Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0777/04
Data do Acordão:11/16/2004
Tribunal:2 SUBSECÇÃO DO CA
Relator:JOÃO BELCHIOR
Descritores:MILITAR DA GUARDA NACIONAL REPUBLICANA.
TRABALHADOR ESTUDANTE.
Sumário:I - Não é aplicável aos militares da GNR o regime geral relativo aos trabalhadores-estudantes, tal como é definido actualmente na Lei n.º 116/97, por não ser compatível com o que decorre do estatuto a que estão sujeitos, maxime do dever de disponibilidade que sobre eles impende.
II - Uma tal conclusão, conexionada com os regimes constantes dos artigos 150º e 178º do Estatuto dos Militares da GNR, aprovado pelo Dec. Lei nº 265/93, de 31 de Julho, não ofende o “direito à formação cultural e técnica e à valorização profissional” (consagrado na alínea c) do n.º 2 do artigo 58º da CRP) dos agentes em questão, sendo ainda que o aludido enquadramento legal em cujo âmbito lhes é proporcionada a frequência de cursos ou outras unidades de ensino exteriores à GNR também se não apresenta em oposição com a “protecção das condições de trabalho”, garantidas pela alínea f) do n.º 2 do artigo 59º da Constituição.
Nº Convencional:JSTA00061243
Nº do Documento:SA1200411160777
Data de Entrada:07/07/2004
Recorrente:SE DA ADMINISTRAÇÃO INTERNA
Recorrido 1:A...
Votação:UNANIMIDADE
Meio Processual:REC JURISDICIONAL.
Objecto:AC TCA DE 2004/01/22.
Decisão:PROVIDO.
Área Temática 1:DIR ADM GER - FUNÇÃO PUBL / ESTATUTÁRIO.
Legislação Nacional:CONST97 ART59 N2 F ART58 N2.
DL 265/93 DE 1993/07/31 ART150 ART178.
Referência a Doutrina:GOMES CANOTILHO DIREITO CONSTITUCIONAL PAG425.
JOÃO RAPOSO IN DICIONÁRIO JURÍDICO DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA PAG119-120.
Aditamento:
Texto Integral: Acordam na Secção de Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo (STA):
I. Relatório
O Senhor Ministro da Administração Interna (ER) recorre do acórdão proferido pelo Tribunal Central Administrativo (TCA) de 22.01.04 (cf. fls. 135-145) que concedeu provimento ao recurso interposto por A…, soldado da GNR, melhor identificado nos autos, do despacho (ACI) da ER de 7/05/01 que negou provimento ao recurso hierárquico apresentado em 10/03/00.
Alegando, a ER formulou as seguintes CONCLUSÕES.
1. O Acórdão sob recurso jurisdicional, ao considerar aplicável, aos militares da GNR e, consequentemente, ao Recorrente, o Estatuto do Trabalhador Estudante, violou a Lei n.º 116/97, de 4 de Novembro.
2. Com efeito, àqueles militares, não é aplicável, em virtude de ser absolutamente incompatível com o dever de disponibilidade que sobre eles recai, o estatuto do trabalhador-estudante, contemplado na Lei n.º 116/97. Contudo,
3. Os referidos militares podem, nos termos dos artigos 150º e 178º do EM/GNR, frequentar cursos ou outras unidades de ensino, respectivamente, desde que tal frequência não implique prejuízo para o serviço ou, não sendo esse o caso, ao abrigo de licença para estudos, a qual só pode ser concedida, por despacho ministerial, se se tratar de curso, cadeira ou estágio "com interesse para a Guarda e de que resulte valorização profissional e técnica dos requerentes".
4. A apreciação do interesse para a Guarda, relevante para a concessão da licença consagrada no artigo 178º do EM/GNR, é efectuada, tendo em conta os princípios gerais informadores da actividade administrativa, face às circunstâncias de cada situação concreta, em função das atribuições próprias da Guarda Nacional Republicana, definidas por lei.
5. O regime definido pelos citados preceitos do EM/GNR que enquadra legalmente o "direito à formação cultural e técnica e à valorização profissional" e o "direito à protecção das condições de trabalho dos trabalhadores estudantes", não ofende, ao contrário do que entendeu o Tribunal "a quo", os artigos 58º, n.º 2, alínea a), e 59º, n.º 2, alínea f), da Constituição da República Portuguesa.
O recorrente, ora recorrido não contra-alegou.
Neste Supremo Tribunal o Exmº Procurador-Geral Adjunto, no seguimento do Parecer da Procuradoria-Geral da República, emitiu parecer no sentido de que “aos militares da GNR não é aplicável o regime dos trabalhadores-estudantes constante da Lei nº 116/97, de 4 de Novembro, em virtude do dever de disponibilidade que sobre eles recai”.
Colhidos os vistos legais cumpre apreciar e decidir.
II. FUNDAMENTAÇÃO
II.1. O acórdão recorrido registou os seguintes FACTOS (Mº de Fº):
1- Em 25/10/99 o aqui recorrente requereu ao Comandante da GNR que lhe fosse aplicado o Estatuto de Trabalhador-Estudante previsto na Lei 116/97 de 4/11.
2- Por despacho de 8/2/00 o C. da GNR indeferiu este requerimento.
3- O recorrente interpôs recurso hierárquico para o MAI em 10/3/00 (fls 6 a 8 dos autos e aqui rep.)
4- Sobre este recurso foi emitida a informação nº 279-L/01 junta de fls 68 a 72 dos autos e aqui rep.
5- O SEAI em 7/5/01 profere sobre esta informação o seguinte despacho:
"Concordo. Nos termos do presente parecer, nego provimento ao recurso do Sold/GNR A…, id. nos autos.(...)"
II.2. DO DIREITO
O que está em causa é indagar se a um soldado da GNR é aplicável o regime do trabalhador-estudante constante da Lei nº 116/97, de 4 de Novembro, e em cujo artigo artigo 2º se estabelece:
“Âmbito de aplicação
1 - Para efeitos de aplicação do presente diploma, considera-se trabalhador-estudante todo o trabalhador por conta de outrem, independentemente do vínculo laboral, ao serviço de uma entidade pública ou privada e que frequente qualquer nível do ensino oficial ou equivalente, incluindo cursos de pós-graduação, realização de mestrados ou doutoramentos, em instituição pública, particular ou cooperativa.
(...)”.
Como se viu, o ACI negou ao ora recorrido a aplicação de tal regime, basicamente por entender que a tal se opõe o dever de disponibilidade que sobre os militares em causa recai, o que no entanto não impressionou o acórdão recorrido para quem um tal dever, não pode impedir “o militar de dormir e de descansar, de tomar as suas refeições. Enfim de viver!”
Apenas lhe exige”, prossegue o acórdão, “a consciência de que pode, a qualquer momento, ser chamado por imperativo de serviço, por necessidades urgentes, e com sacrifício dos seus interesses pessoais.
Ora, o facto de lhe ser atribuído o estatuto de trabalhador-estudante, e de ter as regalias que o mesmo lhe concede, não impede que possa ter que sacrificar essas regalias, a qualquer momento, face à disponibilidade permanente em que se encontra.
E, se podia ser chamado quando se encontra a descansar, ou a meio de uma refeição, também pode ser chamado a meio de uma aula ou de um exame.
(...)”
O aresto recorrido sufraga pois o entendimento da não verificação de qualquer incompatibiliade entre o estatuto de trabalhador-estudante e a disponibilidade permanente em que se encontram os militares da GNR, prosseguindo o seu discurso fundamentador na senda do voto de vencido aposto no parecer do CCPGR emitido a propósito da questão.
Por seu lado, a posição da ER vai no sentido de afrontar o acórdão recorrido com base na doutrina que fez vencimento naquele parecer da PGR, sustentando, e em resumo, que:
- a aplicação do Estatuto do Trabalhador Estudante é absolutamente incompatível com o dever de disponibilidade que sobre os militares da GNR recai;
- os referidos militares podem, nos termos dos artigos 150º e 178º do EM/GNR, frequentar cursos ou outras unidades de ensino, respectivamente, desde que tal frequência não implique prejuízo para o serviço ou, não sendo esse o caso, ao abrigo de licença para estudos, a ser concedida se se tratar de curso, cadeira ou estágio "com interesse para a Guarda e de que resulte valorização profissional e técnica dos requerentes",
- sendo que o regime definido pelos citados preceitos do EM/GNR que enquadra legalmente o "direito à formação cultural e técnica e à valorização profissional" e o "direito à protecção das condições de trabalho dos trabalhadores estudantes", não ofende os artigos 58º, n.º 2, alínea a), e 59º, n.º 2, alínea f), da Constituição da República Portuguesa.
Vejamos pois.
O regime legal dos trabalhadores-estudantes começou por ser estabelecido pela Lei n.º 26/81, de 21 de Agosto diploma que foi, contudo, substituído pela Lei n.º 116/97, de 4 de Novembro (Estatuto dos Trabalhadores-Estudantes), hoje em vigor.
Com vista a indagar pois se o estatuto do trabalhador-estudante é aplicável aos militares, comece-se por atentar no conteúdo do aludido estatuto, especialmente na perspectiva do que possa ter de mais interesse para o caso em análise.
Ora, de entre os direitos que lhe são atribuídos, sobressaem o de, deverem ser elaborados horários de trabalho específicos, bem como o de se ausentarem para prestação de provas de avaliação de harmonia, respectivamente com o disposto nos artºs 3º e 5º daquele estatuto.
Sempre na mesma perspectiva cumpre agora atentar nas regras especificamente consagradas para os militares da GNR, a começar pelo que decorre do seu Estatuto aprovado Decreto–Lei n.º 265/93.
Assim, no que tange à restrição ao exercício de alguns direitos, liberdades e garantias, o artigo 15º do Estatuto procede à remissão para a Lei da Defesa Nacional e das Forças Armadas (LDNFA).
Ora, o dever de disponibilidade surge reafirmado por aquele Estatuto quanto aos militares da GNR nos moldes enunciados no respectivo artigo 9º, o qual preceitua:
“Dever de disponibilidade
1 – Face à especificidade da missão, o militar da Guarda encontra-se permanentemente de serviço.
2 – O militar da Guarda deve manter permanente disponibilidade para o serviço, ainda que com sacrifício dos interesses pessoais, não se ausentando da área onde presta serviço, a não ser quando devidamente autorizado, ou quando, no exercício das suas funções, deva efectuar de imediato diligências que possam conduzir ao esclarecimento de qualquer acto de natureza criminal ou contra-ordenacional.
3 – O militar da Guarda deve comunicar o seu domicílio habitual ou eventual e, no caso de ausência por licença ou doença, o local onde possa ser encontrado ou contactado”.
Tem interesse ainda invocar o que é legalmente estabelecido nos artºs 14º (O qual, ao enunciar as obrigações dos militares da GNR, determina que:
“Outros deveres
Constituem, ainda, deveres do militar da Guarda:
(...)
m) Comunicar todas as alterações à sua evolução técnica e cultural, relativamente a habilitações literárias que obtenha ou cursos técnicos e superiores que complete;
(...)”.), 150º e 178º (O artigo 150º, sob a epígrafe valorização profissional, prevê que:
“1 – Com vista à sua valorização profissional e prestígio da instituição, o militar da Guarda pode frequentar qualquer curso complementar para a sua cultura geral ou especialização técnica, sem prejuízo do serviço, devendo a frequência e eventual conclusão do mesmo ser averbada no seu processo individual.
2 – O militar pode, ainda, frequentar cursos desta natureza com prejuízo para o serviço, nos termos do artigo 178º”.
Este último preceito reporta-se, precisamente, à licença para estudos – concedida sem perda de remuneração, consoante esclarece o artigo 170º, n.º 3, por ele assim regulada:
“Artigo 178º
Licença para estudos
1 – A licença para estudos pode ser concedida, por despacho ministerial, a requerimento do interessado, para efeitos de frequência de curso, cadeiras ou estágios, em estabelecimentos de ensino nacionais ou estrangeiros, com interesse para a Guarda e de que resulte valorização profissional e técnica dos militares dos quadros da Guarda.
2 – O militar a quem tenha sido concedida licença para estudos deverá apresentar, nas datas que lhe foram determinadas, os documentos comprovativos do aproveitamento escolar.
3 – A licença para estudos pode ser cancelada, por proposta do comandante-geral, quando este considere insuficiente o aproveitamento escolar do militar a quem a mesma tenha sido concedida.
4 – A licença para estudos conta como tempo de serviço efectivo, mas sem os aumentos de tempo previstos no n.º 3 do artigo 101º.”) do Estatuto no que tange às habilitações e qualificações académicas conseguidas fora do âmbito da GNR.
Ainda com vista a indagar se o regime dos trabalhadores-estudantes é adequado ao pessoal da GNR cabe respigar o que segue no que respeita ao estatuto jurídico que lhes é aplicável.
Assim, a Guarda Nacional Republicana é caracterizada pelo artigo 1º da sua actual Lei Orgânica, aprovada pelo Decreto-Lei n.º 231/93, de 26 de Junho, como “uma força de segurança constituída por militares organizados num corpo especial de tropas” (Veja-se sobre o tema JOÃO RAPOSO, in “Dicionário Jurídico da Administração Pública”, a págs. 119-120.).
Convoque-se de seguida a Lei n.º 11/89, definidora das “Bases gerais do estatuto da condição militar”, aplicável aos militares da Guarda Nacional Republicana (cf. seu artigo 16º), de que merecem referência para o caso, o art.º. 2º sobre a condição militar (A qual se caracteriza, particularmente “pela permanente disponibilidade para o serviço, ainda que com sacrifício dos interesses pessoais” (cf.alínea f), e peça “pela restrição, constitucionalmente prevista, de alguns direitos e liberdades” (cf. alínea g). ) e os art.ºs 7º (O qual dispõe que, “os militares gozam de todos os direitos e liberdades reconhecidos aos demais cidadãos, estando o exercício de alguns desses direitos e liberdades sujeito às restrições constitucionalmente previstas, com o âmbito pessoal e material da Lei da Defesa Nacional e das Forças Armadas”.) e12º.(O qual dispõe que:
“1- Os militares têm o direito e o dever de receber treino e formação geral, cívica, científica, técnica e profissional, inicial e permanente, adequados ao pleno exercício das funções e missões que lhes forem atribuídas.
2 – Os militares têm ainda o direito e o dever de receber formação de actualização, reciclagem e progressão, com vista à sua valoração humana e profissional e à sua progressão na carreira”.)
No desenvolvimento das mencionadas Bases Gerais (e nos termos do respectivo artigo 17º, n.º 1), veio a ser publicado o Estatuto dos Militares das Forças Armadas (EMFA) (Rege actualmente o EMFAR/99, aprovado pelo DL nº 236/99, de 25 de Junho.), aprovado pelo Decreto–Lei n.º 34-A/90, de 24 de Janeiro, de que importa destacar o princípio da disponibilidade vertido no seu artigo 12º (O qual no n.º 1 dispõe que:
“Artigo 12º
Dever de disponibilidade
1. O militar mantém permanente disponibilidade para o serviço, ainda que com sacrifício dos interesses pessoais”.)
O que já se deixou enunciado afigura-se-nos que legitima suficientemente a conclusão de que a aplicabilidade aos militares da GNR do regime geral relativo aos trabalhadores-estudantes, tal como é definido na Lei n.º 116/97, não é compatível com o que decorre da sua condição, maxime do dever de disponibilidade que sobre eles impende.
Efectivamente, o dever encontrar-se permanentemente de serviço, com as implicações especificadas nos nºs 2 e 3 do citado artº 9º, embora não possa impedir o militar de viver, não parece, nomeadamente, conciliável com o aludido exercício dos já mencionados direitos à fixação de horários especiais ou à dispensa para frequência de aulas ou realização de exames.
Ora, é a restrição de tais direitos decorrentes do estatuto do trabalhador-estudante que impressiona o acórdão recorrido, em consonância com o aludido voto de vencido do Parecer da PGR, e que a ER contesta no presente recurso, visto que:
“O Estado não pode simultaneamente erigir em direito fundamental o direito à protecção das condições de trabalho dos trabalhadores-estudantes, densificá-lo por via da lei ordinária, e alijar de todo, quanto a tais trabalhadores e sem fundamento material bastante, o ónus da sua concretização.
No caso presente, encontramo-nos, é certo, no âmbito das chamadas relações especiais de poder; que são susceptíveis de assumir, consoante as situações, natureza diversa. Porém, em qualquer dos estatutos ou relações especiais de poder «haverá que preservar o equilíbrio entre o respeito pela liberdade das pessoas e a prossecução dos fins institucionais, embora o grau de compressão dos direitos acompanhe a variedade das situações» (JORGE MIRANDA, ob. cit., pág. 302).
É este equilíbrio que, salvo o devido respeito, não se nos afigura ser respeitado na solução encontrada no parecer, onde, sem justificação material bastante, somos conduzidos à negação pura e simples de um direito fundamental (as vias da «valorização profissional» e da «licença para estudos», consagradas, respectivamente, nos artigos 150º e 178º do Estatuto da GNR não configuram direitos dos oficiais, sargentos e praças, mas concessões hierárquicas outorgadas sem prejuízo para o serviço e/ou com prejuízo para o beneficiário - cfr. nº 4 do segundo dos dispositivos)
(...)
Assim, os problemas de ordenação com que se depare, na prática, entre o direito fundamental à protecção das condições de trabalho dos trabalhadores-estudantes, consagrado no artigo 59º, nº 2, alínea f), da Constituição, e concretizado pela Lei nº 116/97, e o dever de disponibilidade que impende sobre os oficiais, sargentos e guardas da GNR, na articulação entre o direito fundamental e o dever, «deverão ser resolvidos à luz dos direitos fundamentais mediante uma tarefa de concordância prática e de ponderação possibilitadora da garantia dos direitos sem tornar impraticáveis os estatutos especiais» (GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional..., cit., pág. 425). A própria Lei nº 116/97 fornece, para esta tarefa, pistas não despiciendas”.
Da tese que fez vencimento no mesmo parecer, e a tal respeito, respigue-se no entanto o seguinte:
Conquanto a eventual limitação ou condicionamento dos direitos fundamentais do tipo em análise não careça de expressa habilitação constitucional, isso não significa, naturalmente, que tais adaptações dispensem qualquer apoio na Constituição.
JORGE MIRANDA sustenta que tais limitações aos direitos fundamentais decorrem, ou da sua conjugação com outros direitos fundamentais, interesses ou da sua compatibilização com “princípios objectivos ou institutos e valores de outra natureza.”
De entre as últimas, destacar-se-iam precisamente as relacionadas com “estatutos ou relações especiais de poder”, como as respeitantes aos militares.
Aceitando semelhante orientação, ALEXANDRE PINHEIRO sugere o seguinte critério para configuração e tratamento das limitações concernentes a “relações especiais de poder”:
“As relações especiais de poder têm um carácter vincadamente institucional. Pensamos que neste domínio de relações há que: a) aferir da cobertura constitucional, apelando para um quadro de valores, da própria instituição; b) atender aos fins constitucionalmente previstos da instituição; c) adequar as restrições aos direitos fundamentais, aos fins da instituição em termos de proporcionalidade e necessidade”.
(...)”
Depois de precisar que o tipo de direitos em causa se incluem nos “direitos económicos, sociais e culturais”, e não já nos “direitos, liberdades e garantias”, prossegue o Parecer:
“Apresenta-se, assim, alicerçado em suporte constitucional bastante o ajustamento do “direito à formação cultural e técnica e à valorização profissional” ao estatuto específico dos militares, e, em particular, ao dever de disponibilidade que sobre eles impende.
Isto, naturalmente, desde que essa adaptação se revele proporcionada e não seja tal que acabe por descaracterizar ou defraudar o intento da norma da alínea c) do n.º 2 do artigo 58º da Constituição.
Essa justa compatibilização entre os interesses dos militares que pretendam frequentar cursos exteriores à instituição a que pertençam surge adequadamente propiciada, no que concerne à GNR, pela conjugação dos regimes constantes dos artigos 150º e 178º do Estatuto dos Militares dessa organização.
Assim é que os militares da GNR podem, “com vista à sua valorização profissional e prestígio da instituição”, frequentar “qualquer curso complementar para a sua cultura geral ou especialização técnica”, sob a condição de essa frequência ocorrer “sem prejuízo para o serviço” (artigo 150º).
Se o militar da GNR pretender inscrever-se em curso, cadeira ou estágio cuja frequência implicaria “prejuízo para o serviço”, terá então de optar por requerer licença para estudos, a qual lhe poderá ser concedida por despacho ministerial, se se considerar que das correspondentes habilitações resulta, para além de “valorização profissional e técnica” do requerente, ainda “interesse para a Guarda” (artigos 150º, n.º 2, e 178º).
E as autoridades da GNR sabem, assim, que, durante o período da licença para estudos, não podem contar com o militar que dela beneficie para a programação das actividades da instituição a que este pertença”.
Pese embora o devido respeito pela tese acolhida no aresto recorrido, crê-se que é de seguir a enunciada doutrina por se nos afigurar ser a que melhor compatibiliza os valores em presença, sem afronta do quadro constitucional.
Aplicando-a ao caso em análise, e de tudo o que se deixou enunciado, decorre:
- que o regime jurídico dos trabalhadores-estudantes plasmado na Lei n.º 116/97, não é, enquanto tal, aplicável aos militares da GNR, fundamentalmente pelo que decorre do enunciado dever de disponibilidade;
- por outro lado uma tal conclusão, conexionada com os regimes constantes dos artigos 150º e 178º do Estatuto dos Militares da GNR não ofende o aludido “direito à formação cultural e técnica e à valorização profissional” (consagrado na alínea c) do n.º 2 do artigo 58º da Constituição) dos agentes em questão, sendo ainda que o aludido enquadramento legal em cujo âmbito lhes é proporcionada a frequência de cursos ou outras unidades de ensino exteriores à GNR também se não apresenta em oposição com a “protecção das condições de trabalho”, garantidas pela alínea f) do n.º 2 do artigo 59º da Constituição.
III.DECISÃO
Nos termos e com os fundamentos expostos, e em provimento do presente recurso jurisdicional, acordam em:
- revogar o acórdão recorrido,
- e em negar provimento ao recurso contencioso.
Custas pelo recorrente contencioso (ora recorrido), na 1ª instância, fixando-se:
- a taxa de justiça em 150 €
- a procuradoria em 50%
Lx. aos 16 de Novembro de 2004. – João Belchior (relator) – Alberto Augusto Oliveira – Políbio Henriques.