Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:01646/13.2BELRA
Data do Acordão:11/21/2019
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:JOAQUIM CONDESSO
Descritores:IRS
MAIS VALIAS
INSOLVÊNCIA
FISCALIZAÇÃO CONCRETA DA CONSTITUCIONALIDADE
PRINCÍPIO DA CAPACIDADE CONTRIBUTIVA
PRINCÍPIO DA LEGALIDADE TRIBUTÁRIA
Sumário:I - Os bens apreendidos e vendidos em processo de insolvência continuam a ser propriedade do insolvente até à venda.
II - A diferença entre o valor de aquisição e de venda dos bens imóveis, ainda que esta se faça em processo de insolvência e o respectivo produto fique afecto à satisfação dos credores da insolvência, não deixa de ser um rendimento obtido pelo insolvente, que está obrigado a declará-lo, enquanto sujeito passivo de imposto.
III - Em sede de impugnação judicial da liquidação de um imposto apenas pode conhecer-se da legalidade desse acto e já não da responsabilidade pelo pagamento da dívida por ele originada, matéria que apenas poderá ser discutida em sede de oposição à execução fiscal.
IV - O que pode e deve ser objecto de fiscalização concreta da constitucionalidade, por parte dos Tribunais, são normas e não quaisquer decisões, sejam elas de natureza judicial ou administrativa, nem tão pouco eventuais interpretações que de tais normas possam ser efectuadas por aquelas decisões (cfr. artºs.204 e 280, nº.1, da C.R.Portuguesa).
V - O princípio da capacidade contributiva exprime e concretiza o princípio da igualdade fiscal ou tributária. Isto porque se o princípio da igualdade tributária pressupõe o tratamento igual de situações iguais e o tratamento desigual de situações desiguais, a capacidade contributiva é o “tertium genus” - leia-se, o critério - que há-de servir de base à comparação. Neste sentido, o princípio da capacidade contributiva opera tanto como condição, ou pressuposto, quanto como critério ou parâmetro da tributação.
VI - É o artº.103, da C.R.P., que consagra o princípio da legalidade tributária (principalmente os seus nºs.2 e 3), como um dos elementos estruturantes do Estado de direito constitucional. Especificamente o artº.103, nº.3, da C.R.P., reconhece, além do mais, o direito de não pagamento de impostos cuja liquidação e cobrança se não façam nas formas prescritas na lei, assim consagrando uma espécie de direito de resistência à imposição de exacções fiscais inconstitucionais ou ilegais.
(sumário da exclusiva responsabilidade do relator)
Nº Convencional:JSTA000P25205
Nº do Documento:SA22019112101646/13
Data de Entrada:02/26/2019
Recorrente:A...... E OUTRO
Recorrido 1:AT-AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral:
ACÓRDÃO
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RELATÓRIO
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A……….. E B………….., com os demais sinais dos autos, deduziram recurso dirigido a este Tribunal tendo por objecto sentença proferida pelo Mº. Juiz do T.A.F. de Leiria, exarada a fls.72 a 77-verso do processo, a qual julgou improcedente a presente impugnação pelos recorrentes intentada e tendo por objecto mediato o acto de liquidação de I.R.S., referente ao ano de 2010 e no montante total de € 20.792,17.
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Os recorrentes terminam as alegações do recurso (cfr.fls.90 a 95-verso do processo físico) formulando as seguintes Conclusões:
1- Os recorrentes deduziram a presente impugnação judicial contra a liquidação de IRS e Juros Compensatórios do ano de 2010, no valor de € 20.792,17, impugnação que foi julgada improcedente;
2- Os recorrentes não concordam com o entendimento vertido na douta sentença, a qual entendeu que: “Para a qualificação como mais-valia sujeita a tributação releva unicamente a diferença positiva entre o valor pelo qual um imóvel foi alienado e o valor da sua aquisição, corrigido e acrescido nos termos legais, sendo irrelevante o destino dado ao produto da venda, uma vez que o ganho tributado é o que decorre da diferença entre os valores de aquisição e de realização, ou seja, entre o valor por que o bem ingressou no património do sujeito passivo e o valor por que dele saiu (...), concluindo pela legalidade da liquidação;
3- Porquanto, os impugnantes/recorrentes foram declarados insolventes, nos processos 203/04.YLSB e 203/04.YLSB-V em 18/05/2005 e em 05/06/2007, processos que correm termos no Tribunal Judicial da Comarca de Leiria;
4- No âmbito do processo de insolvência foi vendido o prédio urbano inscrito na matriz sob o artigo 6165 da freguesia ……., Concelho de Leiria, descrito na Conservatória do Registo Predial de Leiria sob o número 3980, o que determinou a liquidação de imposto em nome dos impugnantes no montante de € 20.792,17;
5-A finalidade primordial do processo de insolvência é a satisfação dos credores do insolvente (artigo 46º n.º 1 do CIRE), declarada a insolvência, são apreendidos todos os bens que fazem parte do património do insolvente (artigo 36º, n.º 1 al. g) do CIRE), ficando aquele privado dos poderes de administração e de disposição desses mesmos bens;
6- Sendo as vendas realizadas no decurso do processo de insolvência, pelo Administrador de Insolvência sem que os insolventes tenham qualquer intervenção no processo negocial, o imposto resultante da mais-valia apurada é da responsabilidade da massa insolvente, ou seja, o imposto deve ser liquidado à massa insolvente e não aos insolventes;
7- Os bens dos insolventes passaram a integrar o ativo da massa insolvência, destinando-se os mesmos à satisfação dos credores, findos estes pagamentos, e se nada houver para distribuir aos insolventes, não se pode dizer, com toda a certeza, que houve um incremento patrimonial na esfera dos insolventes suscetível de gerar mais-valia;
8-Se nada há para distribuir, não há qualquer incremento patrimonial, então como pode a AT tributar mais-valias, na esfera pessoal dos insolventes? A AT está a tributação um rendimento irreal, o que contraria os preceitos constitucionais, na medida em que apenas podem ser tributados rendimentos reais e não rendimentos ficcionados (artigo 103º, n.º 3 e 104º, n.º 4 da CRP);
9- Neste sentido já se pronunciou o STA, no aresto proferido no processo 01079/03, datado de 29/10/2003, disponível para consulta em www.dgsi.pt, acórdão que se refere a uma pessoa coletiva, com efeito, não deixa o mesmo de se aplicar às pessoas singulares, transcrevendo-se o ponto 2 do seu sumário: “II - Com efeito, com a declaração de falência, não há mais activo imobilizado, qua tale, sendo, antes, todos os bens apreendidos, passando a constituir um novo património, a chamada “...”: um acervo de bens e direitos retirados da disponibilidade da sociedade e que serve exclusivamente, depois de liquidado, para pagar primeiramente, as custas processuais, e as despesas de administração e, depois, os créditos reconhecidos”;
10-A dívida de imposto, foi gerada no decurso da liquidação do património pertencente à massa insolvente, pelo que se trata de uma dívida da massa insolvente;
11- Sobre esta problemática já se pronunciou o Tribunal da Relação do Porto, no aresto proferido no processo com o n.º 610/12.3TBOAZ-E.P1, disponível para consulta em www.dgsi.pt, tendo firmado o seguinte entendimento:

“A questão a decidir é a de saber se o IRS devido pelas mais-valias resultantes da venda, pelo AI, de imóveis integrados na massa insolvente por força da declaração de insolvência, deve ser considerado dívida da massa, e não do insolvente. (...) Foi a massa insolvente que efectivamente arrecadou o produto da Venda, a qual ocorreu sem qualquer participação do insolvente. Pelo que não deve ser o insolvente, mas sim a massa insolvente, a responder por eventuais mais-valias decorrentes dessa venda do imóvel, o insolvente não obteve, efectiva e directamente, quaisquer ganhos, de que possa retirar uma parte para fazer face ao pagamento de imposto, pelo que, a entender-se diversamente, estaria a ser tributado em sede de imposto sobre os rendimentos por um rendimento que, efectivamente, não obteve. Procede o recurso, impondo-se a revogação do despacho recorrido.
Em face do exposto, acordam os juízes desta Relação em revogar a decisão apelada, devendo substituir-se por outra que possibilite ao Administrador de Insolvência aguardar pela liquidação do imposto de mais-valias que vier a ser apurado, devendo tal imposto ser pago pela massa insolvente.”;
12-O mesmo Tribunal da Relação do Porto, no processo 8729/12.4TBVNG-G.P1, de 022/07/2015 já se tinha pronunciado sobre esta matéria, referindo que:
“Quando, no decurso da liquidação dos bens que integram a massa insolvente de uma pessoa singular, o administrador da insolvência procede à alienação de bens por valor superior àquele pelo qual tinham sido adquiridos pelo insolvente, o imposto devido pela mais-valia gerada por essa alienação [art. 10/1a) do CIRS] é uma dívida da massa insolvente [art. 51/1c) do CIRE]. (...). O art. 268 do CIRE já foi ponderado. Dele resulta, como já foi visto, que não existe nenhuma isenção de imposto, benefício fiscal, para o caso de alienação de bens imóveis integrantes da massa insolvente. E por isso, as mais-valias realizadas, no caso, entram na determinação da matéria colectável do devedor, isto é, do insolvente. Mas quem deve pagar o imposto daí decorrente não é a insolvente com o seu património remanescente, mas sim a massa de bens separada para o efeito, isto é, a massa insolvente.”;
13-A liquidação da mais-valia aos impugnantes (recorrentes) e não à massa insolvente coloca em causa, por um lado, o princípio da capacidade contributiva e da igualdade tributária, e por outro lado, o princípio da legalidade (artigo 103º, n.º3 da CRP), uma vez que a mais-valia não constituiu qualquer acréscimo patrimonial na esfera dos impugnantes, o acréscimo ocorreu na massa insolvente, que constitui um património autónomo, após a declaração da insolvência do insolvente;
14- Socorrendo-nos do artigo 11º, nº1 da LGT, dos princípios legais e constitucionais orientadores do direito tributário, entre os quais os incluídos no artigo 5º n.º1 da LGT, é possível ajuizar que os recorrentes estão a salvo da responsabilidade do imposto, por se tratar de uma dívida da massa insolvente, pelo que a liquidação de IRS e JC do ano de 2010, deverá ser anulada;
15- Termos em que deve o presente recurso ser julgado procedente, revogando-se, assim, a douta sentença recorrida, determinando a anulação da liquidação de IRS e JC do ano de 2010, no valor de € 20.792,17, fazendo-se assim a costumada Justiça.
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Não foram produzidas contra-alegações no âmbito da instância de recurso.
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O Digno Magistrado do M. P. junto deste Tribunal emitiu douto parecer no qual termina pugnando pelo não provimento do recurso (cfr.fls.104 e 105 do processo físico).
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Corridos os vistos legais (cfr.fls.108 e 113 do processo físico) vêm os autos à conferência para deliberação.
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FUNDAMENTAÇÃO
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DE FACTO
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A sentença recorrida julgou provada a seguinte matéria de facto (cfr.fls.73 a 74-verso do processo físico):
1-Por escritura de compra e venda celebrada em 05-08-2010, C…………., na qualidade de administrador da insolvência dos impugnantes, vendeu a D………… o prédio urbano, sito na Rua ………………, ……………, freguesia ………., concelho de Leiria, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º 3980, inscrito na matriz sob o artigo 6165 (cfr. escritura de compra e venda a fls. 24 a 31 dos autos, cujo teor se dá por integralmente reproduzido);
2-O prédio identificado no número antecedente foi alienado no âmbito dos processos de insolvência n.º 203/04.YLSB e n.º 203/04.YLSB-V, onde, por sentenças proferidas pelo Tribunal Judicial de Leiria em 18-03-2005 foi declarada a insolvência do impugnante A………. e em 05-06-2007 foi declarada a insolvência da impugnante B……… (cfr. facto que se extrai da escritura de compra e venda a fls. 24 a 31 dos autos, cujo teor se dá por integralmente reproduzido);
3-Em 28-07-2011 os impugnantes apresentaram declaração modelo 3 do IRS de substituição referente ao ano de 2010, tendo no quadro 5 do anexo G inscrito a venda do prédio urbano inscrito na freguesia ………. sob o artigo 6155 identificado em 1) (cfr. fls.16 a 22 dos autos, cujo teor se dá por integralmente reproduzido);
4-Na sequência da declaração identificada no número antecedente, em 19-09-2011 foi em nome dos impugnantes emitida a liquidação de IRS n.º 2011 5005037999, referente ao ano de 2010, com imposto a pagar no valor de € 20.792,17 (cfr.fls. 23 dos autos, cujo teor se dá por integralmente reproduzido);
5-Em 15-02-2012 os impugnantes apresentaram reclamação graciosa contra a liquidação identificada no número antecedente (cfr.fls. 2 a 23 do processo de reclamação graciosa apenso, cujo teor se dá por integralmente reproduzido);
6-Em 16-04-2012 foi elaborado pela Direcção de Finanças de Santarém projecto de decisão, a propor o indeferimento da reclamação graciosa, sobre o qual recaiu despacho concordante do Chefe de Divisão proferido em 18-04-2012, tendo sido determinada a notificação dos impugnantes para se pronunciarem sobre o mesmo (cfr.fls. 29 a 31 do processo de reclamação graciosa apenso, cujo teor se dá por integralmente reproduzido);
7-A informação e projecto de decisão identificados no número antecedente foram remetidos aos impugnantes em 24-04-2012 através do ofício n.º 810 (cfr.fls. 32 e 33 do processo de reclamação graciosa apenso, cujo teor se dá por integralmente reproduzido);
8-Em 18-05-2012 foi elaborada informação final a propor o indeferimento da reclamação graciosa, a qual foi confirmada por despacho do Chefe de Divisão da Direcção de Finanças de Santarém proferido em 23-05-2012 (cfr.fls. 34 a 36 do processo de reclamação graciosa apenso, cujo teor se dá por integralmente reproduzido);
9-A decisão de indeferimento da reclamação graciosa foi remetida aos impugnantes por carta registada com aviso de recepção, através do ofício n.º 1338, o qual foi entregue em 30-05-2012 (cfr.fls. 38 a 40 do processo de reclamação graciosa apenso, cujo teor se dá por integralmente reproduzido);
10-Em 13-06-2012 os impugnantes apresentaram recurso hierárquico contra a decisão de indeferimento da reclamação graciosa identificada em 8) (cfr.fls. 2 a 6 do processo de Recurso Hierárquico apenso, cujo teor se dá por integralmente reproduzido);
11-Em 13-09-2013 foi elaborada informação pela Direcção de Serviços do IRS a propor o indeferimento do recurso hierárquico, a qual mereceu despacho concordante proferido pela Directora de Serviços do IRS em 27-09-2013, indeferindo o recurso hierárquico identificado no número antecedente (cfr.fls. 9 a 15 dos autos e fls. 13 a 19 do processo de Recurso Hierárquico apenso, cujo teor se dá por integralmente reproduzido);
12-A decisão de indeferimento do recurso hierárquico foi remetida aos impugnantes por carta registada com aviso de recepção em 11-10-2013, através do ofício n.º 2747, o qual foi entregue em 14-10-2013 (cfr.fls. não numeradas do processo de recurso hierárquico apenso, cujo teor se dá por integralmente reproduzido);
13-A presente impugnação foi remetida a este Tribunal, via SITAF, em 27-12-2013 (cfr. fls. 1 dos autos).
14-O produto da venda do imóvel identificado em 1) foi distribuído pelos credores, não tendo sido entregue qualquer montante aos impugnantes (facto que se extrai do depoimento da testemunha).
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A sentença recorrida considerou como factualidade não provada a seguinte: “…Não existem factos não provados, em face das possíveis soluções de direito, com interesse para a decisão da causa…”.
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Por sua vez, a fundamentação da decisão da matéria de facto constante da sentença recorrida é a seguinte: “…Quantos aos factos provados, elencados nos números 1 a 13 do probatório, a convicção do tribunal baseou-se na análise crítica de toda a prova produzida nos autos, designadamente nas informações oficiais, documentos constantes dos autos e do processo administrativo apenso, não impugnados, conforme remissão feita a propósito de cada número do probatório.
Quanto ao facto provado elencado no número 14 a convicção do tribunal baseou-se no depoimento da testemunha, conforme infra se descreve.
Foi valorado o depoimento da testemunha …………… o qual revelou conhecimento directo dos factos fruto do desempenho de funções de Administrador da insolvência dos impugnantes. A testemunha afirmou que não realizou a venda do imóvel, a qual foi efectuada pelo anterior Administrador da Insolvência e que o produto da venda do imóvel foi distribuído pelos credores, não tendo sido entregue qualquer montante aos impugnantes. Mais afirmou que o processo de insolvência está a aguardar o encerramento, nomeadamente a exoneração do passivo…”.
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ENQUADRAMENTO JURÍDICO
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Em sede de aplicação do direito, a decisão recorrida julgou totalmente improcedente a presente impugnação, em consequência do que manteve o acto de liquidação de I.R.S. objecto mediato do processo (cfr.nº.4 do probatório).
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Antes de mais, se dirá que as conclusões das alegações do recurso definem, como é sabido, o respectivo objecto e consequente área de intervenção do Tribunal “ad quem”, ressalvando-se as questões que, sendo de conhecimento oficioso, encontrem nos autos os elementos necessários à sua integração (cfr.artº.639, do C.P.Civil, na redacção da Lei 41/2013, de 26/6; artº.282, do C.P.P.Tributário).
Os recorrentes dissentem do julgado alegando, em síntese, que sendo a venda do imóvel realizada no decurso do processo de insolvência, pelo Administrador de Insolvência, sem que os insolventes/recorrentes tenham qualquer intervenção no processo negocial, o imposto resultante da mais-valia apurada é da responsabilidade da massa insolvente, ou seja, o imposto deve ser liquidado à massa insolvente e não aos apelantes. Que a liquidação da mais-valia aos recorrentes, e não à massa insolvente, coloca em causa, por um lado, o princípio da capacidade contributiva e da igualdade tributária, e por outro lado, o princípio da legalidade (cfr.artº.103, nº.3, da C.R.P.), uma vez que a mais-valia não constituiu qualquer acréscimo patrimonial na esfera dos impugnantes. Que a sentença recorrida deve ser revogada, mais se determinando a anulação da liquidação de I.R.S. objecto do processo (cfr. conclusões 1 a 14 do recurso). Com base em tal alegação pretendendo concretizar um erro de julgamento de direito da decisão recorrida.
Examinemos se a decisão objecto do presente recurso comporta tal vício.
A mais-valia, enquanto categoria de rendimento designada por incrementos patrimoniais em sede de I.R.S., deve definir-se pela diferença entre o valor de realização e o valor de aquisição, especialmente quando o facto gerador do imposto se descreve como uma alienação onerosa, assim estando sujeita ao princípio da realização. Tal regra está em linha com o princípio da tributação do rendimento real em que assenta a tributação do rendimento nesta cédula de imposto (cfr.artºs.10, nº. 4, al.a), 44 e 46, do C.I.R.S., na redacção em vigor em 2010; José Guilherme Xavier Basto, IRS: Incidência Real e Determinação dos Rendimentos Líquidos, Coimbra Editora, 2007, pág.443 e seg.; Paula Rosado Pereira, Estudos Sobre IRS: Rendimentos de Capitais e Mais-Valias, Cadernos IDEFF, nº. 2, Almedina, Reimpressão, 2018, pág.103 e seg.; Rui Duarte Morais, Sobre o I.R.S., 2ª. Edição, Almedina, 2010, pág.134 e seg.)
"In casu", a A. Fiscal baseia a liquidação adicional objecto do presente processo na declaração de substituição apresentada pelos recorrentes e no pressuposto de que a venda que originou tal acto tributário, realizada na qualidade de proprietários do imóvel em causa, gerou mais-valias enquadráveis em sede de I.R.S. no artº.10, nº.1, al.a), do C.I.R.S., mais sendo tributáveis como rendimentos de categoria “G”. E recorde-se que da dita declaração de substituição apresentada pelos apelantes, anexo G, se retira que o imóvel foi adquirido em Dezembro de 1995, pelo valor de € 3.304,00, mais sendo o valor de realização, em Agosto de 2010, de € 137.700,00 (cfr.nºs.1, 3, 4 e 11 do probatório).
O artº.10, nº.1, do C.I.R.S., então em vigor, mostrava o carácter selectivo da tributação das mais-valias, norma que consagrava uma espécie de “numerus clausus” em matéria de incidência fiscal. Assim e desde logo, afasta-se da qualificação como mais-valias os ganhos que devam considerar-se como rendimentos resultantes de actividade profissional ou empresarial, os quais se consideram como rendimento de categoria B, enquadráveis no artº.3, do mesmo diploma. Pelo que, somente os ganhos inesperados ou imprevistos, não enquadráveis numa actividade profissional ou empresarial são passíveis de enquadramento nas diversas alíneas do examinado artº.10, nº.1, do C.I.R.S. É o caso da alienação onerosa de direitos reais sobre imóveis, situação prevista na primeira parte da norma constante do artº.10, nº.1, al.a), do mesmo diploma (cfr. José Guilherme Xavier Basto, ob.cit., pág. 394; Paula Rosado Pereira, ob.cit., pág.88 e seg.; Rui Duarte Morais, ob.cit., pág.136 e seg.).
Revertendo ao caso dos autos, importa, antes de mais, vincar que, apesar da declaração de insolvência, os recorrentes não deixaram de ser proprietários do prédio alienado e gerador das mais-valias que deram origem à liquidação de I.R.S. impugnada, situação que se verificou até à data da venda do mesmo imóvel (cfr.nºs.1 a 3 do probatório).
É que, quando uma pessoa, singular ou colectiva, é objecto de uma declaração de insolvência, os seus bens susceptíveis de penhora são apreendidos, de acordo com o artº.36, nº.1, al.g), do CIRE (Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, aprovado pelo dec.lei 53/2004, de 18/03), passando a integrar um património autónomo e de afectação, uma vez que se destina à satisfação dos interesses dos credores da insolvência, denominado massa insolvente. No entanto, a constituição do dito património autónomo não acarreta o aparecimento de uma nova subjectividade jurídica, distinta do devedor (insolvente) que lhe deu origem. O que significa que, com a declaração de insolvência, a massa insolvente não passa a ser um sujeito passivo de imposto distinto da pessoa insolvente, pois o sujeito passivo do imposto continua a ser apenas um: a pessoa insolvente. Ou seja, no processo de insolvência, tanto o devedor singular como o colectivo, mantêm a sua qualidade de sujeitos passivos da relação jurídica tributária. Por outras palavras, quando sobrevém a declaração de insolvência, apenas ocorre a transferência dos poderes de administração e disposição relativamente aos bens integrantes da massa insolvente, da pessoa insolvente para o administrador da insolvência, isto é, os bens não deixam de ser propriedade do insolvente, apenas se operando uma transferência daqueles poderes incidentes sobre os mesmos (cfr.artº. 81, nº.1, do CIRE; Bruno Santiago e Beatriz Capeloa Gil, A responsabilidade pelo imposto devido na liquidação dos bens que integram a massa insolvente, Cadernos de Justiça Tributária, Centro de Estudos Jurídicos do Minho, nº.13, Julho/Setembro de 2016, pág.3 a 15; Sara Luís da Silva Veiga Dias, O Crédito Tributário e as Obrigações Fiscais no Processo de Insolvência, Abril de 2012, pág.121, dissertação de mestrado, no repositorium da Universidade do Minho, disponível em www.tributarium.net; Ana Prata e Outros, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, Almedina, 2013, pág.716 e seg.).
No caso “sub judice”, o prédio alienado não deixou de ser propriedade dos impugnantes/recorrentes, mesmo após a declaração de insolvência, ou seja, não se verificou qualquer alteração da relação jurídica tributária, continuando os apelantes a ser os proprietários do prédio e sujeitos passivos do imposto até ao momento em que ocorreu a venda do mesmo, mais sendo irrelevante o destino dado ao produto da venda, uma vez que o ganho tributado é o que decorre da diferença entre os valores de aquisição e de realização, ou seja, entre o valor por que o bem ingressou no património do sujeito passivo e o valor por que dele saiu - valores estes já supra identificados e que não foram colocados em causa nos presentes autos.
Nesse sentido, vai, de resto, a jurisprudência actual e uniforme deste Tribunal (cfr.ac.S.T.A-2ª.Secção, 31/05/2017, rec.1410/16; ac.S.T.A-2ª.Secção, 11/10/2017, rec.504/17; ac.S.T.A-2ª.Secção, 30/05/2018, rec.144/17; ac.S.T.A-2ª.Secção, 24/04/2019, rec.260/15.2BEFUN).
Com estes pressupostos, deve confirmar-se a decisão do Tribunal “a quo”, no sentido de que a liquidação impugnada é legal (no articulado inicial do processo os recorrentes clamam pela ilegalidade da tributação do imóvel em causa em sede de mais-valias - cfr.artº.6 da p.i. junta de fls.2 a 7 dos autos), sendo relevante sublinhar que nos situamos no domínio da liquidação do imposto e não da sua exigibilidade ou responsabilidade pelo seu pagamento, a qual apenas poderá ser discutida em sede de oposição à execução fiscal. Ou seja, dito de outra forma, não se pode anular a liquidação por se considerar que os impugnantes/recorrentes não são potencialmente responsáveis pelo pagamento da dívida originada pelo mesmo acto tributário, pois que aí estaríamos no domínio da exigibilidade da dívida e não da legalidade da liquidação, objecto típico do processo de impugnação (cfr.artº.99, do C.P.P.T.). De resto, é neste domínio da responsabilidade pelo pagamento da dívida resultante de liquidação de mais-valias de que surge como sujeito passivo um insolvente, que se situam os arestos do Tribunal da Relação do Porto citados pelos recorrentes nas conclusões da apelação.
Sem prejuízo de tudo o acabado de exarar, também defendem os apelantes que a liquidação de I.R.S. objecto do processo, tendo como sujeito passivo os próprios, e não a massa insolvente, coloca em causa, por um lado, o princípio da capacidade contributiva e da igualdade tributária e, por outro, o princípio da legalidade (cfr.artº.103, nº.3, da C.R.P.), uma vez que a mais-valia não constituiu qualquer acréscimo patrimonial na sua esfera jurídica.
Encontramo-nos perante alegados vícios de inconstitucionalidade material e que buscam uma fiscalização concreta e com características oficiosas. Esta caracteriza-se por ser um controlo que compete a todos os Tribunais, mais tendo natureza difusa e incidental. No entanto, o que pode e deve ser objecto da fiscalização concreta da constitucionalidade, por parte dos Tribunais, são normas e não quaisquer decisões, sejam elas de natureza judicial ou administrativa, nem tão pouco eventuais interpretações que de tais normas possam ser efectuadas por aquelas decisões (cfr.artºs.204 e 280, nº.1, da C.R.Portuguesa; ac.S.T.A.-2ª.Secção, 25/11/2015, rec.103/15; ac.S.T.A.-2ª.Secção, 23/10/2019, rec. 179/19.8BEPFN; J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa anotada, 4ª. Edição, 2º. Volume, Coimbra Editora, 2010, págs. 518 e seg. e 940 e seg.; J. J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 7ª. Edição, 21ª. Reimpressão, Almedina, 2019, pág. 982 e seg.).
Apesar do acabado de expor, avancemos para o exame das alegadas inconstitucionalidades do acto tributário objecto do presente processo.
Começam os recorrentes por chamar à colação o princípio constitucional da capacidade contributiva e da igualdade tributária.
O dito princípio da capacidade contributiva (não obstante o silêncio da actual Constituição, é entendimento generalizado da doutrina que a “capacidade contributiva” continua a ser um critério básico da nossa “Constituição fiscal”, sendo que a ele se pode, ou deve, chegar a partir dos princípios estruturantes do sistema fiscal formulados nos artºs.103 e 104 do diploma fundamental) exprime e concretiza o princípio da igualdade fiscal ou tributária. Isto porque se o princípio da igualdade tributária pressupõe o tratamento igual de situações iguais e o tratamento desigual de situações desiguais, a capacidade contributiva é o “tertium genus” - leia-se, o critério - que há-de servir de base à comparação. Neste sentido, o princípio da capacidade contributiva opera tanto como condição, ou pressuposto, quanto como critério ou parâmetro da tributação. Opera como pressuposto ou condição visto que impede que a tributação atinja uma riqueza ou um rendimento que não existe; vale como critério ou parâmetro porque determina que a exacção do património dos contribuintes se faça de acordo com a sua “capacidade de gastar” (ability to spend). Ou seja, contribuintes com a mesma capacidade de gastar devem pagar os mesmos impostos (igualdade horizontal), e contribuintes com diferente capacidade de gastar devem pagar impostos diferentes (igualdade vertical). Outro dos corolários deste princípio é precisamente a tributação do rendimento líquido do contribuinte, de onde deflui uma exigência de dedução das despesas necessárias à angariação do próprio rendimento (cfr. acórdão do T. Constitucional 601/2004, de 12/10/2004, proc. 793/03; acórdão do T. Constitucional 197/2013, de 9/04/2013, proc. 602/12; J. L. Saldanha Sanches, Manual de Direito Fiscal, 3ª.edição, Coimbra Editora, 2007, pág.227 e seg.).
No caso dos autos, como se vincou acima, o acréscimo de rendimento tributado resulta da diferença entre o valor por que foi adquirido o imóvel e o valor por que foi alienado (tudo conforme declaração fiscal apresentada pelos impugnantes/recorrentes), assim constituindo uma vantagem patrimonial para efeitos da incidência do I.R.S. E tal mais-valia, embora não tenha entrado material e fisicamente na posse dos recorrentes, não deixou de entrar na sua (dos apelantes) esfera jurídica, a qual foi destinada à diminuição do respectivo passivo, pela sua adjudicação aos fins do processo executivo em que foi operada a alienação do imóvel. Aliás, conforme resulta do probatório, referido pelo administrador da insolvência, o produto da venda foi distribuído pelos credores (cfr.nº.14 do probatório). Não estamos, pois, perante qualquer rendimento ficcionado, mas perante uma vantagem patrimonial efectiva, directamente subsumível na previsão do identificado artº.10, nº.1, al.a), do C.I.R.S., o que arreda, igualmente, a possibilidade de procedência da argumentação de inconstitucionalidade da liquidação impugnada, devido a violação do dito princípio constitucional da capacidade contributiva e da igualdade tributária.
No sentido ora defendido no presente aresto pode citar-se anterior jurisprudência deste Tribunal (cfr.ac.S.T.A.-2ª.Secção, 16/12/2010, rec. 578/10; ac.S.T.A.-2ª.Secção, 21/09/2016, rec. 582/15).
Abordemos, por último, a alegada violação do princípio da legalidade por parte do acto tributário impugnado.
É o artº.103, da C.R.P., que consagra o princípio da legalidade tributária (principalmente os seus nºs. 2 e 3), como um dos elementos estruturantes do Estado de direito constitucional. Especificamente o artº.103, nº.3, da C.R.P., reconhece, além do mais, o direito de não pagamento de impostos cuja liquidação e cobrança se não façam nas formas prescritas na lei, assim consagrando uma espécie de direito de resistência à imposição de exacções fiscais inconstitucionais ou ilegais.
Quanto ao geral princípio da legalidade, a universalidade da doutrina assinala dois corolários ao mesmo: o princípio da preeminência de lei e o princípio da reserva de lei parlamentar (cfr.artº.8, da L.G.T.; J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa anotada, 4ª. Edição, 1º. Volume, Coimbra Editora, 2007, pág. 1090 e seg.; Ana Paula Dourado, O Princípio da Legalidade Fiscal, Tipicidade, Conceitos Jurídicos Indeterminados e Margem de Livre Apreciação, Almedina, 2007, pág. 103 e seg.).
Em sede de lei ordinária, o princípio da legalidade surge-nos, além do mais, como norteador de toda a actividade da A. Fiscal (cfr.artº.55, da L.G.T.).
“In casu”, não vislumbra este Tribunal como pode o acto tributário objecto do presente processo (o qual se fundamenta em norma de incidência correctamente aplicada pela A. Fiscal, conforme se conclui supra) ofender o examinado princípio, em qualquer das suas dimensões, igualmente nada concretizando a tal respeito os apelantes.
Atento o relatado, sem necessidade de mais amplas considerações, julga-se improcedente o presente recurso e mantém-se a decisão recorrida, ao que se provirá na parte dispositiva deste acórdão.
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DISPOSITIVO
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Face ao exposto, ACORDAM, EM CONFERÊNCIA, OS JUÍZES DA SECÇÃO DE CONTENCIOSO TRIBUTÁRIO deste SUPREMO TRIBUNAL ADMINISTRATIVO EM NEGAR PROVIMENTO AO RECURSO E CONFIRMAR A DECISÃO RECORRIDA, a qual, em consequência, se mantém na ordem jurídica.
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Condena-se os recorrentes em custas.
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Registe.
Notifique.
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Lisboa, 21 de Novembro de 2019. – Joaquim Manuel Charneca Condesso (relator) – Paulo Antunes – Ascensão Lopes.