentes da morte de seu pai, contra a entidade a quem se imputa a prática do facto ilícito correspondente [questão distinta do fenómeno sucessório da herança da vítima], tem sido trazida aos Tribunais, não havendo uma posição decisória uniforme quanto à mesma, dada que tudo se prende com a interpretação que se faça dos direitos próprios dos nascituros e/ou da interpretação do nº 2 do artigo 496º do referido diploma legal, quanto à noção de «filhos» ali prevista.

No sentido da não concessão, vg o Acórdão proferido no STJ em 17/02/2009, in proc. nº 08A2124, onde se entende, com os fundamentos ali narrados, que o nascituro não é titular originário de um direito de indemnização, por danos não patrimoniais próprios, provenientes da morte do progenitor, em consequência de facto ilícito ocorrido antes do seu nascimento, à margem do instituto do direito sucessório, direito esse que apenas é reconhecido aos filhos e, estes, na acepção legal, são tão só os nascidos com vida e que existam – nascidos - à data da morte da vítima; daí que se tenha decidido que, o facto gerador do alegado direito próprio do autor menor consiste na morte da vítima do acidente de viação, seu pai, ocasião em que aquele, ainda nascituro, não estava em condições de adquirir esse direito, por não dispor de personalidade jurídica, nem o tendo adquirido, aquando do seu nascimento, por não haver lei que lho reconhecesse à data do acidente.

Em sentido contrário, podemos ter em consideração o Acórdão igualmente proferido no STJ em 03/04/2014, in proc. nº 436/07.6TBVRL.P1 S1, e respectivos fundamentos ali vertidos, maxime doutrinais, e apoiados no voto de vencido do Exmº Conselheiro Mário Cruz, lavrado no Acórdão do STJ de 17/02/2009, sumariando-se «(…) Seguindo o entendimento magistral do Prof. Pedro Pais de Vasconcelos, o art. 66º, nº 1, do CC, deve ser entendido como referindo-se à capacidade de gozo, e não propriamente à personalidade jurídica – como aliás sucedia com o art. 6º do Código de Seabra e com o §1 do BGB -, uma vez que o reconhecimento da personalidade de seres humanos está fora do alcance e da competência da lei, seja ela ordinária ou constitucional.

III - O nascituro não é uma simples massa orgânica, uma parte do organismo da mãe, ou, na clássica expressão latina, uma portio viscerum matris, mas um ser humano, com dignidade de pessoa humana, independentemente de as ordens jurídicas de cada Estado lhe reconhecerem ou não personificação jurídica.

IV - Ainda na fase intra-uterina os efeitos da supressão da vida paterna fazem-se sentir no ser humano, sendo os danos não patrimoniais daí decorrentes – traduzidos na falta desta figura, quer durante o período de gestação, quer depois do nascimento, com o vazio que tal ausência provoca – merecedores de compensação.

V - No momento do nascimento, completo e com vida, as lesões sofridas pelo nascituro tornam-se lesões da própria criança, ou seja, de um ser com personalidade (Heinrich Ewald Hörster, in «A Parte Geral do Código Civil Português», Almedina, 1992).

VI - Não constitui óbice ao reconhecimento de tal direito o argumento da exigência da contemporaneidade da personalidade com a lesão uma vez que: (i) nos Estados de Direito contemporâneos é cada vez mais frequente a demanda cível e a responsabilização de agentes cujos actos se produzem a longo prazo (de que são exemplo transmissão de doenças cujos efeitos se manifestam anos depois, catástrofes cujos efeitos se revelam a posteriori e traumatismos causados por acidentes cuja evolução para neoplasias malignas acontece a considerável distância cronológica); (ii) a relação entre a causa e o efeito não implica necessariamente que os danos ocorram imediatamente, apenas se exigindo o «nexo umbilical» que determine que o efeito ocorreu devido ao evento causado por terceiro (cf. voto de vencido do Exmo. Sr. Conselheiro Mário Cruz no Acórdão do STJ de 17-02-2009, proc. nº 08A2124)».

Cientes da doutrina e jurisprudência existente, vejamos o direito aplicável.

Dispõe o nº 2 do artº 496º do CC que «por morte da vítima, o direito à indemnização por danos não patrimoniais cabe, em conjunto, ao cônjuge não separado de pessoas e bens e aos filhos ou outros descendentes (…)».

Pelo que, logo aqui se questiona se neste conceito de “filhos” se contêm, os nascituros; designadamente, saber se o legislador, face à realidade biológica e à evolução da ciência, ao falar em filhos apenas quis incluir filhos já nascidos ou igualmente os nascituros.

Nascituro, que assume várias definições, consoante os autores é “pessoa ainda não nascida mas que poderá nascer de progenitor ou progenitores determinados” [Teoria Geral do Direito Civil, vol I, Lições do Prof. Oliveira Ascensão; Lisboa, 1984/85], seres humanos cujo nascimento futuro se prevê como possível, quer se encontrem já concebidos (nascituros já concebidos, nascituros “stricto sensu”) quer não (concepturos)” [Teoria Geral do Direito Civil, Obras Completas, Prof. João Castro Mendes, vol I, ed. AAFDL].

Há, pois, quem defenda que o nascituro já tem personalidade jurídica, pois entendem que a mesma existe com o início da concepção [Lições de Direitos da Personalidade, Separata do Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Prof. Leite de Campos, LXVI, 2ª ed, 1992, 43], sendo que a personalidade jurídica se traduz, precisamente na susceptibilidade de ser titular de direitos e se estar adstrito a vinculações, ou seja, consiste na susceptibilidade de ser sujeito de direitos e obrigações ou, pessoa em sentido jurídico ou, aptidão para ser titular autónoma de relações jurídicas [Teoria Geral do Direito Civil, Prof. Mota Pinto, 4ª ed., por António Pinto Monteiro e Paulo Mota Pinto, 2005, 193, 194 e 201; Teoria Geral da Relação Jurídica, Manuel de Andrade, I, 1966, 29/30].

Aliás, inclusive a Declaração Universal dos Direitos do Homem, reconhece que a personalidade é uma exigência do direito à dignidade, que pertence a todos os indivíduos, conforme se dispõe no seu artº 6ª «Todos os indivíduos têm direito ao reconhecimento em todos os lugares da sua personalidade jurídica».

Mas será que o nascituro, enquanto ser humano em gestação, já poderá ser considerado uma pessoa, um indivíduo, sendo que de acordo com o artº 66º do CC sob a epígrafe “Começo da personalidade”, a «A personalidade adquire-se no momento do nascimento completo e com vida e os direitos que a lei reconhece aos nascituros dependem do seu nascimento» [nºs 1 e 2]?

E, é aqui, que há quem entenda que importa fazer uma distinção clara entre vida humana e vida pessoal, considerando-se que ser pessoa implica ser individuo e que um embrião, mesmo depois da nidação, apesar de já ser vida humana, ainda não é uma pessoa, pelo que não pode ser considerado um indivíduo, designadamente quando o artº 66º do CC situa o começo da personalidade jurídica singular com o nascimento completo e com vida e a Constituição da República Portuguesa, parece apenas proteger a vida pré-natal ou uterina como um mero bem jurídico, mas não a título de direito subjectivo do nascituro [artº 25º].

Daí que, considerando que só há nascimento completo, para o Direito, quando o feto se separa inteiramente do útero materno, e que ao falarmos de vida nos estamos a reportar ao ente acabado de nascer, querendo com isso significar que se trata de vida própria desse ser e não aquela que existia como mera dependência da vida da mãe [vida uterina ou intra-uterinacfr. Teoria Geral do Direito Civil, do Prof. Luís Carvalho Fernandes, Vol I, Tomo I, AAFDL, 206] - se considere que, no ordenamento jurídico português, apenas o nado-vivo é uma pessoa jurídica, pelo que, em consequência, o nascituro não é sujeito de direitos, encontrando-se, deste modo, desprovido de capacidade jurídica ou de capacidade de gozo de direitos, assim se excluindo a personalidade jurídica dos nascituros [artº 66º do CC], sem prejuízo de mesmo assim a lei portuguesa lhes reconhecer determinados direitos, que evidentemente estão dependentes do seu nascimento.

Deste modo, esta tese jurisprudencial sustenta que a lei não reconhece ao nascituro o direito a qualquer indemnização por danos não patrimoniais próprios, por morte do pai, que apenas é reconhecido aos filhos, que tenham nascido com vida e já existam à data da morte da vítima, pois, baseando-se a responsabilidade civil numa violação ilícita do direito de outrem, e pressupondo uma personalidade contemporânea da lesão, entende-se que ainda não há terceiro no momento da prática do facto ilícito, pelo que não se formou nenhum dever de indemnizar e o posterior nascimento da pessoa não pode fazer radicar na mesma um crédito indemnizatório e obrigar o infractor a satisfazê-lo.


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Porém, com o devido respeito que nos merece este entendimento, cremos que questões de justiça se sobrepõem, em defesa da tese contrária, sobreposição essa, ancorada no direito positivo aplicável.

Explicitemos, sendo que, no nosso entendimento, este direito existe, apesar de fundada numa argumentação diferente da seguida na jurisprudência citada, uma vez que o pedido indemnizatório é peticionado já depois do nascimento completo e com vida do menor A……….

O legislador, ao consagrar no artigo 496º do CC, que por morte da vítima, o direito à indemnização por danos não patrimoniais cabe (…) aos filhos, não distinguiu consoante se trate de filhos já nascidos à data da morte do pai, ou filhos já concebidos, mas só nascidos em data posterior.

E não o fez, cremos, de forma consciente, É que, por um lado, o legislador não podia ignorar que os danos morais decorrentes da morte do pai são precisamente iguais para o filho que nasceu um dia antes desse óbito ou para o que nasceu um dia depois dele, pelo que desta igualdade não deveriam brotar efeitos jurídicos distintos.

Por outro lado, é sempre enquanto filho, já nascido e vivente e, não enquanto nascituro, que o filho apenas concebido à data da morte do pai, reclama uma indemnização, «jure próprio», ao lesante.

Assim, analisada a problemática neste prisma, tudo indica que o vocábulo «filhos», abranja quer os nascidos, quer os filhos apenas concebidos à morte do pai – que depois nascem e vivem [artº 66º, nº 1 do CC], sem o que não pediriam, como «filhos» qualquer indemnização.

É claro que a esta interpretação, objectar-se-à que, aquando da conduta lesiva, causal da morte do pai, os «filhos» meramente concebidos, ainda não existiam, «qua tale», por força do disposto no nº 1 do artigo 66º do CC.

Porém, interpretando o conceito de «filhos» no sentido de abranger todos os que deveras o sejam, independentemente de terem nascido antes ou depois da morte do pai, tal objecção esvai-se e perde qualquer relevância.

É que o nº 2 do artigo 496º do CC, admitindo-se que alude aos «filhos» com tal amplitude, [em que até a palavra «filhos» é tomada no sentido comum] passa a consagrar – embora impliciter - mais um caso em que um direito (aqui, indemnizatório) provisoriamente se radica num nascituro [nº 2 do artigo 66º do CC]; direito que – como é habitual e típico nestes casos – se actualizará, quando, após o nascimento completo e com vida, surgir plenamente a qualidade de filho da vítima.

Esta é, na nossa opinião, a representação que melhor se ajusta – e a mais fiel – aos cânones interpretativo, assegurando a igualdade e a justiça, sem ferir a letra da lei, uma vez que, na verdade, o nº 2 do artº 496º do CC não distingue nunca se os filhos ali referidos são apenas os existentes à data da morte do pai.

Deste modo, entendendo a norma como incluindo todos os «filhos» da vítima, quer os que já tenham nascido à data da morte daquele ou ainda não, mas já concebidos, caminha-se e encontra-se uma solução equilibrada, que não fere a lei e que vai ao encontro igualmente do senso comum; interpretar-se de outra forma, seria negar aos filhos nascidos após a morte do pai, a qualidade de filhos a quem já se encontrava concedido e que vem efectivamente a ser filho da vítima, de pleno direito.

Assim, nesta interpretação, é para nós inequívoco que um nascituro (strito sensu) adquire retroactivamente todos os direitos que pertençam ou sejam reconhecidos ao filho biológico, a partir do seu nascimento completo e com vida.

Vg ainda para além do voto de vencido lavrado no Ac. do STJ de 17/02/2009, o voto de vencido do Cons. A. Santos Bernardino, in Ac. do STJ proferido em 09/10/2008, in proc. nº 07B4692.

Ou seja, os factos decorrentes de responsabilidade, que tenham ocorrido ainda no período em que ainda só havia nascituro (stricto sensu), não arreda este, depois de nascido, de accionar o direito a ser indemnizado como filho, que é, por direito próprio, de acordo com o previsto no artº 496º do CC, ficando apenas tal direito condicionado ao seu nascimento completo e com vida, por força do disposto no artº 66º do CC.

Igualmente, entendemos encontrar apoio constitucional nesta tese - que defende que o nascituro, que venha a nascer com vida, tem um direito próprio deste, aportado nos sofrimentos ou privações que o próprio irá sofrer ao longo da sua vida – atento o disposto no artº 26º da CRP, uma vez que o sofrimento e a dor de crescer sem sequer ter chegado a conhecer o progenitor nem de poder partilhar da sua companhia, carinho e afecto que poderia ter tido ou, de se sentir desamparado de conselhos e protecção desse mesmo progenitor ao longo das várias fases da sua vida, são violadores do direito à identidade pessoal, na vertente do direito à historicidade genética, pessoal, educacional e familiar e, desenvolvimento da personalidade com a figura parental.

Também o princípio da igualdade constitucionalmente consagrado [artº 13º] sustenta a tese por nós defendida, face à desigualdade de tratamento existente quanto a descendentes dos mesmos progenitores, consoante sejam nascituros que venham a nascer com vida, ou filhos já existentes [vg. com dias de vida] à data do facto ilícito, pois em todos os casos existirá o sentimento de ausência da figura paterna, essencial na formação e desenvolvimento da identidade e personalidade de cada pessoa.

Do mesmo modo, os artºs 24º e 25º da CRP, relativos ao direito à vida e à integridade moral das pessoas, devem ser chamados à colação no sentido de suportarem a posição defendida quanto ao ressarcimento destes danos, enquanto direito próprio do nascituro; por outro lado, há que ter em consideração a nova concepção que vem surgindo, dos danos não patrimoniais, já não perspectivados como mero sofrimento ou angústia (perturbação emocional), mas como “dano existencial” (categoria que foi construída sobretudo pela doutrina italiana) e que de forma simples e singela se pode dizer que é o dano que afecta negativamente o projecto de vida (“dano ao projecto de vida”) e que tem um espectro mais abrangente que o tradicional modelo do “dano moral”. Neste contexto, é inequívoco que um nascituro que nasça com vida e que fica órfão de pai, que vai crescer sem sequer o conhecer, sem a sua ajuda e sentir o seu afecto e presença, é um claro dano à sua existência e um facto que põe em causa o livre desenvolvimento da sua identidade e da sua personalidade.


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Revertendo agora ao caso sub judice e atendendo a tudo quanto se deixou exposto, vejamos da justeza do montante indemnizatório peticionado, que é de 37.500.00€, [e não de 17.500,00€, como por manifesto lapso se mostra escrito nas conclusões de recurso] tendo em consideração o disposto no artº 496º e 564º, nº 2 do CC.

E neste tocante, resulta da matéria dada como provada que a vítima tinha apenas 25 anos à data do acidente, era uma pessoal saudável e com esperança de longa vida [cfr. pontos 14, 21, 36, 38] e que o autor, menor, percorreu todo o período de tempo da 1ª infância, desde a amamentação até ao berço, absolutamente privado dos carinhos, dos abraços e das carícias do seu pai, e vai continuar o seu crescimento e vida adulta privado da companhia, dos conselhos, do apoio, dos ensinamentos e do acompanhamento do seu progenitor, tem um grande desgosto resultante da morte do pai e de nunca o ter chegado a conhecer, sentido a diferença em relação a outras crianças da sua idade [pontos 20, 41, 42].

Assim, conjugando toda esta factualidade relevante, e tendo ainda em consideração que, o autor que está quase a atingir a maioridade, passou toda a infância e adolescência, privado da presença paterna, entende-se por adequado, por recurso à equidade, fixar a indemnização devida ao autor, menor, em 30.000,00€, pelo dano não patrimonial resultante da privação física do pai ao longo da sua vida.


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Mas, o autor, peticiona ainda a quantia de 94.272.80€ [quantia peticionada na petição inicial, ao contrário do peticionado em sede de alegações jurisdicionais, que se percebe ser fruto de arredondamentos] a título de indemnização pela prestação alimentar que lhe é devida, alegando que a vítima auferia 798,08/mês, e que seguramente iria contribuir com 249,40€ mensais a título de alimentos, para o seu sustento, pelo que tendo em consideração que a idade média de dependência dos filhos em relação aos pais -27 anos - altura em que era previsível ter concluído um curso superior, e ingressasse no mercado de trabalho, reclama a este título a quantia supra referida.

Ora, resulta do disposto na alínea c), do nº 1 do artº 2009 do CC, a obrigação dos pais de prestarem alimentos aos filhos; resulta igualmente do disposto no nº 1 do artº 1878º do CC que cabe aos pais zelar pelo sustento dos filhos; e quanto à noção de alimentos, esta encontra-se definida no artº 2003º do CC, entendendo-se por alimentos tudo o que é indispensável ao sustento, habitação e vestuário, bem como a instrução, e educação do alimentado no caso deste ser menor.

Porém da factualidade provada apenas resulta que a vítima, com 25 anos, tinha uma esperança de vida de 46 anos e que à data da morte auferia 798,08€ mensais pelo trabalho que exercia como motorista, para a empresa I……….., pelo que todo o silogismo terá de ser feito, com base nas regras de equidade [artº 4º], sendo certo que esta obrigação de alimentos pertence a ambos os progenitores e não apenas ao pai.

Assim, face ao rendimento à data auferido pela vítima, crê-se ser exagerada a alegação de que o mesmo contribuiria com a quantia de 250,00€, pelo que, a mesma se entende por adequada, se fixada em 150,00€, e apenas ao longo da menoridade do autor – 18 anos - [uma vez que se desconhece se o mesmo optaria ou optou ou não por estudos universitários e face ao disposto no artº 1880º do CC, que mitiga esta responsabilidade em termos de razoabilidade da exigência], o que significa o apuramento de uma indemnização, devida a este título de 37.800,00€ [150,00€*14*18].

Também entendemos não ser caso de aplicação do disposto no nº 2 do artº 1905º, na redacção dada pela Lei nº 122/2015 de 01/09, uma vez que os alimentos aqui peticionados respeitam o mesmo critério de razoabilidade de exigência fixado no artº 1880º do CC e, no caso concreto, inexiste qualquer elemento que nos elucide se o menor completou ou não a sua formação profissional ou estudos universitários.

Face ao exposto, impõe-se concluir pela improcedência do recurso interposto pela R. E.P – Estradas de Portugal, E.P.E., e pela procedência parcial do recurso interposto pelo autor A………. representado por sua mãe B…………., condenando a Ré Estradas de Portugal, E.P.E. no pagamento ao autor de uma indemnização fixada em 30.000,00€ pelo dano não patrimonial próprio e, 37.800,00€ pela privação da prestação alimentar devida, improcedendo tudo o mais peticionado.

DECISÃO

Atento o supra exposto:

1. Nega-se provimento ao recurso interposto pela R. Estradas de Portugal, E.P.E.

2. Concede-se parcial provimento ao recurso interposto pelo autor A……… representado por sua mãe B……….., condenando-se a R. Estradas de Portugal – E.P.E. no pagamento, a título de indemnização, em 30.000,00€ pelo dano não patrimonial próprio e, 37.800,00€ pela privação da prestação alimentar devida, num total de 67.800.00€, a que acrescem os respectivos juros de mora, contados à taxa legal, que em cada momento vigorarem, desde a citação até integral pagamento, improcedendo tudo o mais peticionado.

3. Mantém-se o mais decidido na decisão recorrida.

Custas a cargo do recorrente e recorrida, na proporção do decaímento.

Lisboa, 30 de Junho de 2016. – Maria do Céu Dias Rosa das Neves (relatora) – Jorge Artur Madeira dos Santos – José Augusto Araújo Veloso.