Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0399/15
Data do Acordão:04/05/2017
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:FRANCISCO ROTHES
Descritores:JUROS INDEMNIZATÓRIOS
ERRO DOS SERVIÇOS
PRINCÍPIO DA LEGALIDADE
INCONSTITUCIONALIDADE
Sumário:I - A AT, porque está sujeita ao princípio da legalidade (cfr. art. 266.º, n.º 2, da CRP e art. 55.º da LGT), não pode deixar de aplicar uma norma com fundamento em inconstitucionalidade, a menos que o Tribunal Constitucional já tenha declarada a inconstitucionalidade da mesma com força obrigatória geral (cfr. art. 281.º da CRP) ou se esteja perante o desrespeito por normas constitucionais directamente aplicáveis e vinculativas, como as que se referem a direitos, liberdades e garantias (cfr. art. 18.º, n.º 1, da CRP).
II - Para efeitos de pagamento de juros indemnizatórios ao contribuinte ao abrigo do art. 43.º da LGT, não pode ser assacado aos serviços da AT qualquer erro que, por si, tenha determinado o pagamento de dívida tributária em montante superior ao legalmente devido, se não estava na sua disponibilidade decidir de modo diferente daquele que decidiu.
Nº Convencional:JSTA000P21701
Nº do Documento:SA2201704050399
Data de Entrada:04/06/2015
Recorrente:A............, SA
Recorrido 1:AT - AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: Recurso jurisdicional da sentença proferida no processo de impugnação judicial com o n.º 777/11.8BESNT

1. RELATÓRIO

1.1 A sociedade denominada “A…………, S.A.” (doravante Impugnante ou Recorrente) recorre para o Supremo Tribunal Administrativo da sentença proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra, na parte em que, relativamente aos juros indemnizatórios, julgou improcedente a impugnação judicial por aquela deduzida contra a decisão de indeferimento da reclamação graciosa, por sua vez apresentada contra a liquidação de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas (IRC) do ano de 2008.

1.2 O recurso foi admitido, para subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo e a Recorrente apresentou as respectivas alegações, que resumiu em conclusões do seguinte teor (Porque usamos o itálico nas transcrições, os excertos que estavam em itálico no original surgirão, aqui como adiante, em tipo normal.):

«A. A impugnação judicial já foi deferida com fundamento na inconstitucionalidade da norma do artigo 5.º, n.º 1 da Lei n.º 64/2008, de 5 de Dezembro.

B. São devidos juros indemnizatórios quando se apurou que houve erro imputável aos serviços e o tal erro de direito persiste de forma igual, independentemente se se trata de um acto de liquidação praticado pela Administração Tributária ou um acto de autoliquidação praticado pelo próprio contribuinte.

C. Ou seja, nem a circunstância de estar em causa nos autos um acto de autoliquidação constitui um óbice ao pagamento daqueles juros ao abrigo do preceituado no artigo 43.º da LGT, nem tão-pouco poderá sustentar-se a inexistência de erro imputável aos serviços com fundamento na adstrição da Administração Tributária ao cumprimento da lei e no facto de estar na base da ilegalidade do acto de autoliquidação impugnado a inconstitucionalidade material de uma norma.

D. A este respeito pronunciou-se já por diversas vezes este Supremo Tribunal no sentido de o dever de obediência da Administração Tributária à lei compreender todas as fontes normativas (de quanto resulta um dever de obediência, prima facie, à CRP, enquanto Lei Fundamental do Estado) e de o direito do contribuinte a juros indemnizatórios, atenta a função reparadora dos mesmos em face de uma actuação ilegal da Administração Tributária, estar dependente apenas da existência de um comportamento ilegal por parte da Administração Tributária de quanto resultem prejuízos para o contribuinte, como sucedeu no caso sub judice.

E. Desta forma, são devidos juros indemnizatórios desde a data do pagamento até à data da emissão da respectiva nota de crédito, o que na presente data perfaz o valor de € 1.597,97.

Neste termos […] deve ser dado provimento ao recurso e revogada a decisão na parte em que decidiu pela improcedência relativa aos juros indemnizatórios».

1.3 Não foram apresentadas contra-alegações.

1.4 Recebidos os autos neste Supremo Tribunal Administrativo, foi dada vista ao Ministério Público e o Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido de que seja negado provimento ao recurso, com a seguinte fundamentação:

«[…] o tribunal “a quo” considerou que não se verificava erro imputável aos serviços, que fundamentasse a aplicação do disposto no artigo 43.º da Lei Geral Tributária.
É contra este entendimento que se insurge a recorrente, por entender que “é manifesta a existência de erro de direito consubstanciado na inconstitucionalidade da norma que determinou a sujeição dos encargos dedutíveis declarados pela ora Recorrida a uma tributação autónoma superior à devida e legalmente admissível”. Acrescentando que “tal erro de direito persiste de forma igual, independentemente se se trata de um acto de liquidação praticado pela autoridade tributária ou um acto de autoliquidação praticado pelo próprio contribuinte”.
Considera, assim, que a sentença recorrida incorreu em erro de julgamento, motivo pelo qual pede a sua revogação, invocando em apoio da sua tese a doutrina do acórdão do STA de 09/10/2012, proferido no processo n.º 0789/12, e demais jurisprudência ali citada.

3. Dispõe a este propósito o n.º 1 do artigo 43.º da LGT, que «são devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido».
No caso concreto dos autos estamos perante uma autoliquidação, caso em que tanto a matéria tributável como a liquidação são realizadas pelo próprio contribuinte, pelo que estará afastada a possibilidade de imputação do erro aos serviços, a não ser nos casos em que a liquidação for efectuada com base em orientações genéricas da administração tributária (n.º 2 do artigo 43.º da LGT), o que não ocorreu no caso concreto.
É certo que o artigo 100.º da LGT acolhe uma previsão ampla da obrigação do pagamento de juros indemnizatórios, na medida em que impõe o seu pagamento em «... caso de procedência total ou parcial de reclamações ou recursos administrativos, ou de processo judicial a favor do sujeito passivo, à imediata e plena reconstituição da situação que existiria se não tivesse sido cometida a ilegalidade,…» (Redacção da Lei 64-11/20 I de 30 de Dezembro).
Pese embora no caso dos autos estejamos perante uma autoliquidação, o recorrente apresentou reclamação graciosa e a AT não reconheceu a ilegalidade da liquidação com base no vício de inconstitucionalidade da norma aplicada, vício este que veio a ser reconhecido em sede de impugnação judicial pelo tribunal.
Daí que importe apreciar se a administração tributária poderia ou não formular um juízo de conformidade constitucional do disposto no art. 5.º, n.º 1 da Lei n.º 64/2008, para daí se concluir que a mesma, ao decidir a reclamação graciosa, incorreu em erro sobre os pressupostos de direito.
Sobre esta temática e num caso similar ao dos autos pronunciou-se recentemente o STA, no acórdão de 04/03/2015 (processo n.º 1529/14), apoiando-se em anterior jurisprudência e doutrina que citou, no sentido de que, “para efeitos de pagamento de juros indemnizatórios ao contribuinte, não pode ser imputado aos serviços da AT erro que, por si, tenha determinado o pagamento de dívida tributária em montante superior ao legalmente devido, uma vez que não estava na sua disponibilidade decidir de modo diferente daquele que decidiu”. E nessa medida conclui-se no citado aresto que «não podendo a errada consideração (no apuramento do imposto a pagar) de uma norma posteriormente julgada inconstitucional, ser atribuída a ilegal conduta da AT, também não pode legitimar a condenação nos juros indemnizatórios pedidos ao abrigo do art. 43.º da LGT por se não verificar um pressuposto de facto constitutivo de tal direito – o erro imputável aos serviços».
Aderindo, agora, a esta jurisprudência, cujos fundamentos se nos afiguram sólidos, entendemos que não há motivos para que a mesma seja alterada no caso concreto dos autos».

1.5 Colheram-se os vistos dos Conselheiros adjuntos.

1.6 Cumpre apreciar e decidir.


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2. FUNDAMENTAÇÃO

2.1 DE FACTO

A sentença recorrida deu como provados os seguintes factos:

«A) No exercício de 2008 a ora Impugnante, A…………, S.A., contabilizou despesas de representação e encargos com viaturas ligeiras de passageiros no valor total de € 150.051,56 – Cfr. documentos 1 e 3, juntos com a p.i., acordo;

B) Em 28 de Maio de 2009, a Impugnante entregou a declaração modelo 22 de IRC, relativa ao exercício de 2008, nela fazendo constar no campo 365 do quadro 10 – cálculo do imposto – o montante de € 17.881,36, que inclui € 15.005,16 correspondente à tributação autónoma aplicada sobre os encargos referidos na alínea antecedente – Cfr. idem;

C) A Impugnante ao apurar o valor que inscreveu no campo 365 do quadro 10, referido na alínea antecedente, aplicou as taxas de tributação autónoma previstas na Lei n.º 64/2008 de 5 de Dezembro – Cfr. idem;

D) Em 15 de Fevereiro de 2011 a Impugnante deduziu Reclamação Graciosa do acto tributário de autoliquidação de IRC, relativo ao exercício de 2008 – Cfr. carimbo aposto a fls. 4 do PAT, apenso;

E) Em 31 de Maio de 2011 foi proferido despacho, pelo Chefe de Divisão, por subdelegação da Directora de Finanças Adjunta de Lisboa, indeferindo a Reclamação Graciosa a que se refere a alínea antecedente, com os fundamentos constantes do projecto de decisão e da informação da Divisão de Justiça Administrativa da Direcção de Finanças de Lisboa proferida no processo 535/11 – Cfr. documento constante do PAT, a fls. 128 a 132, o qual se dá, aqui, por integralmente reproduzido».


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2.2 DE FACTO E DE DIREITO

2.2.1 AS QUESTÕES A APRECIAR E DECIDIR

A sentença recorrida, julgando a impugnação judicial parcialmente procedente, decidiu:

i) pela procedência quanto à autoliquidação de IRC na parte respeitante às tributações autónomas incidentes sobre os encargos com viaturas ligeiras de passageiros, por considerar que a norma contida no art. 5.º, n.º 1, da Lei n.º 64/2008, de 5 de Dezembro (que determinou a produção de efeitos desde 1 de Janeiro de 2008 do disposto no art. 1.º-A da mesma Lei, o qual alterou o art. 81.º do CIRC, agravando de 5% para 10% a taxa de tributação autónoma incidente sobre os encargos com viaturas ligeiras de passageiros e despesas de representação) consubstancia um caso de retroactividade fiscal, proibido por força do disposto no art. 103.º, n.º 3, da Constituição da República Portuguesa (CRP); e

ii) pela improcedência quanto ao pedido de juros indemnizatórios, por considerar que não se verifica erro imputável aos serviços que fundamente a aplicação do disposto no art. 43.º da Lei Geral Tributária (LGT).

Discordando da sentença na parte que lhe foi desfavorável, relativa à improcedência do pedido de juros indemnizatórios, a Impugnante dela recorre sustentando que, contrariamente ao que entendeu o Juiz do Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra, o facto de a AT estar vinculada ao cumprimento da lei e o facto de a ilegalidade do acto tributário decorrer da inconstitucionalidade material da norma aplicável, não obsta a que sejam devidos os peticionados juros indemnizatórios, invocando a favor deste entendimento a doutrina do acórdão da Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo de 9 de Outubro de 2002, proferido no processo n.º 789/02 (Acórdão publicado no Apêndice ao Diário da República de 12 de Março de 2004
(http://www.dre.pt/pdfgratisac/2002/32240.pdf), págs. 2202 a 2204, também disponível em
http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/fb1a1695b00afd4b80256c56003a4763.).
Assim, a questão a apreciar no presente recurso é a de saber se a AT está ou não obrigada ao pagamento dos ditos juros indemnizatórios, uma vez que a autoliquidação do imposto foi anulada e restituída parte do imposto, por se ter considerado que a aplicação do disposto no n.º 1 do art. 5.º da Lei n.º 64/2008, de 5 de Dezembro, violava o princípio da proibição da retroactividade fiscal, consagrado no art. 103.º, n.º 3 da CRP.

2.2.2 DOS JUROS INDEMNIZATÓRIOS – DA

A questão tem vindo a ser decidida reiterada e uniformemente por esta Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo (Vide os seguintes acórdãos da Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo:
- de 21 de Janeiro de 2015, proferido no processo n.º 703/14, publicado no Apêndice ao Diário da República de 17 de Maio de 2016 (http://www.dre.pt/pdfgratisac/2015/32210.pdf), págs. 204 a 208, também disponível em
http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/b852d90b97f399b180257dd6004f2c15;
- de 4 de Março de 2015, proferido no processo n.º 1529/14, publicado no Apêndice ao Diário da República de 17 de Maio de 2016 (http://www.dre.pt/pdfgratisac/2015/32210.pdf), págs. 836 a 842, também disponível em
http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/34af21b03b79ed3380257e03003b403a.), motivo por que nos vamos limitar a remeter para a fundamentação expendida no acórdão de 4 de Março de 2015, proferido no processo n.º 1529/14, em que as conclusões de recurso e a matéria de facto provada são em tudo idênticas, permitindo-nos apenas introduzir as alterações requeridas pela factualidade pertinente ao presente processo, o que faremos utilizando o tipo de letra normal, por oposição ao itálico da citação (As notas que no original estavam em rodapé serão transcritas no texto, entre parêntesis rectos.). Citando:
«Sob a epígrafe «Pagamento indevido da prestação tributária», nos nºs. 1 e 2 do art. 43º da LGT dispõe-se o seguinte:
«1. São devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido.
2. Considera-se também haver erro imputável aos serviços no casos em que, apesar da liquidação ser efectuada com base na declaração do contribuinte, este ter seguido, no seu preenchimento, as orientações genéricas da administração tributária, devidamente publicadas.
(…)»
E também o art. 100.º da LGT (Efeitos de decisão favorável ao sujeito passivo), acolhendo uma previsão ampla da obrigação de pagamento de juros indemnizatórios, impõe à AT a obrigação, em caso de procedência total ou parcial de reclamações ou recursos administrativos, ou de processo judicial a favor do sujeito passivo, da imediata e plena reconstituição da situação que existiria se não tivesse sido cometida a ilegalidade, compreendendo o pagamento de juros indemnizatórios, nos termos e condições previstos na lei (cfr. a redacção introduzida pela Lei n.º 64-B/2011, de 30/12).
No caso concreto dos autos, tratando-se de uma autoliquidação (caso em que tanto a matéria tributável como a liquidação são operadas pelo próprio contribuinte), a possibilidade de imputação do erro aos serviços estará afastada, a não ser que a liquidação haja sido efectuada com base em orientações genéricas da AT (n.º 2 do transcrito art. 43.º da LGT), o que, no caso, também não sucedeu.
[…] Sobre as circunstâncias em que, tendo sido determinada a anulação do imposto já anteriormente pago, a AT está obrigada ao pagamento de juros indemnizatórios, o STA tem vindo a pronunciar-se de forma uniforme, no sentido de dever distinguir-se entre a anulação da liquidação com fundamento em ilegalidades procedimentais e a anulação da liquidação com fundamento em ilegalidades substantivas inerentes à relação jurídica tributária.
A este propósito, exarou-se no acórdão de 4/11/2009, proc. n.º 0665/09 [(Acórdão publicado no Apêndice ao Diário da República de 19 de Abril de 2010
(http://www.dre.pt/pdfgratisac/2009/32240.pdf), págs. 1681 a 1687, também disponível em
http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/933164172b09efe28025766a004d7980.)], o seguinte (1) [(1)Sobre esta matéria cfr. igualmente Jorge Lopes de Sousa, Código de Procedimento e de Processo Tributário, Anotado e Comentado, Vol. I, 6.ª edição, Áreas Editora, 2011, anotações 5 a 7 ao art. 61.º, pp. 530 a 545.]:
«Aquela expressão «erro», sem qualquer qualificativo, abrange tanto o erro de facto como o erro de direito.
Mas, a utilização da expressão «erro», e não «vício» ou «ilegalidade» para aludir aos factos que podem servir de base à atribuição de juros, revela que se tiveram em mente apenas os vícios do acto anulado a que é adequada essa designação, que são o erro sobre os pressupostos de facto e o erro sobre os pressupostos de direito. (Sobre o uso desta terminologia, consagrada na doutrina e na jurisprudência, pode ver-se MÁRIO ESTEVES DE OLIVEIRA, Direito Administrativo, volume I, páginas 564-566).
Na verdade, há vícios dos actos administrativos e tributários a que não é adequada tal designação, nomeadamente os vícios de forma e a incompetência, pelo que a utilização daquela expressão «erro» têm um âmbito mais restrito do que a expressão «vício», que é utilizada legislativamente para referenciar qualquer ilegalidade.
Por outro lado, constata-se que no CPPT se utiliza a expressão «vícios» quando se pretende aludir, genericamente, a todas as ilegalidades susceptíveis de conduzirem à anulação dos actos, como é o caso dos arts. 101.º (arguição subsidiária de vícios) e 124.º (ordem de conhecimento dos vícios na sentença).
Por isso, é de concluir que o uso daquela expressão «erro», tem um alcance restritivo do tipo de vícios que podem servir de base ao direito a juros indemnizatórios.
Esta é, aliás, uma restrição que se compreende.
Na verdade, a existência de vícios de forma ou incompetência significa que houve uma violação de direitos procedimentais e formais dos administrados e, por isso, justifica-se a anulação do acto por estar afectado de ilegalidade.
Mas, o reconhecimento judicial de um vício daqueles tipos não implica a existência de qualquer vício na relação jurídica tributária, isto é, não implica qualquer juízo sobre o carácter devido ou indevido da prestação pecuniária cobrada pela Administração Fiscal com base no acto inválido, limitando-se a exprimir a desconformidade com a lei do procedimento adoptado para a declarar ou cobrar ou preterição de formalidade legal ou a falta de competência da autoridade que a exigiu.
Ora, é inquestionável que, quando se detecta um vício respeitante à relação jurídica tributária, se impõe a atribuição de uma indemnização ao contribuinte, pois a existência desse vício implica a lesão de uma situação jurídica subjectiva, consubstanciada na imposição ao contribuinte da efectivação de uma prestação patrimonial contrária ao direito.
Por isso, justifica-se que, nestas situações, não estando em dúvida que a exigência patrimonial feita ao contribuinte implica para ele um prejuízo não admitido pelas normas fiscais substantivas, se dê como assente a sua existência e se presuma o montante desse prejuízo, fazendo-se a sua avaliação antecipada, através da fixação de juros indemnizatórios a favor do contribuinte.
Porém, nos casos em que o vício que leva à anulação do acto é relativo a uma norma que regula a actividade da Administração, aquela nada revela sobre a ilicitude da relação jurídica fiscal e sobre o carácter indevido da prestação, à face das normas fiscais substantivas.
Nestes casos, a anulação do acto não implica que tenha havido uma lesão da situação jurídica substantiva e, consequentemente, com base no facto de ter ocorrido a anulação não se pode concluir que houve um prejuízo que mereça reparação.
Por isso se justifica que, nestas situações, não se comprovando a existência de um prejuízo, não se presuma o seu valor, fixando juros indemnizatórios, mas apenas se deva restituir aquilo que foi recebido, por deixar de existir o suporte jurídico da transferência da quantia paga para o erário público, o que poderá constituir já um benefício para o contribuinte, perante a realidade da sua situação tributária. (Esta solução de restituição do recebido sem qualquer outra compensação não é mesmo uma peculiaridade do direito fiscal, sendo a prevista na lei civil para os casos de anulação de actos ou negócios jurídicos em que as partes estão de boa fé (arts. 289.º, n.ºs 1 e 3, e 1270.º do Código Civil), que nos casos da existência de uma acto tributário como suporte da deslocação patrimonial do contribuinte para a Fazenda Nacional é de presumir (art. 1260.º, n.º 2, do Código Civil)).
Trata-se, assim, de uma solução equilibrada no domínio processual.
Na verdade, perante o simples reconhecimento judicial de um vício de forma ou de incompetência fica-se na dúvida sobre se estavam reunidos os pressupostos de facto e de direito de que a lei faz depender o pagamento de uma prestação tributária; se essa dúvida é um motivo suficiente para não exigir uma deslocação patrimonial do contribuinte para a Fazenda Pública (justificando a restituição da quantia paga) também, por identidade de razão, essa mesma dúvida será suporte bastante para não impor uma deslocação patrimonial efectiva em sentido inverso (pagamento de uma indemnização); verdadeiramente, a regra aplicável, a mesma em ambos os casos, é a de não impor deslocações patrimoniais sem uma prova positiva da existência de uma situação, ao nível da relação tributária, em que elas devem ocorrer.
Assim, compreende-se que, nos casos em que há uma anulação de um acto de liquidação por não se verificarem os pressupostos de facto ou de direito em que devia assentar, havendo a certeza de que a prestação patrimonial foi indevidamente exigida, seja atribuída uma indemnização (no caso sob a forma de juros), e não seja feita idêntica atribuição nos casos em que a decisão judicial não implica a antijuricidade material da exigência daquela prestação.
Isto não significa, que, na sequência de uma anulação judicial originada em vício de forma ou incompetência, o contribuinte que se sinta lesado nos seus direitos patrimoniais esteja legalmente impedido de exigir judicialmente a reparação a que se julgue com direito, o que lhe é assegurado não só pela Constituição (art. 22.º da CRP), como pela lei ordinária (Lei n.º 67/2007, de 31 de Dezembro, e, anteriormente, DL n.º 48051, de 21-11-67, diplomas estes em que se faz equivaler qualquer ilegalidade a ilicitude, como se vê pelos seus arts. 9.º e 6.º, respectivamente). Porém, para obter esta reparação, o contribuinte terá de fazer, em processo próprio, a demonstração da existência do direito a essa indemnização, à face das regras gerais da responsabilidade civil extracontratual, como qualquer outra pessoa que seja lesada nos seus direitos por actos de outrem, não havendo qualquer norma constitucional ou legal que imponha que, em todos os casos de anulação de actos administrativos, se presumam os prejuízos, como está ínsito nas normas que prevêem a atribuição de juros indemnizatórios. (Esta questão foi já apreciada, neste sentido, por este Supremo Tribunal Administrativo no acórdão de 5-5-1999, recurso n.º 5557-A, publicado no Boletim do Ministério da Justiça n.º 487, página 181, relativamente ao regime de juros indemnizatórios previsto no art. 24.º do CPT, que é, no que releva para apreciação do recurso, essencialmente idêntico ao previsto no art. 43.º da LGT. Esta jurisprudência foi reafirmada no acórdão de 29-10-2008, recurso n.º 622/08, relativamente ao art. 43.º da LGT.)» (fim de citação).
[…] Retornando ao caso vertente, constata-se que a recorrente entregou em 28/05/2009 a declaração modelo 22 de IRC relativa ao exercício de 2008, nela fazendo constar no campo 365 do quadro 10 – cálculo do imposto – o montante de € 17.881,36, que inclui € 15.005,16 correspondente a tributação autónoma (aplicada sobre despesas de representação e encargos com viaturas ligeiras de passageiros), operada mediante a aplicação das taxas de tributação autónoma previstas na Lei n.º 64/2008, de 5/12 (cfr. als. A a C do Probatório). Mais se constata (cfr. als. D e E do Probatório) que em 15/2/2011 a recorrente deduziu reclamação graciosa contra a dita autoliquidação, a qual veio a ser indeferida por despacho de 31/5/2011, por se ter entendido ser de aplicar aquele art. 5.º, n.º 1 da Lei n.º 64/2008.
E depreende-se, igualmente, da matéria de facto que a autoliquidação não resultou do facto de a recorrente ter seguido quaisquer orientações genéricas da AT, devidamente publicadas, nos termos do disposto no art. 43.º, n.º 2 da LGT, antes se tendo fundado na aplicação da Lei então vigente.
Ora, assim sendo, haveremos de concluir que a anulação da liquidação ocorreu por razões inerentes à própria relação jurídica tributária: a autoliquidação ancorou-se em norma legal que veio a ser declarada inconstitucional (por violação do princípio da proibição da retroactividade fiscal – art. 103.º, n.º 3 da CRP). Na verdade, trata-se de uma autoliquidação de imposto que seguiu as regras estabelecidas pelo disposto no art. 5.º, n.º 1, da Lei n.º 64/2008, de 5/12, sendo que, suscitada perante o TConstitucional a apreciação da conformidade constitucional de tal norma, o Tribunal veio a firmar entendimento (cfr. os acs. n.ºs 310/2012 e 617/2012, respectivamente, de 20/6/2012 e de 19/12/2012) no sentido da violação daquele princípio, nos casos em que o disposto naquele normativo fosse aplicado a factos ocorridos anteriormente (2) [(2) Inicialmente, no acórdão n.º 18/2011, de 12/1/2011, o Tribunal Constitucional havia sufragado o entendimento de que não ocorria a violação daquele princípio da proibição da retroactividade fiscal.].
Importa, então, apurar se esse “erro sobre os pressupostos de direito” (se a errada consideração, no apuramento do imposto a pagar, de norma posteriormente julgada inconstitucional) pode ou não ser imputável aos serviços da AT. Ou seja, há que apreciar se a AT poderia ou não fazer aquele “julgamento” de conformidade constitucional do disposto no art. 5.º, n.º 1 da Lei n.º 64/2008, para daí podermos concluir que a mesma tenha decidido a reclamação graciosa, ancorada em erro sobre os pressupostos de direito.
Também sobre esta concreta questão o STA já por diversas vezes se pronunciou em casos semelhantes (cfr., entre outros, os acs. de 26/2/2014, rec. n.º 0481/13; de 12/3/2014, rec. n.º 01916/13; de 21/1/2015, rec. n.º 0843/14; de 21/1/2015, rec. n.º 0703/14), no sentido de que, para efeitos de pagamento de juros indemnizatórios ao contribuinte, não pode ser imputado aos serviços da AT erro que, por si, tenha determinado o pagamento de dívida tributária em montante superior ao legalmente devido, uma vez que não estava na sua disponibilidade decidir de modo diferente daquele que decidiu.
E como logo naquele primeiro aresto citado se exarou, «…a menos que esteja em causa o desrespeito por normas constitucionais directamente aplicáveis e vinculativas, como as que se referem a direitos, liberdades e garantias (cfr. art. 18.º, n.º 1, da CRP, a AT não pode recusar-se a aplicar a norma com fundamento em inconstitucionalidade (Com interesse sobre a questão, vejam-se os pareceres do Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República referidos na Colectânea dos Pareceres da Procuradoria-Geral da República, volume V, pontos 10, 3, 3.2 – respectivamente, com as epígrafes «Fiscalização da constitucionalidade», «Fiscalização sucessiva» e «(In)aplicação de norma inconstitucional (poderes e deveres da Administração Pública)» –, cuja doutrina seguimos.).
É que a Administração em geral está sujeita ao princípio da legalidade, consagrado constitucionalmente e a AT está-lo também por força do disposto no art. 55.º da LGT.
A nosso ver, a AT deverá aguardar a declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral, a emitir pelo Tribunal Constitucional (TC), nos termos do art. 281.º da CRP.
É que, como diz VIEIRA DE ANDRADE, «Este conflito [entre a constitucionalidade e o princípio da legalidade] não pode resolver-se através da prevalência automática do direito constitucional sobre o direito legal. Não é disso que se trata, porque o que está em causa é não a constitucionalidade da lei, mas o juízo que sobre essa constitucionalidade possam fazer os órgãos administrativos. Por um lado, a Administração não é um órgão de fiscalização da constitucionalidade; por outro lado, a submissão da Administração à lei não visa apenas a protecção dos direitos dos particulares, mas também a defesa e prossecução de interesses públicos […]. A concessão ao poder administrativo de ilimitados poderes para controlo da inconstitucionalidade das leis a aplicar levaria a uma anarquia administrativa, inverteria a relação Lei-Administração e atentaria frontalmente contra o princípio da divisão dos poderes, tal como está consagrado na nossa Constituição» (Direito Constitucional, Almedina, 1977, pág. 270.).
No mesmo sentido, JOÃO CAUPERS afirma que «a Administração não tem, em princípio, competência para decidir a não aplicação de normas cuja constitucionalidade lhe ofereça dúvidas, contrariamente aos tribunais, a quem incumbe a fiscalização difusa e concreta da conformidade constitucional, demonstram-no as diferenças entre os artigos 207.º [hoje, 204.º] e 266.º, n.º 2, da Constituição. Enquanto o primeiro impede os tribunais de aplicar normas inconstitucionais, o segundo estipula a subordinação dos órgãos e agentes administrativos à Constituição e à lei.
Afigura-se claro que a diferença essencial entre os dois preceitos decorre exactamente da circunstância de se não ter pretendido cometer à Administração a tarefa da fiscalização da constitucionalidade das leis. O desempenho de tal função, por parte daquela tem de ser visto como excepcional» (Os Direitos Fundamentais dos Trabalhadores e a Constituição, Almedina, 1985, pág. 157).
Concluímos, assim, que no Direito Constitucional Português não existe a possibilidade de a Administração se recusar a obedecer a uma norma que considera inconstitucional, substituindo-se aos órgãos de fiscalização da constitucionalidade, a menos que esteja em causa a violação de direitos, liberdades e garantias constitucionalmente consagrados, o que não é manifestamente o caso quando está em causa a aplicação de norma eventualmente violadora do princípio da não retroactividade da lei fiscal…» (fim de citação) [(Vide também o seguinte acórdão da Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo:
- de 12 de Outubro de 2011, proferido no processo n.º 860/10, publicado no Apêndice ao Diário da República de 22 de Março de 2012 (http://www.dre.pt/pdfgratisac/2011/32240.pdf), págs. 1172 a 1779, também disponível em
http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/4cd68957647aeef4802579300037b0ec.)].
Não se vendo razões para divergir do sentido destas jurisprudência e doutrina, nem se vislumbrando nas alegações da recorrente o aporte de novos argumentos relevantes susceptíveis de afastarem ou infirmarem tal interpretação, não pode deixar de concluir-se, atendendo, aliás, ao disposto no n.º 3 do art. 8.º do CCivil, que a AT «não poderia ter decidido de modo diferente a reclamação graciosa que a recorrente lhe dirigiu, quer porque não lhe assiste o direito a recusar a aplicação de norma que no seu entender poderia ser inconstitucional, porque não lhe é permitido formular um juízo sobre essa constitucionalidade, quer porque já anteriormente a essa decisão havia sido proferido pelo Tribunal Constitucional acórdão em que se havia concluído pela conformidade constitucional do concreto preceito legal, sobre o qual, posteriormente, veio recair o julgamento de inconstitucionalidade.» (citado acórdão do STA, de 21/1/2015, rec. 0703/14, cuja letra e fundamentação temos seguido).
[…nem se diga que] que a pronúncia substanciada no indeferimento da reclamação graciosa seja subsumível a uma assunção, por parte da AT, da prática do acto tributário da autoliquidação, por forma a que, a partir desse momento, lhe seja imputável o erro de direito decorrente do vício de inconstitucionalidade suscitado pelo sujeito passivo, nomeadamente, que ao não dar provimento à reclamação, a AT se haja constituído em responsabilidade extracontratual a partir desse momento, e que fundamentaria a obrigação indemnizatória.
Não se questionando que o alegado dever de obediência à lei tanto se reporta à lei ordinária, como à Constituição ou ao Direito Internacional a que o Estado português se tenha vinculado, esse dever não abrange, como acima se disse, à luz do Direito Constitucional Português, a possibilidade de a Administração se recusar a obedecer a uma norma que considera inconstitucional, substituindo-se aos órgãos de fiscalização da constitucionalidade, a menos que esteja em causa a violação de direitos, liberdades e garantias constitucionalmente consagrados, o que não é manifestamente o caso quando está em causa a aplicação de norma eventualmente violadora do princípio da não retroactividade da lei fiscal.
Aliás, também da ponderação do Cons. Jorge Lopes de Sousa, parece dever considerar-se que, no caso de indeferimento da pretensão apresentada pelo contribuinte, o erro só passará a ser imputável à AT «a partir do momento em que, pela primeira vez, a Administração Tributária toma posição sobre a situação do contribuinte, dispondo dos elementos necessários para proferir uma decisão com pressupostos correctos» (3) [(3)A este propósito, o autor pondera o seguinte: «Nas situações em que a prática do acto que define a dívida tributária cabe ao contribuinte (como sucede, nomeadamente, nos referidos casos de autoliquidação, retenção na fonte e pagamentos por conta), bem como naqueles em que o acto é praticado pela Administração Tributária com base em informações erradas prestadas pelo contribuinte e há lugar a impugnação administrativa (reclamação graciosa ou recurso hierárquico), o erro passará a ser imputável à Administração Tributária após o eventual indeferimento da pretensão apresentada pelo contribuinte, isto é, a partir do momento em que, pela primeira vez, a Administração Tributária toma posição sobre a situação do contribuinte, dispondo dos elementos necessários para proferir uma decisão com pressupostos correctos.» (Ob. cit., anotação 6)a2 ao art. 61.º, p. 537)].
[…] Em suma, no caso dos autos, para efeitos de pagamento de juros indemnizatórios ao contribuinte, não pode ser imputado aos serviços da AT erro que, por si, tenha determinado o pagamento de dívida tributária em montante superior ao legalmente devido, uma vez que não estava na sua disponibilidade decidir de modo diferente daquele que decidiu. Não podendo a errada consideração (no apuramento do imposto a pagar) de uma norma posteriormente julgada inconstitucional, ser atribuída a ilegal conduta da AT, também não pode legitimar a condenação nos juros indemnizatórios pedidos ao abrigo do art. 43.º da LGT por se não verificar um pressuposto de facto constitutivo de tal direito – o erro imputável aos serviços» (fim de citação).
Pelo que ficou exposto, concluímos que é de negar provimento ao recurso e confirmar a sentença recorrida na medida em que denegou a atribuição de juros indemnizatórios à Impugnante.

2.2.3 CONCLUSÕES

Preparando a decisão, formulamos as seguintes conclusões:
I - A AT, porque está sujeita ao princípio da legalidade (cfr. art. 266.º, n.º 2, da CRP e art. 55.º da LGT), não pode deixar de aplicar uma norma com fundamento em inconstitucionalidade, a menos que o Tribunal Constitucional já tenha declarada a inconstitucionalidade da mesma com força obrigatória geral (cfr. art. 281.º da CRP) ou se esteja perante o desrespeito por normas constitucionais directamente aplicáveis e vinculativas, como as que se referem a direitos, liberdades e garantias (cfr. art. 18.º, n.º 1, da CRP).
II - Para efeitos de pagamento de juros indemnizatórios ao contribuinte ao abrigo do art. 43.º da LGT, não pode ser assacado aos serviços da AT qualquer erro que, por si, tenha determinado o pagamento de dívida tributária em montante superior ao legalmente devido, se não estava na sua disponibilidade decidir de modo diferente daquele que decidiu.


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3. DECISÃO

Face ao exposto, os juízes da Secção do Contencioso Tributário deste Supremo Tribunal Administrativo acordam, em conferência, em negar provimento ao recurso.

Custas pela Recorrente.

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Lisboa, 5 de Abril de 2017. – Francisco Rothes (relator) – Isabel Marques da Silva – Pedro Delgado.