Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:085/21.6BALSB
Data do Acordão:06/27/2021
Tribunal:1 SECÇÃO
Relator:ADRIANO CUNHA
Descritores:INTIMAÇÃO PARA PROTECÇÃO DE DIREITOS LIBERDADES E GARANTIAS
LIBERDADE DE CIRCULAÇÃO
RESOLUÇÃO DO CONSELHO DE MINISTROS
LEI HABILITANTE
PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE
Sumário:I – A medida restritiva do direito de circulação imposta pela redação conferida ao artigo 3º-A do regime anexo à RCM nº 74-A/2021, de 9/6, pela RCM nº 77-A/2021, de 24/6 - «de e para a Área Metropolitana de Lisboa no período compreendido entre as 15:00h do dia 25/6/2021 e as 06:00h do dia 28/6/2021» - encontra fonte normativa suficientemente adequada nas normas indicadas como sua base habilitante, nomeadamente da “Lei de Bases da Proteção Civil” (Lei nº 27/2006, de 3/7), da “Lei do Sistema de Vigilância em Saúde Pública” (Lei nº 81/2009, de 21/8) e da “Lei de Bases da Saúde” (Lei nº 95/2019, de 4/9), como este STA já antes entendeu a propósito de medida semelhante, mais restritiva (de restrição de circulação entre concelhos, a nível nacional), imposta pela RCM nº 89-A/2020, de 26/10 (Acórdão de 31/10/2020, proc. 122/20.1BALSB).
II – A medida em causa é de ter como justificada e adequada, ponderando todas as exceções previstas - a que, inovatoriamente, se adicionou a apresentação de “Certificado Digital Covid” ou de comprovativo de realização de testes, para despiste da infeção por SARS-CoV-2, com resultado negativo atualizado -, considerando a atual situação epidemiológica no território nacional e, designadamente, a sua maior gravidade na Área Metropolitana de Lisboa, respeitando, por isso, os princípios da necessidade e da proporcionalidade.
Nº Convencional:JSTA00071203
Nº do Documento:SA120210627085/21
Data de Entrada:06/25/2021
Recorrente:A...................
Recorrido 1:CONSELHO DE MINISTROS E PRESIDÊNCIA DO CONSELHO DE MINISTROS
Votação:MAIORIA COM 1 DEC VOT E 1 VOT VENC
Legislação Nacional:ART. 3.º-A RCM N.º 74-A/2021
ART. 2.º RCM 77-A/2021
ART. 19.º e 21.º, N.º~2, ALS. B) e C) LEI N.º 27/2006
ART. 17.º LEI 81/2009
BASE 34 LEI 95/2019
ARTS. 18.º, 19.º, 44.º e 165.º, N.º 1, AL. B) CRP
Aditamento:
Texto Integral: ACORDAM NA SECÇÃO DE CONTENCIOSO ADMINISTRATIVO DO SUPREMO TRIBUNAL ADMINISTRATIVO:
1. RELATÓRIO

A………………., devidamente identificada nos autos, intentou neste Supremo Tribunal Administrativo, nos termos do disposto no art° 109° e segs. do CPTA, intimação para protecção de direitos, liberdades e garantias contra o CONSELHO DE MINISTROS/PRESIDÊNCIA DO CONSELHO DE MINISTROS formulando os seguintes pedidos:
“(…) decidindo Vossas Excelências pelo reconhecimento da ilegalidade e a inconstitucionalidade da supramencionada decisão do Governo plasmada na Resolução do Conselho de Ministros de 24 de Junho (…) em manter a proibição de circulação de e para a Área Metropolitana de Lisboa entre as 15:00 h do dia 25 de Junho e as 6:00 h do dia 28 de Junho e, em consequência deve ser a mesma revogada com efeitos imediatos e que sejam tomadas todas as medidas necessárias para obstar à sua produção de efeitos actuais e futuros”.

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O requerente, alega, em síntese que:
Dando continuidade à decisão tomada em Conselho de Ministros na passada semana, de forma a conter o aumento de incidência que se tem verificado, o Governo - nos termos da presente Resolução do Conselho de Ministros, de 24 de Junho, manteve a proibição de circulação de e para a Área Metropolitana de Lisboa ao fim-de-semana, entre as 15:00 h do dia 25 de Junho e as 06:00h do dia 28 de Junho, sendo admitida, excepcionalmente, a circulação mediante apresentação de comprovativo de realização laboratorial de teste para despiste da infeção por SARS-CoV-2 com resultado negativo ou, alternativamente, mediante apresentação do Certificado Digital COVID da União Europeia.
Sendo certo que vigora, em todo o território nacional, uma situação de calamidade, cuja competência para a sua declaração cabe ao Governo, revestindo a forma de Resolução do Conselho de Ministros, nos termos do Artigo 19.° da Lei de Bases da Protecção Civil, Lei n.° 27/2006 de 3 de Julho. Porém, certo é também que tal previsão de proibição de livre circulação de pessoas a que alude a Resolução do Conselho de Ministros aqui em causa, não configura, ela própria, uma cerca sanitária e de segurança, nos termos da declaração de situação de calamidade, conforme previsto pela alínea c) do n.° 2 do Artigo 21.° da referida Lei de Bases da Protecção Civil.
De resto, o Governo não declarou, na referida Resolução do Conselho de Ministros - à semelhança do que já fizera na passada semana quando restringiu pela primeira vez este direito fundamental de livre circulação e de deslocação de pessoas - qualquer intenção de avançar com uma cerca sanitária à Área Metropolitana de Lisboa. Muito pelo contrário.
Apenas declarou a proibição da circulação de pessoas de e para a Área Metropolitana de Lisboa, durante o fim-de-semana, designadamente, entre as 15:00 h do dia 25 de Junho e as 06:00h do dia 28 de Junho. Não sendo, pois, esta evidente restrição à livre circulação de pessoas devidamente fundamentada nos termos da Lei de Bases da Protecção Civil, conforme defende o Governo, tal decisão carece de uma inequívoca sustentação legal.
Aliás, esta reincidente decisão governamental, aqui em apreço, diz respeito a toda a Área Metropolitana de Lisboa, como um todo, e não à circulação entre os concelhos pertencentes à mesma área metropolitana. Porquanto, uma restrição que impede os cidadãos residentes em qualquer um dos concelhos da Área Metropolitana de Lisboa de poderem, livremente, sair durante o período de vigência da presente medida, excepto se perante a apresentação de comprovativo de realização laboratorial de teste para despiste da infeção por SARS-CoV-2 com resultado negativo ou, alternativamente, apresentação do Certificado Digital COVID da União Europeia.
Mantendo, o Governo, no essencial, a mesma justificação usada na semana passada pela Senhora Ministra da Presidência, em conferência de imprensa, quando esta restrição de circulação foi tomada pela primeira vez, de que tal medida - agora renovada por esta Resolução do Conselho de Ministros, de 24 de Junho, conforme Comunicado do Conselho de Ministros de 24 de Junho de 2021, disponível no sítio oficial do Governo - para a Área Metropolitana de Lisboa não se trata de um encerramento total, não sendo uma cerca sanitária, mas sim, uma restrição ao fim-de-semana, que visa travar o alastrar da pandemia ao resto do país.
Ora, salvo melhor opinião, tal decisão do Governo em renovar a proibição parcial da livre circulação de pessoas de e para a Área Metropolitana de Lisboa, designadamente entre as 15:00 h do dia 25 de Junho e as 06:00 h do dia 28 de Junho de 2021, põe em causa direitos, liberdades e garantias pessoais, constitucionalmente consagrados e protegidos.
Com efeito, esta renovada proibição prevista pela referida Resolução do Conselho de Ministros, de 24 de Junho, conforme Comunicado do Conselho de Ministros de 24 de Junho de 2021, disponível no sítio oficial do Governo, contraria, em absoluto, o direito que a todos os cidadãos é garantido de se deslocarem e fixarem livremente em qualquer parte do território nacional, conforme dispõe o n.° 1 do Artigo 44.° da Constituição da República Portuguesa (CRP).
Ademais, uma tal medida restritiva de direitos fundamentais como, manifestamente, é o caso do direito à livre circulação e de deslocação de pessoas tem, necessariamente, de passar pelo crivo do órgão de soberania competente para dele decidir, in casu, a Assembleia da República, uma vez que estamos perante matéria de reserva relativa de competência legislativa, nos termos do disposto na alínea b) do n.° 1 do Artigo 165.° da CRP.
Por outra banda, não está o Governo munido de um Decreto Presidencial de declaração de estado de emergência que lhe confira o poder de actuar com recurso à suspensão do exercício de direitos, nos termos do Artigo 19.° da CRP.
Pelo exposto, resulta claro que não pode o Governo tomar a decisão de impedir - a tempo parcial - a livre circulação de pessoas, de e para a Área Metropolitana de Lisboa, através de uma espécie de, não assumida, “cerca sanitária” em regime de part-time, ainda que por um período concreto e determinado e com criativas excepções para quem tenha comprovativo de realização laboratorial de teste para despiste da infeção por SARS-CoV-2 com resultado negativo ou, alternativamente, mediante apresentação do Certificado Digital COVID da União Europeia, sem estar, nos termos da Constituição da República Portuguesa, devidamente autorizado para tal.
Além do que, por força da fundamentação alegada pelo Governo na passada semana, em que, pela primeira vez tomou tal medida restritiva do direito à liberdade de circulação, previsto pelo Artigo 44.° da Constituição da República Portuguesa e que agora se renovou pela presente Resolução do Conselho de Ministros, cuja situação de calamidade foi prolongada até ao dia 11 de Julho, o que, antevê que tal medida venha a ser prorrogada semanalmente em Conselho de Ministros ou sempre que o Governo entender necessário.
Como se constata, o Governo mantém - fim-de-semana após fim-de-semana - a proibição às pessoas de dentro e de fora da Área Metropolitana de Lisboa de poderem passear livremente, de ir à praia, de ir ao campo, de visitar outras cidades e concelhos em actividades lúdicas e de lazer, ir de férias para onde bem entendem, enfim, circular, nos termos exactos em que esse direito lhes é, manifestamente, assegurado pela Lei Fundamental.
Dúvidas não restarão que, com esta medida arbitrária e legalmente abusiva que, para além do mais, segundo afirmam os próprios especialistas epidemiológicos, é muito pouco eficaz, é violado de forma grosseira um direito fundamental protegido de liberdade pessoal de circulação e deslocação, previsto pelo Artigo 44.° da CRP.
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O Requerente afirma a sua legitimidade ativa alegando que:
O requerente é cidadão português, residente na Área Metropolitana de Lisboa e é directamente visado pela Resolução do Conselho de Ministros, de 24 de Junho, (…) e viu os seus direitos, liberdades e garantias violados na medida já descrita”.

Questionado, veio, em resposta a despacho pré-liminar, esclarecer que “não é detentor de “Certificado Digital COVID”, por não se encontrar vacinado”.
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A Presidência do Conselho de Ministros (Conselho de Ministros) veio apresentar a sua defesa impugnando o alegado pelo Requerente, concluindo, a final, no sentido da improcedência do pedido. Defende, em suma, que não está em causa a suspensão de nenhum direito fundamental e que há base legal para o Governo restringir a liberdade de circulação nos termos que foram concretamente determinados, os quais respeitam, aliás, o princípio da proporcionalidade.

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Sem vistos, cumpre decidir.

2.1. A RESOLUÇÃO DO CONSELHO DE MINISTROS N° 77-A/2021 (DR n° 121/2021, 1° Suplemento, I série de 24/06/2021):

Sumário: Altera as medidas aplicáveis a determinados municípios no âmbito da situação de calamidade.

«Não obstante o calendário indicativo previsto na estratégia de levantamento de medidas de confinamento no âmbito do combate à pandemia da doença COVID-19 fixada através da Resolução do Conselho de Ministros n.° 70-B/2021, de 4 de junho, a evolução da situação epidemiológica no território nacional continental não recomenda que aquela estratégia prossiga no dia 28 de junho de 2021.
Atento o exposto, devem continuar a vigorar as regras vigentes nos últimos 15 dias, motivo pelo qual a presente resolução prorroga a vigência da Resolução do Conselho de Ministros n.° 74-A/2021, de 9 de junho, na sua redação atual, até às 23:59 h do dia 11 de julho de 2021, continuando a aplicar-se aquelas regras, sem progressão no desconfinamento de qualquer município do território nacional continental.
Concomitantemente, na sequência da revisão semanal do âmbito de aplicação territorial das medidas de contenção e mitigação da doença COVID-19, fica também determinado que os seguintes municípios são considerados «municípios de risco elevado» para efeitos de aplicabilidade daquelas medidas até à próxima revisão: Alcochete, Almada, Amadora, Arruda dos Vinhos, Barreiro, Braga, Cascais, Grândola, Lagos, Loulé, Loures, Mafra, Moita, Montijo, Odemira, Odivelas, Oeiras, Palmela, Sardoal, Seixal, Setúbal, Sines, Sintra, Sobral de Monte Agraço e Vila Franca de Xira.
Já aos municípios de Albufeira, Lisboa e Sesimbra são aplicáveis as medidas respeitantes aos «municípios de risco muito elevado».
Por fim, considerando o contexto epidemiológico, é igualmente prorrogada a limitação à deslocação ou circulação de e para a Área Metropolitana de Lisboa. No entanto, para além das exceções já anteriormente aplicáveis, passa também a ser admitida a circulação mediante apresentação de comprovativo de realização laboratorial de teste com resultado negativo, nos termos previstos na presente resolução, ou, alternativamente, mediante apresentação do Certificado Digital COVID da União Europeia.
Assim:
Nos termos dos artigos 12.° e 13.° do Decreto-Lei n.° 10-A/2020, de 13 de março, na sua redação atual, por força do disposto no artigo 2.° da Lei n.° 1-A/2020, de 19 de março, na sua redação atual, da base 34 da Lei n.° 95/2019, de 4 de setembro, do artigo 17.° da Lei n.° 81/2009, de 21 de agosto, do artigo 19.° da Lei n.° 27/2006, de 3 de julho, na sua redação atual, e da alínea g) do artigo 199.° da Constituição, o Conselho de Ministros resolve:
1 - Alterar o n.° 1 da Resolução do Conselho de Ministros n.° 74-A/2021, de 9 de junho, na sua redação atual, o qual passa a ter a seguinte redação:
«1 - Declarar, na sequência da situação epidemiológica da COVID-19, até às 23:59 h do dia 11 de julho de 2021, a situação de calamidade em todo o território nacional continental.»
2 - Alterar os artigos 2.° e 3.°-A do regime anexo à Resolução do Conselho de Ministros n.° 74-A/2021, de 9 de junho, na sua redação atual, os quais passam a ter a seguinte redação:
«(…)
Artigo 3.°-A
[...]
1 - Sem prejuízo do número seguinte, é proibida a circulação de e para a Área Metropolitana de Lisboa no período compreendido entre as 15:00 h do dia 25 de junho de 2021 e as 06:00 h do dia 28 de junho de 2021, sem prejuízo das exceções previstas no artigo 11.° do Decreto n.° 9/2020, de 21 de novembro, as quais são aplicáveis com as necessárias adaptações.
2 - É ainda admitida a circulação mediante apresentação de comprovativo de realização laboratorial de teste de amplificação de ácidos nucleicos (TAAN) ou de teste rápido de antigénio (TRAg) para despiste da infeção por SARS-CoV-2 com resultado negativo, realizado, respetivamente, nas 72 ou 48 horas anteriores à sua apresentação, ou, alternativamente, mediante apresentação do Certificado Digital COVID da União Europeia, o qual dispensa a apresentação de comprovativo de realização de teste para despiste da infeção por SARS-CoV-2.»
3 - Determinar que a presente resolução entra em vigor no dia seguinte ao da sua publicação, sem prejuízo do número seguinte.
4 - Determinar que o disposto no n.° 1 produz efeitos às 00:00 h do dia 28 de junho de 2021”.

2.2. Cabe notar que, para além da admissão de circulação em caso de apresentação de Certificado Digital Covid ou de comprovativo de realização de testes, com resultado negativo atualizado, mantêm-se as exceções previstas no artigo 11° do Decreto n.° 9/2020, de 21 de novembro, aplicáveis com as necessárias adaptações, pelo que as restrições em causa não se aplicam:
«a) Às deslocações para desempenho de funções profissionais ou equiparadas, conforme atestado por:
i) Declaração emitida pela entidade empregadora ou equiparada;
ii) De compromisso de honra, se a deslocação se realizar entre concelhos limítrofes ao do domicílio ou na mesma área metropolitana, bem como no caso de se tratar de trabalhadores do setor agrícola, pecuário e das pescas;
iii) Declaração emitida pelo próprio, no caso dos trabalhadores independentes, empresários em nome individual ou membros de órgão estatutário;
b) Às deslocações no exercício das respetivas funções ou por causa delas, sem necessidade de declaração emitida pela entidade empregadora ou equiparada:
i) De profissionais de saúde e outros trabalhadores de instituições de saúde e de apoio social, bem como de pessoal docente e não docente dos estabelecimentos escolares;
ii) De pessoal dos agentes de proteção civil, das forças e serviços de segurança, militares, militarizados e pessoal civil das Forças Armadas e inspetores da Autoridade de Segurança Alimentar e Económica (ASAE);
iii) De titulares dos órgãos de soberania, dirigentes dos parceiros sociais e dos partidos políticos representados na Assembleia da República e pessoas portadoras de livre-trânsito emitido nos termos legais;
iv) De ministros de culto, mediante credenciação pelos órgãos competentes da respetiva igreja ou comunidade religiosa, nos termos do n.º 2 do artigo 15.º da Lei n.º 16/2001, de 22 de junho, na sua redação atual;
v) De pessoal das missões diplomáticas, consulares e das organizações internacionais localizadas em Portugal, desde que relacionadas com o desempenho de funções oficiais;
c) Às deslocações de menores e seus acompanhantes para estabelecimentos escolares, creches e atividades de tempos livres, bem como às deslocações de estudantes para instituições de ensino superior ou outros estabelecimentos escolares;
d) Às deslocações dos utentes e seus acompanhantes para Centros de Atividades Ocupacionais e Centros de Dia;
e) Às deslocações para a frequência de formação e realização de provas e exames, bem como de inspeções;
f) Às deslocações para participação em atos processuais junto das entidades judiciárias ou em atos da competência de notários, advogados, solicitadores, conservadores e oficiais de registos, bem como para atendimento em serviços públicos, desde que munidos de um comprovativo do respetivo agendamento;
g) Às deslocações necessárias para saída de território nacional continental; h) Às deslocações de cidadãos não residentes para locais de permanência comprovada;
i) Deslocações por outras razões familiares imperativas, designadamente o cumprimento de partilha de responsabilidades parentais, conforme determinada por acordo entre os titulares das mesmas ou pelo tribunal competente;
j) Ao retorno ao domicílio.
3 - Os veículos particulares podem circular na via pública para realizar as atividades mencionadas no número anterior ou para reabastecimento em postos de combustível no âmbito das deslocações referidas nos números anteriores.
4 - A restrição prevista no n.º 1 não obsta à circulação entre as parcelas dos concelhos em que haja descontinuidade territorial».

2.2. O DIREITO

1. O Requerente intenta a presente intimação para a protecção de direitos, liberdades e garantias por alegar que o disposto na Resolução do Conselho de Ministros n° 77-A/2021, de 24 de junho, consubstancia uma restrição do seu direito à liberdade de circulação, protegido pelo art. 44º nº 1 da CRP, especificamente, no caso, do seu direito de livre saída e entrada na Área Metropolitana de Lisboa, na qual tem residência.

Assim, quer pela circunstância de residir dentro da referida área, quer por vir alegada, pelo Requerente, uma situação de indevida restrição de um seu direito constitucionalmente previsto, que requer uma urgente apreciação e, se for o caso, uma urgente decisão que obste ao prosseguimento dessa restrição, nada obsta ao conhecimento, através da presente via processual, da questão que vem suscitada, tanto mais que a restrição, tal como alegada, resulta da mera necessidade de motivação perante as autoridades públicas da pretensão do seu efetivo exercício.

*
2. A questão da violação da reserva de lei parlamentar habilitante da restrição da liberdade de circulação

Considerando que estamos ante uma medida restritiva da liberdade de circulação cuja intencionalidade directa é restringir o direito individual de circular e que, como tal, cabe no âmbito dos artigos 18° n° 2 e 165° n° 1 b) da CRP, carecendo de uma lei habilitante, cabe avaliar se essa habilitação, não provindo de uma lei parlamentar específica, pode considerar-se resultante de uma cadeia de legitimação que tem no seu topo uma lei parlamentar, ou seja, a restrição que resulta da norma medida aqui em apreço tem de encontrar em preceitos legais do Parlamento ou em decretos-lei autorizados uma expressão textual que contemple a restrição.

A medida em apreço foi aprovada pela Resolução do Conselho de Ministros n° 77-A/2021, de 24/6, e indica como “lei habilitante” os artigos 12° e 13° do DL n° 10-A/2020, de 13/3 (diploma ratificado pelo artigo 2° da Lei n° 1-A/2020, de 19/3), a base 34 da Lei nº 95/2019, de 4/9, (Aprova a Lei de Bases da Saúde), o artigo 17° da Lei nº 81/2009, de 21/8 (Lei do sistema de vigilância em saúde pública) e o artigo 19° da Lei n° 27/2006, de 3/7 (Lei de Bases da Protecção Civil), todos nas suas redações atualizadas.

Importa, pois, verificar se a medida adoptada - “proibição de circulação de e para a Área Metropolitana de Lisboa no período entre as 15:00 h do dia 25 de junho de 2021 e as 06:00 h do dia 28 de junho de 2021”, exceto nos casos aí salvaguardados - encontra naquelas normas legais uma fonte normativa adequada.

Entendemos que sim, ainda que reconhecendo que as normas legais referidas como suporte da medida em questão não foram pensadas pelo legislador, ao tempo da sua emissão, para as concretas circunstâncias que ora nos preocupam, sendo certo que estamos, como é sabido, perante uma situação de emergência sanitária totalmente nova, sem paralelo, ao menos nos tempos atuais.

Mas a circunstância de o legislador não ter concretamente em mente – por óbvia e lógica razão – as circunstâncias de emergência atualmente em causa, não significa que as estatuições normativas referidas não alberguem, na sua previsão (letra e, sobretudo, espírito), tais circunstâncias fácticas. Ou, de outro modo, não significa que o legislador, se conhecedor destas atuais circunstâncias (factuais) de emergência, não teria admitido, ele próprio, a adequação da sua inclusão nas previsões normativas em questão.

Aliás, isto mesmo já foi dito por este STA em similar processo de intimação em que se colocaram questões semelhantes ao do presente, ainda que referido a uma medida ainda mais restritiva (de proibição de circulação entre concelhos, ao fim de semana, imposta pela RCM nº 89-A/2020, de 26/10) – cfr. Acórdão de 31/10/2020 (proc. 122/20.1BALSB). Aí se explanou:

«(…) consideramos que encontra [fonte normativa adequada], não obstante estarmos perante normas legais que não foram aprovadas para dar cobertura legal a esta concreta medida, mas sim para fazer face a hipotéticas situações de emergência sanitária e de prevenção de riscos colectivos inerentes a situações de acidente grave ou de catástrofe ou de atenuação dos respectivos efeitos (i. e. protecção civil), a que esta medida não deixa também de se reconduzir.
Vejamos, o n° 2 do artigo 17.° da Lei n° 81/09 (Lei do sistema de vigilância em saúde pública) dispõe que “O membro do Governo responsável pela área da saúde, sob proposta do director-geral da Saúde, como autoridade de saúde nacional, pode emitir orientações e normas regulamentares no exercício dos poderes de autoridade, com força executiva imediata, no âmbito das situações de emergência em saúde pública com a finalidade de tornar exequíveis as normas de contingência para as epidemias ou de outras medidas consideradas indispensáveis cuja eficácia dependa da celeridade na sua implementação ”.
E é verdadeiramente isso que temos aqui: (i) primeiro, uma orientação ou norma regulamentar cujo conteúdo se aproxima mais de uma “recomendação agravada” do que uma proibição; (ii) segundo, emitida no âmbito de uma situação de emergência em saúde pública, situação que é hoje um facto público e notório; e (iii) terceiro, uma norma de contingência para uma situação de epidemia. A norma do n.° 2 do artigo 17.° consubstancia uma base habilitante mínima para a medida, tendo em conta que a medida é uma proibição imprecisa ou porosa e que a norma habilitante tem a densidade possível para uma norma habilitante de medidas urgentes (indispensáveis e cuja eficácia dependa de celeridade) adoptadas em situação de emergência sanitária».

E ainda que agora possa estar em causa uma “proibição” (de circulação de e para a Área Metropolitana de Lisboa, salvaguardadas todas as exceções admitidas) e não uma mera “recomendação agravada”, a apreciação em causa, transcrita, mantém aqui inteira aplicabilidade, uma vez que a norma em referência expressa a possibilidade de “exercício de poder de autoridade com força executiva imediata”.

E continuou o Acórdão citado:

«Já quanto aos artigos da Lei de Bases da Protecção Civil, em especial os que respeitam às consequências da declaração da situação de calamidade, verificamos que a mesma pode estabelecer “a fixação, por razões de segurança dos próprios ou das operações, de limites ou condicionamentos à circulação ou permanência de pessoas”.
Não se trata, é evidente, de uma autorização de restrição à liberdade de circulação expressamente prevista para o caso dos autos, porém, não deixa de ser claro que existe uma autorização legislativa parlamentar para a restrição deste direito-liberdade por acto das autoridades administrativas, sempre que seja decretada pelo Governo a situação de calamidade, declaração que resulta, expressamente, do n.° 1 da Resolução do Conselho de Ministros n.° 89-A/2020.
Em suma, conclui-se do arrazoado legislativo que estão preenchidas as exigências legais para, num contexto (público e notório) de emergência sanitária, reconhecer a habilitação parlamentar do Governo para a emissão desta concreta medida, cujo cunho e eficácia restritiva foram além disso gizados e modo fortemente atenuado e com uma vigência temporal reduzida».

Ora, este entendimento, que acompanhamos, é inteiramente transponível para o caso dos presentes autos, uma vez que as circunstâncias – ali e aqui – são semelhantes, sendo ambas as medidas restritivas de circulação tomadas em declarado “estado de calamidade”. A diferença mais relevante é que a medida ora em apreciação é substancialmente menos restritiva, uma vez que, em vez de estar em causa a circulação entre concelhos (a nível nacional), está agora em causa uma restrição referida a uma área de dimensão global superior, permitindo, pois, uma circulação muito mais alargada do que a área de cada concelho. E, de modo muito relevante, adita-se agora, para além da manutenção de todas as exceções já antes admitidas, a permissão de afastamento da restrição de circulação imposta em caso de apresentação de Certificado Digital Covid ou de um resultado negativo de um simples teste rápido de antigénio para despiste da infeção por SARS-CoV-2 realizado nas 48 horas anteriores.

O Requerente argumenta que a medida em causa “não configura, ela própria, uma cerca sanitária e de segurança, nos termos da declaração de situação de calamidade, conforme previsto pela alínea c) do n.° 2 do Artigo 21.° da referida Lei de Bases da Protecção Civil”. No entanto, este argumento pode, e deve, ser utilizado em sentido inverso, isto é, se é admissível o estabelecimento ou fixação de uma “cerca sanitária” com base no normativo indicado, então, por maioria de razão, é admissível a adopção de uma medida semelhante muito menos restritiva. Aliás, nas próprias palavras do Requerente, a sua queixa é a de que o Governo não fixou uma “cerca sanitária”, «apenas declarou a proibição de circulação de pessoas (…)» (cfr. arts. 6º e 7º do req. inicial, sublinhado nosso).

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2.3. Sobre a conformidade constitucional do conteúdo da medida

Como vimos, o Requerente vem alegar que a medida imposta de restrição de circulação só poderia ter sido “na presença de uma declaração de estado de emergência, através de Decreto Presidencial, aprovado pela Assembleia da República e ratificado pelo Governo”.

Mas entendemos que o Requerente não tem razão, seguindo também aqui o mesmo citado Acórdão proferido no proc. 122/20, que já se debruçara sobre esta questão (ainda que, obviamente, transmutando aqui a “não circulação entre concelhos” na, ora em causa, “não circulação de e para a Área Metropolitana de Lisboa” e, agora, como já observámos, com previsões de derrogação alargadas):

«A A. alega, mas sem qualquer razão, que a medida em causa consubstancia uma suspensão de direitos (artigo 12.° da p. i.) que só poderia ser adoptada com o decretamento do estado de emergência (artigo 19.° da CRP). Com efeito, da medida em apreço não resulta nenhuma suspensão de direitos, nem do direito-liberdade de circulação. A mobilidade da A. não fica suspensa, nem mesmo no âmbito de deslocações para fora do seu concelho, o que decorre da medida é que essas deslocações não devem ser arbitrárias, ou seja, devem ter um propósito derrogador do dever de permanência no concelho. E isto não consubstancia nenhuma suspensão do direito, mas sim uma limitação do mesmo, ou seja, a A. deixa de poder livremente circular entre concelhos e passa a ter de o fazer com um fundamento: é este, no essencial, o conteúdo da restrição imposta pela medida, pelo que é esse conteúdo que importa verificar se se revela adequado, necessário e proporcional.
A justificação da medida é enunciada da seguinte forma: “Face à situação excecional que se vive em Portugal e no mundo, e de modo a evitar a proliferação de casos registados de contágio de COVID-19 e um retrocesso na contenção da transmissão do vírus e da expansão da doença COVID-19 que as medidas adotadas permitiram, importa considerar, no âmbito da situação de calamidade, a limitação das deslocações das pessoas no período entre 30 de outubro e 3 de novembro de 2020.
Esta limitação, imposta com o intuito de conter a transmissão do vírus e a expansão da doença, visa evitar que a circulação de cidadãos para fora do concelho de residência habitual que poderia verificar-se em função do feriado de todos os Santos e do dia dos finados, contribua como foco de transmissão da doença.
Nesse sentido, permitem-se apenas deslocações para fora dos concelhos em casos muito específicos”.
O critério da adequação da medida é questionado pela A. com o argumento de que a pandemia estará tão disseminada no território, tendo as autoridades perdido já o controlo sobre a origem dos surtos, que a limitação da circulação imposta pela medida não constitui um meio apto a “conter a transmissão da doença” (artigo 14.° da p. i.).
Mas este argumento não procede, porquanto basta atentar na divulgação dos dados da DGS através do seu site institucional para verificar que os casos confirmados por concelho apresentam índices variados o que, em si, é apto a justificar que a redução da mobilidade inter-concelhos é uma medida adequada a limitar a propagação de um vírus que se transmite (facto público e notório) por contactos interpessoais.
O critério da necessidade da medida é contestado pela A. com o fundamento de que a letalidade da doença é baixa, atinge sobretudo pessoas com idade superior a 70 anos ou com outras co-morbilidades, grupo no qual a A não se integra, e por isso no seu caso a doença seria benigna, o que justificaria (parece resultar da sua argumentação), que a medida não deveria atingir toda a população, mas apenas os grupos de risco (artigos 15.° a 20.°). Ora, sem adentrar em juízos que são típicos da actividade administrativa (i. e. ponderação da adopção de medidas alternativas à que foi adoptada), impõe-se lembrar, no controlo deste critério, que no essencial apela à verificação da adopção ou não da medida que corresponda ao meio mais benigno de limitação do direito dentro do leque de medidas adequadas, que a incerteza científica sobre esta nova doença pandémica é ainda significativa (facto público e notório) e que até ao momento o que se tem registado é um aumento significativo do número de contágios, apesar das diversas medidas e recomendações já adoptadas e que se têm ido enraizando nas práticas quotidianas da população a nível nacional e mundial, e que esse número dá lugar a um aumento proporcional do número de casos graves que requerem cuidados hospitalares, cuja capacidade de resposta é limitada. Com base nesses dados e na circunstância de as infecções graves serem também resultantes de cadeias de contágio intergeracional (factos públicos e notórios), a necessidade da medida agora adoptada tem de ser também avaliada no contexto da limitação que impõe de forma universal.
Por outras palavras, a A. alega que por não estar em grupo de risco, estatisticamente, tem maior probabilidade de sofrer de uma forma mais benigna, pelo que a medida não deveria abrangê-la, mas, quanto muito, ficar limitada aos grupos que estão em maior risco de vir a sofrer daquela forma grave de doença. O que ignora e não toma em linha de consideração que um aumento dos contágios mesmo entre as pessoas dos grupos que estatisticamente têm menores probabilidades de sofrer de formas graves de doença acaba por traduzir-se, por força dos inevitáveis contactos intergeracionais (seja no contexto das relações familiares, seja no contexto das relações de cuidadores), em um maior aumento de casos também entre as pessoas que integram o grupo que tem maior probabilidade de desenvolver a forma grave da doença. Por essa razão, também o critério da necessidade se mostra preenchido.
Importa, por último, verificar se não obstante a adequação e a proporcionalidade, a medida se pode considerar, neste caso, proporcional à luz de um juízo de ponderação global (proporcionalidade em sentido restrito). No fundo, saber se, ponderada a concreta restrição imposta ao direito-liberdade de circulação — que se consubstancia, como supra caracterizámos, na obrigação de justificação atendível para efectuar deslocações para fora do concelho entre as 00.00 h do dia 30 de Outubro e as 6.00 h do dia 03 de Novembro, e que se traduz no “sentimento da autora de restrição da liberdade de circulação para fora do concelho”, que ela caracteriza como uma “prisão ao ar livre” (artigo 46.° da p. i.) —, com os objectivos que a medida visa alcançar, e que são “conter a transmissão do vírus e a expansão da doença”, daqui resulta uma restrição intolerável ao direito/liberdade da A..
E afigura-se-nos que não, face ao limitado período de tempo pelo qual a medida é imposta, o seu concreto conteúdo, que é, como dissemos, muito elástico, e a imperiosidade dos fins últimos que se visam alcançar com a adopção da medida (salvaguarda da capacidade resposta dos serviços de saúde para proporcionar a todos, os que venham a padecer de forma grave da doença COVID-19 e dos restantes que precisem de cuidados de saúde hospitalar durante o período da pandemia, com o objectivo de proteger a vida humana em condições dignas), mediante os fins imediatos a prosseguir, que são a contenção da transmissão do vírus e do número de contágios, não se nos afigura que exista em concreto, desproporcionalidade da restrição que é imposta à A..
Para este juízo de não violação do princípio da proporcionalidade em sentido restricto contribui igualmente o facto de se ter de considerar que o núcleo do direito à liberdade de circulação fica salvaguardado pela medida, também na circulação para fora do concelho, seja ao não impedir totalmente as deslocações inter-concelhos, seja ao permitir uma futura análise de eventuais situações concretas em que tenha havido essa violação, seja por erro na aplicação da medida pelas autoridades públicas, seja porque, em concreto, se venha a verificar que a medida se revelou desproporcionada e deva dar lugar a uma condenação do Estado à reparação do direito violado.
Neste juízo derradeiro que supra explicitámos, o Tribunal tomou também em conta que a pretensão da A. (como resulta do artigos 21.° a 28.° da p. i.) é expressão de uma preocupação geral decorrente do prolongamento no tempo da limitação das liberdades pessoais e da autodeterminação individual que vem sendo imposta pelas medidas administrativas de combate à pandemia e do risco que, em abstracto, tais limitações podem representar no estrito plano jurídico-constitucional em que se encontram actualmente conformados, quer as garantias destes direitos, quer os poderes do Governo para, através de actos da sua exclusiva autoria, fundamentados na sua competência genérica de condução de políticas públicas (artigo 199.°/g CRP), adoptar ingerências deste tipo no âmbito daqueles direitos.
Mas também no resultado desta ponderação se concluiu, em linha de resto com as conclusões a respeito da conformidade jurídico-constitucional da medida normativa, que a ausência de um quadro legislativo especial para os poderes de autoridade em contexto de pandemia não pode inviabilizar totalmente, no contexto de um Estado de normalidade constitucional, como o actual, a adopção de medidas necessárias à gestão do risco de propagação da doença, sempre e quando as mesmas encontrem a sua fonte de legitimação parlamentar mediante cadeias normativas e se atenham à proporcionalidade que lhes é exigida. Como consideramos ser o caso aqui.
A Requerente alega também violação do princípio da igualdade, por considerar que da medida resulta um tratamento discriminatório para as famílias que residam em concelhos diferentes ou limítrofes, face a famílias em que todos os membros residam no mesmo concelho (artigo 45.° da p. i.). E tem razão a Requerente quanto à questão de a medida impor um tratamento diferenciado entre as famílias, que, se injustificado, é arbitrário e leva à inconstitucionalidade da medida.
O autor da medida, na contestação, sustenta a racionalidade desta diferença de tratamento na necessidade de reduzir o risco de contágio que decorre, precisamente, das reuniões familiares. E sustenta essa diferença de tratamento na circunstância de as famílias que residem no mesmo concelho, porque os seus membros convivem entre si regularmente, o risco de aumento de contágios entre os seus membros nestes dias é mais reduzido (eles são conviventes), já as famílias que residem em concelhos diferentes, porque teriam neste período uma oportunidade programada para reencontros que acontecem de modo mais espaçado no tempo, apresentam um risco mais elevado de contágio entre os membros dessas famílias. Reside, portanto, no mais elevado ou mais reduzido risco de contágio entre os membros das famílias, a razão de ser da diferença de tratamento instituída pela medida.
Quanto a este argumento, o Tribunal é sensível a muitas fragilidades que a justificação apresentada encerra e à incerteza da evidência científica em que a medida se sustenta. Não obstante, entende que, dada a dificuldade que a actual gestão da situação de contágios apresenta, com um crescimento exponencial e diferenciado de casos no território, com maior incidência dos mesmos em certos concelhos (facto público e notório), a referida justificação se pode aceitar como critério que afaste a inconstitucionalidade da medida (…)».

Como se disse, subscrevemos, por inteiro, este julgamento já efetuado pelo STA, a propósito de medida restritiva semelhante, adoptada em circunstâncias facto-jurídicas semelhantes, que não vemos, por isso, razão para modificar.

Como é evidente, a situação de emergência sanitária vivida à altura da emissão do Acórdão citado (outubro de 2020) – situação de emergência que atualmente perdura – não apresenta, agora, os mesmos contornos, uma vez que a situação evolui constantemente, com desagravamentos mas também com retrocessos, sendo certo que, como é do conhecimento público, atualmente a situação será menos grave, em termos de óbitos e de internamentos (ainda que se esteja, novamente, em ciclo de subida de número de infeções), o que certamente tem sido consequência, principalmente, do processo de vacinação massiva da população, ainda em pleno curso, que se tem vindo a operar.

Precisamente, por isto, as medidas restritivas foram adaptadas – e como já salientámos, adequadamente “aliviadas” -, não só por estar, agora, em causa uma muito maior área de liberdade absoluta de circulação (correspondendo, afinal, às áreas dentro e fora da Área Metropolitana de Lisboa, em vez das muito menores áreas dos concelhos), quer pela possibilidade de, através de certificados ou testes negativos, os interessados se poderem eximir à medida restritiva imposta (e mantendo-se todas as outras exceções já antes previstas).

Alega o Requerente que a medida em causa – de proibição de circulação de e para a Área Metropolitana de Lisboa (salvaguardadas as exceções previstas) – será “muito pouco eficaz” no combate à pandemia. Porém, como o Acórdão citado reconheceu, a redução da mobilidade é uma medida adequada a limitar a propagação de um vírus que se transmite (facto público e notório) por contactos interpessoais. É certo que, quanto mais branda for a restrição menor será a eficácia da medida; no entanto, havendo sempre que salvaguardar a proporcionalidade das restrições impostas, a medida ora em questão afigura-se, anda assim, útil, e por isso justificada e adequada, de modo a desincentivar a maior mobilidade dos cidadãos em período de fim de semana (e, consequentemente, a maior possibilidade de transmissão do vírus), precisamente o período da semana que, por razões de descanso laboral, maior mobilidade global permite.

Por tudo o exposto, não se julga verificada a violação de direitos, liberdades e garantias invocada pelo Requerente.
Seguindo a linha de entendimento de Jorge Alves Correia (in “As patologias da declaração do estado de calamidade e os limites constitucionais do direito administrativo da pós-emergência”, Revista de Direito Administrativo, AAFDL, nº 9, págs. 51 e segs.):
«(…) A centralidade do Governo foi intensificada com a declaração da situação de calamidade, que prescinde da intervenção do PR e da AR, remetendo simultaneamente a decisão e a execução para a órbita exclusiva do Governo.
A situação de calamidade, prevista na Lei de Bases da Proteção Civil (LBPC), habilita, por decisão administrativa governamental, a adoção de medidas excecionais de natureza administrativa, mas sem poder suspender o exercício de direitos, liberdades e garantias fundamentais, e no respeito pela reserva de lei.
(…) mesmo em relação aos direitos fundamentais que podem ser afetados em situação de normalidade constitucional, como, por exemplo, a liberdade de circulação [artigo 21º nº2 b) e c) da LBPC], o estado de calamidade não pode restringi-los senão nos termos do artigo 18º da CRP, nomeadamente com estrito respeito pelos princípios da necessidade e da proporcionalidade, assim como de intocabilidade do núcleo essencial de cada direito. Como bem advertiu Vital Moreira (…), a distinção-chave aqui é justamente entre restrição do exercício de direitos, liberdades e garantias fundamentais e suspensão do exercício dos mesmos direitos. Enquanto a restrição do exercício pode ser feita por decisão administrativa, desde que estritamente alicerçada numa lei respeitadora dos requisitos indicados nos nºs 2 e 3 do artigo 18º da CRP, a suspensão do exercício só pode estribar-se numa declaração do estado de sítio ou do estado de emergência. A distinção pode não ser fácil de fazer em situações limite, designadamente quando estamos diante de limitações parciais. Sem embargo, certo é que o estado de calamidade administrativo não pode permitir fazer o que só o estado de exceção constitucional, por decreto presidencial, pode legitimar, ou seja, suspender direitos, liberdades e garantias fundamentais.
(…) À partida, importa dizer que instrumentos normativos governamentais de natureza administrativa não podem, só por si, restringir direitos fundamentais, só podendo aplicar restrições já estabelecidas em lei anterior, como é o caso da Lei de Bases da Proteção Civil.
(…) a LBPC prevê restrições à circulação [artigo 21º nº 2 b) e c)], mas no estrito respeito pelos princípios da proibição do excesso e da necessidade, ou seja, tais restrições não podem deixar de ser fundamentadas e geograficamente delimitadas; daí que a imposição de restrições onde estas não se justifiquem implique inconstitucionalidade material dos atos normativos que as autorizam (artigo 18º nº 2 da CRP)».

Ora, como já acima deixámos dito, a medida ora em causa refere-se a uma restrição e não a uma suspensão de direitos, liberdades e garantias fundamentais, a qual se apresenta, ponderadas a sua justificação, alcance e, relevantemente, todas as largas exceções previstas, não violadora dos princípios da proibição do excesso, da necessidade, adequação e proporcionalidade.

Isto, sem embargo de também concordarmos com o citado Autor quando refere que (ob. cit.):
«(…) Fora do estado constitucional de emergência, o quadro normativo português para lidar com uma crise sanitária (LBPC, SVSP, e LBS) é débil, evidenciando a ausência de mecanismos jurídicos adequados. Após a situação de declaração de calamidade, tornou-se claro que as restrições a direitos, liberdades e garantias fundamentais seriam prolongadas no tempo, cenário que demandava uma produção legislativa intensa por parte da AR. Contudo, tal obra não foi realizada (…).
Uma situação de calamidade sanitária não deve, pura e simplesmente, ser declarada num âmbito restrito de acionamento da proteção civil. De iure constituendo, é necessário criar em Portugal, do ponto de vista legislativo, instrumentos adequados de proteção dos cidadãos e das empresas numa situação de calamidade sanitária».

*
3. DECISÃO
Acordam os juízes que compõem este Tribunal em julgar improcedente a presente intimação para protecção de direitos, liberdades e garantias, por considerar não verificada a violação de direitos, liberdades e garantias invocada pelo Requerente.

Sem custas.
Lisboa, 27 de Junho de 2021
Adriano Cunha (Relator)
O presente Acórdão tem voto de vencido do 1º Adjunto, Conselheiro Carlos Carvalho (texto abaixo), voto de conformidade com a decisão mas não com a fundamentação da 2ª Adjunta, Conselheira Maria Benedita Urbano (texto abaixo) e tem voto de desempate, no sentido da decisão do Relator, da Senhora Conselheira Presidente do STA, nos termos do art. 659º nº 3 do CPC.

Voto de vencido do Conselheiro Carlos Carvalho:

Vencido, não acompanhando a fundamentação/motivação do juízo de improcedência da presente intimação.
1. Não secundo o entendimento que obteve vencimento, porquanto presentes o quadro situacional/circunstancial de normalidade constitucional em que o ato normativo contido no ponto n.º 2 da Resolução do Conselho de Ministros n.º 77-A/2021 [doravante RCM] [que introduz uma nova redação ao art. 03.º-A da RCM n.º 74-A/2021 e determina a proibição de circulação de e para a Área Metropolitana de Lisboa no período compreendido entre as 15:00 h do dia 25 de junho de 2021 e as 06:00 h do dia 28 de junho de 2021] foi aprovado e o quadro normativo vigente consideraria que tal ato afronta o disposto nos arts. 18.º, 19.º, 44º, n.º 1, 112.º e 165.º, n.º 1, al. b), da Constituição da República Portuguesa [CRP] e, nessa medida, deferiria parcialmente a pretensão de intimação deduzida pelo Requerente.
2. Motivando sumariamente a divergência e juízo decisório defendido em sentido oposto cumpre notar que nos termos da al. b) do n.º 1 do art. 165.º da CRP «[É] da exclusiva competência da Assembleia da República legislar sobre as seguintes matérias, salvo autorização ao Governo: …b) Direitos, liberdades e garantias», sendo que nesta previsão mostra-se incluída, claramente, a regulamentação dos direitos enunciados no Título II da Parte I da CRP e de que a reserva de competência legislativa da Assembleia da República [AR] abarca não apenas as restrições [cfr. art. 18.º], mas também aquilo que respeita à intervenção legislativa em sede de direitos, liberdades e garantias, entendimento este «pacificamente consolidado na jurisprudência constitucional», nas palavras do acórdão do Tribunal Constitucional [TC] n.º 424/2020 e do qual se extrai, veiculando o anteriormente afirmado no acórdão n.º 362/2011 do mesmo Tribunal, que «[T]odo o regime dos direitos, liberdades e garantias está englobado na reserva relativa de competência da Assembleia da República (art. 165.º, n.º 1, al. b), da CRP). Nestes termos, todas as normas disciplinadoras de um qualquer direito desta natureza carecem de uma autorização prévia da Assembleia da República. Esta exigência ganha particular relevância quando estão em causa compressões ou condicionamentos a um direito …».
3. Se na situação vertente não podemos considerar derivar do ato normativo regulamentar em crise uma qualquer suspensão do exercício do direito de deslocação contido no n.º 1 do art. 44.º da CRP, primacialmente invocado pelo Requerente como infringido e no qual estriba a sua pretensão, não podemos deixar de concluir que o mesmo envolve uma clara restrição ao mesmo direito, cientes de que respeitando a pretensão deduzida à efetivação/exercício do direito de deslocação previsto expressamente no art. 44.º da CRP trata-se de direito que se mostra suficientemente caraterizado pela jurisprudência do Tribunal Constitucional [TC] como um direito, liberdade e garantia [cfr., entre outros, os Acs. do TC n.ºs 174/92, 204/94, 405/00, e 141/2015].
4. Decorrendo do n.º 1 do art. 44.º da CRP que «[a] todos os cidadãos é garantido o direito de se deslocarem e fixarem livremente em qualquer parte do território nacional», a determinação contida no art. 3.º-A da RCM na redação dada pelo ponto 2 da mesma de que «[s]em prejuízo do número seguinte, é proibida a circulação de e para a Área Metropolitana de Lisboa no período compreendido entre as 15:00 h do dia 25 de junho de 2021 e as 06:00 h do dia 28 de junho de 2021, sem prejuízo das exceções previstas no artigo 11.º do Decreto n.º 9/2020, de 21 de novembro, as quais são aplicáveis com as necessárias adaptações», ainda que com as exceções que se mostram previstas [i) exceções previstas no art. 11.º do Decreto n.º 9/2020; ii) apresentação de comprovativo de realização de testes da infeção por SARS-CoV-2, com resultado negativo, ou, alternativamente, apresentação do Certificado Digital COVID da União Europeia], constitui uma inequívoca restrição ao direito em referência dado envolver uma nítida compressão ou condicionamento ao que constitui a liberdade que lhe está subjacente, ou seja, a liberdade de deslocação e de fixação detida por cada cidadão, tendo por referência todo o domínio territorial do Estado português, de nas fronteiras do território nacional se poder movimentar [«direito de ir e vir»] entre as diferentes partes que o compõe, sem carecer de qualquer permissão ou de prévia autorização, ou de para tal o poder fazer ter de se justificar perante uma qualquer autoridade.
5. Nessa medida, não estamos em presença de uma determinação que revista ou se possa qualificar como detendo a natureza de simples soft-law, já que estamos ante uma efetiva proibição, que institui uma obrigação/dever jurídico e reclama meios e mecanismos de coação e punição para as situações do seu incumprimento, sendo que, manifestamente, não podemos sustentar que a normação proibitiva instituída no ato e de que o desrespeito ou a resistência à ordem das autoridades em aplicação da mesma não aporte ou se mostre desprovida de uma qualquer sanção/consequência no plano das liberdades individuais daqueles que não acatem as ordens ou determinações que diretamente lhe sejam dirigidas pelas autoridades em execução da RCM no segmento em crise.
6. É certo que o direito de deslocação e de fixação em qualquer parte do território nacional, como todos os direitos fundamentais quando considerados como um todo, não goza de um valor absoluto, mostrando-se passível de que lhe sejam introduzidos limites ou apostas restrições, nomeadamente num contexto de pandemia como a que vivenciamos [relativa ao surto da doença da COVID-19], exigindo-se, todavia, para tal e desde logo que as medidas observem o disposto nos n.ºs 2 e 3 do art. 18.º da CRP, conjugado com o definido pelo seu art. 165.º, n.º 1, al. b), tanto mais que na ausência de declaração de estado de emergência [art. 19.º da CRP e Lei n.º 44/86, de 30.09 (Lei Orgânica que estabelece o Regime do Estado de Sítio e do Estado de Emergência)] nos movemos no quadro de normalidade constitucional.
7. Ora tendo-se concluído estarmos em face de norma de tipo regulamentar que envolve uma restrição ao direito/liberdade de deslocação inserto no n.º 1 do art. 44.º da CRP e de que a mesma, à luz do quadro convocado, deveria ter sido feita por «lei» - entendida como lei da Assembleia da República [AR] ou decreto-lei autorizado do Governo - importa então aferir da sua conformidade com o nosso ordenamento jurídico-constitucional tendo em conta mostrar-se a mesma inserta numa RCM.
8. Reconhecida a inexistência de observância in casu da competência e da forma determinadas pelos comandos constitucionais convocados para a emissão da norma proibitiva de circulação em sede de normalidade constitucional, como é aquele que carateriza a situação atualmente vivenciada de declaração administrativa de estado de calamidade, importa cuidar da verificação da «cadeia de legitimidade legal» invocada para a sua emissão.
9. Frise-se, no entanto, que uma tal cadeia de legitimação não pode bastar-se, ou ser entendida/considerada como admitindo a possibilidade de «delegação» aberta e irrestrita de que uma lei da AR ou um decreto-lei autorizado do Governo possam autorizar um ato regulamentar, ou um ato administrativo, a operarem uma restrição, inovadora e autónoma, de um direito, liberdade e garantia, mormente o em causa na ação - liberdade de deslocação -, já que isso envolveria uma inequívoca infração dos referidos arts. 18.º, n.º 2, e 165.º, n.º 1, al. b), da CRP.
10. E essa «cadeia de legitimação» mostra-se alvo de sérias reservas doutrinárias [cfr., entre outros, J.J. Gomes Canotilho, in: «Direito Constitucional e Teoria da Constituição», págs. 1278/1279; J.C. Vieira de Andrade, in: «Os direitos fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976», 5.ª ed., págs. 224 e 290/291].
11. Apreciada a situação resulta que nem a determinação/proibição constante da RCM restritiva do direito/liberdade de deslocação goza diretamente da exigida cobertura formal e competencial, nem quanto ao mesmo direito/liberdade a mesma resulta ou se pode extrair do quadro normativo nela invocado [in casu os arts. 12.º e 13.º do DL n.º 10-A/2020 («na sua redação atual, por força do disposto no art. 2.º da Lei n.º 1-A/2020 … na sua redação atual), 17.º da Lei n.º 81/2009, 19.º da Lei n.º 27/2006, e 199.º, al. g) da CRP] como justificador ou legitimador da e para a emanação da mesma e determinações ali inscritas.
12. Na verdade, manifestamente a mesma não reside nos arts. 12.º e 13.º do DL n.º 10-A/2020, já que respeitantes à disciplina das restrições de acesso a estabelecimentos privados e a serviços e edifícios públicos.
13. Nem na al. g) do art. 199.º da CRP, dado que, sendo relativa à prática dos atos e à tomada de todas as providências necessárias no exercício da função administrativa destinadas à promoção do desenvolvimento económico-social e à satisfação das necessidades coletivas, não contém, dada a sua generalidade, título legitimador de competência a uma tal restrição.
14. E, de igual modo, não se vislumbra que a mesma radique no art. 17.º da Lei n.º 81/2009, já que não só a Base XX da Lei n.º 48/90 a que nele se faz referência veio a ser revogada [cfr. art. 03.º, n.º 1, al. a), da referida Lei n.º 95/2019 - Lei de Bases da Saúde] e não encontra na atual Lei de Bases da Saúde publicada em anexo à referida Lei uma previsão inteiramente correspondente [cfr. n.º 3 da atual Base 34.º], como do que se disciplina no preceito convocado não se extrai uma qualquer legitimação para introdução de restrição à liberdade de deslocação, na certeza de que no seu n.º 3 exige-se, inclusive que as «medidas previstas nos números anteriores devem ser aplicadas com critérios de proporcionalidade que respeitem os direitos, liberdades e garantias fundamentais, nos termos da Constituição e da lei».
15. Falha, por fim, também como base de legitimação a Lei n.º 27/2006 [Lei de Bases da Proteção Civil], in casu o seu art. 19.º, pois este preceito limita-se tão-só a conferir competência ao CM para a declaração da situação de calamidade, nada aportando em termos de norma conferidora de autorização de introdução de restrições a qualquer direito, liberdade e garantia, sem que dos termos e teor da RCM em crise ressalte a invocação de uma qualquer outra norma habilitante ou de legitimação fundada naquele diploma, não nos cabendo, nesta sede, o ónus de aferir ou encontrar base de sustentação na referida Lei ou num qualquer outro diploma legal, nem se mostram como válidas e operantes bases normativas de legitimação não contextuais ao ato, já que invocadas a posteriori, mormente nos articulados .
16. Concluiria, assim, que a proibição de circulação de e para a Área Metropolitana de Lisboa no período compreendido entre as 15:00 h do dia 25 de junho de 2021 e as 06:00 h do dia 28 de junho de 2021, determinada pela RCM, viola o disposto nos arts. 18.º, n.º 2, 19.º, 44.º, n.º 1, e 165.º, n.º 1, al. b), da CRP na medida em que se atinge o direito de deslocação, mormente do aqui Requerente.
17. Tal como vem sendo afirmado por este Supremo Tribunal o meio processual de intimação para proteção de direitos, liberdades e garantias só tem por objetivo a alteração de uma situação de ofensa de direitos, liberdades e garantias, e já não um escopo impugnatório.
18. Nessa medida, presente aquilo que constituem o âmbito e os limites pretensão intimatória do Requerente, justificadora da presente lide, decorrentes da legitimidade singular que lhe assiste na e para tutela única e exclusiva do direito lesado temos que a pronúncia intimatória a emitir não poderá deixar de os refletir e pelos mesmos ser condicionada, tendo como horizonte também o concreto âmbito de vigência espacial e temporal do ato normativo em questão.
19. Daí que, de harmonia com o exposto e sem necessidade de outros desenvolvimentos quanto a demais fundamentos, teria julgado procedente a pretensão de intimação reconhecendo tão-só ao Requerente que lhe assiste o direito a que o mesmo no período compreendido entre as 15:00 h do dia 25 de junho de 2021 e as 06:00 h do dia 28 de junho de 2021 se pode deslocar de e para a Área Metropolitana de Lisboa, devendo as autoridades públicas, mormente o Requerido, absterem-se de o impedir ou cercear no exercício daquele direito.
Carlos Luís Medeiros de Carvalho


Declaração de voto da Conselheira Maria Benedita Urbano:

Acompanho a decisão, mas não a fundamentação no que se refere à questão da constitucionalidade orgânica e formal da norma do artigo 3.º-A da RCM n.º 77-A/2021 pelos motivos que passo a explicar.
O requerente da presente intimação para protecção de direitos, liberdades e garantias questiona a legalidade e a constitucionalidade do artigo 3.º-A da RCM n.º 77-A/2021, de 24.06 (“Altera as medidas aplicáveis a determinados municípios no âmbito da situação de calamidade”). Trata-se de norma regulamentar emitida no âmbito de uma situação de calamidade decretada pelo Governo ao abrigo da Lei de Bases da Protecção Civil (Lei n.º 27/2006, de 03.07) – não, portanto, no âmbito de um estado de excepção que tenha sido declarado pelo Presidente da República. Comecemos por atentar no teor do artigo 3.º-A:
“Artigo 3.º-A
[...]
1 - Sem prejuízo do número seguinte, é proibida a circulação de e para a Área Metropolitana de Lisboa no período compreendido entre as 15:00 h do dia 25 de junho de 2021 e as 06:00 h do dia 28 de junho de 2021, sem prejuízo das exceções previstas no artigo 11.º do Decreto n.º 9/2020, de 21 de novembro, as quais são aplicáveis com as necessárias adaptações.
2 - É ainda admitida a circulação mediante apresentação de comprovativo de realização laboratorial de teste de amplificação de ácidos nucleicos (TAAN) ou de teste rápido de antigénio (TRAg) para despiste da infeção por SARS-CoV-2 com resultado negativo, realizado, respetivamente, nas 72 ou 48 horas anteriores à sua apresentação, ou, alternativamente, mediante apresentação do Certificado Digital COVID da União Europeia, o qual dispensa a apresentação de comprovativo de realização de teste para despiste da infeção por SARS-CoV-2.»
3 - Determinar que a presente resolução entra em vigor no dia seguinte ao da sua publicação, sem prejuízo do número seguinte.
4 - Determinar que o disposto no n.º 1 produz efeitos às 00:00 h do dia 28 de junho de 2021”.
O estado de excepção – previsto no artigo 19.º da nossa Constituição em duas modalidades: estado de sítio e estado de emergência – é comummente considerado um estado de anormalidade constitucional. Anormalidade que justifica a adopção de medidas, nomeadamente em termos de direitos fundamentais, que não seriam possíveis em estados de normalidade constitucional, como seja a da suspensão de direitos fundamentais (suspensão mais limitada nos casos de estado de emergência). Em virtude da extrema sensibilidade dos valores e bens jurídicos que possam ser afectados por medidas de excepção ou de crise, este estado de excepção está, desde logo, regulado na própria Constituição, sendo definidos alguns aspectos como a declaração do estado de excepção pelo Presidente da República, os casos que legitimam a declaração do estado de excepção, os termos da escolha entre a declaração do estado de sítio e a de estado de emergência, a necessidade de fundamentação da declaração do estado de excepção, o respeito pelo princípio da proporcionalidade, a especificação dos direitos, liberdades e garantias cujo exercício fica suspenso, entre outros aspectos. Em virtude desta previsão e regulação constitucional (obviamente, mais concretizada no plano legislativo – no caso, pela Lei n.º 44/86, de 30 de setembro: Lei Orgânica que estabelece o Regime do Estado de Sítio e do Estado de Emergência) –, é comum a doutrina referir-se ao estado de excepção, e especificamente ao estado de emergência, como sendo um estado de emergência constitucional ou a um modelo constitucional do estado de emergência.
Distinto do estado de excepção constitucional é a situação de calamidade que não mereceu a mesma atenção por parte do legislador constituinte, estando basicamente regulada no plano legislativo, daí que a doutrina venha falando, quando a calamidade é decretada por motivos sanitários, em estado de emergência legislativo ou administrativo. O primeiro qualificativo aponta para a circunstância, já mencionada, de a sua regulação estar contida em normas legais. O segundo qualificativo aponta para o especial papel atribuído ao Governo/Administração nas situações de calamidade, como é aquela que presentemente se vivencia em virtude da pandemia causada pela COVID - 19. Ao contrário do que sucede com o estado de excepção, a doutrina vem chamando a atenção para o facto de que as situações de calamidade são ainda situações de normalidade constitucional, embora nem todos os autores retirem as devidas consequências dessa afirmação. Nomeadamente, no que se refere ao modo orgânico e formalmente correcto de se restringir um direito, liberdade e garantia. Deixando de parte esta consideração, o que interessa sublinhar é que, se a situação de calamidade é ainda uma situação de normalidade constitucional, então, a leitura que se faz da Constituição deve corresponder fielmente ao que dispõem as suas normas sem desvios que conduzam a soluções jurídicas que claramente nelas não cabem, sobretudo soluções restritivas de direitos, liberdades e garantias. E é justamente nesse sentido que aponta o Acórdão do TC n.º 352/2021, onde, a certa altura, se pode ler que “Esta diferença reflete, como é bom de ver, a descontinuidade radical entre o poder administrativo de exceção, que não pode de modo algum exceder os limites materiais e o quadro de competências próprios da normalidade constitucional – estando-lhe totalmente vedada a emissão de normas em toda a matéria de reserva de lei −, e o poder de emergência constitucional, que nasce exclusivamente com a declaração de um estado de exceção e que implica uma concentração extraordinária de poder executivo fundada no n.º 8 do artigo 19.º da Constituição”.
Feita esta breve introdução, passemos à questão da restrição de direitos, liberdades e garantias tal como a nossa Constituição a permite – restrição que, em abstracto, não é proibida em situações de calamidade (e que não se confunde com a suspensão de direitos prevista para as situações de excepção constitucional, nomeadamente para as situações de emergência).
Antes, porém, há que entender o que está verdadeiramente em causa no requerimento formulado pelo intimante. E isto, porque há que distinguir duas distintas questões – não obstante as mesmas possam, em certos momentos, cruzar-se. Uma primeira questão terá que ver com a inconstitucionalidade orgânica e também formal daqueles diplomas que conjuntamente têm sido convocados como formando o quadro legal que supostamente legitima do ponto de vista constitucional e legal as medidas que têm vindo a ser adoptadas pelo CM, em particular, através de resoluções. Coisa distinta é questionar-se a inconstitucionalidade orgânica e formal de uma determinada norma inserida em resolução do CM por a mesma não ter base constitucional (e/ou também legal). O requerimento formulado na presente intimação respeita à questão formulada em segundo lugar. Temos, assim, que apreciar e decidir uma questão de restrição de direitos, liberdade e garantias numa situação de calamidade relacionada com emergência médica.
De forma necessariamente genérica e sintética, pode afirmar-se que os actos jurídicos podem ser invalidados com base em motivos formais (aqui incluídos os procedimentais e os orgânicos) e materiais. Na medida em que um acto jurídico tenha sido praticado por órgão incompetente e/ou tenha sido exteriorizado através de uma forma indevida, a sua invalidade pode ser determinada independentemente da bondade do conteúdo do acto. Por assim ser, ou seja, por motivos de lógica jurídica, começa-se por apreciar o questionamento do A. relativamente à possibilidade de uma limitação a direitos, liberdade e garantias ser efectuada pelo Governo através de uma resolução do CM.
A título de questão prévia, há que averiguar se, efectivamente, estamos perante a violação de um direito, liberdade e garantia, mais concretamente, da liberdade de deslocação ou circulação que consta do n.º 1 do artigo 44.º da CRP. Neste dispositivo diz-se que “A todos os cidadãos é garantido o direito de se deslocarem e fixarem livremente em qualquer parte do território nacional” não tendo o legislador constituinte estabelecido ele próprio qualquer limitação expressa a esta liberdade, à semelhança do que fez relativamente ao direito de reunião (art. 45.º, n.º 1, da CRP) e à liberdade de associação (art. 46.º, n.º 1, da CRP). Parece-nos claro que a medida governamental que agora se aprecia estabelece uma limitação – temporária e com várias excepções – à liberdade de deslocação ou circulação dos (de alguns) cidadãos, que certamente não afecta o núcleo ou conteúdo essencial dessa liberdade fundamental (art. 18.º, n.º 3, da CRP), o que, no entanto, apenas serve de critério para afastar a inconstitucionalidade de uma restrição e não para afastar a existência de uma efectiva restrição.
Esclarecido este ponto, retornemos à questão da legitimidade orgânica e formal da restrição operada pelo artigo 3.º-A da RCM n.º 77-A/2021. Regem aqui os artigos 18.º, n.ºs 2 e 3 e 165.º, n.º 1, al. b), da Constituição da República Portuguesa (CRP). Estabelecendo o artigo 18.º, n.º 2, da CRP, conjugado com o seu artigo 165.º, n.º 1, al. b), que a restrição dos direitos, liberdade e garantias deve ser feita por “lei” – entendida como lei da Assembleia da República (AR) ou decreto-lei autorizado do Governo –, a circunstância de uma tal limitação estar prevista numa norma de tipo regulamentar constante de uma resolução do CM obriga-nos a averiguar se, efectivamente, foram desrespeitados os dispositivos supra mencionados como sustenta o requerente. De forma mais concreta, é necessário averiguar se no nosso ordenamento jurídico-constitucional, num contexto de normalidade constitucional, é possível uma norma de tipo regulamentar restringir de forma inovadora e autónoma direitos, liberdades e garantias. Há quem, a propósito da intervenção regulamentar em sede de restrição de direitos, liberdades e garantias, mencione a exigência de uma cadeia de legitimidade legal entre a norma regulamentar (ou o acto administrativo) e uma lei ou decreto-lei autorizado (Gomes Canotilho). Mas esta ideia da “cadeia de legitimidade legal” tem de ser correctamente compreendida, sob pena de se defraudar a Constituição e a vontade do legislador constituinte. Importa, a este propósito, sublinhar que essa “cadeia de legitimidade legal” não pode ser compreendida como a possibilidade de a lei da AR ou o decreto-lei autorizado do Governo autorizarem um acto regulamentar ou um acto administrativo a restringir de forma autónoma e inovadora um direito, liberdade e garantia, como o é o direito de deslocação, pois isso implicaria, antes de tudo, uma violação, dos já citados artigos 18.º, nº 2, e 165.º, n.º 1, al. b), da CRP, que apenas conferem essa possibilidade às “leis”, entendidas aqui como leis da AR e decretos-leis autorizados do Governo. Essa denominada “cadeia de legitimidade legal” há-de querer significar, por exemplo, que um regulamento municipal pode conter uma norma restritiva que seja uma mera concretização de uma norma restritiva já constante de uma lei ou decreto-lei autorizado (v.g., uma norma legal que proíba, de forma geral e abstracta, a circulação automóvel no interior de centros históricos muralhados é depois transposta para norma regulamentar de um determinado município que não permite a circulação neste específico município). A mesma ideia vale para os actos administrativos como, v.g., a multa aplicada por um agente de autoridade a um condutor que não tenha respeitado a dita proibição de circulação. Em ambos os casos, quer a norma regulamentar, quer o acto administrativo apenas aparentemente restringem pois, na realidade, a norma verdadeiramente restritiva, porque o faz de forma inovadora alterando a ordem jurídica vigente, é a lei ou o decreto-lei autorizado. Ainda neste âmbito, podem os actos de natureza regulamentar concretizar melhor a disciplina legal restritiva. Mas também aqui há que compreender bem a divisão de competências constitucionalmente estabelecida em termos de saber o que deve constar da lei da AR ou do decreto-lei autorizado do Governo e o que pode constar de norma regulamentar. Como afirma Gomes Canotilho, “É questionável se a lei da AR ou o decreto-lei autorizado do Governo podem «delegar» a regulamentação das restrições, total ou parcialmente, em entidades estaduais com poderes regulamentares (regulamentos restritivos de direitos mediante autorização legal) ou em administrações autónomas, dotadas também de autonomia normativa (ex.: Câmaras Municipais). As regras fundamentais a observar são as seguintes: (…) 3) em qualquer das hipóteses, ou seja, no caso de direitos restringidos directamente por lei ou no caso de limitação através de decretos-leis autorizados, é a estes actos legislativos que compete estabelecer uma regulamentação densa, incidente sobre os aspectos essenciais das restrições, ficando excluída a possibilidade de regulamentos independentes ou autónomos (cfr. arts. 112.º/6 e 7 e 241.º). (…) Acima de tudo, deve frisar-se que a distinção entre ‘regulamentação’ e ‘restrição’ – aquela a poder ser feita por regulamentos e esta apenas por actos legislativos – não deve escamotear o sentido do requisito constitucional: a regulamentação dos aspectos essenciais da restrição pertence à lei” (cfr. J.J. GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, Coimbra, 2003, pp. 1278-9) [negritos nossos]. Também Vieira de Andrade assinala, em registo semelhante, que “Assim, por exemplo, a Administração não pode restringir, mas pode e deve, no âmbito das suas atribuições e competências, proteger, promover e até concretizar, na falta de lei específica, as normas relativas aos direitos, liberdades e garantias” e “Que, apesar de não estar expressamente referida, deve ainda considerar-se que a lei restritiva, em função da reserva de lei formal, tem de apresenta uma densidade suficiente, isto é, um certo grau de determinação do seu conteúdo, pelo menos no essencial, não sendo legítimo que deixe à Administração espaços significativos de regulação ou de decisão” (cfr. J.C. VIEIRA DE ANDRADE, Os direitos fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, Coimbra, 2009, pp. 225 e 293).
Alguma doutrina tem sustentado que existe base legal habilitante para as medidas restritivas de direitos, liberdades e garantias adoptadas pelo Conselho de Ministros através das sucessivas resoluções. Em particular, invocam a Lei n.º 27/2006 (Lei de Bases da Protecção Civil), a Lei de Bases da Saúde e a Lei n.º 81/2009, de 21.08 (Institui um sistema de vigilância em saúde pública), designadamente o artigo 19.º do primeiro e o artigo 17.º deste último diploma. Parece-nos evidente que não estamos aqui perante um esquema semelhante ao das leis parlamentares de autorização ao Governo de restrição de direitos, liberdades e garantias nos termos dos artigos 18.º, n.º 2, e 165.º, n.º 1, b), da CRP, o que seria clara e manifestamente violador das normas constitucionais relativas à competência para regular – e, portanto, regular restringindo – direitos, liberdades e garantias, tanto mais que consensualmente se admite que as situações de calamidade são situações de normalidade constitucional. Está, deste modo, fora de questão entender que os diplomas em causa conferem uma autorização genérica ao Governo, para, através do CM, restringir pela via regulamentar e de forma autónoma e inovadora direitos, liberdades e garantias. Verdadeiramente, o que, na melhor das hipóteses, esses preceitos permitem é que o membro do Governo responsável pela área da saúde – sem prejuízo de o mesmo levar os problemas relacionados com o combate a uma emergência sanitária a CM – adopte medidas que sejam ainda a concretização do que nelas está previsto. É certo que, por exemplo, o artigo 17.º parece conter mera exemplificação de situações, o que, de certa forma se compreende, tal como uma certa vaguidade das disposições, uma vez que nem sempre é fácil antecipar quais as concretas medidas necessárias para debelar uma situação pandémica como a que actualmente vivemos. Em todo o caso, sob pena de se incorrer em inconstitucionalidade orgânica e formal, há que entender essa suposta exemplificação de forma restritiva, pois estamos num domínio extremamente sensível como é este dos direitos, liberdades e garantias e da sua respectiva restrição. Por outras palavras, é juridicamente impensável um cheque em branco ao Governo para restringir de forma autónoma e inovadora, pela via regulamentar, direitos, liberdades e garantias, apenas podendo, no uso desse poder regulamentar administrativo, concretizar, com alguma moderada criatividade, justificada por tempos excepcionais de emergência sanitária, o que já está estabelecido na lei.
Feito este enquadramento teorético, atentemos agora nos dispositivos convocados pelo Governo para fundar, em cumprimento do artigo 112.º, n.º 7, da CRP, a sua competência para regulamentar a limitação do direito de deslocação consagrado no artigo 44.º da CRP:
“Nos termos dos artigos 12.º e 13.º do Decreto-Lei n.º 10-A/2020, de 13 de março, na sua redação atual, por força do disposto no artigo 2.º da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, na sua redação atual, da base 34 da Lei n.º 95/2019, de 4 de setembro, do artigo 17.º da Lei n.º 81/2009, de 21 de agosto, do artigo 19.º da Lei n.º 27/2006, de 3 de julho, na sua redação atual, e da alínea g) do artigo 199.º da Constituição, o Conselho de Ministros resolve: (…)”.
Desde já se afasta o artigo 199.º, al. g), da CRP, que, de forma totalmente genérica, atribui ao Governo a competência para “Praticar todos os atos e tomar todas as providências necessárias à promoção do desenvolvimento económico-social e à satisfação das necessidades coletivas”.
Quanto ao artigo 19.º da Lei n.º 27/2006, de 03.07 (Lei de Bases da Protecção Civil):
Artigo 19.º
Competência para a declaração de calamidade
A declaração da situação de calamidade é da competência do Governo e reveste a forma de resolução do Conselho de Ministros.
Atento o teor deste preceito, não vemos como ele possa funcionar como norma habilitante para uma restrição de direitos, liberdades e garantias.
No que respeita dos artigos 12.º e 13.º do Decreto-lei n.º 10-A/2020, de 13.03.2020 (Estabelece medidas excecionais e temporárias relativas à situação epidemiológica do novo Coronavírus - COVID 19):
Artigo 12.º
Restrições de acesso a estabelecimentos
1 - É suspenso o acesso ao público dos estabelecimentos de restauração ou de bebidas que disponham de espaços destinados a dança ou onde habitualmente se dance.
2 - A afetação dos espaços acessíveis ao público dos demais estabelecimentos de restauração ou de bebidas e de estabelecimentos comerciais deve observar as regras de ocupação que vierem a ser definidas por portaria do membro do Governo responsável pela área da economia.
3 - Na portaria referida no número anterior podem ser estabelecidas restrições totais ou parciais da afetação dos espaços acessíveis ao público.
Artigo 13.º
Restrições de acesso a serviços e edifícios públicos
Pode ser limitado o acesso a serviços e a edifícios públicos mediante despacho do membro do Governo responsável pela área da Administração Pública e pela área a que o serviço ou edifício respeitam.
Preceitos estes que, como se verá, devem ser lidos conjugadamente com o artigo 2.º da Lei n.º 1-A/2020, de 19.03 (Medidas excecionais e temporárias de resposta à situação epidemiológica provocada pelo coronavírus SARS-CoV-2 e da doença COVID-19”:
Artigo 2.º
Ratificação de efeitos
O conteúdo do Decreto-Lei n.º 10-A/2020, de 13 de março, é parte integrante da presente lei, produzindo efeitos desde a data de produção de efeitos do referido decreto-lei.
Diga-se, antes de tudo, que este diploma legal do Governo nos suscita fundadas dúvidas sobre a sua constitucionalidade. E isto, por vários motivos. Porque sendo este um decreto-lei simples, e não um decreto-lei autorizado, não poderia o mesmo ter restringido direitos, liberdades e garantias. Acresce a isto que ele viu a luz do dia ainda antes da primeira declaração do estado de emergência, operada pelo Decreto presidencial n.º 14-A/2020, de 18.03. É verdade que, ulteriormente, se procurou conferir legitimidade constitucional a este decreto-lei mediante o artigo 2.º da Lei n.º 1-A/2020, mas este modus operandi, também ele, não é isento de críticas no plano da sua constitucionalidade. Com efeito, através do artigo 2.º da Lei n.º 1-A/2020, de 19.03, os efeitos do decreto-lei em apreço terão sido ‘ratificados’ por esta lei com eficácia retroactiva. Ora, é por demais duvidosa a legitimidade constitucional desta ratificação-sanação atento, por um lado, o desaparecimento da figura da ratificação e a sua substituição, no artigo 169.º da CRP, pelo instituto da apreciação parlamentar de actos legislativos para efeitos cessação de vigência ou de alteração; por outro lado, em virtude da retroactividade dos efeitos decretada quando está em causa a restrição de direitos, liberdades e garantias, sendo que o artigo 18.º, n.º 3, da CRP, expressamente dispõe que as leis restritivas de direitos, liberdades e garantias não podem ter efeitos retroactivos. Mas, o que mais interessa, até porque, como inicialmente afirmado, o requerente da intimação se preocupou com a inconstitucionalidade orgânica do artigo 3.º-A da RCM em apreciação, é que os mencionados artigos 12.º e 13.º nada têm que ver com a liberdade de deslocação que efectivamente é coartada.
No respeitante à Base 34 da Lei n.º 95/2019, de 04.09 (Aprova a Lei de Bases da Saúde).
Base 34
Autoridade de saúde
1 - À autoridade de saúde compete a decisão de intervenção do Estado na defesa da saúde pública, nas situações suscetíveis de causarem ou acentuarem prejuízos graves à saúde dos cidadãos ou das comunidades, e na vigilância de saúde no âmbito territorial nacional que derive da circulação de pessoas e bens no tráfego internacional.
2 - Para defesa da saúde pública, cabe, em especial, à autoridade de saúde:
a) Ordenar a suspensão de atividade ou o encerramento dos serviços, estabelecimentos e locais de utilização pública e privada, quando funcionem em condições de risco para a saúde pública;
b) Desencadear, de acordo com a Constituição e a lei, o internamento ou a prestação compulsiva de cuidados de saúde a pessoas que, de outro modo, constituam perigo para a saúde pública;
c) Exercer a vigilância sanitária do território nacional e fiscalizar o cumprimento do Regulamento Sanitário Internacional ou de outros instrumentos internacionais correspondentes, articulando-se com entidades nacionais e internacionais no âmbito da preparação para resposta a ameaças, deteção precoce, avaliação e comunicação de risco e da coordenação da resposta a ameaças;
d) Proceder à requisição de serviços, estabelecimentos e profissionais de saúde em casos de epidemias graves e outras situações semelhantes.
3 - Em situação de emergência de saúde pública, o membro do Governo responsável pela área da saúde toma as medidas de exceção indispensáveis, se necessário mobilizando a intervenção das entidades privadas, do setor social e de outros serviços e entidades do Estado.
Também em relação a esta Base 34 são muitas e sérias as dúvidas sobre se a mesma pode ser vista como norma habilitante para legitimar o Governo, através do CM, para restringir autónoma e inovadoramente, por via regulamentar, direitos, liberdades e garantias. Desde logo, “estabelecer as bases gerais equivale à consagração das opções político-legislativas fundamentais, deixando-se (ou podendo deixar-se) ao Governo e às assembleias legislativas regionais a definição concreta dos regimes jurídico gerais” (cfr. JJ GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, Coimbra, 2003, p. 755). Depois, porque, como bem afirma Jorge Miranda, “A reserva abrange todo o domínio legislativo de cada direito, liberdade e garantia, e não apenas as bases gerais dos regimes jurídicos; o Governo aí não pode fazer decretos-leis de desenvolvimento (…), apenas pode fazer decretos-leis no uso de autorizações legislativas (…) e decretos regulamentares de execução” (cfr. JORGE MIRANDA, Manual de Direito Constitucional, tomo IV, Coimbra, 1993, p. 335). Ora, se não pode um decreto-lei de desenvolvimento do Governo restringir ele próprio direitos, liberdades e garantias, por maioria de razão não o poderá fazer uma norma de natureza regulamentar contida numa resolução do CM. Cumpre ainda sublinhar que resulta absolutamente estranho, do ponto de vista jurídico-constitucional, que as leis de autorização ao Governo para legislar em matéria de reserva relativa tenham de definir o objecto, o sentido, a extensão e a duração da autorização (cfr. art. 165.º, n.º 2, da CRP), e a concretização de uma base vaga possa conceder ‘rédea livre’ ao Governo para restringir direitos, liberdades e garantias, ainda para mais, não através de um decreto-lei de desenvolvimento mas de uma resolução do CM. Por último, e desta feita, menos importante, porque não detectamos na Base 34 qualquer vislumbre de uma específica restrição ao direito fundamental de deslocação que pudesse ser executada ou concretizada pela via regulamentar – não se compadecendo a restrição de direitos, liberdades e garantias com normas totalmente vagas, in casu, no que se reporta ao direito de deslocação. Porque assim é, e tendo em mente que se trata de uma base, convocamos Jorge Miranda, que, como bem afirma, “A reserva abrange todo o domínio legislativo de cada direito, liberdade e garantia, e não apenas as bases gerais dos regimes jurídicos; o Governo aí não pode fazer decretos-leis de desenvolvimento (…), apenas pode fazer decretos-leis no uso de autorizações legislativas (…) e decretos regulamentares de execução” (cfr. JORGE MIRANDA, Manual de Direito Constitucional, tomo IV, Coimbra, 1993, p. 335). Ora, se não pode um decreto-lei de desenvolvimento do Governo restringir ele próprio direitos, liberdades e garantias, por maioria de razão não o poderá fazer uma norma de natureza regulamentar contida numa resolução do CM – ainda para mais, como se disse, uma base totalmente vaga no que respeita ao direito de deslocação. Cumpre ainda sublinhar que resulta absolutamente estranho que as leis de autorização ao Governo para legislar em matéria de reserva relativa tenham de definir o objecto, o sentido, a extensão e a duração da autorização (cfr. art. 165.º, n.º 2, da CRP), e a concretização de uma base vaga possa conceder rédea livre ao Governo para restringir direitos, liberdades e garantias, ainda para mais, não através de um decreto-lei de desenvolvimento mas de uma resolução do CM.
Por último, e no que concerne ao artigo 17.º da Lei n.º 81/2009, de 21.08 (Diploma que institui um sistema de vigilância em saúde pública), uma vez que não é invocado nenhum parágrafo em especial, opta-se por reproduzir todo o seu conteúdo:
Artigo 17.º
Poder regulamentar excepcional
1 - De acordo com o estipulado na base XX da Lei n.º 48/90, de 24 de Agosto, o membro do Governo responsável pela área da saúde pode tomar medidas de excepção indispensáveis em caso de emergência em saúde pública, incluindo a restrição, a suspensão ou o encerramento de actividades ou a separação de pessoas que não estejam doentes, meios de transporte ou mercadorias, que tenham sido expostos, de forma a evitar a eventual disseminação da infecção ou contaminação.
2 - O membro do Governo responsável pela área da saúde, sob proposta do director-geral da Saúde, como autoridade de saúde nacional, pode emitir orientações e normas regulamentares no exercício dos poderes de autoridade, com força executiva imediata, no âmbito das situações de emergência em saúde pública com a finalidade de tornar exequíveis as normas de contingência para as epidemias ou de outras medidas consideradas indispensáveis cuja eficácia dependa da celeridade na sua implementação.
3 - As medidas previstas nos números anteriores devem ser aplicadas com critérios de proporcionalidade que respeitem os direitos, liberdades e garantias fundamentais, nos termos da Constituição e da lei.
4 - As medidas e orientações previstas nos n.ºs 1 e 2 são coordenadas, quando necessário, com o membro do Governo responsável pelas áreas da segurança interna e protecção civil, designadamente no que se reporta à mobilização e à prontidão dos dispositivos de segurança interna e de protecção e socorro, devendo ser comunicadas à Assembleia da República.
De todos os preceitos mencionados, e não obstante a base XX ter sido revogada, é este o único que admitimos possa trazer qualquer sustentação legal à medida regulamentar contestada pelo requerente da presente intimação, medida essa espacial e temporalmente limitada, que não proíbe a circulação no interior da área metropolitana de Lisboa, e, além do mais, conhecedora de várias excepções entre as quais, a que mais importa, a prevista no seu n.º 2 (apresentação de comprovativo de realização de testes da infeção por SARS-CoV-2, com resultado negativo, ou, alternativamente, apresentação do Certificado Digital COVID da União Europeia). Assim sendo, lançando mão daquela “moderada criatividade justificada por tempos excepcionais de emergência sanitária”, admitimos, porque não se trata de solução totalmente líquida, que a mesma possa ser vista como execução da “separação de pessoas que não estejam doentes” prevista no n.º 1 do artigo 17.º. Nesse sentido, admitimos que o artigo 3.º-A da não é inconstitucional ou ilegal.