Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:01136/03
Data do Acordão:11/10/2004
Tribunal:3 SUBSECÇÃO DO CA
Relator:MADEIRA DOS SANTOS
Descritores:MULTA.
COMPETÊNCIA DOS TRIBUNAIS ADMINISTRATIVOS.
INFRACÇÃO ÀS LEIS DA SEGURANÇA SOCIAL.
JOGOS DE FORTUNA OU AZAR
BINGO
Sumário:I - Compete aos tribunais administrativos conhecer do recurso contencioso que tem por objecto o acto que manteve na ordem jurídica a decisão do Inspector-Geral de Jogos de aplicar, a um concessionário do jogo do bingo, uma multa pelo não pagamento tempestivo de impostos e contribuições para a segurança social.
II - Porque essa multa corresponde a uma infracção administrativa, o Inspector-Geral de Jogos tem competência para a aplicar, nos termos do art. 39º, n.º 2, do Regulamento de Exploração do Jogo do Bingo, aprovado pelo DL n.º 314/95, de 24/11.
Nº Convencional:JSTA00061125
Nº do Documento:SA12004111001136
Data de Entrada:06/06/2003
Recorrente:A...
Recorrido 1:SE DO TURISMO
Votação:UNANIMIDADE
Meio Processual:REC CONT.
Objecto:DESP SE DO TURISMO DE 2003/04/17.
Decisão:NEGA PROVIMENTO.
Área Temática 1:DIR ADM CONT - ACTO.
Legislação Nacional:ETAF85 ART6.
REJB95 ART37 ART39 N2 ART38 N3 H.
ART38 N3 A ART40 N1 F.
Jurisprudência Nacional:AC STA PROC1145/03 DE 2004/06/24.; AC STA PROC1161/03 DE 2004/06/29.; AC STA PROC1257/03 DE 2004/07/01.; AC STA PROC1131/03 DE 2004/06/24.
Aditamento:
Texto Integral: Acordam na 1.ª Secção do Supremo Tribunal Administrativo:
O A... interpôs recurso contencioso do despacho n.º 25/2003/SET, de 17/4/03, em que o Secretário de Estado do Turismo negou provimento ao recurso que aquela associação deduzira da decisão do Inspector-Geral de Jogos que condenara o aqui recorrente, enquanto concessionário de uma sala de jogo do bingo, no pagamento de uma coima de 4.000 euros.
O recorrente terminou a sua alegação de recurso, oferecendo as conclusões seguintes:
A Inspecção-Geral de Jogos acusou, em processo administrativo com o n.º 6.9.2.13.40/02 o recorrente da falta dos documentos comprovativos do pagamento mensal à Segurança Social referente ao mês de Julho de 2002, das dívidas ao Estado e ao CRSS que deveria ter sido efectuado até ao último dia do mês de Agosto seguinte.
A IGJ, em sede de decisão, entendeu que o recorrente, com tal omissão, cometeu uma infracção que consideraram como muito grave, foi o mesmo condenado ao pagamento de uma coima de 4.000 euros.
Não conformado com tal decisão, foi interposto recurso hierárquico para o Ex.º Sr. Secretário de Estado do Turismo que, pelo despacho 25/SET/03, de 17/4/03, concordou com os termos e com os fundamentos do parecer junto aos autos, não concedendo provimento àquele recurso.
Desta decisão versa o presente recurso contencioso, na medida em que, e salvo o devido respeito, entende o recorrente que não era da competência da IGJ a aplicação das coimas pelos factos vertentes na nota de culpa.
Na nota de culpa constam factos em que o recorrente é acusado de não ter exibido os documentos comprovativos do pagamento mensal à Segurança Social referente ao mês de Julho de 2002, das dívidas ao Estado e ao CRSS, que deveria ter sido efectuado até ao último dia do mês de Junho seguinte.
A integração como infracção muito grave, prevista na al. h) do n.º 3 do art. 38º, dada pela entidade que aplicou a multa, diz respeito a matéria que agora está directamente atribuída à Direcção-Geral de Finanças.
Deste modo, ao condenar o arguido, violou o disposto no art. 31º do DL 314/95, em harmonia com o disposto no art. 31º, n.º 2, do Regulamento de Exploração do jogo do Bingo (REJB).
Ao aplicar sanções através do presente processo, o recorrente está a ser penalizado duas vezes pela prática da mesma infracção.
Isto porque as entidades que fiscalizam directamente o cumprimento das obrigações em causa, nomeadamente a Direcção-Geral de Finanças, têm, como não poderia deixar de ser, de desencadear os respectivos processos tendentes à cobrança coerciva, por um lado, e, por outro, à respectiva penalização do recorrente pelo incumprimento.
Conforme se discrimina extensivamente nas presentes alegações, com a referência aos respectivos processos.
Temos de considerar aqui os princípios básicos que nos levam aos institutos da litispendência e do caso julgado.
Assim como tem vindo a IGJ a instaurar um processo administrativo por cada mês a que se reporta a nota de responsabilização, sem se contemplar as figuras do crime continuado e a conexão de processos.
Todos estes factores devem ser considerados quando se está a aplicar, em média, por estes factos, uma multa de 4.000 euros por mês, não tendo em consideração na aplicação desta pena o cumprimento da obrigação constante da acusação por parte do arguido, na pendência deste processo.
E muito principalmente porque o recorrente não é uma empresa com fins lucrativos, mas tão só uma agremiação desportiva com um fim eminentemente social.
Factor que deve ser considerado por quem julga, para que o recorrente continue a cumprir com as suas obrigações, para assim poder cumprir com a sua finalidade de proporcionar aos adeptos do desporto a sua prática.
Isto posto, não resta alternativa ao recorrente senão a de apelar, como se disse, para a compreensão de quem de direito, para o ajudarem a fazer face a estes obstáculos de forma a poder desempenhar na sociedade portuguesa o papel que vem desenvolvendo há muitas décadas.
A autoridade recorrida não contra-alegou. Mas respondera à petição de recurso, tendo então pugnado pela legalidade do acto e defendido que este STA é incompetente «ratione materiae» em virtude de a «impugnação judicial da decisão» que aplicou a coima dever consistir num «recurso a ser julgado pelo tribunal judicial da comarca onde tiver ocorrido a alegada infracção».
O EX.º Magistrado do MºPº pronunciou-se doutamente pela improcedência da questão prévia suscitada na resposta e pelo não provimento do recurso contencioso.
À decisão interessam os seguintes factos, que consideramos assentes:
1 – O recorrente é concessionário de uma sala do jogo do bingo.
2 – O recorrente foi alvo de um processo administrativo, que correu termos na IGJ com o n.º 6.9.2.13.40/02, em que foi acusado de não ter procedido à entrega «dos documentos comprovativos do pagamento mensal referente ao mês de Julho de 2002, das dívidas ao Estado relativas a impostos e à segurança social, o que deveria ter feito até ao último dia do mês de Agosto seguinte, não o tendo também à data efectuado».
3 – No decurso desse processo administrativo, o Conselho Consultivo de Jogos emitiu parecer em que, depois de ponderar que o concessionário regularizara entretanto a dívida a que o processo se referia, se pronunciou no sentido de que ele fosse punido com a multa de 4.000 euros.
4 – Culminando o dito processo administrativo, o Inspector-Geral de Jogos, em 2/12/02, proferiu despacho em que, concordando expressamente com o mencionado parecer, aplicou ao aqui recorrente uma «multa no valor de 4.000 euros».
5 – O ora recorrente interpôs recurso hierárquico desse despacho para o Secretário de Estado do Turismo.
6 – A propósito desse recurso hierárquico, foi emitida, na Secretaria-Geral do Ministério da Economia, a informação cuja cópia consta de fls. 15 a 21 dos autos, em que se propôs que se negasse provimento ao referido recurso hierárquico.
7 – Na sequência dessa informação, o Secretário de Estado do Turismo, em 17/4/03, proferiu o despacho n.º 25/2003/SET, com o seguinte teor:
«1. Concordo com as conclusões da presente informação e com os respectivos fundamentos.
2. Consequentemente, nego provimento ao recurso interposto pelo A... .»
Passemos ao direito.
«Ante omnia», cumpre ver se ocorre a excepção de incompetência em razão da matéria, como pretende a autoridade recorrida. Ora, e tal como este STA vem constantemente decidindo em casos inteiramente similares (cfr., v.g., os acórdãos de 24/6/04, rec. n.º 1445/03, de 29/6/04, rec. n.º 1161/03, e de 1/7/04, rec. n.º 1157/03), é seguro que tal excepção não procede.
Com efeito, o Regulamento de Exploração do Jogo do Bingo (REJB), aprovado pelo DL n.º 314/95, de 24/11, distingue as infracções praticadas pelos concessionários das cometidas pelos empregados e frequentadores, qualificando as primeiras como administrativas, puníveis com multa ou rescisão dos contratos, e atribuindo às segundas a natureza de contra-ordenações, puníveis com coimas e susceptíveis de sanções acessórias (cfr. os artigos 37º a 44º).
Da aplicação dessas contra-ordenações cabe impugnação para os tribunais comuns, nos termos gerais do DL n.º 433/82, de 27/10. Contudo, é ao Inspector-Geral de Jogos que cabe aplicar as multas correspondentes às infracções administrativas praticadas pelos concessionários, os quais podem recorrer hierarquicamente desses actos aplicadores para o membro do Governo responsável pela área do Turismo (cfr. o art. 39º, n.º 2, do REJB), podendo ainda, da decisão deste, interpor recurso contencioso nos termos gerais do ETAF.
«In casu», discute-se a legalidade de um acto punitivo de uma infracção administrativa imputada a um concessionário de uma sala de jogo do bingo – a infracção tipificada no art. 38º, n.º 3, al. h), do REJB; consequentemente, o recorrente não ofendeu as regras definidoras da competência «ratione materiae» ao interpor recurso contencioso para este STA do acto do Secretário de Estado do Turismo que negara provimento ao seu recurso hierárquico deduzido da decisão aplicadora da multa.
Improcede, assim, a questão prévia em apreço.
Atentemos agora no mérito do recurso contencioso. E, a seu propósito, permitimo-nos extractar, do acórdão de 24/6/04, «supra» citado, o seguinte trecho:
«Sem dúvida que ao ora recorrente incumbia a obrigação cívica de carácter geral de pagamento atempado de impostos e contribuições devidas à Segurança Social, sendo o incumprimento de tais obrigações sancionável nos termos das respectivas leis.
Porém, em relação aos concessionários da exploração de jogos, para além deste dever geral, cabe-lhes o específico dever de pontual cumprimento das obrigações fiscais e das contribuições devidas à segurança social, sendo a mora punível, como infracção muito grave, até com a própria rescisão do contrato de concessão (al. a) do n.º 3 do art. 38º e al. f) do n.º 1 do art. 40º).
A mora na satisfação das obrigações fiscais assume um carácter ilícito sancionável, para todos os contribuintes, nos termos quer do RJIFNA, quer agora do RGIT, como contra-ordenação com coimas.
Mas específicas situações existem, designadamente em relação aos concessionários do Estado, em que esta violação do dever geral assume especial e acrescida relevância, sendo punível, com carácter disciplinar de infracções de deveres inerentes à situação e qualidade do infractor, com outro tipo de penas, impostas por entidades diferentes, ao abrigo de normas que tutelam diversificados interesses legalmente tutelados.
Assim, enquanto as contra-ordenações fiscais são puníveis, em primeira linha, pela administração fiscal, já as infracções administrativas são apreciadas pela autoridade administrativa com poderes de supervisão na matéria.
Na situação dos autos, a apreciação desta conduta fiscalizável pela IGJ nos termos do art. 31º, com o regime punitivo decorrente das normas dos arts. 38º a 40º, assume assim um carácter diferenciado da mera infracção fiscal.
Daqui decorre que não exista violação do princípio «ne bis in idem», pois a mesma conduta é prevista em diferentes normas tutelando interesses jurídicos bem diferenciados, sendo as sanções diferenciadas, aplicáveis por diversas entidades em meios processuais distintos.
Em relação aos presentes autos, e tudo o que exceda o que deles conste é irrelevante em termos da respectiva solução, foi aplicada uma única punição, correspondente à qualificação unitária da conduta, pelo que não faz aqui sentido a referência à figura do «crime continuado», «rectius», da infracção disciplinar continuada, ou da conexão de processos.
Finalmente, e quanto à última conclusão apresentada:
Nos termos do p. no art. 6º do ETAF, os recursos contenciosos são de mera legalidade, não cabendo aos tribunais administrativos, em tal sede, apreciar o mérito, a oportunidade das decisões administrativas tomadas e sujeitas à sua apreciação, pelo que não pode este tribunal apreciar o apelo à ajuda a fazer face aos obstáculos, às dificuldades, decorrentes do pagamento das multas, em ordem à possibilidade de desempenho das meritórias tarefas na sociedade portuguesa.»
Subscrevemos as considerações anteriores que estão, aliás, na linha de uma jurisprudência constante deste STA, aplicada em múltiplos casos similares ao presente e já decididos (cfr., v.g., os acórdãos de 24/6/04, rec. n.º 1131/03, e de 29/6/04, rec. n.º 1161/04).
Resta acrescentar que o recorrente também não tem razão quando afirma que, na aplicação da multa, não foi levado em conta o facto de ele, na pendência do processo, estar em cumprimento das respectivas obrigações. É que, e exactamente ao invés, vê-se que o parecer do Conselho Consultivo de Jogos – parecer em que se baseou o despacho do Inspector-Geral de Jogos, depois mantido pelo acto contenciosamente impugnado – ponderou expressamente o facto de o ora recorrente haver regularizado entretanto «a dívida a que se refere o presente processo».
Assim, improcedem todas as conclusões úteis da alegação de recurso, mostrando-se o despacho impugnado isento dos vícios que o recorrente lhe assacou nestes autos e que manteve naquelas conclusões.
Nestes temos, acordam em negar provimento ao presente recurso contencioso.
Custas pelo recorrente:
Taxa de justiça: 400€
Procuradoria: 200€

Lisboa, 10 de Novembro de 2004. - Madeira dos Santos (relator) – António Samagaio – Jorge de Sousa.