Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:079/11.0BEAVR
Data do Acordão:07/01/2020
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:ARAGÃO SEIA
Sumário:
Nº Convencional:JSTA000P26128
Nº do Documento:SA220200701079/11
Data de Entrada:09/17/2019
Recorrente:A........, LDA.
Recorrido 1:AT – AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: Acordam na Secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo

A…….., Lda., com os demais sinais dos autos, interpõe recurso de revista excepcional, ao abrigo do disposto no artigo 150.º do CPTA, do acórdão do TCA Norte, proferido em 15/11/2018, que negou provimento ao recurso interposto da sentença de improcedência da impugnação judicial instaurada contra acto de liquidação adicional de IRC referente ao exercício de 2009.
Este recurso de revista foi admitido por acórdão datado de 11.07.2019.

Formulou alegações que rematou com o seguinte quadro conclusivo:
1ª. A presente revista é admissível uma vez que o seu objeto envolve a apreciação de questões de importância fundamental, em função da sua relevância jurídica e da sua relevância social.
2ª. Nos termos do art.º 434.º, n.º 1, do Código Civil, a eficácia retroativa da resolução de um contrato de compra e venda conduz à reconstituição do estado anterior à sua celebração, de modo que de tal instituto jurídico resultará que as partes contratuais devem ficar na situação em que estariam se não tivessem celebrado o contrato, restabelecendo-se desse modo o status quo ante.
3ª. Daí que as prestações contratuais relativas a um contrato resolvido, mesmo que já realizadas, caducam por efeito da eficácia retroativa da resolução contratual.
4ª. Assim, por efeito da resolução do contrato de compra e venda do bem imóvel o direito à perceção do preço nunca existiu na esfera do vendedor e, portanto, o rendimento de mais-valia imobiliário nunca foi realizado pelo vendedor.
5ª. Com a resolução de um contrato de compra e venda de bens imóveis verifica-se a superveniente intervenção de um facto jurídico extintivo que elimina da ordem jurídica (de resto, com eficácia ex tunc) a subsistência do facto tributário (a realização de uma mais-valia), tudo se passando como se o facto tributário nunca tivesse tido existência, pois o negócio jurídico que lhe serve de causa (o contrato de compra e venda) foi eliminado da ordem jurídica com efeitos retroativos.
6ª. Portanto, a eficácia retroativa da resolução contratual, ao eliminar o facto tributário e ao repor o status quo ante, exclui a existência de qualquer ganho e, por consequência, impede que possa haver lugar a tributação, pois o próprio momento genético do crédito foi eliminado da ordem jurídica, pelo que não poderá deixar de se concluir que, na verdade, inexiste qualquer crédito (direito ao recebimento do preço da venda) que tenha surgido na esfera jurídica do vendedor e, logo, não há rédito - e, muito menos, mais-valia - sobre o qual pudesse incidir a tributação.
7ª. De resto, a interpretação segundo a qual o preceito do art.º 18.º, n.º 1, do CIRC foi aplicado pelas instâncias afigura-se como ofensiva da Constituição, por violação dos princípios da segurança jurídica e da proporcionalidade, ínsitos no princípio do Estado de direito democrático (art.º 22.º da Constituição) e do princípio da capacidade contributiva na tributação das empresas (art.º 104.º, n.º 2, da Constituição).
Termos em que, e nos demais de direito, deve ser concedida a revista e, revogando-se o douto Acórdão recorrido, ser a impugnação judicial julgada procedente, determinando-se a anulação da liquidação adicional de IRC impugnada.

Não foram apresentadas contra-alegações.

O Exmo. Magistrado do Ministério Público emitiu douto parecer no sentido de que deve ser negado provimento ao recurso.

Respondeu a recorrente contrapondo pelo provimento do recurso.

Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

No acórdão recorrido consta como provada a seguinte matéria de facto:
1. No dia 5 de Junho de 2009, a Impugnante celebrou um contrato de compra e venda de um prédio misto com a sociedade “B……….., Lda.”;
2. Consta do contrato referido em 1) que «a venda é feita pelo preço de cinco milhões cento e sessenta e seis mil euros, sendo a importância de três milhões quinhentos e oitenta mil euros a pagar directamente à sociedade vendedora e o montante de um milhão e quinhentos e oitenta e seis mil euros a entregar à “C……………., Lda.”, a quem a sociedade ora vendedora comprou o prédio (...) que este não está recebido (...) estipulando-se o prazo de três anos para o seu recebimento por parte da vendedora, podendo ser o pagamento feito de uma só vez ou fraccionadamente (...)”;
3. A Impugnante apresentou a 27.05.2010 a declaração de IRC referente ao ano de 2009 onde fez constar, como proveitos, a totalidade do preço de 5.166.000,00€.
Nada mais se levou ao probatório.

Há que conhecer do recurso que nos vem dirigido.
Em causa está a liquidação de IRC/2009, efectuada com base na declaração de rendimentos apresentada e onde consta como proveitos do exercício o valor de 5.166.000,00€ decorrente da venda de imóvel titulada por escritura pública de compra e venda outorgada em 05.06.2009.
Como se deixou exarado no acórdão recorrido, a impugnante sindicou a legalidade dessa liquidação com fundamento na incorreção do montante de proveitos declarados, por não ter recebido nesse exercício a globalidade dos 5.166.000,00€, ficando por receber 3.580.000,00€, quantia que, segundo o contrato, seria paga no prazo de 3 anos; e advogando que neste tipo de contratos - de execução duradoura ou diferida - o facto tributário é constituído pela sucessiva concretização no tempo dos incrementos patrimoniais decorrentes do recebimento das prestações, pretendia a anulação da liquidação na parte correspondente ao imposto que deriva de um incorrecto acréscimo à matéria colectável da quantia de 3.580.000,00€.
Quanto a esta questão, o acórdão manteve a decisão de improcedência da impugnação proferida em 1.ª instância, julgando, em síntese, que ainda que o valor integral do preço não tivesse sido recebido em 2009, o certo é que o valor global não podia deixar de ter relevância fiscal nesse exercício por força do princípio da especialização de exercícios contido no artigo 18.º, n.º 3, al. a), do CIRC.
Todavia, depreende-se do teor das alegações deste recurso que a impugnante não se insurge contra esta primeira parte do acórdão, mas, tão só, contra a decisão da questão examinada na sua segunda parte (mais precisamente no ponto 2.2.4.), relativa à resolução do contrato que em 2013 foi judicialmente declarada e sua relevância fiscal no exercício de 2009, questão que servira de suporte ao pedido de revisão que formulara.
Relativamente a essa questão o acórdão recorrido refere o seguinte:
«2.2.4. Entretanto, apresentou a ora Recorrente pedido de revisão da liquidação aqui em causa, o qual foi remetido a este tribunal de recurso a coberto do artigo 111.º, n.º 4 do CPPT.
No pedido de revisão continua a ora Recorrente a pugnar pela anulação da liquidação com fundamento no não recebimento do montante de 3.580.000,00€, juntando agora cópia da sentença que declarou resolvido o contrato de compra e venda do imóvel em causa, transitada em julgado, proferida no âmbito do processo que correu termos sob o n.º 2466/12.5T2AVR da Comarca do Baixo Vouga.
Ora, como supra referimos, por força do princípio da especialização de exercícios, a tributação em sede de IRC da venda do imóvel declarada pela ora Recorrente é independente do recebimento do respectivo preço (cf. artigo 18.º do CIRC).
O que releva é o momento em que nasceu o crédito e não o momento em que é pago o preço, pelo que a liquidação de IRC do ano de 2009 está de acordo com a lei.
Por seu turno, a resolução do contrato de compra e venda em 2013 não tem qualquer repercussão na matéria tributável de 2009 nem na liquidação aqui em causa.
Na verdade, a resolução do contrato de compra e venda e o eventual não recebimento do preço, declarado como proveito na data da venda (2009), apenas poderá ter relevância contabilística e influenciar negativamente a matéria tributável do ano em que tal se verificou (2013), designadamente mediante a anulação desse crédito. Mas não terá qualquer efeito na liquidação aqui impugnada. Razão por que, também por aqui, se não vê qualquer fundamento para a anulação da liquidação de IRC de 2009.».

Neste recurso de revista, a recorrente continua a insistir que a resolução do contrato tem efeitos retroactivos, revestindo a natureza de facto jurídico extintivo com eficácia ex tunc, e tendo as partes sido restituídas ao status quo ante, não existe qualquer crédito/proveito derivado do preço da venda, tudo se passando como se o facto tributário nunca tivesse ocorrido; neste contexto, advoga que a interpretação dada à norma contida no artigo 18.º n.º 1 do CIRC viola os princípios da segurança jurídica, da proporcionalidade e da capacidade contributiva contemplados nos artigos 2.º e 104.º n.º 2 da Constituição.

As questões que se colocam (delimitadas pelo acórdão que admitiu o presente recurso) são:
I- saber se a comprovada resolução do contrato de compra e venda, restituindo as partes ao status quo ante, designadamente quanto ao direito de obter a restituição do preço, se repercute na vertente tributária, eliminando o proveito com efeitos retroactivos e eficácia ex tunc, como se tal facto tributário nunca tivesse existido;
II- se o princípio da especialização dos exercícios, previsto no artigo 18.º n.º 1 do CIRC, pode obstar a que os efeitos da resolução do contrato operem em matéria tributária face a princípios constitucionais como os da segurança jurídica, da proporcionalidade e da capacidade contributiva na tributação das empresas.

No essencial, pretende-se saber quais os efeitos que a resolução do contrato de compra e venda, decretada por sentença datada de 25.10.2013, produzem na liquidação de imposto de IRC do ano de 2009.
Dispunha à data o artigo 18.º, n.º 1 do CIRC que, os rendimentos e os gastos, assim como as outras componentes positivas ou negativas do lucro tributável, são imputáveis ao período de tributação em que sejam obtidos ou suportados, independentemente do seu recebimento ou pagamento, de acordo com o regime de periodização económica.
Esta norma consagra o princípio da especialização dos exercícios que, conjugado com o princípio da anualidade dos impostos, impõe que o lucro tributável das empresas será determinado anualmente, correspondendo, portanto, ao ano civil.
Sobre este princípio tem este Supremo Tribunal dito que, ao abrigo do princípio da especialização dos exercícios, “os rendimentos e os gastos, assim como as outras componentes positivas ou negativas do lucro tributável, são imputáveis ao período de tributação em que sejam obtidos ou suportados, independentemente do seu recebimento ou pagamento, de acordo com o regime de periodização económica” (n.º 1 do artigo 18.º do Código do IRC).
Do princípio da especialização dos exercícios resulta, assim, uma segmentação da vida das empresas em períodos relativamente independentes entre si – os exercícios económicos –, tendo em vista a tributação da riqueza gerada em cada um desses exercícios, independentemente do seu efectivo recebimento. Atende-se, pois, a um critério económico e não a um critério financeiro, pelo que devem ser considerados e contabilizados num determinado exercício todos os créditos e débitos respeitantes a esse exercício, e não somente os recebimentos e pagamentos que nele ocorram (neste sentido vide, entre outros, o Acórdão deste STA proferido a 3 de Abril de 2013 no âmbito do Processo n.º 0963/12 e a 2 de Março de 2016 no âmbito do Processo n.º 01204/13).
Por sua vez, dispunha à data o artigo 38.º da LGT, sob a epígrafe “Ineficácia de actos e negócios jurídicos”:
1 - A ineficácia dos negócios jurídicos não obsta à tributação, no momento em que esta deva legalmente ocorrer, caso já se tenham produzido os efeitos económicos pretendidos pelas partes.
2 - São ineficazes no âmbito tributário os actos ou negócios jurídicos essencial ou principalmente dirigidos, por meios artificiosos ou fraudulentos e com abuso das formas jurídicas, à redução, eliminação ou diferimento temporal de impostos que seriam devidos em resultado de factos, actos ou negócios jurídicos de idêntico fim económico, ou à obtenção de vantagens fiscais que não seriam alcançadas, total ou parcialmente, sem utilização desses meios, efectuando-se então a tributação de acordo com as normas aplicáveis na sua ausência e não se produzindo as vantagens fiscais referidas.

Já vimos que a resolução, por sentença, do contrato de compra e venda em causa nos autos, se deveu ao incumprimento total da obrigação do comprador, isto é, ao incumprimento da obrigação de pagar o preço acordado, tudo se passando, em consequência, como se o negócio não tivesse sido celebrado, tal como consta da própria sentença, uma vez que aí se determinou que a aqui impugnante continuou na posse do imóvel e mais se ordenou o cancelamento das inscrições prediais a favor da compradora e a que o negócio havia dado causa.
A resolução do contrato “consiste na destruição da relação contratual, validamente constituída, operada por um acto posterior de vontade de um dos contraentes, que pretende fazer regressar as partes à situação em que elas se encontrariam se o contrato não tivesse sido celebrado” (Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, Vol, II, pág. 238).
Na falta de disposição especial, a resolução é equiparada, quanto aos seus efeitos, à nulidade ou anulabilidade do negócio jurídico, nos termos do artigo 433.º do Cód. Civil.
A resolução tem efeito retroactivo, salvo se a retroactividade contrariar a vontade das partes (o que não é o caso dos autos) – artigo 434.º, n.º 1, do Cód. Civil.

Aquele “…artigo 38 .°, tal como o artigo 39.°, integra-se numa certa vertente do chamado "realismo" do Direito Fiscal. Determina-se a tributação dos efeitos económicos dos actos e negócios jurídicos, independentemente da eficácia ou validade dos negócios jurídicos que os visarem.
Porém, para ser tributados, os efeitos económicos que se tenham produzido e subsistirem, têm de caber na previsão de uma norma tributária.
Há que ter em atenção, nomeadamente, se essa norma tributa a realidade económica, ou a realidade jurídica, em termos de, por ex., exigir uma certa forma do negócio – cfr. neste sentido Diogo Leite de Campos, Benjamim da Silva Rodrigues e Jorge Lopes de Sousa, Lei Geral Tributária Anotada, 4.ª edição, pág. 301.
Em suma, nos termos do art.º 38.º, n.º 1.ª tributação só ocorrerá se, e na medida em que, tais efeitos económicos existam e recaiam na previsão de um tipo legal de imposto (Diogo Leite de Campos – Princípios Fundamentais do Direito Tributário, pág. 18).
Ora como refere Xavier de Basto (IRS, Incidência real…, pág. 385) a imposição de mais-valias está subordinada ao princípio da realização, segundo o qual estão excluídas da tributação as valorizações dos activos que não tenham sido objecto de alienação onerosa pelo respectivo titular.”, cfr. acórdão deste Supremo Tribunal, datado de 28.11.2012, recurso n.º 0536/12.
Portanto, o nosso sistema fiscal só visa a tributação dos ganhos reais ou potenciais, isto é, só deve ocorrer tributação quando se manifesta a capacidade contributiva pela ocorrência de um facto da vida real que importa para o interessado um acréscimo patrimonial, não visa a tributação de ganhos que não ocorreram, por falta de verificação do facto da vida real que o justifique, nem podem vir a ocorrer, ainda que por circunstâncias supervenientes, desde que esteja suficientemente demonstrada a inexistência de capacidade contributiva, ou seja, que não ocorreu o referido acréscimo patrimonial que justificaria a tributação.
Assim, temos que responder à primeira questão colocada de forma positiva e à segunda de forma negativa, ou seja, a comprovada resolução do contrato de compra e venda, restituindo as partes ao “status quo ante”, designadamente quanto ao direito de obter a restituição do preço, repercute-se na vertente tributária, eliminando o proveito com efeitos retroactivos e eficácia “ex tunc”, como se tal facto tributário nunca tivesse existido e o princípio da especialização dos exercícios, previsto no artigo 18.º n.º 1 do CIRC, não pode obstar a que os efeitos da resolução do contrato operem em matéria tributária face a princípios constitucionais como os da segurança jurídica, da proporcionalidade e da capacidade contributiva na tributação das empresas.

Pelo exposto, acordam os juízes que compõem a Secção do Contencioso Tributário deste Supremo Tribunal Administrativo em:
-conceder provimento ao recurso;
-revogar a decisão recorrida;
-julgar procedente a impugnação com os fundamentos atrás expostos e, em consequência, anular a liquidação impugnada.
Custas pela AT, com dispensa do remanescente da t.j., neste STA e no Tribunal Central.
D.n.

Lisboa, 1 de julho de 2020. – Aragão Seia (relator) – Suzana Tavares da Silva – Paulo Antunes.