Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:046639
Data do Acordão:02/03/2005
Tribunal:1 SUBSECÇÃO DO CA
Relator:JOÃO CORDEIRO
Descritores:DIRECTIVA COMUNITÁRIA.
IMPORTAÇÃO.
CARNE DE CAÇA SELVAGEM.
PAÍSES TERCEIROS.
TRANSPOSIÇÃO.
APLICAÇÃO DIRECTA.
RESPONSABILIDADE CIVIL EXTRACONTRATUAL.
TRATADOS.
Sumário:I - A possibilidade de invocação directa por um particular do regime normativo estabelecido em directiva comunitária, depende, para além de mais, de já ter expirado o prazo fixado para a sua transposição.
II - O Estado, por via directa, não pode opor a uma pretensão formulada por um particular, o regime jurídico de uma directiva que ainda não tenha transposto, sendo-lhe, no entanto, lícito opor, por via de excepção, a invocação do regime jurídico da normativa contra pretensão com base nele formulado.
III - Quando ,em invocação do efeito vertical de uma directiva comunitária se formula uma pretensão, terá de se aceitar a globalidade do regime comunitário invocado.
IV – A importação da carne de caça selvagem de um país terceiro depende da sua inscrição em lista própria elaborada pela comissão mediante parecer favorável do comité veterinário, podendo, no entanto, tal importação ser realizada ao abrigo de um tratado bilateral celebrado entre um país comunitário e o país exportador.
Nº Convencional:JSTA00061486
Nº do Documento:SA120050203046639
Data de Entrada:09/29/2000
Recorrente:MINISTÉRIO PÚBLICO
Recorrido 1:A...
Votação:UNANIMIDADE
Meio Processual:REC JURISDICIONAL.
Objecto:SENT TAC LISBOA.
Decisão:PROVIDO.
Área Temática 1:DIR ADM CONT - RESPONSABILIDADE EXTRA.
Legislação Nacional:PORT 774/93 DE 1993/09/03 ART3 ART16.
Legislação Comunitária:DIR CONS CEE 92/45 DE 1992/06/16 ART6 ART8 ART15 ART16 ART17 ART22 ART23.
T CEE ART189.
Aditamento:
Texto Integral: Acordam em conferência na 1ª Secção do STA:
Oportunamente e com petição entrada na Secretaria do TAC/L em 11-10-95, A…. intentou a presente acção contra o ESTADO, pedindo a sua condenação no pagamento da indemnização que liquida em 9 763 166$00 acrescida de juros legais desde a citação para reparação dos danos sofridos em virtude de injustificada e ilegal recusa de autorização de livre prática aduaneira para importação da Argentina de 27 765kg de lebres congeladas com pele e vísceras, para comercialização em Portugal.
A acção foi contestada pelo M°P°, pedindo-se a absolvição do Estado do pedido formulado.
Foi elaborado despacho saneador em que se julgou improcedente uma excepção peremptória suscitada, elaborando-se, em ordem ao prosseguimento dos autos, despacho de especificação e questionário.
A final, e por sentença de 19-1-99, foi a acção julgada procedente.
Apelou o M°P°, suscitando nas conclusões das suas alegações as seguintes questões:
- Da não verificação dos pressupostos materiais da ilicitude e da culpa;
- Da existência no ordenamento jurídico interno de fundamentação da recusa do pedido de concessão de livre prática. (Portaria 576/93 de 4-6 e não a Portaria 774/93 de3-9.)
- Da falta de suporte fáctico suficiente ao juízo do nexo de causalidade.
A agravada pede a confirmação do julgado.
O processo correu os vistos legais, cumprindo-nos, agora a decisão:
Nos termos do p. no art. 713°/6 do CPC, dá-se, aqui, por reproduzido o julgamento da matéria de facto realizado na 1ª instância.
Vem aqui impugnada a decisão judicial condenando o Estado no pedido formulado para ressarcimento dos prejuízos decorrentes da negação pelo IPPA, em decisão de 13-10-93, de pedida autorização de livre prática aduaneira para a importação de lebres congeladas, com pele e vísceras, provenientes da Argentina.
O pedido foi, então, formulado, com invocação do regime estabelecido pela Directiva 92/45/CEE do Conselho editada em 16-6-92 e a recusa foi, então fundamentada na circunstância da inexistência de acordo bilateral entre Portugal e a Argentina sobre trocas de carnes de caça selvagem, não se cumprindo, quanto à apresentação do produto, o disposto na Directiva invocada.
Na bem elaborada sentença, o senhor juiz começa por referir o regime da directivas comunitárias decorrente do art. 189° do Tratado de Roma, mencionando a vinculação do Estado membro quanto ao resultado a alcançar, o regime de aplicabilidade directa, invocável pelos particulares, ou seja, o seu chamado efeito vertical..
Refere-se que a invocada directiva deveria ter sido transposta para o direito interno até ao dia 1-1-1994, concluindo-se, por evidente lapso, que, à data do acto, isto é, em 13-10-93, já estava expirado o prazo da sua transposição.
A ilicitude da actuação da Administração fez-se decorrer da indevida invocação contra a pretensão da empresa ora autora do regime p. na directiva comunitária, que, culposamente, ainda se não transpusera para o direito interno, pelo que a recusa foi ilegal, por falta de base legal, sendo, em tal conformidade, uma actuação ilícita e culposa e, como tal, fundamento da pedida responsabilidade civil extracontratual do Estado.
Ora, desde já temos de formalizar o reparo, aliás adiantado, de, ao tempo dos factos, ainda não ser possível a invocação do efeito directo vertical da directiva comunitária, não estando, ainda criados os direitos subjectivos invocados, pois ainda não havia decorrido o prazo da sua transposição (art. 23° da Directiva).
Depois, e mais decisivamente quanto à análise da questão suscitada, diremos que, sendo correctas as considerações tecidas quanto à possibilidade de invocação directa das directivas pelos particulares e da impossibilidade de tais directivas não transpostas serem invocadas directamente pelo Estado contra um particular, este regime carece de outras e necessárias precisões.
Em tais circunstâncias, quando o particular pode invocar e pretender a aplicação directa de uma directiva comunitária, não o poderá fazer, apenas quanto a uma norma ou a um segmento de uma norma, mas sim em relação à totalidade do regime comunitário invocado.
Depois e em tal quadro, e de acordo com o princípio geral de direito de que o que por via de acção é condicionalmente invocável, pode ser, em quaisquer circunstâncias, invocado, por via de excepção.
A autora, na ocasião, para justificar a importação das lebres congeladas da Argentina, que, sem quaisquer dúvidas, é um país terceiro, em relação ao espaço comunitário, invocou, como fundamento da sua pretensão, o estabelecido na directiva 92/45/CEE, relativa aos problemas sanitários e de policia sanitária referentes ao abate e à colocação no mercado das respectivas carnes, num dos declarados intuitos de incentivar o comércio intra comunitário de tais produtos, na perspectiva de realização do mercado interno.
No art. 15° da referida directiva fixou-se a correcta estatuição de que as condições aplicáveis à colocação no mercado de carnes de caça selvagem importadas de países terceiros deverão, pelo menos ser equivalentes às previstas para o mercado interno, designadamente, com a intervenção de estabelecimentos reconhecidos de controle sanitário, organizados nos termos dos arts. 6° e 8°, logo se estabelecendo que tais importações só seriam possíveis se os respectivos produtos tivessem proveniência de países terceiros em condições de satisfazer requisitos impostos na directiva, e constantes de uma lista a elaborar e aprovar pela Comissão desde que obtido parecer favorável do Comité veterinário (art. 16°/3 e 22°), podendo tal comércio ser realizado por acordos bilaterais do país de destino (art. 17°/2 -3° travessão).
Neste quadro, sendo a Argentina um país terceiro com que Portugal não tinha acordo bilateral para a importação de carnes selvagens, na ausência da lista acabada de referir, à luz do regime jurídico fixado na directiva invocada, contrariamente à conclusão da sentença, a recusa da autorização de importação, ou seja, a negação da livre prática aduaneira teve plena cobertura legal, não sendo, por isso, um acto ilícito.
A recusa da concessão de livre prática, com este fundamento, que não pela interpretação possível mas que se nos afigura de eventual menos acerto da norma do n.°2 do art. 5° da Directiva 92/45:
Em nosso entender, com tal normativo, não se proíbe a importação de peças inteiras de caça menor não esfolada, não esviscerada em estado de congelação ou ultracongelação, mas sim a manipulação e armazenagem de tal carne quando não congelada, em eventual mistura com carnes de capoeira e com as carnes de caça selvagem esfolada ou depenada
A idêntica conclusão e por estas últimas razões, tendo em atenção que as carnes de caça constam da lista de produtos do anexo II do Tratado, em que é imperativa a harmonização do regime de comercialização, se chegaria com a aplicação do regime então vigente da Portaria 774/93 de 3-9, sem dúvida o diploma legal regulador da situação de controle sanitário de produto animal proveniente de país terceiro, sendo que, por tal diploma se completou a transposição para o direito interno da anterior Directiva 90/675/CEE do Conselho de 10-12, então aplicável.
Nos termos das disposições conjugadas do ponto i) da al. a) do n°5 do art. 3° e al. a) do n.° l do art. 16° de tal diploma regulamentar, uma vez que o produto provinha de um país terceiro ainda não inscrito em lista elaborada nos termos da regulamentação comunitária e com que inexistia, na ocasião tratado bilateral sobre a matéria, a introdução em Portugal da carne de caça, nas descritas condições não podia ser permitida, sendo no entanto possível a reexpedição para país que a tal importação pudesse aceder, nomeadamente, por ter com o país exportador um tratado sobre a matéria, como parece ser a situação, ao tempo, da Itália e dos mais países a que a autora se refere.
Nestes termos, em contrário do que foi julgado, a actuação da Administração, na situação, não se nos afigura ilícita, nem culposa, pelo que não se verificando estes pressupostos, não poderá ser declarada a peticionada responsabilidade.
Pelo exposto, com prejuízo da apreciação das demais questões suscitadas, desde já, se acorda em conceder provimento ao recurso jurisdicional, revogando-se a sentença recorrida e, em consequência, absolvendo-se o Estado do pedido.
Custas pela A., com procuradoria mínima.
Lisboa, 3 de Fevereiro de 2005. - João Cordeiro (relator) - Azevedo Moreira - Santos Botelho.