Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0277/12.9BECBR 0485/18
Data do Acordão:11/21/2019
Tribunal:1 SECÇÃO
Relator:MARIA BENEDITA URBANO
Descritores:EXECUÇÃO DE SENTENÇA
ACTO RENOVÁVEL
VÍCIO DE FORMA
Sumário:I – Tratando-se de vício de forma, a Administração não estava impedida de, em execução de decisão anulatória, optar pela renovação do acto declarativo de utilidade pública.
II – Nos termos do artigo 128.º, n.º 1, al. b), in fine, do anterior CPA, os actos que davam execução a decisões anulatórias de actos administrativos renováveis não tinham, em princípio, eficácia retroactiva.
Nº Convencional:JSTA000P25178
Nº do Documento:SA1201911210277/12
Data de Entrada:06/20/2018
Recorrente:A......
Recorrido 1:ESTRADAS DE PORTUGAL, S.A. E OUTROS
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: Acordam em conferência na Secção de Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo:

I – RELATÓRIO

1. A……….., devidamente identificado nos autos, recorre para este Supremo Tribunal do Acórdão do TCAN, de 26.01.18, que decidiu “revogar a decisão recorrida e julgar a acção improcedente”.
Na origem do recurso interposto para o TCAN esteve uma decisão do TAF de Coimbra, de 31.10.16, que julgou procedente a acção administrativa especial interposta pelo A. A………, acção na qual este peticionava o seguinte:

“… Ser declarado nulo ou, caso assim se não entenda o que se refere sem transigir, deve ser anulado o despacho nº 9974/2010 proferido em 7.6.2010 por Sua Exa. o Secretário de Estado Adjunto das Obras Públicas e das Comunicações que declarou a utilidade pública com carácter de urgência da expropriação das parcelas do Autor, devidamente identificadas nos artigos 3º, 4º e 5º da presente petição, com todas as devidas e legais consequências”.

2. O A., ora recorrente, apresentou alegações, concluindo do seguinte modo (cfr. fls. 1091 e ss):
“1) A questão que se traz a juízo é clara e é a seguinte:
Pode ou não ser renovada, em sede de execução de sentença, uma declaração de utilidade pública declarada nula pelos tribunais, quando a obra pública (in casu, uma estrada) está já realizada, assim mesmo antes do acto renovatório; ou, por outro lado, estamos perante uma situação de impossibilidade de execução e, assim, face a uma situação que devemos enquadrar como constituindo uma causa legítima de inexecução.
2) As instâncias deram uma resposta diferente a esta questão, tendo o Tribunal Central Administrativo Norte sustentado, em erro manifesto, que tal é possível, ao contrário do que afirmou a sentença de primeira instância.
3) Salvo o merecido respeito, o erro manifesto do acórdão recorrido decorre da circunstância do objecto da declaração de utilidade pública, o prédio tal como o mesmo era, rústico, estar já essencialmente descaracterizado, agora é urbano, em virtude de sobre ele ter sido construída uma estrada, a qual está em funcionamento ainda hoje.
4) A questão é aliás de difícil resolução, o que é evidenciado pelo facto de se tratar de uma vexatia quaestio, nomeadamente em termos de direito comparado (sobretudo em França e mais propriamente em Itália), tendo, inclusivamente, sobre esta temática existido diversas pronúncias do TEDH.
5) Por outro lado, como sucede noutras jurisdições, a capacidade de repetição desta questão é evidente e enorme.
6) Tudo levando a concluir que se deve admitir o presente recurso, nas distintas dimensões que equacionámos - portanto, esta sim, uma pronúncia digna de um Alto Tribunal Português.
****
7) Face às considerações tecidas no acórdão recorrido relativamente à urgência da realização da obra pública, outra ponderação não é admissível, são as mesmas ostensivamente erradas, atenta a circunstância da obra estar feita e em utilização, não são, aliás, fundamentadas na lei ou em qualquer princípio jurídico, contrariando ostensivamente, por outro lado, quer o princípio da actualidade da acção administrativa, quer o princípio tempus regit actum.
8) Parece ostensivo que a melhor solução (razoabilidade, proporcionalidade e justiça) é, defendendo os interesses públicos sem detrimento dos interesses privados, verificar a existência de uma impossibilidade jurídica, que é evidente nesta dimensão de urgência que autonomamente encerra a declaração de interesse público, fazendo entrar na discussão a causa legítima de inexecução – os automóveis continuam a passar, a estrada mantêm-se, e irá calcular-se, por efeito da causa legítima de inexecução, a indemnização, mais do que devida, aos particulares.
9) Quanto à questão essencial que se discute nos autos (ocupação de solos pela administração originariamente ou supervenientemente sem título, mormente por intervenção judicial com efeitos ex tunc), temos que a mesma é uma vexata questio nomeadamente em termos dogmáticos comparados, mormente em Itália e França, e isto ao ponto do TEDH já se ter pronunciado várias vezes sobre o tema, importando, sopesando o nosso ordenamento jurídico e a resposta que o mesmo dá a esta questão (inovadoramente quanto à sistematização e à extensão com que trata a questão da inexecução das sentenças administrativas), enquadrar a solução jurídica no instituto das causas legítimas de inexecução (impossibilidade fáctica ou jurídica do acto).
10) Tudo dizendo temos que o bem foi (de facto) essencialmente descaracterizado, nunca podendo os solos voltar ao seu status quo ante, a coisa rural plena de árvores seculares e outros verdes...; ou seja, esta transformação do bem, do solo, esta sua alteração de coisa rural para coisa urbana, faz com que se verifique uma situação de irreversibilidade fáctica, faz com que o objecto do acto seja impossível, porque o primeiro esgotou os seus efeitos, faz com que seja profundamente lesivo do interesse público a restituição, que, como o Tribunal de primeira instância afirmou, só poderia ter uma resposta... a verificação de que o novo acto de declaração de utilidade pública só pode ter objecto impossível, com todas as consequências que acertadamente aponta.
11) A decisão vai mesmo contra o aresto deste Alto Tribunal no proc. n.º 47693A, de 14/07/2008, quando foi aí decidido que é impossível a renovação da declaração de utilidade pública se, no caso, uma alameda, esta via foi já construída e está aberta ao público!
12) Aliás, quando um bem é objecto de construção, mormente por parte da administração pública, por força de uma expropriação ilegal em razão de desvio de fim, o Supremo Tribunal Administrativo já decidiu que não é possível entregar o bem em retrocessão ao particular, demolindo ou não os prédios nele edificados (atesta, pois, nestes casos a verificação de uma situação de irreversibilidade fáctica e jurídica) entendendo, como sucede no caso, existir impossibilidade fáctica ou jurídica por força do facto de o acto primitivo ter esgotado já todos os efeitos a que tendia ou por verificação de grave dano para o interesse público na restituição do bem - e, assim, uma causa legítima de inexecução.
13) Impossibilidade essa que, aliás, subjaz com evidência aos casos de reversão em que este Alto Tribunal também tem, reiteradamente e com o aplauso da doutrina, feito intervir, assentando na impossibilidade fáctica, aquele instituto, sendo que é a mesma realidade que justifica a intervenção da causa legítima de inexecução nas situações em que o acto de adjudicação é declaro nulo ou anulado e a obra entretanto já se realizou.
14) O douto acórdão afronta assim com uma clareza perfeita a melhor doutrina portuguesa a este respeito produzida, quando a mesma refere: "A segunda hipótese abrange a anulação do acto de declaração de utilidade pública num momento em que o bem expropriado já tenha sofrido profundas transformações em face do fim de expropriação, em termos de se encontrar substancialmente modificada ou prejudicada a vocação que tinha à data da expropriação, ou a obra de interesse público já esteja concluída ou em estado adiantado de execução. Neste caso a execução da sentença do tribunal administrativo torna-se absolutamente impossível ou pelo menos acarretaria grave prejuízo para o interesse público. Estamos, para utilizarmos a terminologia corrente na nossa legislação, perante uma causa legítima de inexecução da sentença dos tribunais administrativos (art. 163.° do CPTA)." - cfr. Alves Correia, ob. cit., p. 368 e ss...
15) Salvo o merecido respeito, em palavras simples, o acórdão recorrido erra manifestamente ao julgar ser ainda possível a execução do acto de declaração de utilidade pública quando a obra, a que essa declaração de utilidade pública tendia, já está executada e em utilização, devendo antes, como foi decidido em primeira instância, julgar-se que a renovação da declaração de utilidade pública não é possível, mas sim impossível, tendo-se assim violado o estatuído nomeadamente no art. 133.º, n.º 2, al. c) do CPA (anterior versão; ou actual art. 161.º, n.º 2, al. c) do NCPA) e arts. 163.º e ss. e 173.º do CPTA”.

3. A recorrida INFRAESTRUTURAS DE PORTUGAL, SA (IP, SA) produziu contra-alegações, concluindo-as do seguinte modo (cfr. fls. 1134 e ss.):
“1) O regime de execução de sentenças de anulação de atos administrativos, constante dos artigos 173.º e seguintes do CPTA é aplicável a todas as decisões anulatórias (atos anulados e declarados nulos).
2) A Administração não só pode como deve reexercer a sua autoridade por forma a repor a ordem jurídica violada.
3) O ato impugnado foi praticado a coberto do dever de executar que se impõe à Administração.
4) A Administração ao praticar o novo ato administrativo, em execução do julgado anulatório, uma vez expurgado da ilegalidade que o afetava, fá-lo em substituição do primeiro, pelo que o conteúdo deste novo ato tem necessariamente que ser idêntico e portanto, não pode deixar de dizer que aquela expropriação se destina à Beneficiação da EN 234 entre Mira e Cantanhede.
5) De onde que o novo ato (expurgado dos vícios do anterior) teria sempre de ser praticado por referência ao momento situado no passado, de acordo com a situação jurídica e condições de facto existentes na data em que foi praticado o ato impugnado (artigo 173.º n.º 1 do CPTA).
6) O que é declarado como sendo de utilidade pública é a expropriação e o uso do solo num outro fim, também ele de utilidade pública, qual seja o empreendimento rodoviário.
7) A inatacabilidade da obra pública construída, bem assim como a sanação do vício inicialmente existente, em benefício dos próprios destinatários, designadamente o aqui recorrente, levam a que se conclua que é válido o ato administrativo que declara a utilidade pública dos terrenos necessários à execução daquela mesma obra que, à data do ato renovado, ainda não estava executada.
Nestes termos e nos mais de Direito, que Vossas Excelências doutamente suprirão, não deve ser admitida a revista interposta; subsidiariamente, e para o caso de assim se não entender, deve ser mantido o acórdão proferido pelo Tribunal Central Administrativo”.

4. O recorrido Ministério da Economia e Emprego não apresentou contra-alegações.

5. Por acórdão deste Supremo Tribunal [na sua formação de apreciação preliminar prevista no n.º 1 do artigo 150.º do CPTA], de 10.05.19, veio a ser admitida a revista, na parte que agora mais interessa, nos seguintes termos:
“(…)

2. Resulta da M.F que por despacho do Sr. Secretário das Obras Públicas, de 4/04/1995, foi declarada a utilidade pública, com carácter de urgência, da expropriação das parcelas do Autor identificadas nos autos para as mesmas serem integradas nas obras de beneficiação da EN n.º 234, entre Mira e Cantanhede. Inconformado, impugnou judicialmente esse despacho o qual, com fundamento na sua ininteligibilidade, veio a ser declarado nulo por decisão confirmada pelo Acórdão de 29/11/2006 do Pleno da Secção Administrativa deste Supremo.
Na sequência dessa declaração de nulidade e, novamente a pedido da contra interessada, o Secretário Adjunto das Obras Públicas, por acto de 7/06/2010, voltou a declarar a utilidade pública, com carácter de urgência, da expropriação daquelas parcelas para serem aplicadas na mesma finalidade.
O Autor impugnou esse despacho e o TAF julgou a acção procedente com a seguinte fundamentação:

“…
Dos factos provados resulta com segurança que o pedido e a emissão do despacho impugnado se inscrevem no procedimento tido como meio ao menos legal de executar o acórdão do STA de 29/11/2006.
O elemento subjectivo específico do tipo de ilícito residiria na intenção, por parte dos titulares dos órgãos do Réu e da Cl de se eximirem ao cumprimento de todas as consequências legais da nulidade do acto de 1995, designadamente a inexistência qualquer efeito do acto nulo, com a consequente nulidade de todos os actos subsequentes.
…..
Ora, lidos quer o despacho impugnando quer o pedido da sua emissão, feito pela Cl, no contexto da restante matéria de facto, é impossível não concluir pela impossibilidade desde logo cronológica do objecto do despacho, por isso que a obra por cuja realização os terrenos alegadamente expropriados se destinavam a serem ocupados já estava terminada desde pelo menos 1997, com ocupação de todas as parcelas de terreno que segundo o seu projecto se mostrara necessário ocupar, e em plena utilização do público. Mas a impossibilidade do objecto é também natural, pois as parcelas de terreno agora objecto do DUP não serão mais do que uma ficção. Na verdade, se eram necessárias para a realização da obra segue-se que foram ocupadas pela estrada ab initio e, portanto, já não existem. No que foi o seu lugar está parte da plataforma e ou da zona de domínio público envolvente da Estrada Nacional 234.
Não se diga que os pressupostos e objecto bastantes para a prática do acto são constituídos por uma decisão judicial que declarou nula a DUP de 1995.
À realidade não se constitui por decreto, O que é impossível naturalmente não o deixa de ser por força de uma decisão judicial.
A decisão judicial de nulidade, em abstracto, não prejudica uma eventual possibilidade de praticar novo acto administrativo no respeito pelos limites ditados pelo caso julgado - cf. n° 1 do artigo 173° do CPTA. Mas, evidentemente, o objecto do novo acto tem de ser possível no mundo real. A própria norma citada considera essa repetição como uma mera eventualidade: “sem prejuízo do eventual poder de praticar novo acto...”
Ora, se a obra está executada, se os terrenos que era necessário expropriar já estão integradas na estrada, é impossível pedir e declarar a utilidade pública para “expropriação urgente”, com vista ao “início das obras em seis meses”! - de quaisquer terrenos a ocupar pela mesma obra.
Como executar, então, a decisão do STA, sendo certo que, nos termos do citado n° 1 do artigo 173° do CPTA, a anulação (leia-se, in casu, a declaração de nulidade) constitui a Administração no dever de reconstituir a situação que existiria se o acto anulado não tivesse sido praticado?
A execução não passa, seguramente, por destruir toda a construção objecto da obra de beneficiação da EN nº 234 entre Cantanhede e Mira e devolver aos proprietários todos os terrenos ocupados para sobre eles se emitir nova DUP. Isso não só é impensável segundo um princípio de Boa Administração e de salvaguarda do interesse público, como se mostra naturalisticamente impossível, pois, alterada a topografia dos terrenos, já não é possível discernir o que pertencia a quem, reconstituir parcelas, vistoriá-las ad perpetuam rei memoriam e avaliá-las, etc. Também não poderia passar por destruir ou devolver determinadas extensão e largura do domínio público da estrada, eventualmente correspondentes às parcelas terrenos pertencentes ao Autor, não só porque a já referida alteração topográfica impede de isso se fazer com exactidão como, sendo a DUP de 1995 ininteligível por impossibilidade de identificação das parcelas expropriadas, está logicamente prejudicada uma exacta associação de concretas zonas da EN 234 actual com parcelas objecto daquela DUIP.
Porém, a solução para esta perplexidade é simples e estava prevista na lei.
Era impossível, naturalística, lógica e cronologicamente executar a declaração de nulidade designadamente no tocante à reconstituição da situação imediatamente anterior à prática do acto nulo? Pois se assim era, como era, não havia que executar a declaração judicial de nulidade da DUP de 1995, ou melhor, que ficcionar uma sua execução contra toda a realidade. Havia, sim, que, nos termos dos artigos 175.°, n.ºs 1 e 2, 162°/1 e 163° do CPTA, invocar a existência de causa legítima de inexecução - neste caso a impossibilidade absoluta de execução - e notificar disso mesmo o Autor, com os respectivos fundamentos. Ao Autor, então, competiria mover a acção executiva, podendo ele mesmo admitir a impossibilidade de execução, já invocada pela Administração, seguindo-se de imediato os termos do artigo 166°, ex vi artigo 178° do CPTA com vista à fixação da indemnização devida pela não execução.
Pode e deve, portanto, concluir-se, sem sede cair em aporia alguma, que o acto impugnado é nulo por impossibilidade do seu objecto.

Outro foi o entendimento do TCA pelas seguintes razões:
II - Nas suas conclusões 6 a 16 vem o recorrente, quanto ao mérito do presente recurso sustentar, que o que se pretendeu com o despacho impugnado, a DUP de 2010, foi a renovação da DUP de 1995, praticado este por referência à situação existente em 1995, nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 173.º do CPTA, pelo que contrariamente ao que foi decidido, é possível a prática de um novo ato, válido, no respeito pelos limites do caso julgado.
…..
Ou seja, tendo sido anulado ou declarado nulo um determinado acto administrativo, a sua execução passa pela reconstituição da situação que existiria se não tivesse sido praticado o acto ilegal ou se o acto tivesse sido praticado sem a ilegalidade referida.
Assim sendo, tendo sido declarado nulo determinado acto, nada obsta a que a Administração não possa emitir um novo acto mas sem as ilegalidades que o anterior acto continha.
Foi o que aconteceu no caso dos autos.
Como se vê da matéria de facto dada como provada ocorreu uma primeira DUP (declaração de utilidade pública) sobre os terrenos em causa, em 30-05-1995 (n.º 1 do probatório). Essa DUP foi, por Acórdão do STA transitado em julgado em 21/12/2006, declarada nula.
Nesta sequência, em reunião de 19/3/2008, o Conselho de Administração da contra-interessada deliberou requerer ao Réu a “declaração de utilidade pública com carácter de urgência, da expropriação das parcelas de terreno necessárias à construção do empreendimento EN 234 – Beneficiação entre Mira e Cantanhede.”
Este pedido foi satisfeito através do Despacho 9974/2010 do Secretário de Estado Adjunto e das Obras Públicas e Comunicações.
Como estamos perante a renovação do acto, esta renovação tem a ver com a situação fáctica anterior, razão pela qual a questão da urgência invocada decorre da situação então existente e não da actual prática do acto. Não ocorre assim a perplexidade referida pelo recorrido.
Ora, tendo sido declarado nulo anterior DUP, não se vê como não pode a entidade demandada emitir nova DUP, nos termos do artigo 173º do CPTA, desprovida das ilegalidades conhecidas pelos Tribunais.
….
Assim sendo, pelo exposto, não se verificando os vícios invocados ao acto impugnado, julga-se a presente acção improcedente.”

3. Como se acaba de ver o que determinou o contraditório julgamento das instâncias foi o modo como encararam o acto impugnado. E isto porque, muito embora tanto o TAF como o TCA tenham considerado que o mesmo se inseria na execução do mencionado Acórdão do Pleno, certo é que divergiram na forma como viram a sua integração nessa execução.
Com efeito, o TAF a considerou ser impossível a sua prática uma vez que “a obra por cuja realização os terrenos alegadamente expropriados se destinavam … já estava terminada desde pelo menos 1997, com ocupação de todas as parcelas de terreno que …. se mostrara necessário ocupar, e em plena utilização do público. … Na verdade, se eram necessárias para a realização da obra segue-se que foram ocupadas pela estrada ab initio e, portanto, já não existem. No que foi o seu lugar está parte da plataforma e ou da zona de domínio público envolvente da Estrada Nacional 234.” Deste modo, o cumprimento daquele Acórdão passava pela declaração de causa legítima de inexecução e pela atribuição de uma indemnização.
Ora, o TCA entendeu que “tendo sido declarado nulo determinado acto, nada obsta a que a Administração não possa emitir um novo acto mas sem as ilegalidades que o anterior acto continha.” E que tendo sido isso o que acontecera não havia que censurar o despacho impugnado.
Nesta conformidade, e desde logo, importa saber se o acto impugnado ainda pode ser considerado um acto de execução do Acórdão anulatório - visto o mesmo só ter sido praticado cerca de 4 anos após o trânsito daquele - e, depois, saber se ainda pode ser declarada uma DUP quando a obra pública está já realizada e, portanto, os prédios a que ela respeita já se encontram integrados há vários anos na finalidade que a justifica. Como assinala o TAF, parece que os mesmos já não existem quer física quer juridicamente.
Ora, estas são questões de relevante importância jurídica e social o que justifica a admissão da revista”.

6. O Digno Magistrado do Ministério Público, notificado nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 146.º do CPTA, emitiu parecer “no sentido da procedência do presente recurso de revista, com a consequente revogação do acórdão do TCA Norte de 26-01-2018”. Objecto de contraditório, o parecer do MP mereceu a resposta discordante da recorrida IP,SA, e do recorrente.


7. Colhidos os vistos legais, vêm os autos à conferência para decidir.

II – FUNDAMENTAÇÃO

1. DE FACTO:

São os seguintes os factos considerados provados no acórdão recorrido:
2.1 – DE FACTO
Com relevância para a decisão a proferir nos presentes autos provaram-se os seguintes factos:

1 No DR., II Série, nº 125, de 1995.05.30, foi publicado o Despacho de 1995.04.04 do Secretário de Estado das Obras Públicas, com o seguinte teor:
Nos termos do disposto na al. a) do n° 1 do art. 11º e art. 13º, nº 2, do Código das Expropriações, aprovado pelo DL n° 438/91, de 9/11, atento o despacho de 5/7/93 do Director dos Serviços Regionais de Estradas do Centro da Junta Autónoma de Estradas que aprovou a planta parcelar e o mapa de expropriações relativas ao projecto, declaro, por delegação do Ministro das Obras Públicas, Transportes e Comunicações, constante do Desp. 17/XI/91, de 9/11, publicado no DR, 2ª, 290, 2º supl. de 17/12/91, a utilidade pública, com carácter de urgência ao abrigo do art. 161º do Estatuto das Estradas Nacionais, aprovado pela Lei 2037, de 19/8/49, das expropriações parcelares de terrenos necessários à construção da estrada nacional nº 234, beneficiação entre Mira e Cantanhede, abaixo identificadas, com os elementos constantes da descrição predial e da inscrição matricial, dos direitos e ónus que sobre elas incidem e os nomes dos respectivos titulares”.

2 O nome do recorrente não constava da listagem – Mapa nº 1 – de titulares das parcelas expropriadas, publicada em conjunto com o despacho referido em 1;

3 A páginas 72, 73 e 74 do DR, II Série, de 1995.05.30, acompanhando o mesmo despacho, foram publicadas, à escala de 1/2000, as plantas gráficas reproduzidas a fls. 50-52 dos autos do processo de recurso contencioso nº NNNNNN do então TAC de Coimbra.

4 Com data de 1996.05.30, em nome do Director de Estradas do Distrito de Coimbra, foi endereçado ao destinatário “Dr. A……...”, para 3780 Paredes do Bairro – Anadia, o ofício nº 1760 – Proc. EX.03.11, nos termos que se transcrevem:
EN 234 - BENEFICIAÇÃO ENTRE MIRA E CANTANHEDE
AQUISIÇÃO/EXPROPRIAÇÃO – PARCELA N° 14.10 A, 14.11A e 14.14

Exmº Senhor
A fim de ser executada a obra mencionada em epígrafe e em conformidade com o projecto aprovado por despacho do Exmº Senhor Vice Presidente da JAE datado de 9/12/993, no exercício da competência que lhe foi delegada pelo despacho do Exmº Senhor Presidente da JAE, datado de 15/09/1993, publicado no Diário da República, II Série, n° 230 de 30/09/1993 é atingida a propriedade de V.ª Exa, na superfície que se apresenta assinalada a vermelho na planta anexa.
Para o efeito, a JAE promoveu a obtenção da respectiva Declaração de Utilidade Pública, com carácter de urgência, conforme fotocópia do despacho do SEOP anexo, a qual foi publicada no Diário da República II Série, nº 125 de 30/05/95.
Nos termos das disposições conjugadas do art. 32º e do nº 1 do art. 34º do Decreto-Lei n° 438/91, de 9 de Novembro, vimos por este meio apresentar uma proposta para o montante de ESC 633 300$00, valor encontrado com base na fundamentação que consta do relatório elaborado para o efeito.
Mais se informa que a resposta do presente ofício deverá ser dada no prazo de 30 dias, contados da data da sua recepção, podendo apresentar contraproposta acompanhada de relatório devidamente fundamentado e elaborado por perito à vossa escolha, nos termos do nº 2 do art. 34º do referido diploma legal.
Agradecemos a V.ª Exª que a minuta de dados que acompanha este ofício, depois de preenchida, seja devolvida a esta Direcção Geral de Estradas com os comentários que entenda por bem colocar nos termos da legislação em vigor a fim de integrar o respectivo processo de expropriação – vide fls. 82 dos autos.

5 O ofício acabado de referir foi remetido, pelo correio, por carta registada com aviso de recepção e foi aceite por pessoa diferente do Autor, a qual assinou aquele no espaço reservado ao destinatário, com assinatura ilegível.

6 Com data de 7 de Julho de 1996, o Autor remeteu ao Engenheiro Director de Estradas do Distrito de Coimbra, uma carta, por ele assinada, nos seguintes termos:

Na sequência da conversa telefónica tida com V. Exa, no dia 28/5/96, cerca das 12,20 horas, venho informar o seguinte:

1º - Confirmo todos os dados fornecidos na altura.

2º - Recordo a V. Exa que me disse ir determinar que eu fosse notificado por escrito, tal como determina o Código das Expropriações.
3º - Recordo a V. Exa ter identificado a propriedade em nome de meus pais, sita em ……….
4º - Até ao momento não recebi qualquer notificação, para a prática de qualquer acto.
5º - Através de pessoas conhecidas, tive conhecimento que no dia 19/6/96, cerca das 11 horas terá sido efectuada a vistoria “ad perpetuam rei memoriam” (SIC).
6º - Se tal veio a acontecer, fico muito surpreendido que V.EXA. não tenha ordenado a suspensão de tal acto, já que posterior à nossa conversa telefónica, a que acima se alude.
7º - Reitero a minha vontade de estar presente a tal acto, bem como aos subsequentes, solicitando a V.EXA me informe via CTT, para a morada supra o que lhe aprouver.
8º - Finalmente informo V.EXA que, me oporei terminantemente contra a entrada de quem quer que seja, na minha propriedade, nomeadamente de quaisquer máquinas ou homens.
9º - Se tal vier a acontecer, antes da minha posse administrativa, ver-me-ei forçado, EMBORA CONTRA A MINHA VONTADE, a proceder à respectiva participação.
Com os melhores cumprimentos.”

7 Por sentença de 1997.05.13, proferida no processo nº 83/97, do 2° Juízo do Tribunal Judicial da Comarca de Cantanhede, sendo expropriados o aqui Autor e ....., foi adjudicada à expropriante “a propriedade e a posse das parcelas 14.10 – A, 14.11- A e 14.14 (...), todas a destacar dos prédios inscritos na matriz predial rústica sob o art.º 16 310 da freguesia ……….. e sob o artº 2 842 da freguesia da ………., ambas do Concelho de Cantanhede, com as áreas, respectivamente, de 241 m2, 1200 m2 e 670 m2.”.

8 Na listagem – Mapa 1 – dos terrenos expropriados, publicada no DR, II Série, nº 125, de 1995.05.30, em anexo ao despacho expropriativo supra transcrito em a) não constavam parcelas identificadas nem por 14.10–A, nem por 14.11-A e, como proprietário da parcela 14.4. vinha indicado “FPC”.

9 Na mesma listagem não constava qualquer referência aos números matriciais referidos em 7, nem à identificação das pessoas em nome das quais se encontravam descritos.

10 O impugnante interpôs recurso da decisão de adjudicação para o Tribunal da Relação de Coimbra;

11 O fls. 132 dos autos citados em 7 foi proferido o seguinte despacho:

Atenta a decisão proferida nos autos de reclamação em apenso, transitada, resultam, a nosso ver, prejudicadas por inutilidade superveniente os recursos interpostos.”
Os factos descritos até aqui são caso julgado formado entre o Autor, por um lado, e os aqui Réu e CI, por outro, nos autos de recurso nº 42307/97 do STA.

12 Com base na prova dos factos acabados de enunciar de 1 a 11, nos autos de recurso nº 42307/97 do STA, por acórdão do pleno da secção administrativa, transitado em julgado em 21/12/2006, foi confirmado o acórdão da secção, que declarara a nulidade da DUC referida supra em 1.
Doc. 8 da PI:

13 Dá-se aqui por reproduzido o teor do sobredito acórdão, cuja cópia é doc. 8 da PI, transcrevendo apenas os seguintes excertos inicial e final.
(…)
O Secretário de Estado das Obras Públicas (ER) recorre do acórdão proferido pela Secção (cf. fls. 295-301) no recurso contencioso ali interposto por A……., melhor identificado nos autos, e que, depois de haver desatendido a excepção de extemporaneidade, declarou a nulidade do acto recorrido por enfermar de ininteligibilidade.
(…)
II.2.3. Em suma:

- Constitui causa de nulidade de acto administrativo, de harmonia com o enunciado na al. c) do nº 2 do art. 133º do CPA, a sua ininteligibilidade, a qual se verifica quando se não consegue descortinar o que é através dele foi decidido;
- É o caso de um acto que opera a declaração de utilidade pública urgente da expropriação de terrenos com vista à execução de certa obra pública, mas que, nem a listagem que serviu de base à identificação dos bens, nem a planta publicada e relativa ao destino dos bens expropriados, permitem uma leitura com legibilidade bastante para esclarecer se os bens em causa foram sujeitos a expropriação.
III. DECISÃO
Nos termos e com os fundamentos expostos acordam em negar provimento ao presente recurso jurisdicional.

13 Na reunião de 19/3/2008 o Conselho de Administração da C.I. deliberou Requerer ao Réu a “declaração de utilidade pública com carácter de urgência, da expropriação das parcelas de terreno necessárias à construção do empreendimento EN 234 – Beneficiação entre Mira e Cantanhede (…) identificadas nos termos do disposto nos nºs 2 e 3 do artigo 1º do CE, no respectivo projecto de execução, contendo plantas parcelares e mapas de expropriações, também aprovados nesta data e que, constituindo anexo à presente deliberação, da mesma fazem parte integrante”.
Cf. Acta da dita reunião a fs. 134 e 135,m cujo teor aqui se dá por reproduzido.

14 Aos 22 dias do mês de Junho de 2009, a pedido da C.I., a Câmara Municipal de Cantanhede emitiu certidões atestando que as parcelas de terreno identificadas na fotografia topográfica em anexo:
- com o nº 14.10A, com a área de 241m2, destacada do prédio sito em ………., inscrito na matriz predial rústica da freguesia ………. sob o artigo 16310 e do prédio sito em ……., inscrito na matriz predial rústica da freguesia de …….. sob o artigo nº 2842, propriedade de Herdeiros de …. / A……. e …….. estava classificado como “zona Natural”, de acordo com a Planta de Zonamento e de condicionantes do Plano de Urbanização de Cantanhede, não apresentando capacidade construtiva;
- com o nº 14.11A e com a área de 1 200 m2, destacada do prédio sito em ……, inscrito na matriz predial rústica da freguesia …….. sob o artigo 16310 propriedade de Herdeiros de …….. / A……. e …….. estava classificada como “espaço agrícola com servidão administrativa de RAN, de acordo com as plantas de ordenamento e condicionantes do PDM de Cantanhede, e tinha a capacidade construtiva conferida pelo artigo 9º do Regulamento do PDM, após consulta obrigatória da Comissão Regional da Reserva Agrícola do Centro.
- com o nº 14.14 e com a área de 670m2, destacada do prédio sito em …….., inscrito na matriz predial rústica da freguesia ………. sob o artigo 16310 e do prédio sito em …….., inscrito na matriz predial da freguesia ……….. sob o artigo 2842, propriedade de Herdeiros de …… / A…… e ……. estava classificada como “Zona Natural”, de acordo com a Planta de Zonamento e de condicionantes do Plano de Urbanização de Cantanhede, não apresentando capacidade construtiva.
Cf. fs. 81 a 100 do P.A.

15 Em 5/5/2010 a C.I. expediu à Entidade Regional do Centro da Reserva Agrícola Nacional o ofício cujo teor a fs. 77 e 78 do PA aqui se dá como reproduzido transcrevendo os seguintes excertos:
Assunto: EN 234 - Beneficiação entre Mira e Cantanhede.
Pedido de Utilização Não Agrícola de Solos RAN - Regularização de limites de parcelas expropriadas.
O projecto em epígrafe implanta-se nos concelhos de Mira e Cantanhede. Este projecto decorreu entre os anos de 1996 e 1998, tendo na altura sido objecto de Declaração de Utilidade Pública, publicada em Diário da República, nº 125 de 30/05/1995.
Atendendo ao enquadramento legal à época, não foi necessário efectuar o pedido de desafectação das áreas pertencentes à Reserva Agrícola Nacional.
Das parcelas expropriadas e ocupadas pela beneficiação da estrada, encontra-se a parcela identificada como 14.11A na planta parcelar enviada em anexo. À data da expropriação esta parcela, juntamente com as outras duas representadas na planta parcelar em anexo, eram uma parcela única. Essa parcela foi dividida pelos herdeiros em três, originando novos artigos matriciais.
Para que a EP, SA consiga resolver a contenda com os actuais proprietários, necessita da publicação de nova DUP com os limites correctos de cada parcela.
Como a parcela 14.11A está integrada em áreas pertencentes à RAN, necessitamos à luz do quadro legislativo actual, dar cumprimento ao Dec. Lei nº 73/2009, de 31 de Março, solicitando autorização de utilização não agrícola desses terrenos incluídos na Reserva Agrícola Nacional. A área da parcela é de 1200 m2 encontrando-se efectivamente ocupada desde 1998, ano de término da empreitada de beneficiação da EN 234 entre Mira e Cantanhede. (…)

16 No dia 2 de Junho a Entidade da REN - Centro “deliberou por unanimidade emitir parecer favorável ao pedido supra nos termos da alínea l) do nº 1 do artigo 22º do DL nº 73/2009 de 31 de Março”.
Cf. acta das dita reunião a fs. 5 do doc. 3 junto com a P.I., cujo tero aqui se dá por reproduzido.

17 Esta deliberação foi comunicada à C.I. por ofício de 21/8/2010, cujo teor a fs. 4 do doc.
da PI aqui se dá como reproduzido.

18 Entretanto, por ofício de 25 de Maio de 2010 a C.I. remeteu a Sua Exª o Secretário de Estado Adjunto das obras públicas o pedido de emissão de DUC das sobreditas parcelas de terreno e de declaração do carácter urgente da respectiva expropriação, pedido cujo teor a fs. 2 e 3 do DOC. nº 3 da PI aqui se dá por reproduzido.

19 Em sete de Junho de 2010 foi emitido por Sua Excelência o Secretário de Estrado Adjunto das Obras Públicas e Comunicações o despacho nº 9974/2010, o qual veio a ser publicado no DR 2ª série de 14 seguinte e tinha o seguinte teor:
Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 14.º e do n.º 2 do artigo 15.º do Código das Expropriações, aprovado pela Lei 168/99, de 18 de Setembro, atenta a resolução do Conselho de Administração da EP - Estradas de Portugal, S. A., de 19 de Março de 2008, que aprovou as plantas parcelares e os mapas de expropriações das parcelas de terreno necessárias à execução da obra da EN 234 - beneficiação entre Mira e Cantanhede, tendo agora o seu início previsto no prazo de seis meses, declaro, no uso da competência que me foi delegada pelo despacho do Ministro das Obras Públicas, Transportes e Comunicações n.º 3314/2010, de 11 de Fevereiro, publicado no Diário da República, 2.ª série, n.º 37, de 23 de Fevereiro de 2010, ao abrigo do artigo 161.º do Estatuto das Estradas Nacionais, aprovado pela Lei 2037, de 19 de Agosto de 1949, atendendo ao interesse público subjacente à célere e eficaz execução da obra projectada, a utilidade pública com carácter de urgência, da expropriação dos bens imóveis e direitos a eles inerentes necessários à execução da obra da EN 234 - beneficiação entre Mira e Cantanhede, identificados no mapa de expropriações e na planta parcelar em anexo, com os elementos constantes da descrição predial e da inscrição matricial e dos direitos e ónus que sobre eles incidem, bem como os nomes dos respectivos titulares.
Os encargos com as expropriações em causa serão suportados pela EP - Estradas de Portugal, S. A. 7 de Junho de 2010. - O Secretário de Estado Adjunto, das Obras Públicas e das Comunicações, ………”.

Dá-se por integralmente reproduzida a tabela que consta do ponto 19 da matéria de facto.


2. De direito:


2.1. Cumpre apreciar a questão suscitada pelo ora recorrente – delimitado que está o objecto do respectivo recurso pelas conclusões das correspondentes alegações –, relacionada com o alegado erro de julgamento em que incorre o acórdão recorrido “ao julgar ser ainda possível a execução do acto de declaração de utilidade pública quando a obra, a que essa declaração de utilidade pública tendia, já está executada e em utilização, devendo antes, como foi decidido em primeira instância, julgar-se que a renovação da declaração de utilidade pública não é possível, mas sim impossível”.
Vejamos se lhe assiste razão.

2.2. Para a resolução do litígio que agora cumpre apreciar e decidir torna-se necessário conjugar os artigos 128.º do CPA (actualmente, na versão do DL n.º 4/2015, de 07.01, o artigo 156.º) e o artigo 173.º do CPTA (dispositivo que não sofreu significativas alterações nos seus n.os 1 e 2 para o que agora nos interessa).

Decorre do disposto no n.º 1 do artigo 173.º do CPTA (relativo ao dever de executar sentenças de anulação de actos administrativos), o dever imposto à Administração de praticar os actos e operações necessários para o cumprimento da decisão anulatória com vista à reintegração efectiva da ordem jurídica violada pelo acto anulado (in casu, declarado nulo). Esta reintegração, ainda de acordo com o disposto neste n.º 1, pode materializar-se de várias maneiras: a) a reconstituição da situação que existiria se o acto ilegal, anulado ou declarado nulo, não tivesse sido praticado; b) o cumprimento de deveres que a Administração não cumpriu durante a vigência do acto impugnava porque a isso este acto não obrigava; c) na medida em que seja possível, a renovação do acto ilegal no respeito pelos limites do caso julgado, o que implica desde logo que o acto renovador seja praticado sem os vícios de que padecia o acto invalidado.

Como se pode constatar, não está posta de parte a possibilidade de a Administração praticar um novo acto, sendo certo, no entanto, que nem sempre existe essa possibilidade e, quando exista, ela está sujeita a limites.
Concretizando, entendia-se e ainda hoje se entende que a possibilidade de a Administração reexercer o seu poder, praticando um novo acto com conteúdo idêntico ao anterior mas sem vícios, está dependente do vício que ditou a invalidade do acto impugnado. Mais concretamente ainda, apenas quando se trate de vício de forma ou de procedimento, vícios externos ao acto, é admissível o reexercício do poder administrativo. Conforme se diz no acórdão deste STA de 05.02.04, Proc. n.º 30655A (que, para o efeito, cita o acórdão do STA de 02.10.01, Proc. n.º 34044-A, e, ainda, o acórdão do Pleno do STA de 08.05.03, Proc. n.º 40821-A), o “respeito pelo caso julgado não impede a substituição do acto anulado por outro idêntico desde que a substituição se faça sem repetição dos vícios determinantes da anulação (…). Aliás, o limite objectivo do caso julgado das decisões anulatórias de actos administrativos, «seja no que respeita ao efeito preclusivo, seja no que respeita ao efeito conformador do futuro exercício do poder administrativo, determina-se pelo vício que fundamenta a decisão»” [ver, ainda, no mesmo sentido, e entre outros, os acórdãos do STA de 18.11.09, Proc. n.º 581/09, e de 23.10.12, Proc. n.º 262/12].
No caso dos autos, o acto declarativo da utilidade pública datado de 1995 (a DUP de 1995) foi declarado nulo em virtude da ininteligibilidade do seu conteúdo, justamente um vício formal. Significa isto que, em abstracto, a Administração não estava impedida de praticar um novo acto com conteúdo idêntico mas, desta vez, sem vícios. E foi isso que ela fez com a edição da DUP de 2010.

O recorrente insurge-se contra esta actuação da Administração considerando que a mesma deveria ter invocado uma causa de inexecução específica da sentença, haja em vista que a renovação da DUP não é a forma correcta de executar a decisão anulatória em face de uma situação de “irreversibilidade fáctica”, como a que ocorre nos autos, que “faz com que o objecto do acto seja impossível, porque o primeiro esgotou os seus efeitos, faz com que seja profundamente lesivo do interesse público a restituição, que, como o Tribunal de primeira instância afirmou, só poderia ter uma resposta... a verificação de que o novo acto de declaração de utilidade pública só pode ter objecto impossível, com todas as consequências que acertadamente aponta”.
Por conseguinte, partindo do pressuposto de que, face à efectiva realização da obra pública em questão, estava perante a existência de uma causa legítima de inexecução, o recorrente entende que a Administração deveria ter enveredado pela solução da reposição da situação que existiria se não fosse a prática do acto inválido – e não, portanto, como ocorreu, pela prática de acto renovador do acto impugnado.
Quanto à questão da renovação do acto, como se viu acima, a Administração não estava impedida de o fazer. Já a questão da alteração da situação fáctica e da sua irreversibilidade merece alguma atenção. Com efeito, parece à partida estranho que em 2010 se emita uma nova DUP, com carácter de urgência, com vista à realização de uma obra que já está feita. Não obstante, este problema é mais aparente do que real. Vejamos o que foi dito no Acórdão do STA de 01.06.06, Proc. n.º 30655A, sobre a questão da eficácia temporal dos actos renovadores:

Ora, não havendo hoje em dia dúvidas consistentes de que os actos anulados por vício de forma por falta de fundamentação são renováveis, temos que o acto que reinstale a substância dispositiva do anterior com a fundamentação que a este faltava se inscreve no âmbito da excepção legal, e, logo, não terá eficácia retroactiva (neste sentido, Ac. do STA, de 27/05/98, Rec. nº 40885).
Desta maneira, e porque se aceita pacífica esta doutrina, fica presumido que a situação do momento (a chamada situação actual hipotética) seria a mesma que existiria com o acto ilegal se não tivesse sido anulado. É essa a razão subjacente à irrectroactividade prescrita na norma. Quer dizer, porque num juízo forte de probabilidade se crê que o acto ilegal se repita (se renove) sem os vícios que conduziram à sua anulação, o legislador concede que se salvem os efeitos produzidos à sua sombra até que surja o novo acto (acto renovador)”.

Mais ainda, diz-se no aresto em apreço:

Significa isto que no caso de acto renovável a projecção dos efeitos destrutivos ou reconstrutivos da sentença anulatória não é resolvida «ao nível dos actos da sua execução, mas pelo próprio acto renovador (parecendo subentendido que se trata aqui de um acto com o mesmo sentido ou efeito do acto anterior)» (M. Esteves de Oliveira, Pedro Costa Gonçalves e J. Pacheco de Amorim, in Código de Procedimento Administrativo, 2ª ed., págs. 621 e 622).
Ou seja, tratando-se de actos renováveis, entre os quais avultam os anulados por vício formal de falta de fundamentação, a execução da sentença cumpre-se com a prolação de novo acto, sem os vícios que caracterizavam o anterior. E só em relação a ele se poderá pôr o problema da retroactividade ou não (autores e ob. cit., pág. 622)”. Até lá, haverá que esperar pelo novo acto decisor” [novo acto decisor que, como se viu, não possui eficácia retroactiva].

Com este entendimento, que subscrevemos na parte transcrita, caem por terra as objecções do ora recorrente. Se o acto declarado nulo foi uma DUP, nada obstará em princípio a uma nova DUP, desde que ela se mostre necessária à realização de um interesse público e desde que não incorra nos mesmos (ou em outros) vícios da primeira DUP, nova DUP que não produzirá efeitos retroactivos. Este é também o entendimento presente no Acórdão do STA de 14.07.08, Proc. n.º 47693A, aresto convocado pelo recorrente para sustentar a sua posição, mas que por si foi mal interpretado. Efetivamente, no caso relatado nesse aresto estava em causa um vício interno do acto, ao invés do que sucede no caso dos presentes autos, em que se verifica um vício externo. Do mencionado acórdão retirámos o excerto que se segue:

E porque no caso em apreço o vício que inquinou o acto anulado foi de violação de legalidade interna (concretamente, o vício de violação de lei por erro sobre os pressupostos de facto) mais patente se torna que a presente execução deverá ter eficácia retroactiva, ao contrário do que poderia eventualmente suceder se ele se incluísse na espécie de actos renováveis - os anulados por vícios de ilegalidade externa, como, por exemplo, o de forma por falta de fundamentação (cfr., a propósito, artº 128º, nº 1, al. b), do CPA). Quer isto dizer que, a projecção dos efeitos destrutivos e constitutivos da sentença ao momento da prática do acto anulado obriga a que o novo acto observe os pressupostos de facto e de direito existentes à data do anterior (acto anulado)”.

Em face de todo o exposto, pode concluir-se que não merece censura a actuação da Administração que poderia ter optado, e efectivamente optou, pela renovação do acto no estricto respeito pelo caso julgado, não repetindo os vícios que macularam o acto impugnado.

2.3. No acórdão prolatado pela formação de apreciação preliminar mencionada no n.º 1 do artigo 150.º do CPTA que admitiu o presente recurso colocou-se a questão de saber se o acto que contém a DUP de 2010 ainda pode ser considerado um acto de execução de sentença anulatória, uma vez que entre a decisão judicial que anulou a DUP de 1995 e o alegado acto de execução da mesma intercorreu um período de tempo considerável. Esta é, contudo, uma questão que não vem colocada nas conclusões do recorrente e, nessa medida, está fora do âmbito do recurso, não havendo que sobre ela decidir, sob pena de se incorrer em excesso de pronúncia.


III – DECISÃO

Nos termos e com os fundamentos expostos, acordam os Juízes da Secção de Contencioso Administrativo em negar provimento à presente revista e, em consequência, em manter o acórdão recorrido.



Custas pelo recorrente.

Lisboa, 21 de Novembro de 2019. – Maria Benedita Malaquias Pires Urbano (relatora) – Jorge Artur Madeira dos Santos – Teresa Maria Sena Ferreira de Sousa.