Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:02052/08.6BELRS
Data do Acordão:10/28/2020
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:JOAQUIM CONDESSO
Descritores:IRC
LIQUIDAÇÃO OFICIOSA
AUDIÊNCIA PRÉVIA
PRINCÍPIO DO APROVEITAMENTO DO ACTO
Sumário:I - A falta de audição prévia do contribuinte, nos casos em que é obrigatória, constitui um vício de forma do procedimento tributário susceptível de conduzir à anulação da decisão que vier a ser tomada (cfr. artº.135, do C.P.Administrativo, então em vigor).
II - A falta de audição do contribuinte, mesmo quando configura ilegalidade, poderá, em certas circunstâncias, não implicar a anulação do acto final do procedimento, por força da aplicação do princípio do aproveitamento do acto. Trata-se de uma concretização do princípio geral de direito que se exprime pelo brocardo latino "non vitiatur utilis per inutilem". De qualquer forma, o princípio do aproveitamento do acto apenas poderá ser aplicado em situações em que não se possam suscitar quaisquer dúvidas sobre a irrelevância do exercício do direito de audiência em face do conteúdo decisório do acto, através de um juízo de prognose póstuma, o que conduz, na prática, à sua restrição às hipóteses em que não esteja em causa a fixação de matéria de facto relevante para a decisão.
III - No caso dos autos, estavam reunidos os pressupostos para a audição do contribuinte, desde logo, nos precisos termos do artº.60, nº.1, al.a), da L.G.T., nada lhe obstando a actuação vinculada da Administração que, aliás, apenas se reconduzia à "forma de liquidação" consagrada no dito artº.83, nº.1, al.b), do C.I.R.C., na versão em vigor em 2003/2005 (cfr.actual artº.90, nº.1, al.b), do C.I.R.C.), igualmente se não retirando da matéria de facto que o sujeito passivo tenha sido notificado para apresentar a declaração de rendimentos em falta, sem que o tenha feito (cfr.artº.60, nº.2, al.b), da L.G.T.).
IV - Da intervenção do contribuinte no procedimento da liquidação oficiosa sempre poderia resultar uma alteração dos termos em que a matéria colectável foi determinada pela A. Fiscal.
(sumário da exclusiva responsabilidade do relator)
Nº Convencional:JSTA000P26601
Nº do Documento:SA22020102802052/08
Data de Entrada:09/11/2020
Recorrente:FAZENDA PÚBLICA
Recorrido 1:A............, L.DA.
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: ACÓRDÃO
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RELATÓRIO
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O DIGNO REPRESENTANTE DA FAZENDA PÚBLICA deduziu recurso dirigido a este Tribunal tendo por objecto sentença proferida pelo Mº. Juiz do Tribunal Tributário de Lisboa, exarada a fls.69 a 74-verso do processo, a qual julgou procedente a presente impugnação visando, mediatamente, os actos de liquidação oficiosa de I.R.C., relativos aos anos fiscais de 2003 e 2005 e no montante total de € 15.240,26.
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O recorrente termina as alegações do recurso (cfr.fls.79 a 88 do processo físico) formulando as seguintes Conclusões:
A-Decidiu o Douto Tribunal a quo julgar procedente a Impugnação judicial deduzida contra a decisão de indeferimento do pedido de revisão oficiosa das liquidações oficiosas de IRC, relativas aos exercícios de 2003 e de 2005, com fundamento na falta de audição prévia do contribuinte;
B-A Fazenda Pública não se conforma com a douta sentença recorrida, dado que da prova produzida e levada aos autos da presente impugnação, não se podem extrair as conclusões em que se alicerça a decisão proferida;
C-Com referência ao exercício de 2003, assente que a Recorrida não apresentou a declaração modelo 22 IRC no prazo legal para o efeito, procedeu a AT, em cumprimento do disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 83.º do CIRC, na redação vigente à data, à emissão de liquidação oficiosa, tendo esta sido efetuada por imposição legal e à luz das normas do CIRC;
D-No que concerne à declaração de rendimentos apresentada pela Recorrida fora do prazo legal e após a emissão e notificação da liquidação oficiosa, a mesma não beneficia da presunção estabelecida no artigo 75.º da LGT, sendo livremente valorada. Vide, neste sentido, o acórdão do STA de 04-05-2016, recurso 415/15;
E-A posterior apresentação da declaração de autoliquidação do imposto de IRC não tem como efeito a anulação do ato de liquidação oficiosa anteriormente praticado, nem decorre da mesma que os pressupostos com base nos quais este foi praticado tenham de considerar-se arredados em função da apresentação da declaração do contribuinte, vide acórdão do TCAS de 18-05-2004, proc. n.º 01355/03;
F-Estando devolvida à administração a competência para a liquidação, incumbia à Impugnante, ora Recorrida, nos termos do artigo 74.º da LGT, fazer prova da existência do alegado prejuízo fiscal, o que não aconteceu;
G-No que concerne à formalidade de audição prévia, tem a doutrina e a jurisprudência considerado que, em casos excepcionais, a mesma pode degradar-se em formalidade não essencial e, portanto, ser omitida sem que daí resulte ilegalidade determinante da anulação do acto. É o que sucede, por exemplo, quando está em causa uma atividade vinculada da administração em que a decisão não poderia ser outra que não a efectivamente tomada. E de facto decorre do princípio de aproveitamento dos actos administrativos, que a anulação de um acto viciado não será pronunciada quando seja seguro que o novo acto a emitir, isento desse vício, não poderá deixar de ter o mesmo conteúdo decisório que tinha o acto impugnado;
H-No caso dos autos, a decisão tomada – determinação da matéria colectável de acordo com a lei (artigo 83.º, n.º 1, alínea b) do CIRC) – seria a única concretamente possível;
I-Acresce que, conforme resulta da factualidade dada como assente – M) A Impugnante foi notificada do projeto de indeferimento do pedido de revisão para exercer o direito de audição”, pelo que tendo o contribuinte apresentado pedido de revisão oficiosa da liquidação e neste meio de reacção tido a oportunidade de se pronunciar sobre a liquidação oficiosa em causa e sobre todas as questões relativamente às quais lhe deveria ter sido previamente concedida a faculdade de se pronunciar, deveria o Tribunal a quo ter considerado que ficou sanado o vício de preterição de formalidade legal por omissão de notificação para exercício do direito de audição prévia;
J-Entende a Fazenda Pública que não se alcança que utilidade poderia ter a audição prévia da impugnante pois, para além do ato sindicado não poder ser outro que não o efetivamente tomado, sempre seria de considerar que o fim visado pela exigência formal pretendida fora alcançado por outra via, nomeadamente pela oportunidade concedida à Recorrida de participar no âmbito do procedimento de revisão oficiosa, podendo fornecer elementos considerados convenientes para o esclarecimento da sua situação tributária;
K-Nessa medida, salvo melhor opinião, deveria o Tribunal a quo ter concluído que a preterição da formalidade em causa se degradou em não essencial e, portanto, sem efeitos invalidantes do ato;
L-Por outro lado, conclui a douta sentença recorrida que “a presente impugnação é procedente”. Ora, tal decisão, tal como se encontra formulada, evidencia erro de julgamento, porquanto a anulação da liquidação oficiosa, relativa ao exercício de 2003, irá determinar que o sujeito passivo, com referência ao exercício em causa, ficará como não sujeito, para efeitos de IRC, o que não se concede. Recorde-se que, os prejuízos declarados pelo sujeito passivo não foram validados, nem em sede administrativa, nem em sede contenciosa e que, como vimos, a declaração em causa, por ter sido apresentada fora do prazo legal para o efeito não beneficia da presunção de verdade;
M-No que concerne à liquidação oficiosa IRC, com referência ao exercício de 2005, entendeu o tribunal a quo que o referido ato tributário padecia de vício de forma por falta de audição prévia e, nessa medida, determinou a anulação do referido ato;
N-Não pode a Fazenda Pública conformar-se com o assim decidido, pois, no seu entender deveria aquele douto tribunal ter considerado aplicável o princípio do aproveitamento do ato;
O-No caso em análise, a correção aos prejuízos fiscais deduzidos na declaração modelo 22 de 2005 resulta do poder vinculado de correção, devida a circunstâncias que objetivamente não podiam conduzir a outro resultado por parte da AT – a liquidação oficiosa emitida pela AT, ao abrigo do disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 83.º do CIRC, por falta de entrega de declaração de rendimentos modelo 22, a entrega da declaração modelo 22 de 2003 fora de prazo e a sua permanência na situação de “não liquidável”;
P-A desconsideração dos prejuízos fiscais deduzidos pelo contribuinte no exercício de 2005 configura a única solução legalmente possível, pelo que deveria o Tribunal a quo ter aplicado ter considerado que o efeito anulatório não se verificava, in casu, porquanto o ato em causa era de conteúdo vinculado, bem como, porque a apreciação do caso concreto somente permite identificar uma solução como legalmente possível;
Q-Adicionalmente, sempre o Tribunal deveria ter considerado, face à factualidade dada como assente - alínea M) dos factos assentes - que o contribuinte lançou mão do pedido de revisão oficiosa da liquidação e em tal meio de reação teve oportunidade de se pronunciar sobre a liquidação oficiosa em causa e sobre todas as questões relativamente às quais lhe deveria ter sido previamente concedida a faculdade de se pronunciar;
R-Nessa medida, sempre seria de concluir que o fim visado pela exigência formal em causa, qual seja o de permitir a participação dos cidadãos na formação das decisões administrativas que lhes digam respeito, fora alcançado por outra via;
S-Assim, ao invés do decidido deveria o Tribunal a quo ter considerado que a preterição da formalidade prevista no artigo 60.º da LGT não produzia qualquer efeito anulatório da liquidação em causa;
T-Em face do exposto, deveria a douta sentença ter considerado que apesar da preterição da formalidade prevista no artigo 60.º da LGT, de acordo com o princípio do aproveitamento do acto tal preterição não tinha efeito invalidade das liquidações oficiosas de IRC em causa;
U-Pelo que, ao não decidir desta forma, incorreu o Tribunal a quo em erro de julgamento;
V-Erro clarividente se atendermos, também, à circunstância da anulação da liquidação oficiosa IRC de 2003 determinar uma não sujeição do contribuinte, para efeitos de IRC, no exercício em causa, o que não se concede. Com efeito, ao anular a liquidação oficiosa em causa e não tendo o Tribunal validado os prejuízos declarados pelo sujeito passivo na declaração de rendimentos que apresentou e não beneficiando esta, porque tardia, da presunção de verdade constante do artigo 75.º da LGT, fica o sujeito passivo como não sujeito a IRC.
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Não foram produzidas contra-alegações no âmbito da instância de recurso.
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O Digno Magistrado do M. P. junto deste Tribunal emitiu douto parecer no qual termina pugnando pelo provimento do recurso (cfr.fls.93 a 102 do processo físico).
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Com dispensa de vistos legais, atenta a simplicidade das questões a dirimir, vêm os autos à conferência para deliberação.
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FUNDAMENTAÇÃO
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DE FACTO
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A sentença recorrida julgou provada a seguinte matéria de facto (cfr.fls.70 a 72-verso do processo físico - numeração nossa):
A-A Impugnante é uma sociedade por quotas que iniciou a sua atividade a 1948-06-01 e possui a Classificação de Atividade Económica n.º 45.200 - Manutenção e reparação de veículos automóveis, sendo que em termos fiscais, encontra-se sujeita a IRC no regime geral e a Imposto Sobre o Valor Acrescentado no regime normal, com periodicidade mensal (conforme resulta de fls. 44 e 45 do PAT em apenso);
B-A ora impugnante não procedeu à entrega atempada da declaração de rendimentos do exercício de 2003 pelo que, em consequência, foi destinatária de uma liquidação oficiosa, efetuada nos termos da alínea b) do n.° 1 do artigo 83.° do Código do IRC, em 22 de julho de 2005 (conforme resulta de fls. 31 do PAT em apenso);
C-O pagamento da liquidação a que se refere a alínea anterior foi efetuado no dia 2 de setembro de 2005 (conforme resulta de fls. 35 do PAT em apenso);
D-A Impugnante entregou, em 7 de novembro de 2005, a declaração em falta referente ao exercício de 2003, na qual foi apurado e declarado um prejuízo fiscal de € 131 257,12 (conforme resulta de fls. 51 do PAT em apenso);
E-Em 13 de fevereiro de 2007, a ora impugnante procedeu à entrega da declaração de rendimentos relativa ao exercício de 2004, não sendo apurado imposto a pagar em virtude da utilização de uma parte (€ 89 080,30) do prejuízo fiscal referido no artigo anterior (conforme resulta de fls. 50 do PAT em apenso);
F-Os serviços fiscais, considerando os elementos declarados, notificaram oportunamente a ora impugnante da inexistência de imposto a pagar relativamente ao referido exercício de 2004 (invocado pela Impugnante e não contrariado pela AT);
G-Em 14 do mesmo mês de fevereiro de 2007, foi efetuada a entrega da declaração de rendimentos relativa ao exercício de 2005, sendo apurado um lucro de € 43 570,67, a que foi deduzida a importância de € 42 173,20 de prejuízo fiscal reportado do exercício de 2003 e ainda não utilizado com referência ao exercício de 2004, conduzindo ao apuramento de imposto a pagar no montante de € 34,92 que, como infra se constata, não foi aceite pelos Serviços Fiscais (conforme resulta de fls. 49 e 53 do PAT em apenso);
H-Em 2 de outubro de 2007 foi a ora impugnante notificada da correção ao valor do prejuízo fiscal em reporte, evidenciado na declaração de rendimentos do exercício de 2005, com o fundamento de que o mesmo “não se encontra de acordo com os elementos constantes da base de dados da administração fiscal”;
I-Em 04/03/2008, foi emitida a liquidação oficiosa de IRC referente ao exercício de 2005, da qual resultou o montante a pagar de € 11.295,07 (conforme resulta de fls. 36 do PAT em apenso);
J-Em 09/04/2008, foi efetuado o pagamento do montante liquidado e a que se refere a alínea anterior (conforme resulta de fls. 38 do PAT em apenso);
K-Em 16 de maio de 2008, ao abrigo do artigo 78.º da Lei Geral Tributária, a Impugnante pediu a revisão dos atos tributários impugnados de 2003 e 2005 (conforme resulta de fls. 28 e segs. do processo de revisão oficiosa em apenso);
L-Na DSIRPC foi elaborada em 30/06/2008 a informação de fls. 16 a 20 do processo de revisão oficiosa em apenso, que aqui se dá por integralmente reproduzida para todos os legais efeitos;
M-Com interesse para a decisão resulta da informação a que se refere a alínea anterior:
«(…) Em sede de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas, o legislador atribuiu, a competência para a liquidação ao próprio contribuinte, cabendo a este determinar a matéria coletável e proceder à autoliquidação na declaração periódica de rendimentos a que se referem os artigos 112.° e 114.° do Código do IRC.
Nos termos do Art.° 82.° do Código do IRC a competência para a liquidação foi atribuída: em primeira linha ao próprio contribuinte, nas declarações a que se referem os Art.°s 112.° e 114.° e numa segunda, para os restantes casos, à Direção Geral dos Impostos (DGCI).
Quando, por inércia do contribuinte quanto ao cumprimento da obrigação declarativa, a competência para a liquidação é transferida para a DGCI esta lança mão dos mecanismos previstos nas alíneas b) e c) do n.° 1 do referido Art.° 83.° devendo obedecer à precedência que o legislador lhes atribuiu.
Nestes casos a liquidação terá por base a totalidade da matéria coletável do exercício mais próximo que se encontre determinada [al. b) do n.° 1 do Art.° 83.°], ou, quando não seja possível a liquidação nos termos já referidos, terá por base os elementos de que a Administração Fiscal disponha [al. c) do n.° do Art.° 83.° do CIRC].
No presente caso observa-se que, para o exercício de 2003, a recorrente, não entregou, no prazo previsto no n.º 3 do Art.° 112.° do CIRC nem antes da liquidação oficiosa ter sido efetuada a declaração modelo 22 e nesta circunstância transferiu para a esfera da Administração Fiscal a competência para efetuar a liquidação.
Tendo em conta que a matéria coletável do exercício mais próximo que se encontrava determinada era a referente ao exercício e 2002, no valor de € 25.744,73, a Direção Geral dos Impostos lançou mão do mecanismo previsto no Art.° 83.° e levou a efeito, depois de verificados os pressupostos previstos na al. b) do n.º 1 do Art.° 83.° do CIRC e tendo por referência o princípio da continuidade dos exercícios, a liquidação oficiosa para o exercício de 2003 respeitando rigorosamente os procedimentos consagrados no Código do IRC para este tipo de situações e nesta circunstância o pedido de revisão da liquidação oficiosa no que concerne ao exercício de 2003 deve ser indeferido.
Dado que a situação referente ao exercício de 2005 não é exatamente igual à que se verificou no exercício de 2003, entendemos que deve ser analisada separadamente.
Verifica-se, então, que a requerente apenas entregou a sua declaração de rendimentos, referente ao exercício de 2005 em 14 de fevereiro de 2007, ou seja, em data bastante posterior àquela que se encontra determinada no Art.° 112.° do CIRC para efeitos de apresentação da declaração periódica de rendimentos e em data que também já não cai no prazo previsto o Art.° 114.° do mesmo Código (redação em vigor à data dos factos) em que é permitida a entrega duma declaração de substituição nos seis meses posteriores ao termo do prazo legal (último dia útil de maio do ano seguinte aquele a que respeitam os rendimentos) quando tenham por finalidade a correção do resultado das inexatidões de que enferma a anterior declaração referente ao exercício em análise.
Nos termos do n.º 1 do Art.° 75.° da LGT as declarações dos contribuintes presumem-se verdadeiras e de boa fé quando sejam apresentadas nos termos previsto na lei e neste caso concreto a apresentação da respetiva declaração apenas ocorreu em 2007 quando o termo do prazo legal para a sua entrega se verificou no último dia útil do mês de maio de 2006 e nesta circunstância a presunção de verdadeira e de boa fé já não é característica desta declaração e, por outro lado, até já tinha sido efetuada uma liquidação oficiosa onde o imposto apurado é superior ao que seria obtido se tivesse sido liquidada a declaração entregue fora do prazo legal.
Podemos, assim concluir que a declaração periódica de rendimentos referente ao exercício de 2005, à semelhança do que também aconteceu com a referente ao exercício de 2003 que veio a ser apresentada já depois de efetuada a liquidação oficiosa, deixaram de beneficiar da presunção de verdadeiras e nesta circunstância os valores nelas inscritos não podiam, por si só, produzir os efeitos que produziriam se tivessem sido entregues dentro do prazo legal fixado.
Tendo em conta que os prejuízos que motivaram o presente pedido de revisão oficiosa para o exercício de 2005 se encontram inscritos numa declaração periódica de rendimentos, referente ao exercício de 2003, que não goza da presunção de verdadeira e de boa fé, em virtude desta ter sido apresentada para além do prazo previsto no Art.° 114 ° do CIRC, também não podiam ser considerados em qualquer liquidação referente a um posterior exercício sem que primeiro tivessem sido confirmados pela Administração Fiscal.
No caso em apreciação foi-nos dado verificar que quer em relação ao exercício de 2003, exercício em que segundo se depreende da petição se verificaram os prejuízos, quer em relação ao exercício de 2004 a requerente, dentro prazo legal, não cumpriu a obrigação declarativa nem desencadeou qualquer mecanismo, dos que a lei lhe coloca à disposição, para que lhe fosse reconhecido e aceite como prejuízo fiscal dedutível o valor que agora pretende ver aceite como dedutível no exercício de 2005.
Assim, não beneficiando da presunção de verdadeiras e de boa fé as declarações entregues para além dos prazos previstos nos artigos 112.° e 114.° do CIRC (referimo-nos às declarações referentes aos exercícios de 2003 e 2005) passaram também, para o exercício de 2005, a estar reunidos os pressupostos para levar a efeito a liquidação oficiosa do IRC segundo uma das modalidades previstas no Art.° 83.° do CIRC e que no caso em apreciação veio a ter por base os valores declarados pela requerente mas com exclusão dos prejuízos que a requerente afirma serem reportados do exercício de 2003.
4-DIREITO DE AUDIÇÃO
Tendo em conta que nesta fase a Administração Tributária, apenas, aprecia os factos que lhe foram dados pelo contribuinte, limitando-se na sua decisão a fazer a interpretação das normas legais aplicáveis ao caso e ainda que no procedimento anterior, procedimento de reclamação graciosa, já lhe foi concedido o direito de audição, propomos que nos termos do disposto do n.° 3 do Art.° 60.° da LGT seja dispensada a audição do contribuinte.
5-CONCLUSÕES
Apreciando o articulado da petição de recurso propomos, com base nos fundamentos expostos, que seja negado provimento ao presente recurso hierárquico.»
N-A Impugnante foi notificada do projeto de indeferimento do pedido de revisão para exercer o direito de audição (conforme resulta de fls. 8 e 9 do processo de revisão oficiosa em apenso);
O-Considerando que a Impugnante não exerceu o direito de audição propôs a DSIRPC: «Face ao exposto, é de considerar definitivo o Projeto de Despacho mencionado, sendo de indeferir o pedido de Revisão Oficiosa.» (Conforme resulta de fls. 41 verso do PAT em apenso);
P-Sobre a informação a que se refere a alínea anterior recaiu o despacho de concordância de fls. 41 do PAT em apenso, que aqui se dá por integralmente reproduzido;
Q-A Impugnante foi notificada do indeferimento do pedido de revisão por carta registada com aviso de receção em 06/11/2008 (Conforme resulta de fls. 51 a 53 do PAT em apenso);
R-A petição inicial da presente impugnação foi apresentada em 19/12/2008 (conforme resulta do registo de fls. 32).
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A sentença recorrida considerou como factualidade não provada a seguinte: "…Com interesse para a decisão inexistem factos invocados que devam considerar-se como não provados…".
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Por sua vez, a fundamentação da decisão da matéria de facto constante da sentença recorrida é a seguinte: "…A decisão da matéria de facto resultou do exame dos documentos e informações oficiais, não impugnados, que dos autos constam, tudo conforme referido a propósito de cada uma das alíneas do probatório…".
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ENQUADRAMENTO JURÍDICO
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Em sede de aplicação do direito, a sentença recorrida julgou procedente a presente impugnação, com fundamento na falta de audição prévia do contribuinte, tal constituindo um vício de forma do procedimento tributário que conduz à anulação dos actos tributários impugnados.
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Relembre-se que as conclusões das alegações do recurso definem, como é sabido, o respectivo objecto e consequente área de intervenção do Tribunal "ad quem", ressalvando-se as questões que, sendo de conhecimento oficioso, encontrem nos autos os elementos necessários à sua integração (cfr.artº.639, do C.P.Civil, na redacção da Lei 41/2013, de 26/6, "ex vi" do artº.281, do C.P.P.Tributário).
O recorrente dissente do julgado alegando, em síntese, que não se alcança que utilidade poderia ter a audição prévia da sociedade impugnante pois, para além do acto sindicado não poder ser outro que não o efectivamente estruturado, ao abrigo do artº.83, nº.1, al.b), do C.I.R.C., então em vigor, sempre seria de considerar que o fim visado pela exigência formal pretendida fora alcançado por outra via, aquando da notificação para o exercício da audição prévia no âmbito do procedimento de revisão oficiosa. A sentença recorrida devia ter considerado que, apesar da preterição da formalidade prevista no artº.60, da L.G.T., de acordo com o princípio do aproveitamento do acto, tal preterição não tinha efeito invalidante das liquidações oficiosas de I.R.C. objecto do processo. Ao não decidir desta forma, incorreu o Tribunal "a quo" em erro de julgamento. No final conclui a sentença recorrida que "a presente impugnação é procedente". Ora, o dispositivo da sentença, tal como se encontra formulado, evidencia um erro de julgamento, porquanto, a anulação da liquidação oficiosa, relativa ao exercício de 2003, irá determinar que o sujeito passivo, com referência ao exercício em causa, ficará como não sujeito, para efeitos de I.R.C. (cfr.conclusões A) a V) do recurso). Com base em tal alegação pretendendo concretizar um erro de julgamento de direito da decisão recorrida.
Examinemos se a decisão objecto do presente recurso comporta tal vício.
Consagra o artº.267, nº.5, da Constituição da República Portuguesa, o direito de todos os cidadãos participarem na formação das decisões ou deliberações da Administração que lhes disserem respeito. A lei ordinária, concretizou, inicialmente, este direito no artº.100, do C.P.Administrativo, aprovado pelo dec.lei 442/91, de 15/11, estando actualmente tal direito expressamente previsto no artº.60, da Lei Geral Tributária, aprovada pelo dec.lei 398/98, de 17/12 (cfr.artº.45, do C.P.P.T.).
O direito de audiência prévia de que goza o administrado incide sobre o objecto do procedimento, tal como ele surge após a instrução e antes da decisão. Estando em preparação uma decisão, a comunicação feita ao interessado para o exercício do direito de audiência deve dar-lhe conhecimento do projecto da mesma decisão, a sua fundamentação, o prazo em que o mesmo direito pode ser exercido e a informação relativa à possibilidade de exercício do citado direito por forma oral ou escrita (cfr.ac.S.T.A.-2ª. Secção, 25/1/2000, rec.21244, Ac.Dout., nº.466, pág.1275 e seg.; ac.S.T.A.-2ª. Secção, 2/7/2003, rec.684/03; ac.S.T.A.-2ª.Secção, 19/09/2018, rec.754/17; ac.S.T.A.-2ª.Secção, 17/06/2020, rec.141/13.4BEMDL; Diogo Leite de Campos e Outros, Lei Geral Tributária anotada e comentada, Encontro da Escrita Editora, 4ª. Edição, 2012, pág.502 e seg.; Jorge Lopes de Sousa, C.P.P.Tributário anotado e comentado, I volume, Áreas Editora, 6ª. edição, 2011, pág.426 e seg.; Joaquim Freitas da Rocha, Lições de Procedimento e Processo Tributário, 6ª. Edição, Almedina, 2018, pág.57 e seg.).
A falta de audição prévia do contribuinte, nos casos em que é obrigatória, constitui um vício de forma do procedimento tributário susceptível de conduzir à anulação da decisão que vier a ser tomada (cfr.artº.135, do C.P.Administrativo, então em vigor; ac.S.T.A.-2ª. Secção, 19/09/2018, rec.754/17; ac.S.T.A.-2ª.Secção, 3/10/2018, rec.2950/14.8BEBRG; ac.S.T.A.-2ª.Secção, 17/06/2020, rec.141/13.4BEMDL; Diogo Leite de Campos e Outros, ob.cit., pág.515; Jorge Lopes de Sousa, ob.cit., pág.437).
"In casu", o Tribunal "a quo", concluiu pela falta de audição prévia do contribuinte, tal constituindo um vício de forma do procedimento tributário que conduz à anulação dos actos tributários impugnados.
O recorrente, pelo contrário, defende que apesar da preterição da formalidade prevista no artº.60, da L.G.T., de acordo com o princípio do aproveitamento do acto, tal preterição não tinha efeito invalidante das liquidações oficiosas de I.R.C. objecto do processo e que, ao não decidir desta forma, incorreu o Tribunal "a quo" em erro de julgamento.
Vejamos quem tem razão.
A falta de audição do contribuinte, mesmo quando configura ilegalidade, poderá, em certas circunstâncias, não implicar a anulação do acto final do procedimento, por força da aplicação do princípio do aproveitamento do acto. Trata-se de uma concretização do princípio geral de direito que se exprime pelo brocardo latino "non vitiatur utilis per inutilem".
De qualquer forma, o princípio do aproveitamento do acto apenas poderá ser aplicado em situações em que não se possam suscitar quaisquer dúvidas sobre a irrelevância do exercício do direito de audiência em face do conteúdo decisório do acto, através de um juízo de prognose póstuma, o que conduz, na prática, à sua restrição às hipóteses em que não esteja em causa a fixação de matéria de facto relevante para a decisão (cfr. ac.S.T.A.-Pleno da 2ª.Secção, 15/10/2014, rec.1374/13; Jorge Lopes de Sousa, C.P.P.Tributário anotado e comentado, I volume, Áreas Editora, 6ª. edição, 2011, pág.438 e seg.).
"In casu", conforme se retira da factualidade provada (cfr.als.B) e I) do probatório), foram emitidas as liquidações oficiosas de I.R.C. relativas aos anos de 2003 e 2005, no âmbito de cujo procedimento não houve qualquer notificação para efeitos de exercício do direito de audição por parte da sociedade impugnante/recorrida. Esta preterição de formalidade revela-se essencial, porquanto, a sociedade impugnante/recorrida podia, no exercício de tal direito, fornecer elementos úteis à liquidação (veja-se o conteúdo das declarações identificadas nas als.D) e G) do probatório).
Estavam, portanto, reunidos os pressupostos para a audição do contribuinte, desde logo, nos precisos termos do artº.60, nº.1, al.a), da L.G.T., nada lhe obstando a actuação vinculada da Administração que, aliás, apenas se reconduzia à "forma de liquidação" consagrada no dito artº.83, nº.1, al.b), do C.I.R.C., na versão em vigor em 2003/2005 (cfr.actual artº.90, nº.1, al.b), do C.I.R.C.), igualmente se não retirando da matéria de facto que a sociedade impugnante/recorrida tenha sido notificada para apresentar a declaração de rendimentos em falta, sem que o tenha feito (cfr.artº.60, nº.2, al.b), da L.G.T.; Rui Marques, Código do IRC anotado e comentado, Almedina, 2019, pág.756).
Ora, da intervenção do contribuinte no procedimento da liquidação oficiosa sempre poderia, neste caso e como concluiu a decisão recorrida, resultar uma alteração dos termos em que a matéria colectável foi determinada pela A. Fiscal. Neste sentido vai, de resto, a jurisprudência deste Tribunal com a qual concordamos (cfr.ac.S.T.A.-2ª.Secção, 2/07/2003, rec.684/03; ac.S.T.A.-2ª.Secção, 16/05/2007, rec.192/07; ac.S.T.A.-2ª.Secção, 23/04/2008, rec.22/08; ac.S.T.A.-2ª.Secção, 18/06/2014, rec.1102/13).
Por último, defende o apelante que o dispositivo da sentença recorrida, tal como se encontra formulado (ao julgar a impugnação procedente), evidencia um erro de julgamento. Apenas se dirá que o dispositivo da decisão do Tribunal "a quo" está de acordo com a prévia fundamentação da mesma peça processual, assim não padecendo de qualquer vício que o torne ininteligível. Por outro lado, o vector acabado de identificar consubstancia um mero "argumento" do recorrente, que não uma nova "questão" a que o Tribunal "ad quem" deva dirigir a sua actividade judicativa (a verdadeira "questão", já examinada e decidida no âmbito da presente apelação, reconduz-se à falta de audição do contribuinte, preterição de formalidade legal que pode, em certas circunstâncias, não implicar a anulação do acto final do procedimento, por força da aplicação do identificado princípio do aproveitamento do acto).
Atento o relatado, sem necessidade de mais amplas considerações, nega-se provimento ao presente recurso e, em consequência, mantém-se a decisão recorrida, ao que se provirá na parte dispositiva deste acórdão.
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DISPOSITIVO
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Face ao exposto, ACORDAM, EM CONFERÊNCIA, OS JUÍZES DA SECÇÃO DE CONTENCIOSO TRIBUTÁRIO DESTE SUPREMO TRIBUNAL ADMINISTRATIVO EM NEGAR PROVIMENTO AO RECURSO E CONFIRMAR A DECISÃO RECORRIDA, a qual, em consequência, se mantém na ordem jurídica.
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Condena-se o recorrente em custas.
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Registe.
Notifique.
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Lisboa, 28 de Outubro de 2020. - Joaquim Condesso (relator) - Paulo Antunes - Pedro Vergueiro.