Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:058/12
Data do Acordão:07/10/2013
Tribunal:1 SECÇÃO
Relator:COSTA REIS
Sumário:
Nº Convencional:JSTA000P16093
Nº do Documento:SA120130710058
Data de Entrada:01/23/2012
Recorrente:A...........................
Recorrido 1:CONSELHO SUPERIOR DO MINISTÉRIO PÚBLICO
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: ACORDAM NA SECÇÃO DE CONTENCIOSO ADMINISTRATIVO DO STA:

1. A…………………. vem, no recurso interposto para o Pleno, arguir a nulidade do Acórdão de fls. 644/659 com fundamento na contradição entre os fundamentos de facto e a decisão final e isto porque se aquele tinha considerado “provado que «para manter o sábado como dia Sagrado, os adventistas devem abster-se de todo o trabalho secular» não podia depois ter afirmado, paradoxalmente, que «não vem alegado que a Autora tenha de reservar todas as horas do dia de sábado ao cumprimento dos seus deveres religiosos» e ter decidido que «o acto impugnado não impede a Autora de cumprir os seus deveres religiosos nos dias de turno a realizar aos sábados, visto o trabalho exigido nesse dias preencher menos de um terço das suas 24 horas.»”.
Mas, como se verá, não tem razão.

2. É sabido que a sentença deve ser uma peça processual clara, lógica e coerente visto que, sendo a sua finalidade a prolação de uma decisão que defina o direito numa relação conflituosa e que, consequentemente, estabeleça a paz jurídica nessa relação esse desiderato só poderá ser alcançado se a mesma tiver aquelas qualidades, visto só assim se conseguir que as partes se convençam da sua bondade e se conformem com o decidido. Por essa razão a mesma tem de assentar num raciocínio estruturado, lógico e coerente onde a factualidade e o discurso jurídico que dela decorre sejam concordantes com a decisão. Por ser assim é que a lei fulmina com a nulidade a sentença cujos fundamentos estejam em oposição com a conclusão (art. 668.º/1/c) do CPC).
Para que tal aconteça é necessário que a fundamentação, de facto ou de direito, aponte num sentido e a decisão expresse um resultado oposto ao que daí decorre pelo que não basta que a decisão fira a lógica dos seus fundamentos, é necessário que os contradiga, que os afronte. Como também é necessário que a decisão esteja em oposição com a globalidade dos fundamentos em que se sustenta pois que, se assim não acontecer, isto é, se a decisão encontrar sustentação num dos fundamentos invocados poderá haver erro de julgamento mas não haverá oposição entre fundamentos e decisão e, por conseguinte, não haverá nulidade de sentença. – Vd. J.A. Reis, CPC Anotado, vol. V, pg. 141.
Vejamos se, no caso, essa contradição existe.

3. A Autora alegou que o indeferimento da sua pretensão – a dispensa de trabalhar nos dias de sábado - era ilegal porque se traduzia na violação dos seus direitos de escolher a sua religião e de livremente a professar, querendo com isso significar que nenhuma limitação lhe poderia ser colocada no exercício desses direitos, tese que foi liminarmente rejeitada com o argumento de que se era verdade que as normas invocadas não admitiam que se pudesse ser prejudicado no exercício dos seus direitos por motivos religiosos também o era que as mesmas não consentiam que alguém pudesse ser isento do cumprimento dos seus deveres jurídicos ou dos seus deveres cívicos pelos mesmos motivos.
E acrescentou-se que, independentemente de ter sido fixado na matéria de facto que “Para manter o Sábado como dia Sagrado, os adventistas devem abster-se de todo o trabalho secular”, certo era que isso não impedia “a Autora de cumprir os seus deveres religiosos nos dias de turno a realizar aos sábados visto o trabalho exigido nesses dias preencher menos de um terço das suas 24 horas, o que quer dizer que ela poderá praticar as suas obrigações religiosas durante uma significativa parte desses dias. É certo que a realização do turno poderá condicionar o momento em que essa prática religiosa tem lugar mas essa limitação (a existir) não permite que se conclua que a mesma impossibilita o cumprimento dos seus deveres religiosos ou o restrinja de modo intolerável. Daí que, se não houvesse outra, esta razão bastava para se poder concluir que o indeferimento impugnado não violava o direito de culto da Autora e que, por ser assim, improcedia a alegação da sua ilegalidade com fundamento numa interpretação inconstitucional do que se dispõe no art.º 14.º/1/a) da LLR.”
Mas a verdade é que, para além desta, outras razões conduziam à mesma conclusão, designadamente a de que o “direito de culto só podia ser motivo de incumprimento dos deveres jurídicos ou dos deveres cívicos a que cada um está obrigado quando seja de todo impossível harmonizar o exercício desse direito com o cumprimento daqueles deveres (os deveres decorrentes do exercício da sua profissão) e, consequentemente, quando seja absolutamente necessário sacrificar esse cumprimento com vista ao exercício do direito constitucionalmente prevalente. Ora, in casu, está por demonstrar que a conjugação desses direitos e deveres não possa ser feita sem violação de nenhum deles e isto porque não vem alegado que a Autora tenha de reservar todas as horas dos dias de sábado ao cumprimento dos seus deveres religiosos.”
“Ademais as extensas considerações que a Autora faz a propósito do direito à liberdade religiosa, na sua vertente de direito ao culto são, apesar de doutas, demasiado genéricas e imprecisas para que delas se possa extrair a conclusão que ela gostaria. Com efeito, tais considerações só poderiam ser atendidas se delas resultasse demonstrada uma evidente e insuperável impossibilidade de conjugação entre o exercício do direito de culto e a obrigação da Autora assegurar os turnos que lhe foram designados, o que a obrigava a indicar com rigor de que modo era, efectivamente, afectada pela realização desses turnos indicando, designadamente, quais os serviços religiosos que não cumpria em razão do turno, qual gravidade dessas faltas e se o cumprimento desses serviços não poderia ser substituído por outros serviços a praticar em diferentes dias. E sem essa indicação não se pode concluir que o direito de culto da Autora ficasse seriamente limitado.”

Deste modo, o que justificou a decisão que a Recorrente quer ver revogada foi a certeza de que, independentemente dos mandamentos da sua religião – designadamente daquele que a impede de todo o trabalho secular nos dias de sábado (al.ª m) do probatório) – eles não lhe atribuem direitos absolutos que prevaleçam sobre todos os outros e que, por isso, nada impedia que aquela prescrição em certas circunstâncias pudesse ter de ceder perante outros direitos igualmente relevantes. Como era o caso dos direitos de que a Entidade Requerida era titular ou das obrigações que sobre ela impendiam.
Mas também foi a certeza de que não tinha sido alegado e, muito menos, provado que aquele mandamento significava que todo o dia de sábado tinha de ser exclusivamente consagrado ao cumprimento dos seus deveres religiosos e que, por isso, a Autora estava impedida de todo e qualquer trabalho secular, qualquer que fosse a sua natureza.
Ou seja, a Recorrente só teria razão se o facto constante da al.ª m) do probatório constituísse o fundamento da decisão impugnada e se ele constituísse o seu único fundamento.
Ora, como se acaba de ver, nem uma outra destas conclusões se pode retirar pelo que é flagrante a falta de fundamento da sua pretensão.

3. Mas uma outra razão concorre para a improcedência da pretensão da Recorrente.
Com efeito, ao contrário do que ela parece supor, os factos inscritos no probatório necessitam de ser interpretados para poderem servir de fundamento à decisão e, por isso, a sua valia poderá ser diminuta, ou mesmo inexistente, se não forem susceptíveis de integração ou não forem determinantes no discurso jurídico que conduz à decisão.
E, por ser assim, é que se elaborou sobre o significado do facto constante do probatório segundo o qual “Para manter o Sábado como dia Sagrado, os adventistas devem abster-se de todo o trabalho secular.”
Seria que este mandamento impedia os fiéis daquela Igreja de todo e qualquer trabalho secular? Seria que nos dias de sábado aqueles nada mais poderiam fazer do que rezar ou dedicar-se aos seus deveres religiosos? Ou será que, independentemente daquela prescrição, os fiéis não se podiam furtar aos deveres impostos ao comum dos cidadãos ou a uma certa categoria destes?
E o Acórdão fazendo essa interpretação concluiu que aquele mandamento não impedia de forma absoluta todo o trabalho secular nem que ele significava que aqueles fiéis tivessem de reservar todas as horas daquele dia ao cumprimento dos seus deveres religiosos. E fê-lo porque considerou que outra interpretação para além de não ter sustentação na alegação da Autora comportava uma visão do mundo e da observância religiosa de todo incompreensível para os valores que regem a nossa sociedade. O que quer dizer que aquele facto não podia significar que a Autora não pudesse dedicar-se aos seus trabalhos domésticos, a cuidar dos seus filhos, a fazer as compras necessárias à organização do seu lar, a enriquecer os seus conhecimentos jurídicos, etc.
E sendo assim não era lícito retirar do mesmo a conclusão que a Autora ora retira, isto é, de que ele significava que nada mais podia fazer do que dedicar-se ao culto religioso e que, por isso, havia contradição entre os fundamentos de facto e a decisão.

Nesta conformidade, ao decidir-se do modo como se decidiu não se cometeu a ilegalidade que vem imputada ao Acórdão recorrido.
Termos em que os Juízes que compõem este Tribunal acordam em considerar que não procede a alegada nulidade do Acórdão sob censura.

Lisboa, 10 de Julho de 2013. – Costa Reis (relator) – Alberto Augusto Oliveira – Fernanda Maçãs.