Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0451/05
Data do Acordão:06/23/2005
Tribunal:1 SUBSECÇÃO DO CA
Relator:MADEIRA DOS SANTOS
Descritores:CONTRIBUIÇÕES PARA A SEGURANÇA SOCIAL.
PAGAMENTO VOLUNTÁRIO.
TRABALHADOR POR CONTA DE OUTREM.
ULTRAMAR.
PRINCÍPIO DA IGUALDADE.
DIREITO À SEGURANÇA SOCIAL.
Sumário:I – A recusa, fundada em falta de enquadramento legal, de um pagamento voluntário e retroactivo de contribuições podia ter ofendido uma norma que porventura previsse esse pagamento, mas nunca o preceito que meramente se ordena à determinação da respectiva taxa contributiva.
II – Com a caducidade do DL n.º 380/89, de 27/10, e o correlativo fim da suspensão da vigência do DL n.º 124/84, de 18/4, cessou a possibilidade de os trabalhadores que exerceram actividade no ex-Ultramar procederem ao pagamento de contribuições para a segurança social, com efeitos retroactivos.
III – Improcede a denúncia de que um despacho violou o princípio da igualdade se o denunciante nenhum juízo comparativo formulou e se tal acto traduziu o exercício de poderes estritamente vinculados. IV – A denegação de um modo por que a recorrente queria concretizar o seu direito, constitucionalmente assegurado, à segurança social não envolve uma recusa completa e universal desse mesmo direito na esfera jurídica da mesma interessada.
Nº Convencional:JSTA00062335
Nº do Documento:SA1200506230451
Data de Entrada:04/11/2005
Recorrente:A...
Recorrido 1:DIRECTOR DA UNIDADE DE ENQUADRAMENTO E VINCULAÇÃO E REGISTO DE REMUNERAÇÕES
Votação:UNANIMIDADE
Meio Processual:REC JURISDICIONAL.
Objecto:SENT TAF LISBOA.
Decisão:NEGA PROVIMENTO.
Área Temática 1:DIR SEG SOC.
Legislação Nacional:DL 199/99 DE 1999/06/08 ART6 ART39.
DL 380/89 DE 1989/10/27 ART5 ART24.
DL 124/84 DE 1984/04/18 ART1.
LPTA85 ART36.
CONST97 ART13 ART16.
Aditamento:
Texto Integral: Acordam na 1.ª Secção do Supremo Tribunal Administrativo:
A..., identificada nos autos, interpôs recurso jurisdicional da sentença do 1.º Juízo Liquidatário do TAF de Lisboa que negou provimento ao recurso contencioso que ela deduzira do despacho, praticado em 24/4/02 pelo Director da Unidade de Enquadramento e Vinculação e Registo de Remunerações do Centro Distrital de Lisboa do Instituto de Solidariedade e Segurança Social, que havia indeferido um seu requerimento para efectuar o pagamento voluntário e retroactivo de contribuições reportadas a um período em que ela trabalhara em Moçambique.
A recorrente terminou a sua alegação de recurso formulando as conclusões seguintes:
1 – Vem o tribunal «a quo» negar provimento ao recurso contencioso de anulação intentado pela ora recorrente.
2 – Contrariamente ao afirmado na sentença, o legislador ordinário consagrou expressamente a possibilidade de pagamento retroactivo de contribuições quando a obrigação contributiva está prescrita ou quando a obrigação contributiva não existiu (por, à data da prestação do trabalho, a actividade não se encontrar obrigatoriamente abrangida pelo sistema de segurança social) – DL n.º 199/99, de 8/6.
3 – A lei não exige e, bem pelo contrário, não faz qualquer discriminação positiva, aceitando (para efeitos de pagamento retroactivo de contribuições) que a actividade profissional exercida não estivesse apenas e tão só abrangida pelo sistema de segurança social.
4 – Pelo que não pode o Director de Enquadramentos Especiais e Relações Internacionais indeferir o requerimento da recorrente por, alegadamente, a actividade não estar, ao tempo em que os factos ocorreram, abrangida obrigatoriamente pelo sistema de segurança social português.
5 – Já que tal seria inconstitucional por violação do princípio da igualdade – art. 13º da CRP – e do princípio universal – consagrado no n.º 1 do art. 63º da CRP – de que todos têm direito à segurança social.
6 – Para além de que a lei não distingue por que motivo a actividade não estava abrangida pela segurança social, pelo que a interpretação efectuada pela Administração é também anulável por violação de lei.
7 – Nem distingue entre a actividade exercida em Moçambique (território português na época), de acordo com o ofício da Direcção-Geral que serviu de fundamento ao acto administrativo, e actividade exercida no restante território nacional.
8 – Pelo que a distinção efectuada pela entidade administrativa é atentatória dos mais elementares princípios constitucionais de igualdade e de acesso à segurança social.
9 – E, consequentemente, nula.
10 – Pelo que deve o acto administrativo ser anulado, no sentido de ser admitido o pagamento retroactivo das contribuições, com a emissão das respectivas guias para pagamento das contribuições.
A entidade recorrida contra-alegou, oferecendo as seguintes conclusões:
O objecto do DL n.º 199/99, de 8/6, visa definir as taxas contributivas aplicáveis no âmbito do regime geral de segurança social dos trabalhadores por conta de outrem.
Nos termos do art. 39º do citado diploma, é admitido o pagamento retroactivo e voluntário de contribuições pelo beneficiário, nos casos em que se considera a inexistência de entidade patronal, se a actividade exercida estivesse abrangida pelo sistema de segurança social, ou seja, limita-se tal direito às situações em que as actividades profissionais estavam abrangidas obrigatoriamente pelo regime de segurança social.
Porém, no caso da recorrente, a obrigação contributiva inexistia por a actividade que exercia não se encontrar, à data da prestação do trabalho, obrigatoriamente abrangida pelo sistema de segurança social.
A Administração, ao interpretar o citado diploma e ao indeferir o requerido pela recorrente, não distingue entre a actividade exercida em Moçambique e a actividade exercida no restante território nacional.
A entidade recorrida limitou-se a cumprir o disposto nos normativos legais aplicáveis à pretensão da recorrente ao indeferir o pedido, não violando qualquer princípio constitucionalmente consagrado ou fazendo uma interpretação errónea e violadora de norma expressa.
O Ex.º Magistrado do MºPº junto deste STA emitiu parecer no sentido do não provimento do recurso.
A matéria de facto pertinente é a dada como provada na decisão «sub judicio», que aqui se dá por integralmente reproduzida – como estabelece o art. 713º, n.º 6, do CPC.
Passemos ao direito.
A sentença «sub censura» manteve na ordem jurídica o acto que indeferiu a pretensão, dirigida pela aqui recorrente aos serviços do ISSS, de proceder ao pagamento voluntário e retroactivo de contribuições referentes ao trabalho subordinado que prestara em Moçambique, tanto antes como depois da independência daquele território ultramarino. No presente recurso jurisdicional, a recorrente reedita contra tal acto alguns dos vícios que infrutiferamente invocara no recurso contencioso, vícios esses traduzidos na alegação de que o acto teria violado o disposto no art. 39º do DL n.º 199/99, de 8/6, e de que repugnaria à Constituição por ofender o princípio da igualdade e o direito, universalmente previsto, à segurança social.
Comecemos pela alegada violação do referido art. 39º. Neste domínio, há um primeiro pormenor que imediatamente impressiona, o qual consiste no facto de o DL n.º 199/99, de 8/6, ter servido o exclusivo propósito de definir «as taxas contributivas aplicáveis no âmbito do regime geral de segurança social dos trabalhadores por conta de outrem» – como do seu art. 1º logo decorre. Ora, se o diploma apenas se inclinou à determinação do «quantum» das taxas, temos um primeiro indício de que ele não será o «situs» adequado para resolver o problema típico que ora está em causa – problema que se situa a montante da questão das taxas e que consiste em saber quais as actividades susceptíveis de um pagamento voluntário e retroactivo a efectuar à segurança social e que esta, seguidamente, taxará em certos moldes.
Contudo, é imperioso aprofundar a indagação. Desde logo, importa notar que foi a propósito das várias «situações» sujeitas à «fixação de taxas contributivas mais favoráveis» que o art. 6º do DL n.º 199/99 figurou a hipótese que denominou como «inexistência de entidade empregadora». E este conceito veio a ser explanado no art. 39º do diploma, que tem a seguinte redacção:
1 – Para efeito deste diploma, considera-se inexistência de entidade empregadora as situações legalmente previstas de pagamento voluntário de contribuições pelo beneficiário nos seguintes casos:
a) Com efeito retroactivo, quando a obrigação contributiva se encontra prescrita ou a mesma não existiu por, à data da prestação do trabalho, a actividade não se encontrar obrigatoriamente abrangida pelo sistema de segurança social;
b) Quando haja bonificação dos períodos contributivos para efeito da taxa de formação;
c) Quando, no âmbito do instituto de flexibilização da idade de acesso à pensão, o titular de pensão antecipada que não exerça actividade obrigatoriamente abrangida pelo regime geral queira contribuir, nos termos legais, para efeito de acréscimo.
2 – Nos casos previstos no número anterior, a taxa contributiva é fixada de acordo com o custo técnico das eventualidades protegidas.
A ora recorrente invoca em seu proveito a alínea a), «supra» transcrita, para evidenciar a oposição que existiria entre duas proposições: por um lado, a previsão legal de que a actividade pode «não se encontrar obrigatoriamente abrangida pelo sistema de segurança social»; por outro lado, o facto de o indeferimento constante do acto contenciosamente recorrido haver invocado a circunstância de a actividade profissional da recorrente «não estar, ao tempo em que os factos ocorreram, abrangida obrigatoriamente pelo sistema de segurança social português». Deste modo, e ainda na óptica da recorrente, o acto teria decidido com base num pressuposto conflituante com o teor do art. 39º, n.º 1, al. a), do DL n.º 199/99, incorrendo em clara violação de lei.
Aceita-se que a referida parte da fundamentação do acto se presta à crítica que a recorrente assim lhe move. Todavia, essa parte constitui uma tentativa de explicitação do motivo autêntico – de que falaremos «infra» – por que o acto indeferiu o pedido da aqui recorrente. Ademais, e como a sentença correctamente assinalou, o acto correspondeu ao exercício de poderes estritamente vinculados, razão por que temos fundamentalmente de ver se o seu sentido decisório se apartou, ou não, do que a lei estabelecia «in casu».
Ora, o motivo básico do indeferimento acolhido no acto foi a completa ausência de um «enquadramento legal» permissivo de se satisfazer a pretensão que a recorrente enunciara. E a falta desse «enquadramento» não briga com o estatuído no art. 39º, n.º 1, al. a), pois a primeira condição que aí se prevê para que se possa falar de «inexistência de entidade empregadora» – e, portanto, para que se possa pagar contribuições com efeito retroactivo, ainda que referentes a actividades que, «à data da prestação de trabalho», não estavam obrigatoriamente abrangidas pelo sistema de segurança social – é a de que se esteja perante «situações legalmente previstas de pagamento voluntário». Nesta conformidade, o preceito acima referido, que a recorrente crê violado pelo acto, remete para «situações legalmente previstas», que estarão alhures. E, assim sendo, o acto contenciosamente recorrido poderia ter violado a previsão legal de alguma dessas «situações» – mas nunca o art. 39º, n.º 1, al. a), que consta de um diploma ordenado à mera definição das taxas, como já dissemos, e que se limita a estabelecer o «quomodo» de se atingirem as mesmas taxas, sempre na hipótese de tais «situações» se verificarem.
Portanto, o aludido preceito, relacionado com o seguinte (que trata do «quantum» da taxa contributiva), apenas nos diz que, nos casos legalmente tipificados de pagamento voluntário de contribuições – casos esses que poderão abranger hipóteses de pagamento com efeito retroactivo de obrigações que não existiram (por, à data da prestação do trabalho, a actividade não se encontrar obrigatoriamente abrangida pelo sistema de segurança social) – a taxa contributiva será de determinado montante. Mas, se tais casos podem abranger aquelas hipóteses, isto é, se estamos aqui no domínio do possível, é porque eles podem também não as abranger, tudo dependendo de quais sejam, num dado momento, «as situações legalmente previstas de pagamento voluntário de contribuições». O que é absolutamente ilógico é inverter a relação que acima estabelecemos entre os casos e as hipóteses, e defender, como faz a recorrente, que a simples existência da actividade não obrigatoriamente abrangida pelo sistema de segurança social vale por si, independentemente de uma situação «de pagamento voluntário» que legalmente a preveja.
Ora, a verdade é que, à data da formulação do requerimento indeferido pelo acto, não havia previsão legal de pagamento voluntário e retroactivo de contribuições do género das que a recorrente intentou prestar. Essa previsão existira no passado – «vide» o DL n.º 380/89, de 27/10, entrado em vigor em 1/12/89, que excepcionalmente equiparara os períodos de actividade prestada nas ex-colónias à actividade desenvolvida no continente e que caducou «passados cinco anos sobre essa data» (arts. 5º e 24º) – e pode vir a ocorrer no futuro. Mas, ao tempo do pedido da recorrente, tal previsão não existia, motivo por que o acto indeferiu com o fundamento de que não havia «enquadramento legal». Com efeito, o diploma então vigente, que regulava «as condições» em que deviam «ser feitas perante a segurança social as declarações do exercício de actividade, bem como as condições e as consequências da declaração extemporânea do período da actividade profissional perante as instituições de segurança social», era o DL n.º 124/84, de 18/4 – aliás só aplicável «a períodos em que as actividades exercidas estivessem abrangidas pela segurança social» (art. 1º, n.º 2). E este diploma nada dispunha acerca da relevância a conferir pela segurança social portuguesa a declarações relativas a trabalho prestado no antigo Ultramar português e, «a fortiori», em países estrangeiros.
Ante o exposto, torna-se claro que o acto nunca podia enfermar de uma violação de lei que consistisse na ofensa do estatuído no art. 39º, n.º 1, al. a), do DL n.º 199/99, já que este diploma não estabelecia os parâmetros legais a que o sentido do acto se haveria de cingir. Quando muito, o acto poderia ter ofendido um outro diploma – aquele em que porventura se previssem «situações» (de pagamento voluntário de contribuições) a que o caso dos autos se devesse subsumir. Mas, porque a recorrente não indicou esse hipotético diploma, não está minimamente invocado o vício que corresponderia a essa violação (cfr. o art. 36º, n.º 1, al. d), «in fine», da LPTA); e, ademais, vimos que esse problemático vício nem sequer existe, pois não existe também o diploma cuja ofensa o possibilitaria.
Assente a improcedência da arguição do vício de violação de lei que esteve em apreço, e a concomitante correcção do que, a propósito, se decidiu na 1.ª instância, vejamos agora se o acto ofendeu os artigos 13º e 63º, n.º 1, da CRP, como a recorrente clama.
Antes do mais, é evidente que o despacho contenciosamente recorrido não pode enfermar das inconstitucionalidades que a recorrente nele divisa, pois só as normas, e nunca os actos administrativos, podem ser predicados de inconstitucionais. Todavia, a denúncia da recorrente é interpretável no sentido de que o acto, seja pelas normas que aplicou, seja por um deficiente uso de quaisquer poderes discricionários, exprimiu um modo indirecto ou mediato de ofender os invocados preceitos constitucionais – e será nesta perspectiva que seguidamente abordaremos a arguição.
Ora, e desde logo, é manifesto que a recorrente não se mostrou capaz de fornecer os pressupostos da sobredita ofensa do princípio da igualdade, pois não enunciou um qualquer juízo comparativo donde pudesse resultar que o seu caso fora resolvido de forma diferente relativamente a outros, intrinsecamente semelhantes. Sobretudo, é significativo que ela não tivesse dito quais eram as razões de igualdade que impunham que a sua pretensão tivesse o «enquadramento legal» que vimos faltar-lhe. Ademais, já acima dissemos que o acto contenciosamente recorrido exerceu poderes vinculados; pelo que é seguro que o seu autor não dispôs de um espaço de liberdade relativa onde se pudesse insinuar um tratamento discriminatório do pedido que a recorrente formulara.
Assim, a sentença andou bem ao decidir que não existia o vício que ultimamente esteve em apreço.
E também soçobra a pretensão de que o acto veiculou uma ofensa do direito, que «todos têm», à segurança social (art. 63º, n.º 1, da CRP). Na verdade, o acto não afirmou que a recorrente, ao invés do universo dos demais cidadãos, não tem o aludido direito; o que o acto singelamente fez foi negar um concreto modo por que a recorrente queria beneficiar da protecção em causa. Ora, como a negação de simples modalidades da expressão de uma coisa nunca equivale logicamente à negação da coisa respectiva, segue-se que o acto não envolveu a drástica afirmação de que a recorrente ficava excluída do direito que o art. 63º, n.º 1, da CRP genericamente prevê. E, assim sendo, a decisão «a quo» nenhuma censura merece ao haver declarado que o acto não enfermava do vício em causa.
Consequentemente, todas as conclusões da alegação de recurso são improcedentes ou irrelevantes, merecendo a sentença «sub judicio» permanecer indemne na ordem jurídica.
Nestes termos, acordam em negar provimento ao presente recurso jurisdicional e em confirmar a sentença recorrida
Custas pela recorrente:
Taxa de justiça: 400 euros.
Procuradoria: 200 euros.
Lisboa, 23 de Junho de 2005. – Madeira dos Santos – (relator) – Freitas Carvalho – Pais Borges.