Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:038/09.2BEPRT
Data do Acordão:11/18/2020
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:PAULA CADILHE RIBEIRO
Descritores:DOMÍNIO PÚBLICO HÍDRICO
USO PRIVATIVO DO DOMÍNIO PÚBLICO
CONCESSÃO
DIREITO DE SUPERFÍCIE
CONSTRUÇÃO DE IMÓVEL
Sumário:O concessionário de terreno do domínio público hídrico é proprietário das construções que nele implanta ao abrigo do contrato de concessão e nessa qualidade é sujeito passivo de IMI.
Nº Convencional:JSTA000P26739
Nº do Documento:SA220201118038/09
Data de Entrada:10/09/2020
Recorrente:A............., SA
Recorrido 1:AT – AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: Acordam na Secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo

1- Relatório

1.1 A…………, SA, identificada nos autos, recorreu para o Tribunal Central Administrativo Norte da sentença proferida no Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto, que julgou improcedente a impugnação judicial respeitante a Imposto Municipal sobre Imóveis (IMI), dos anos de 2003 a 2006.

1.2. A Recorrente conclui da seguinte forma as suas alegações de recurso:
"1. Salvo o devido respeito, não pode o Recorrente concordar com o teor da decisão sob recurso, pois que, a mesma se afasta do melhor enquadramento jurídico dos pressupostos fácticos sobre que assenta.
2. Ao abrigo ao referido DL n.º 330/2000 a propriedade do terrapleno adjacente ao cais de Gaia foi transmitida, independentemente de quaisquer outras formalidades, para a propriedade da Gaia Polis.
3. Nos termos do n.º 1 do art. 8.º CIMI a obrigatoriedade de pagamento de IMI incide, em primeira linha, sobre o proprietário do prédio, o qual nos termos dos diplomas legais em cima mencionados se encontra identificado.
4. Conforme se alcança do teor dos documentos juntos pela Impugnada, com a contestação, sob o doc. n.º 1, a Recorrente foi tributada em sede de IMI, no âmbito das liquidações aqui discutidas, na qualidade de proprietária das referidas frações, o que como vimos, não corresponde à realidade e consubstancia um erro sobre os pressupostos de facto e de direito da liquidação que não mereceu qualquer valoração por parte do Tribunal a quo.
5. A douta sentença a quo decide-se pela legalidade do imposto pelo facto de, no seu entendimento, a Recorrente deter um direito de superfície sobre o prédio. O direito de superfície, no entanto, é definido no Código Civil como um direito real menor, por oposição ao direito de propriedade, pois da definição legal resulta que o direito de superfície é um direito que incide sobre o solo ou a superfície de um prédio, pressupondo que um terceiro tem a propriedade sobre o referido solo ou prédio.
6. A decisão que determinou a legalidade das liquidações aqui discutidas não se pode manter, porquanto a Recorrente, em relação à tributação do prédio aqui descrito, não é sujeito passivo de IMI, na qualidade de proprietária.
7. A decisão sob recurso, na parte em que decide que é a Recorrente o sujeito passivo do imposto aqui discutido, exonerando a entidade gestora e proprietária do pagamento do imposto que incide sobre um prédio de que é proprietária e sobre o qual, por via contratual acautelou a obtenção de um substancial proveito económico é ofensivo do princípio da capacidade contributiva, previsto no art. 104.º da CRP, fazendo, nesta medida, a sentença a quo uma incorreta aplicação da referida norma constitucional.
8. No caso, a sentença sob recurso valida a tributação sobre uma entidade que não detém capacidade contributiva, pois não detém a propriedade do prédio e, com esta decisão, exonera do pagamento do respetivo imposto a sua proprietária que, dele retira os respetivos rendimentos e, nesta medida, detém a necessária capacidade contributiva para o pagamento do imposto.
9. O IMI, nos termos do art. 8.º do CIMI, é devido pelo proprietário, usufrutuário ou superficiário do prédio, não sendo aqui incluídos outros titulares de direitos reais. Não tendo o legislador incluído outros direitos reais na norma constante do artigo 8.º do CIMI, resulta claro que o mesmo pretendeu construir uma previsão taxativa ao nível da incidência subjetiva, ficando assim afastada a possibilidade de incidência subjetiva da tributação aqui discutida.
10. Sobre os bens do domínio público, como era o caso à data da concessão, apenas pode haver lugar a aquisição de direitos de uso privativo através de concessão ou licença. Direitos esses que não podem ser qualificados como de natureza real, seja de propriedade, usufruto ou superfície.
11. Sem prescindir, os bens do domínio público não podem considerar-se abrangidos pela definição de prédio constante do artigo 2.º do CIMI, pois são bens excluídos do comércio jurídico e não têm valor económico e, portanto, não podem ser incluídos no respetivo âmbito de tributação.
12. Nesta medida, a decisão sob recurso, na parte em que determina a obrigatoriedade do imposto aqui discutido, para o qual a respetiva incidência não está prevista no CIMI, viola o princípio da legalidade fiscal, previsto no artigo 103.º n.º 2 da CRP.
13. Assim, a douta decisão impugnada não pode manter-se, pois violou as normas legais supra citadas.
TERMOS EM QUE, revogando a douta decisão impugnada, farão Vossas Excelências inteira e sã JUSTIÇA."

1.3. Não foram apresentadas contra-alegações.

1.4. O Juiz Desembargador Relator declarou a incompetência em razão da hierarquia do Tribunal Central Administrativo Norte para conhecer do recurso e a competência deste Supremo Tribunal Administrativo para o efeito.

1.5. Remetidos os autos a este Tribunal o excelentíssimo Procurador-Geral Adjunto emitiu douto parecer no sentido de ser negado provimento ao recurso.

2. Fundamentação de facto

Remete-se para os termos da decisão da 1.ª instância que decidiu a matéria de facto (artigo 663.°, n.º 6, ex vi do artigo 679.°, ambos do Código de Processo Civil).

3. Fundamentação de Direito
3.1. A questão que se coloca no presente recurso é saber se sentença recorrida padece de erro de julgamento por entender que a Recorrente é sujeito passivo de IMI relativamente aos edifícios que, enquanto concessionária de um terreno do domínio público hídrico, nele implantou.

3.2. Em causa nos autos estão as liquidações de IMI relativas aos anos de 2003 a 2006, respeitantes às frações "A", "B", "C", "E1 ", e "PARQ" do prédio inscrito na matriz predial urbana da freguesia de ………, sob o artigo 9001, que o Tribunal recorrido julgou legais.

Subjacente às liquidações sindicadas está o Contrato de Concessão do Direito de Exploração Turística - Hoteleira do Terrapleno Adjacente ao Cais de Gaia, celebrado em 03/03/2000, entre a APDL - Administração dos Portos do Douro e Leixões, SA, e a sociedade B…………, SA, e que teve por objeto a construção e exploração turístico-hoteleira do terrapleno adjacente ao cais de Gaia, conferindo à concessionária o direito de utilização exclusiva do terreno dominial a que respeita. Nesse contrato constava que a outorgante, B…………, SA, constituiria uma sociedade anónima, a qual sucederia na posição e titularidade de todos os direitos e obrigações emergentes do contrato. Constava ainda do contrato (cláusula 8) que a área afeta à concessão, incluindo as infraestruturas de eletricidade, água e telefone, as obras, bens equipamentos ou instalações que viessem a ser realizadas, implantadas, ou adquiridas pela Concessionária integrariam o estabelecimento da concessão, sendo da sua responsabilidade a manutenção em estado de bom funcionamento, conservação e segurança destes bens e a substituição de todos os que se destruíssem ou se mostrassem inadequados para o fim da concessão. No termo da concessão ou no momento do seu eventual resgate, entrariam imediatamente na posse da Concedente, não assistindo à Concessionária quaisquer direitos sobre os mesmos (cláusula 9.1 e 25.1 do contrato). Prevê ainda o contrato que "A concessionária deverá, ainda manter permanentemente atualizado o registo discriminado de bens por ela adquiridos ou construídos que estejam afectos ao Estabelecimento da Concessão, com a indiciação dos respetivos valores, presumindo-se, na falta de registo, como sendo propriedade da Concedente" (cláusula 9.2) e que "Os bens adquiridos no número anterior, desde que devidamente registados, constituem propriedade da Concessionária" (cláusula 9.3.). A ora Recorrente assumiu a posição contratual da sociedade B…………, SA.
Defende a Recorrente que nos termos do n.º 1 do artigo 8.° do Código do IMI, a obrigatoriedade do pagamento do imposto incide em primeira linha sobre o proprietário do prédio, e que não é ela a proprietária do terrapleno adjacente ao cais de Gaia, mas antes a Gaia Polis, para quem a propriedade foi transmitida, ao abrigo do Decreto-Lei n.º 330/2000, independentemente de quaisquer outras formalidades.
E tendo sido tributada em sede de IMI na qualidade de proprietária das referidas frações, as liquidações assentam em erro sobre os pressupostos de facto e de direito, que o tribunal a quo não valorou, ao afirmar a legalidade das liquidações por considerar que a Recorrente detém um direito de superfície sobre o prédio. Alega ainda que a sentença recorrida na parte em que decide que a Recorrente é sujeito passivo do imposto, exonerando a entidade gestora e proprietária e sobre o qual, por via contratual, acautelou a obtenção de um substancial proveito económico, é ofensivo do princípio da capacidade contributiva, previsto no artigo 104.° da Constituição da República Portuguesa (CRP), e valida a tributação sobre uma entidade que não detém capacidade contributiva pois não detém a propriedade do prédio. Por último, alega que sobre os bens do domínio público, como era o caso ao tempo da concessão, apenas pode haver lugar a aquisição de direitos de uso privativo através de concessão e licença, direitos esses que não podem ser considerados de natureza real, seja de propriedade, usufruto ou superfície. E que os bens do domínio público não podem ser considerados pela definição de prédio do artigo 2.° do Código do IMI, pelo que a respetiva incidência não está prevista no Código do IMI, violando a liquidação o princípio da legalidade fiscal, previsto no artigo 103.° n.º 2 da CRP.

Como refere o excelentíssimo Procurador-Geral Adjunto no seu douto parecer, a questão controvertida, saber se são tributáveis em IMI os imóveis construídos pelo concessionário, ao abrigo de contrato de concessão em terreno do domínio público hídrico, não é nova, e tem vindo a ser decidida no sentido positivo pela jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo (acórdãos de 02/06/2010, processo 027/10, de 19/10/2011, processo 0351/11 e de 14/01/2015, processo 0280/12).

Importa notar que apesar de na petição inicial e em sede de alegações de recurso a Recorrente se reportar sempre ao terrapleno adjacente ao cais de Gaia, o IMI sindicado respeita, não ao terrapleno, mas às frações acima identificadas, que correspondem a edifícios nele implantados pela Recorrente com base no contrato de concessão [lê-se na sentença recorrida, e não é posto em causa no recurso: "Com base no referido contrato de concessão, a Impugnante implantou naquele terreno dominial um conjunto de edifícios, que originaram os artigos matriciais a que respeita a liquidação impugnada: fracções "A", "B", "C", "E1", "E2", "F" e "PARQ" do prédio urbano inscrito na matriz predial da freguesia de ……… sob o artigo 9001"].

A sentença recorrida entendeu que o poder de se construir em solo alheio configura o direito de superfície, regulado nos artigos 1524.° e seguintes do Código Civil (CC), e que a Recorrente é titular de um direito de superfície dos solos em que ela própria edificou os imóveis a que respeitam as liquidações, tendo assim "adquirido a qualidade de superficiária das obras que edificou, no exercício do direito de uso privativo do terreno".

Em abono da sua tese cita o acórdão deste Supremo Tribunal Administrativo de 19/10/2011, proferido no processo 0351/11, que, na verdade, sustenta tese diferente da sua, mas que na prática conduz, como veremos, a resultado idêntico, o da legalidade das liquidações.

Efetivamente, no acórdão citado foram apreciadas duas situações que mereceram soluções opostas. Por um lado, estava em causa a liquidação do IMI respeitante ao terreno que integrava o domínio público hídrico e, por outro, a liquidação respeitante à construção nele implantada pelo concessionário.
No que respeita à primeira situação, o Supremo entendeu que os contratos de concessão de uso privativo do domínio público hídrico por particulares, não confere a estes o estatuto de superficiários, ao contrário do decidido na sentença recorrida. Pode ler-se nesse acórdão:
"É, certo que é inquestionável que o terreno onde a impugnante procedeu à edificação do prédio constitui um terreno do domínio público hídrico.
Ora, o direito de superfície (isto é, a concessão para plantar ou edificar em terreno alheio) é um direito real inerente a um imóvel, na maioria dos casos um prédio rústico, e que, no caso vertente, teria necessariamente de incidir sobre a parcela de terreno do
domínio público.
E, como é sabido, os terrenos do domínio público não podem ser objecto de contratos de natureza privatística, designadamente de contratos de constituição de direito de superfície. Eles apenas podem ser objecto de contratos administrativos de concessão, como resulta expressamente do DL nº 468/71, de 5/11, que prevê o regime jurídico dos terrenos do domínio público hídrico.
Mas, embora sendo discutível se o direito do concessionário tem natureza jurídica de um verdadeiro direito real sobre coisa alheia, ou se tem natureza jurídica de direito pessoal de gozo sobre coisa pública (questão a que, aliás, a sentença recorrida dá resposta - afirmando, com suporte na jurisprudência e doutrina ali citadas, que pode qualificar-se como um direito pessoal de gozo de natureza pública), ou, ainda, se tem natureza jurídica de um mero direito obrigacional (cfr. Freitas do Amaral, A Utilização do Domínio Público pelos Particulares, Lisboa, 1965, 266 e sgts. - devendo ter-se em conta, apesar de tudo, que esta obra é anterior à reformulação do regime jurídico dos terrenos do domínio público hídrico, operada pelo DL nº 468/71), o que nos parece manifesto é que os contratos de concessão de uso privativo do domínio hídrico por particulares não conferem a estes o estatuto de superficiários (direito real típico previsto no art. 1524º e sgts. do CCivil), estando os respectivos concessionários sujeitos a um regime jurídico autónomo e diferenciado daquele a que está sujeito o superficiário (embora os respectivos regimes possam ter algumas semelhanças em determinados aspectos).
Sendo assim, não sendo a impugnante, nem podendo ser, titular de qualquer direito de superfície sobre a dita parcela de terreno, que integra o domínio público hídrico, e não podendo, igualmente, de acordo com as regras de interpretação das normas jurídicas tributárias, reconduzir-se o conceito de superficiário inserto no nº 2 do art. 8º do CIMI ao conceito de concessionário, as liquidações de IMI de 2003 e 2004 relativas ao terreno concessionado não podem manter-se, pelo que serão anuladas."

Ou seja, relativamente à liquidação do IMI que havia sido feita a incidir sobre o terreno, o Supremo entendeu que o concessionário não era nem proprietário (porque nem podia ser), nem usufrutuário e, assim, a liquidação era ilegal. Já no que toca à liquidação de IMI respeitante à edificação implantada pelo concessionário no terreno, entendeu que em termos de conteúdo do direito de uso privativo, o direito do concessionário sobre os edifícios ou prédios que tenha construído na área afeta ao seu uso privativo é, nos termos da lei, um verdadeiro direito de propriedade, independentemente da existência de algumas limitações a esse direito. A este propósito escreveu-se:
“E, assim sendo, adquirindo o concessionário ou subconcessionário o estatuto de proprietário das construções que edificou no exercício do direito de uso privativo do terreno do domínio público, as quais são objecto de descrição autónoma tanto no registo predial como na matriz predial, como prédios urbanos, torna-se inquestionável que ele é o sujeito passivo de IMI, nos termos do nº 1 do art. 8º do Código do IMI, segundo o qual «o imposto é devido pelo proprietário do prédio em 31 de Dezembro do ano a que o mesmo respeitar», não havendo qualquer interpretação extensiva ou aplicação analógica do preceito (só ocorre interpretação extensiva quando a solução para uma determinada hipótese não está contida no texto da lei mas é abrangida pelo seu espírito e só ocorre integração analógica quando a solução de determinada hipótese não se encontra nem na letra nem no espírito da norma) nem, consequentemente se verificando as invocadas inconstitucionalidades.
Portanto, e independentemente de existência de algumas limitações ao direito de propriedade, a verdade é que a recorrente, enquanto se mantiver titular da concessão, é a verdadeira proprietária das construções, constituindo-se, por isso sujeito passivo de IMI."

Ora, a questão que é colocada nos autos, e em particular neste recurso, enquadra-se neste segundo segmento do aresto citado, cuja fundamentação aqui se acolhe. O direito da Recorrente sobre as edificações que implantou no terrapleno adjacente ao cais de Gaia não é de usufrutuário, como entendeu a sentença recorrida, mas sim de proprietário, sendo por isso sujeito passivo de IMI.

E sendo proprietária das edificações sobre as quais incidiu o IMI impugnado, carece de sustento o invocado pela Recorrente relativamente à violação dos princípios constitucionais da capacidade contributiva, uma vez que paga imposto nos mesmos termos que os outros proprietários de prédios urbanos, e da legalidade fiscal, porque ao contrário do que defende, o imposto não incide sobre bens do domínio público.

O recurso não merece, pois, provimento.

4- Decisão
Pelo exposto, em conferência, na Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo, nega-se provimento ao recurso.

Custas pela Recorrente.

Lisboa, 18 de novembro de 2020. - Paula Fernanda Cadilhe Ribeiro (relatora) - Francisco António Pedrosa de Areal Rothes - Joaquim Manuel Charneca Condesso.