Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0230/12
Data do Acordão:06/20/2012
Tribunal:1 SUBSECÇÃO DO CA
Relator:COSTA REIS
Descritores:ACÇÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL
COMPROPRIEDADE
DOAÇÃO
DIREITO DE INDEMNIZAÇÃO
LEGITIMIDADE
DESTINO DIFERENTE
LITISCONSÓRCIO NECESSÁRIO
Sumário:I - Na acção administrativa especial a lei não elege a titularidade da relação material controvertida como critério de aferição da legitimidade limitando-se a exigir que o autor alegue “ser titular de um interesse directo e pessoal, designadamente por ter sido lesado pelo acto nos seus direitos ou interesses legalmente protegidos” (art.º 55.º/1/a) do CPTA). O que significa que nesta acção o critério para se ajuizar da legitimidade é a utilidade ou vantagem que se pode retirar da anulação contenciosa do acto lesivo e, por isso, a necessidade de tutela judicial efectiva contra o mesmo.
II - O que alarga a possibilidade da propositura deste tipo de acção àqueles que não sendo os titulares da relação donde emerge o conflito podem, no entanto, ser reflexamente prejudicados por ela.
III - O exercício de direitos decorrentes da compropriedade tem de ser feito conjuntamente por todos os comproprietários.
IV - E, porque assim é, o pedido de anulação de um acto e o pedido de condenação a uma indemnização decorrentes do facto de se ter feito parte da compropriedade tem de ser feita em conjunto por todos os comproprietários já que só essa actuação conjunta permitirá que, sendo a acção coroada de êxito, todos eles compartilhem dos benefícios daí resultantes na proporção das suas quotas.
V - Estamos, pois, em presença dum caso de litisconsórcio necessário emanado da própria natureza da relação jurídica.
VI - Por essa razão carece de legitimidade para propor uma acção daquele tipo um comproprietário desacompanhado de todos os demais comproprietários.
Nº Convencional:JSTA00067696
Nº do Documento:SA1201206200230
Data de Entrada:04/13/2012
Recorrente:A...
Recorrido 1:MUNICÍPIO DE TOMAR
Votação:UNANIMIDADE
Meio Processual:REC JURISDICIONAL
Objecto:AC TCA SUL DE 2011/11/10
Decisão:NEGA PROVIMENTO
Área Temática 1:DIR ADM CONT - ACÇÃO ADM ESP
Área Temática 2:DIR PROC CIV
Legislação Nacional:CPTA02 ART9 N1 ART55 N1 A
CPC96 ART288 N1 D ART28
CCIV66 ART1405 N1 N2 ART1406 ART1409
Jurisprudência Nacional:AC STA PROC1054/08 DE 2009/10/29; AC STA PROC46518 DE 2000/08/16; AC STA PROC48200 DE 2002/04/09; AC STAPLENO PROC40961 DE 2002/02/21
Referência a Doutrina:AROSO DE ALMEIDA E OUTRO CÓDIGO DE PROCESSO NOS TRIBUNAIS ADMINISTRATIVOS ANOTADO PAG55
VIEIRA DE ANDRADE A JUSTIÇA ADMINISTRATIVA 3ED PAG93
ANTUNES VARELA E OUTRO CÓDIGO CIVIL ANOTADO ART1405
Aditamento:
Texto Integral: ACORDAM NA SECÇÃO DE CONTENCIOSO ADMINISTRATIVO DO STA:

A……. intentou, no TAF de Leiria, contra o MUNICÍPIO DE TOMAR acção administrativa especial pedindo que fosse declarada nula a deliberação, de 3/02/1992, da Câmara Municipal de Tomar que procedeu “à alteração do fim acordado na escritura para os prédios doados deixando de ser o da construção de arruamentos, parque de estacionamento e espaços verdes passando a ser o da construção” da Biblioteca Municipal e seus logradouros e a condenação do Réu a pagar-lhe € 648.115,53, acrescida de juros vencidos à taxa legal, desde a citação até integral pagamento.

Por sentença, de 31/03/2009, o TAF de Leiria considerou que o Autor não era parte legítima pelo que julgou verificada a excepção da sua ilegitimidade.

Decisão essa, que o TCA SUL, por Acórdão de 10/112011, confirmou.

É contra este julgamento que vem a presente revista onde foram formuladas as seguintes conclusões:
1. O Recorrente e demais comproprietários de uma parcela de terreno descrita na Conservatória do Registo Predial de Tomar sob o n° 29836 a fls.3 do Livro B-76 inscrito na matriz sob os artigos 1415 - rústico e 1563 urbano e o Presidente da Comissão Administrativa da Câmara Municipal de Tomar em 19 de Maio de 1975 outorgaram escritura pública denominada “contrato de urbanização e doação de terreno” na qual doaram parte da referida parcela de terreno destinada a arruamento, parques de estacionamento e espaços verdes.
2. Em troca o Recorrente e demais comproprietários receberam a licença para promoverem o loteamento da sua parcela de terreno, comprometendo-se o R, “a dar imediatamente execução aos trabalhos de urbanização, previstos no referido esquema, para a zona onde se situa a propriedade dos doadores, sem quaisquer encargos para os segundos outorgantes”.
3. Em 3 de Fevereiro de 1992 o R. toma uma deliberação relativa ao concurso público para arrematação da empreitada de construção do Biblioteca Municipal de leitura pública de Tomar - B.M.2 em que foi adjudicada a obra ao concorrente, “B……., LDA”, sendo que a obra a erigir em local respeitante a parte do terreno objecto da doação e com os fins identificados em 1)
4. O Recorrido procedeu à alteração do fim acordado na escritura para os prédios doados deixando de ser o da construção de arruamentos, parques de estacionamento e espaços verdes passando a ser o da construção urbana e procedeu à construção da Biblioteca Municipal de Tomar que implantou nos prédios doados numa área de 1.400m2 com um terreno envolvente com uma área de 4.425m2. Tal edifício foi edificado pelo Recorrido e inaugurado a 15 de Novembro de 1997,
5. Utilizou o Recorrido na implantação desta obra cerca de 60% dos terrenos doados para fins diferentes dos consignados na escritura de doação e para si bem mais rentáveis.
6. O valor actualizado dos encargos e taxas municipais em 1997, com essa alteração apenas ficaram afectados à parte não desviada da finalidade convencionada em € 39.774,23 (€ 99.435,28 x 40%).
7. Pelo que, o valor que o Recorrente deixou de obter do Recorrido face à alteração daquela finalidade foi de €518.489,35 (€578.150,70 - €99.435,58 - € 39,774,23),
8. Montante que atenta a desvalorização da moeda desde 1998 se fixa em € 648.115,53 (seiscentos e quarenta e oito mil, cento e quinze euros e cinquenta e três cêntimos), que reclama.
9. A decisão recorrida essencialmente levantou um conjunto de questões relacionados com a ilegitimidade processual do Recorrente, que salvo o devido respeito, não têm de se equacionar, não havendo qualquer violação do n.° 1 do artigo 10.° do CPTA.
10. Tal preceito normativo refere que:
Cada acção deve ser proposta contra a outra parte na relação material controvertida e quando for caso disso, contra as pessoas ou entidades de interesses contrapostos ao autor. Ora,
11. Tratando-se de um processo impugnatório prevê a al.ª a) do n°1 do artigo 55° do CPTA, o seguinte:
Tem legitimidade para impugnar um acto administrativo:
a) Quem alegue ser titular de um interesse directo e pessoal designadamente por ter sido lesado pelo acto nos seus direitos ou interesses legalmente protegidos.
12. Ora, a jurisprudência administrativa tem-se manifestado sobre a interpretação da legitimidade activa no contencioso administrativo, de que transcrevemos alguns exemplos.
13. No processo n°1088/05.3BEBRG do TCA Norte – 1ª Secção, foi proferido douto Acórdão de 24/5/07 que refere:
A legitimidade processual é o pressuposto pelo qual a lei selecciona os sujeitos de cada lide judicial, e deverá ser aferido nos termos em que o autor delineou o respectivo interesse directo e pessoal em impugnar o acto, sendo a sua ocorrência independente da existência real dos factos constitutivos do interesse invocado”.
No processo n.°12.141 do TCA Sul, 1ª Secção foi proferido douto Acórdão de 30/3/2006 que refere:
I - O acto administrativo, enquanto conduta unilateral da Administração do domínio de uma relação concreta em que ela é parte, configura um comando, positivo ou negativo, pelo qual se constituem, se modificam ou extinguem relações jurídicas, se decide um conflito, se fixa juridicamente o sentido duma situação de facto.
II - A legitimidade activa pressupõe a detenção na causa de interesse directo, pessoal e legítimo - Arts.46° do RSTA e 821° do CA.
III - O interesse é legítimo caso a utilidade proveniente da procedência do recurso não seja reprovada pelo Direito, isto é, se reporte a um interesse legalmente protegido.
IV - O interesse diz-se directo e pessoal, respectivamente, caso a utilidade proveniente da procedência do recurso implique a anulação ou declaração de nulidade do acto jurídico impugnado e o “recorrente alegue esperar uma utilidade concreta para si próprio (...), isto é, seja a pessoa em cuja carreira, em cuja esfera jurídica ou actividade se vá produzir o efeito da declaração pretendida”.
Ora,
14. O Recorrente conclui tal acção impugnatória peticionando que seja declarada nula a deliberação camarária do R., de 3/02/1992 e consequentemente ser este condenado a restituir-lhe a quantia de € 648.115,33 (seiscentos e quarenta e oito mil cento e quinze euros e trinta e três cêntimos).
15. Assim, a decisão recorrida interpreta o acto impugnado como uma adjudicação de uma obra pública a uma sociedade comercial, o que se aceita.
16. E sem mais conclui que a relação material controvertida relatada na petição inicial atento o pedido não mostra ponto de conexão com o procedimento concursal de cujo acto adjudicatório pede anulação.
17. E extrai tal conclusão por o Recorrente não ter sido oponente ou ter tomado parte naquele concurso.
18. Ora, salvo o devido respeito a decisão recorrida quis limitar interpretação jurídica dos factos ao óbvio, passando no caso em apreço ao lado do essencial.
19. Os bens doados destinavam-se a “arruamentos, parques de estacionamento e espaços verdes”.
20. O Recorrente e os demais interessados trataram do loteamento e o Recorrido ficou proprietário dos bens doados a fim de lhes dar o destino fixado na escritura.
21. A doação é o contrato pelo qual uma pessoa por espírito de liberalidade e à custa do seu património, dispõe gratuitamente de uma coisa ou de um direito, ou assume uma obrigação em benefício do outro contraente artigo 940.° do Código Civil.
Tem como efeitos essenciais:
a) A transmissão da propriedade da coisa ou da titularidade do direito,
b) A obrigação de entregar a coisa,
c) A assunção da obrigação quando for esse o objecto do contrato - artigo 954° do Código Civil.
22. As doações podem ser oneradas com encargos - artigo 963° do Código Civil.
23. Ora, no caso em apreço a doação foi onerada com o encargo de nos bens doados, o Recorrido apenas os poder destinar a “arruamentos, parques de estacionamento e espaços verdes”.
24. E também é facto assente que o Recorrido adjudicou a obra de construção da Biblioteca Municipal de leitura pública de Tomar, a construir em parte do terreno doado.
25. E desde logo a questão que se coloca é a de saber se ao erigir uma Biblioteca num terreno destinado a arruamentos, parques de estacionamento e espaços verdes, se o R. cumpriu o encargo subjacente à doação de terreno?
26. Entendemos claramente que não.
27. E ao fazê-lo de forma ilegal e não consentida o R. alterou o fim destinado aos bens doados na escritura de forma unilateral.
28. A implantação da biblioteca nos terrenos doados ocupou uma área significativa, cerca de 1.400m2, com um terreno envolvente com uma área de cerca de 4.425m2.
29. É que, a escritura outorgada em 1975 encerrava em si um equilíbrio económico entre o valor dos bens doados para aquele fim e o valor da licença de urbanização que os doadores não tiveram de pagar.
30. Se conjugarmos este facto com a inflação da moeda entre 1975 e 2009 poderemos compreender com facilidade o prejuízo do Recorrente e demais interessados.
31. Não se discute que o processo concursal tenha como fim directo e imediato a escolha de entre aqueles que se apresentaram a concurso, daquele que melhor se posicionou relativamente aos fins de interesse público subjacente à realização da obra.
32. E o Recorrente efectivamente nada teve a ver com o concurso que o Recorrido lançou para a construção da Biblioteca Municipal de Tomar nem com a anterior deliberação que determinou a sua construção.
33. Porém, quando em 3/02/1992, o R. delibera a adjudicação da obra de construção da Biblioteca Municipal a um concorrente, um dos elementos integrantes desse concurso é o local da obra.
34. Ou seja, nesse concurso ficou definido o local exacto onde a obra iria ser e foi implantada.
35. Logo existe vício de violação de lei na deliberação do R. de 3/02/1992 ao adjudicar a construção de uma obra num local em que legalmente estava impedido de o fazer, daqui resultando a nulidade do mesmo.
36. Assim, da declaração de nulidade de tal acto invocável a todo o tempo e por qualquer interessado decorre um efeito retroactivo, “devendo ser restituído tudo o que tiver sido prestado ou, seja na restituição em espécie se não for possível, o valor correspondente” - artigo 289° n°1 do Código Civil.
37. Ora, no caso em apreço julgamos não ser possível a restituição em espécie face à consolidação ilegal da obra.
38. Contudo, o Recorrido deve ser condenado a pagar o valor correspondente à alteração ilegal do fim convencionado para os bens doados assim se sanando o vício legal de que manifestamente a obra em causa padece.
39. Em face do que se requer a revogação da douta decisão recorrida e a sua substituição por outra que condene o Recorrido na decretação da nulidade da deliberação camarária de 3 de Fevereiro de 1992 e consequentemente a restituir ao Recorrente a quantia de € 649.115,53 (seiscentos e quarenta e nove mil, cento e quinze euros e cinquenta e três cêntimos), acrescida de juros, à taxa legal, desde a citação até efectivo e integral pagamento, assim se sanando a ilegalidade quanto à alteração dos fins convencionados relativamente aos bens doados.
40. A douta decisão recorrida violou os artigos 10.º, n°1, e 55° n°1 do CPTA, 289.º, e 940.°, 954° do Código Civil

O Município de Tomar contra alegou, sustentando que o recurso não merecia provimento sem, contudo, formular conclusões.

O Ex.mo Procurador Geral Adjunto notificado nos termos do artigo 146.º, n.º 1 do CPTA, nada disse.

Colhidos os vistos, cumpre decidir.

FUNDAMENTAÇÃO

I. MATÉRIA DE FACTO

A decisão recorrida julgou provados os seguintes factos:
1. Por escritura pública celebrada em 1975, tendo como 1° outorgante o Dr. C……, na qualidade de Presidente da Comissão Administrativa da Câmara Municipal de Tomar, e D…… e cônjuge, E……, por si e em representação de sua filha F……, A……, e cônjuge, G……, e H……, por si e na qualidade de procuradora de seu irmão e cunhada, I….. e cônjuges J……, como 2.ºs outorgantes, foi celebrado um denominado “contrato de urbanização e doação de terreno”, nos termos do qual o 1.º outorgante concedeu aos segundos outorgantes a licença para promoverem o loteamento de uma parcela de terreno, com uma área de com 900 m2, de um prédio misto sito no ……, freguesia de Santa Maria, concelho de Tomar, que se encontra descrito na Conservatória do Registo Predial de Tomar sob o n2 29.836, a fls. 3 do livro 8-76, inscrito na matriz sob os artigos 1415º rústico e 1563º urbano, que lhes pertencia, e os 2°s outorgantes fizeram doação dos terrenos destinados aos arruamentos, parques de estacionamento e parques verdes.
2. Do contrato de urbanização e doação de terreno, mencionado em i. e junto com a petição inicial, como doc. nº 1, transcreve-se:
Primeira: - Os segundos outorgantes fazem, pela presente escritura, doação pura e simples à Câmara Municipal de Tomar, livre de qualquer ónus ou encargo das seguintes parcelas, a destacar do mencionado prédio, destinadas a arruamentos, parques de estacionamento e espaços verde:
a) Parcela de terreno, com a área aproximado de nove mil e setecentos metros quadrados, envolvendo a parcela de terreno a lotear (...) b) - Caso de habitação, situada no parcela anterior (...)
Segunda: - A Câmara Municipal de Tomar compromete-se a respeitar o regime de ocupação de terrenos disponíveis para construção, constante do esquema do traçado urbano da zona do novo Liceu (...)
Terceira: - A Câmara Municipal de Tomar compromete-se a dar, imediatamente, execução aos trabalhos de urbanização, previstos no referido esquema, para a zona onde se situa a propriedade dos doadores, sem quaisquer encargos para os segundos outorgantes (…)”.
3. Por deliberação da Câmara Municipal de Tomar, de 3-2-92, foi lançado “Concurso Público para arrematação da empreitada de construção da Biblioteca Municipal de leitura pública de Tomar — B.M. 2», em que foi adjudicada a obra ao concorrente “B……, Ldª”. A Biblioteca ocupa uma área de 2.200 m2, dos quais 1.400 m2 são terrenos objecto do contrato de urbanização e doação descrito em 1.
4. O autor pediu ao TAF de Leiria a anulação da deliberação camarária de 1992, fazendo-o nos termos constantes do requerimento inicial de folhas 1 a 10 dos autos, que aqui se dão por integralmente reproduzidas.
5. Por decisão datada de 31-3-2009, o réu nessa acção administrativa especial foi absolvido da instância, com fundamento na ilegitimidade do autor, nos termos constantes da decisão recorrida [cfr. fls. 172/177 dos autos, que aqui se dá por reproduzida].

II. O DIREITO.

Resulta dos autos que o Autor, ora Recorrente, juntamente com outros familiares, era proprietário de um prédio e que pretendendo urbanizar uma parcela deste, com a área de 900m2, a destacar, celebraram, em 19/05/1975, com a Câmara Municipal de Tomar um “Contrato de urbanização e doação de terreno” onde acordaram que esta licenciava a pretendida urbanização e custeava as respectivas obras e que, em contrapartida, aqueles lhe doavam outra parcela do mesmo prédio e a casa de habitação nela implantada, a qual se destinava a arruamentos, parques de estacionamento e espaços verdes.
Todavia, em 1992, a Câmara alterou a finalidade prevista para o prédio doado destinando-o à construção da Biblioteca Municipal de Tomar obra esta que, depois de realizada, foi inaugurada.
Em 10/09/2007, isto é, mais de 10 anos depois da dita inauguração, o Autor intentou esta acção administrativa especial pedindo que fosse “declarada nula a deliberação camarária do R., de 1992, identificada em 21) (O teor deste articulado é o seguinte: “Por deliberação camarária de 1992, de que o Autor desconhece a data exacta, o R. procedeu à alteração do fim acordado na escritura para os prédios doados deixando de ser o da construção de arruamentos, parque de estacionamento e espaços verdes passando a ser a construção urbana, cuja nulidade se requer.”) da presente e consequentemente ser o R. condenado a restituir ao Autor a quantia de 648.115, 53 euros acrescida de juros ...” para o que alegou que dos 9.700m2 doados ao Réu por força do citado contrato 1.400m2 foram ocupados com a implantação da Biblioteca e 4.425m2 destinados ao seu logradouro. Ora, a utilização dessa área para fins diversos dos acordados na doação causaram-lhe prejuízos no montante do valor peticionado uma vez que, não fora o destino atribuído à parcela doada, a mesma iria ser vendida para construção ao preço do mercado e nessa venda obteria os proveitos que ora peticiona.

É, assim, claro que o Autor, com fundamento na ilegalidade da alteração do destino da coisa doada, formulou dois pedidos autónomos, ainda que relacionados entre si: por um lado, a anulação da deliberação camarária que procedeu àquela alteração e destinou as parcelas doadas à construção de uma Biblioteca e, por outro, o pedido de condenação no pagamento de 648.115,53 euros por ser esse o prejuízo que, de acordo com a sua alegação, aquela alteração lhe trouxe.

Por sentença do TAF de Leiria, de 31-3-2009, o Réu foi absolvido da instância, com fundamento na ilegitimidade do autor.

Decisão que o Acórdão recorrido confirmou pela seguinte ordem de razões:
“O réu questionou a legitimidade do autor por estar desacompanhado dos outros interessados [os outros intervenientes no contrato de urbanização e doação de terreno], e por ausência de um interesse directo e pessoal em agir.
Tendo o autor respondido que a sua legitimidade advém de ter sido um dos comproprietários de um prédio misto, do qual foram destacadas duas parcelas que foram doadas ao Município, por escritura notarial, para serem destinadas exclusivamente a arruamentos, parques de estacionamento e espaços verdes e onde o réu decidiu edificar a biblioteca pública [concretamente em 1.400 m2 dos 2.200 m2 que constituem a área total do prédio]. Daí que a afectação dos terrenos, ainda que parcial, a outros fins que não os convencionados, concretamente à construção de um imóvel, causa-lhe um prejuízo patrimonial que calcula como sendo o valor que os terrenos doados teriam se tivessem sido destinados à urbanização.
Ou seja, o bem jurídico que ele se apresentou a defender foi o interesse pessoal em ser ressarcido do valor dos bens, que foram doados ao Município com uma finalidade e que o réu utilizou noutra.
Mas esse interesse não é suficientemente qualificado para lhe conferir legitimidade activa, visto não ser directo, e isto porque os prejuízos alegados não resultam do acto de adjudicação da obra, mas da deliberação que a montante destinou uma área das parcelas doadas para a construção do edifício municipal, ou seja, não é a deliberação de adjudicação que irá causar os invocados prejuízos.
Deste modo, impõe-se a conclusão de que não se pode afirmar que o interesse do autor seja actual e imediato.
Acresce ainda dizer que os interesses que o autor pretende alcançar, muito embora passam vir a ser reflexamente atingidos pelo acto de adjudicação [acto impugnado], na medida em que foi com este acto que se deu inicio à construção da Biblioteca, não são directos, por não se repercutirem de forma directa e imediata, e com efeitos lesivos, na sua esfera jurídica patrimonial.
Tanto basta para se poder afirmar que o mesmo não tem legitimidade para propor a presente acção.”

Julgamento que o Recorrente não aceita pelas razões constantes das conclusões desta revista.

A revista foi admitida por se ter entendido que “a decisão de não conhecer da pretensão por ilegitimidade activa apresenta-se como questão jurídica de relevância superior ao comum” visto essa relevância ter reflexos “não apenas para o litígio do processo em concreto, mas também na perspectiva da situação típica em que um pedido indemnizatório por danos resultantes de um comportamento traduzido numa pluralidade de actuações jurídicas e materiais é cumulado com o pedido de anulação ou declaração de nulidade de um acto administrativo que se situa em algum ponto do percurso daquele comportamento.”

Vejamos, pois se o Autor tem legitimidade para formular os pedidos aqui em questão.

1. A legitimidade é, como se sabe, um pressuposto processual, isto é, uma condição cuja verificação é indispensável à obtenção da pronúncia judicial sobre o mérito da causa. E, por ser assim, a propositura de uma acção por pessoa a quem falte legitimidade para formular os pedidos que pretende ver reconhecidos determina a absolvição do Réu da instância (art.º 288.º/1/d) do CPC).

O princípio geral relativo à verificação deste pressuposto na jurisdição administrativa encontra-se no art.º 9.º/1 do CPTA onde se lê que “sem prejuízo do disposto no número seguinte e do que no art.º 40.º e no âmbito da acção administrativa especial se estabelece neste código, o autor é considerado parte legítima quando alegue ser parte na relação material controvertida”. O que, quer dizer que, por princípio, a participação na relação material controvertida é o critério decisivo para se aferir da legitimidades das partes o que tem como consequência que só se poderá apresentar a litigar em juízo quem alegue ser titular nessa relação jurídica.
Todavia, esse princípio sofre adaptação quando se trate de acção administrativa especial já que, neste caso, a lei não elege a titularidade da referida relação como critério de aferição da legitimidade limitando-se a exigir que o autor alegue “ser titular de um interesse directo e pessoal, designadamente por ter sido lesado pelo acto nos seus direitos ou interesses legalmente protegidos” (art.º 55.º/1/a) do CPTA). O que alarga a possibilidade da propositura de uma acção desta natureza àqueles que não sendo os titulares da relação donde emerge o conflito podem, no entanto, ser reflexamente prejudicados por ela. Nestas circunstâncias, basta-lhes alegar serem titulares de um interesse directo e pessoal e de que este foi lesado, ainda que reflexamente, pelo acto que querem ver anulado. O que tem toda a lógica já que sendo aquela acção o meio processual próprio para se reagir contra os actos da Administração emitidos na sua veste de poder público importa garantir aos que são lesados pela sua prática o direito de reagir judicialmente contra eles.
O que significa que o critério para se ajuizar da legitimidade do Autor numa acção administrativa especial é a utilidade ou vantagem que ele pode retirar da anulação contenciosa do acto que o lesa e, por isso, a necessidade de tutela judicial efectiva contra o mesmo (Vd. Aroso de Almeida e Fernandes Cadilha, in CPTA Anotado, pg. 55, Vieira de Andrade, A Justiça Administrativa, 3ª ed., pág. 93 e Acórdão do Pleno deste STA de 21/02/02, rec. 40.961.).
O que nos permite, desde já, retirar duas importantes conclusões: a primeira, a de que se pode recorrer a juízo sem se ser titular da relação jurídica donde emerge a lesão e, a segunda, a de que não basta a invocação de um qualquer direito ou interesse para, automaticamente, se ter legitimidade visto ser necessário que esse interesse seja directo e pessoal e, além disso, seja legítimo, isto é, tenha a cobertura do direito.
Sendo certo, por outro lado, que este Supremo tem vindo, repetidamente, a afirmar que, ao nível dos pressupostos processuais e em homenagem aos princípios antiformalista e pro actione, a lei deve ser interpretada de modo a que se privilegie o acesso ao direito e a uma tutela judicial efectiva (Vejam-se a propósito os Acórdãos de 2/6/99 (rec. 44.498), de 7/12/99 (rec. 45.014), de 15/12/99 (rec. 37.886), de 16/8/00 (rec. 46.518) e de 9/4/02 (rec. 48.200).) sendo, por isso, de rejeitar interpretações restritivas do que se deve entender interesse directo e pessoal, já que isso poderia limitar o acesso à referida tutela. Sem que tal signifique que a mera invocação da violação de um direito ou interesse legalmente protegido baste para o autor ver reconhecida a sua legitimidade já que, não sendo a ilegalidade do acto critério para se aferir da legitimidade do autor, importa que ele alegue também que o acto violador, para além de ilegal, é lesivo dos seus direitos e interesses legalmente protegidos e que retira vantagens imediatas da sua anulação.
Ou seja, e regressando ao texto legal, importa que o autor invoque a titularidade de um interesse invocado directo e pessoal e não meramente longínquo, eventual ou hipotético (Vd. Acórdão de 29/10/2009 (proc. 1054/08) que o ora Relator também relatou e que, por isso, aqui se segue de muito perto.).

2. Regressando ao caso sub judice, já sabemos que o Autor intentou esta acção administrativa especial para formular dois pedidos autónomos, ainda que relacionados entre si; de um lado, um pedido de anulação de um acto administrativo - a deliberação camarária que, unilateralmente, alterou o destino acordado para os prédios doados - e de outro, o pedido de condenação ao pagamento de uma indemnização - decorrente dos proventos que perdeu em razão daquela alteração. - E que não foi feliz porque as instâncias entenderam que ele não dispunha de legitimidade para propor esta acção visto o seu interesse não ser directo e legítimo.
Decisão que foi fundamentada no facto da indemnização peticionada decorrer não do acto de adjudicação da obra da Biblioteca mas da deliberação que destinou parte da área das parcelas doadas à sua construção. O Aresto sob censura convenceu-se, assim, que o Autor tinha atacado o acto que adjudicou a construção da Biblioteca e que foi nele que fundou o seu pedido indemnizatório quando a verdade é que essa interpretação do alegado na petição inicial é errada, como o evidencia o facto do pedido anulatório se reportar à deliberação que alterou o destino da coisa doada e não à adjudicação da obra.
Por essa razão ainda que a decisão recorrida possa ser confirmada certo é que não o será com a fundamentação que dela consta.

Mas será que, como se decidiu no TCAS, o Autor é parte ilegítima?

3. A situação existente à data da doação era a de compropriedade do bem doado e, por isso, todos os comproprietários outorgaram nesse contrato. E fizeram-no porque o art.º 1405.º do CC estatui que “os comproprietários exercem, em conjunto, todos os direitos que pertencem ao proprietário singular” (n.º 1 com sublinhado nosso) e que só é lícito a cada consorte agir de forma isolada quando se trate de reivindicar de terceiro a coisa comum (n.º 2), de a usar (art.º 1406.º) ou de exercer o direito de preferência (art.º 1409.º).
O que quer dizer que, salvo contadas excepções, o exercício de direitos decorrentes da compropriedade tem de ser feito conjuntamente por todos os comproprietários. Só com essa actuação “fica plenamente preenchida a titularidade do direito de propriedade e nenhuma razão subsiste, por conseguinte, para recusar ao conjunto dos intervenientes no acto os poderes próprios do proprietário singular.” (A. Varela e P. de Lima, CC Anotado em anotação ao art.º 1405.)

No caso, o Autor reivindica um direito de indemnização - decorrente dos prejuízos sofridos em razão da alteração unilateral do destino acordado para o bem doado - que, a existir, pertence a todos os ex-comproprietários do mesmo. E, porque assim é, esse direito tem de ser exercido conjuntamente por todos os anteriores proprietários da coisa já que só essa actuação conjunta permitirá que, sendo a acção coroada de êxito, a indemnização arbitrada seja partilhada por todos na proporção das suas quotas. Dito de forma diferente, o Autor não pode reivindicar para si só um direito que é de todos os ex-proprietários pois que se o fizesse poderia fazer sua uma indemnização que, a ser devida, pertencia a todos.
Esta circunstância, pela sua força e pela sua natureza imperativa, obriga a que qualquer acção que venha a ser proposta destinada a reivindicar um direito cuja titularidade seja do conjunto dos comproprietários tenha de ser participada por todos eles.Por outras palavras, se a relação litigiosa for de tal natureza que, para se formar caso julgado substancial, seja indispensável que a sentença vincule todos os interessados, todos eles têm de figurar na acção, visto, por um lado, ser inadmissível que se profira sentença inútil e, por outro, ser intolerável, em princípio, que uma sentença tenha eficácia contra interessados directos que não foram chamados à acção.” – J.A. Reis, CPC Anotado, vol. I, 3.ª ed., pg. 95/96.
Estamos, pois, em presença dum caso de litisconsórcio necessário emanado da própria natureza da relação jurídica.

Nesta conformidade, e porque a não intervenção dos interessados ex-comproprietários é motivo de ilegitimidade (art.º 28.º do CPC) é inquestionável que o Acórdão recorrido decidiu bem quando afirmou que o Autor não dispunha de legitimidade para propor a presente acção. E, com esse fundamento, absolveu o Réu da instância.

Termos em que os Juízes que compõem este Tribunal acordam em negar provimento a este revista e em confirmar, ainda que com fundamentação diferente, o Acórdão recorrido.
Custas pelo Recorrente.
Lisboa, 20 de Junho de 2012. - Alberto Acácio de Sá Costa Reis (relator) - José Manuel da Silva Santos Botelho - Adérito da Conceição Salvador dos Santos.