Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0834/16
Data do Acordão:05/03/2017
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:ISABEL MARQUES DA SILVA
Descritores:TAXA SIRCA
PRINCÍPIO DA LEGALIDADE TRIBUTÁRIA
Sumário:É inconstitucional, por violação do princípio da igualdade, na sua dimensão de equivalência (artigo 13.º da Constituição), a taxa “SIRCA” tal como configurada pelo Decreto-Lei n.º 19/2011, de 7 de Fevereiro, na medida em que configura o “estabelecimento de abate” como contribuinte directo de tal tributo, quando o presumível beneficiário do serviço que esta se destina a financiar é, não ele, mas o titular da exploração.
Nº Convencional:JSTA00070152
Nº do Documento:SA2201705030834
Data de Entrada:06/30/2016
Recorrente:A..., SA
Recorrido 1:DIRECÇÃO GERAL DA ALIMENTAÇÃO E VETERINÁRIA E OUTRO
Votação:UNANIMIDADE
Meio Processual:REC JURISDICIONAL
Objecto:SENT TAF PENAFIEL
Decisão:PROVIDO
Área Temática 1:DIR PROC TRIBUT CONT - IMPUGN JUDICIAL.
Legislação Nacional:CONST76 ART165 N1 I ART13.
DL 19/2011 DE 2011/02/07 ART2 N1 N4 N6 ART3 ART1.
DL 244/2003 DE 2003/10/07.
DL 33/2017 DE 2017/03/23.
Jurisprudência Nacional:AC TC N359/2015 DE 2015/10/20.
Referência a Doutrina:SÉRGIO VASQUES - MANUAL DE DIREITO FISCAL 2015 PAG260.
Aditamento:
Texto Integral: Acordam na Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo:
- Relatório -
1 – A………………………, S.A., com os sinais dos autos, recorre para este Supremo Tribunal da sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal de Penafiel, de 31 de Março de 2016, que julgou totalmente improcedente a impugnação judicial por si deduzida contra autoliquidações de taxa para financiamento do Sistema de Recolha de Cadáveres de Animais Mortos nas Explorações (SIRCA), no valor total de €43.063,87, respeitantes aos meses de Novembro e Dezembro de 2014 e Janeiro de 2015, para o que apresentou as seguintes conclusões:
1.ª) Vem o presente recurso interposto da sentença proferida pelo tribunal “a quo”, que julgou improcedente a impugnação judicial deduzida pela recorrente, e que, salvo o devido respeito, não poderá ser mantida.
2.ª) A sentença recorrida é contraditória relativamente a outras sentenças proferidas pelo mesmo Tribunal quanto à questão de direito, nas quais foram os pedidos formulados julgados totalmente procedentes e, consequentemente, anuladas as liquidações das taxas impugnadas e restituídos os montantes pagos.
3.ª) A criação do Sistema de Recolha de Cadáveres de Animais Mortos nas Explorações (SIRCA) teve em vista, na sequência dos diplomas legais que interditaram que fossem enterrados animais mortos nas explorações das espécies bovina, ovina, caprina e suína, assegurar a recolha daqueles animais nas explorações com vista à sua eliminação e de forma a salvaguardar a segurança alimentar, a saúde pública e a protecção do ambiente.
4.ª) Desta forma, a SIRCA consistia, nos termos Decreto-Lei n.º 224/2003, de 7 de Outubro, num serviço prestado a quem apresentasse animais para abate, isto é, aos titulares de explorações que se dedicam à pecuária pelo que, consequentemente, era também sobre estes que, naturalmente, recaia a obrigação de proceder ao pagamento do respectivo serviço por via de uma taxa, cobrada através dos estabelecimentos de abate apenas por uma questão de eficácia na cobrança da taxa.
5.ª) O Sistema de Recolha de Cadáveres de Animais Mortos nas Explorações visava, como é comum num estado de direito, que apenas os beneficiários do sistema – produtores de gado – contribuíssem para o seu próprio financiamento, mediante o pagamento de uma taxa.
6.ª) Sucede que, o Decreto-Lei n.º 19/2011, de 7 de Fevereiro, veio revogar o previsto no Decreto-Lei 244/2003 no que respeita ao financiamento, tendo sido radicalmente alterado o paradigma da responsabilidade pelo pagamento da taxa devida, o qual passou a recair sobre quem dela não retira qualquer benefício: os estabelecimentos de abate.
7.ª) O legislador transformou a taxa em causa num verdadeiro imposto, porquanto, conforme resulta demonstrado, os beneficiários do SIRCA são apenas os respectivos produtores e apresentantes dos animais e não os estabelecimentos de abate.
8.ª) Acresce que, a “Taxa TSAM” nada tem a ver com a “Taxa SIRCA”, cujos pressupostos e finalidade se afiguram distintos daquela taxa.
9.ª) No caso da “Taxa TSAM”, o valor da taxa paga pelos estabelecimentos comerciais sobre os quais a mesma incide, é visto como uma contrapartida da segurança e qualidade alimentar que os próprios titulares desses estabelecimentos têm de garantir no tocante aos produtos que comercializam e que aquela contribuição lhes vai proporcionar e, portanto, existe em seu próprio benefício.
10.ª) A recorrente assume-se como uma mera prestadora de serviços, cuja actividade se dirige essencialmente à prestação de serviços de abate de animais a terceiros – os apresentantes dos animais, esses sim, verdadeiros beneficiários do sistema em questão – o que a distingue daqueles que são produtores, distribuidores ou comerciantes de géneros alimentícios, nomeadamente de origem animal, e que, nessa medida, beneficiam da garantia de segurança e qualidade alimentar desses produtos resultante da actividade a que tais contribuições se destinam.
11.ª) Mais se diga que os beneficiários da recolha dos animais mortos são apenas os respectivos produtores e apresentantes dos animais e não os matadouros, uma vez que a ausência de qualquer infecção permite que os produtores e apresentantes dos animais os possam comercializar. Contrariamente, infectados ou não, os matadouros procedem sempre ao seu serviço, a única diferença é que o animal enfermo não entra no circuito comercial com directo prejuízo para o apresentante do animal e não para o matadouro, que cobra sempre o seu serviço de abate.
12.ª) Diversamente, do que sucede na Taxa de Segurança Alimentar Mais, em que o diploma procurou assegurar uma equitativa repartição dos custos dos programas de controlo, na medida em que vários operadores da cadeia alimentar são beneficiários, na Taxa SIRCA, estranhamente, a taxa é cobrada apenas aos matadouros, em clara violação do princípio do “utilizador pagador”.
13.ª) Nos termos do artigo 9.º do Decreto-Lei n.º 119/2012, de 15 de Junho, e do n.º 3 da portaria n.º 215/2012 de 17 de Julho, a Taxa de Segurança Alimentar Mais abrange sociedades comerciais com lojas de grande dimensão, propriedade de grandes grupos económicos, como por exemplo a “…………..” ou “………………”, que podem facilmente incorporar a TSAM nos seus custos.
14.ª) Ao contrário do que sucede com os estabelecimentos de abate que são incapazes de suportar taxas estranhas à sua actividade específica, comprometendo a sua sobrevivência, o que originará um número elevado de desempregados.
15.ª) O facto de os titulares de explorações que tenham capacidade de recolha, transporte e destruição ficarem isentos da taxa de financiamento do SIRCA demonstra igualmente, de forma inequívoca, como os únicos beneficiários daqueles serviços são os titulares de explorações que não procedam directamente à recolha e transporte de cadáveres e, por isso mesmo, têm de recorrer aos serviços do Estado, suportando, por isso, o pagamento da respectiva contrapartida monetária.
16.ª) Existem outras taxas impostas aos matadouros em que há efectivamente uma contrapartida específica, e em que estes, por isso, enquanto beneficiários da actividade desenvolvida, pagam as respectivas taxas sanitárias e taxas de controlo oficial, o que lhes permite a prossecução da actividade industrial e comercial a que se dedicam.
17.ª) A taxa devida pelo financiamento do Sistema de Recolha de Cadáveres de Animais Mortos nas Explorações (SIRCA), quando imposta aos estabelecimentos de abate, consubstancia um imposto e não uma taxa ou qualquer outra contribuição financeira.
18.ª) Com efeito, atentas as características reconhecidas à taxa enquanto tributo, conclui-se que não estamos, in casu, perante a liquidação de qualquer taxa, porquanto a quantia exigida à ora Impugnante não é devida por qualquer prestação de um serviço público, pela utilização de um bem do domínio público, nem pela remoção de um obstáculo jurídico.
19.ª) Na verdade, para que a SIRCA fosse susceptível de continuar a ser qualificada como uma taxa teria de ser possível identificar um vínculo de correspectividade entre o pagamento da mesma e a prestação efectuada pelo Estado. Ora, se essa sinalagmaticidade existia enquanto a SIRCA era cobrada àqueles que dela beneficiavam (os detentores dos animais), desapareceu a partir do momento em que com o Decreto-Lei n.º 19/2011, de 7 de Fevereiro, passaram os estabelecimentos de abate de animais a figurar como seus sujeitos passivos.
20.ª) Destarte, para que o montante cobrado seja uma taxa, a mesma terá, necessariamente, que incidir sobre os titulares de explorações (os beneficiários) e não sobre os estabelecimentos de abate (terceiros), pelo podemos afirmar que estamos perante um verdadeiro imposto e não qualquer taxa.
21.ª) É então, mister afirmar que as liquidações impugnadas são ilegais, na justa medida em que violam o disposto no n.º 2 do artigo 4.º da LGT.
22.ª) Ora, ao tratar-se de um imposto, acontece que os impostos obedecem ao princípio da legalidade tributária, consagrado no n.º 2, do artigo 103.º, da CRP, de acordo com o qual, “os impostos são criados por lei, que determina a incidência, a taxa, os benefícios fiscais e as garantias dos contribuintes”.
23.ª) A criação de impostos é da exclusiva competência legislativa reservada da Assembleia da República, pelo que a lei a que se refere o referido n.º 2 do artigo 103.º da CRP é, em princípio, uma lei da AR, só podendo tratar-se de Decreto-Lei quando houver uma autorização concedida ao Governo.
24.ª) Sucede que o Decreto-Lei n.º 19/2011, de 7 de Fevereiro foi aprovado nos termos do artigo 198.º, n.º 1, alínea a), da CRP, ou seja, como se a matéria em causa fosse da competência não reservada da Assembleia da República, pelo que são organicamente inconstitucionais as normas constantes do Decreto-Lei n.º 19/2011, de 7 de Fevereiro, designadamente o seu artigo 2.º, n.º 1, na medida em que procede à criação de um imposto sobre os estabelecimentos de abate em desrespeito pelos supramencionados comandos constitucionais.
25.ª) Isto posto, a Constituição reconhece aos cidadãos o direito de não procederem ao pagamento dos impostos, não só no caso de os mesmos terem sido criados de forma inconstitucional, ou seja, quando não foram criados pela Assembleia da República, ou mediante autorização desta, mas igualmente quando a sua liquidação e cobrança não sejam feitas “nas formas prescritas na lei”.
26.ª) Pelo que, em face de tudo o exposto são ilegais os actos de liquidação da denominada “Taxa para financiamento do Sistema de Recolha de Cadáveres de Animais Mortos nas Explorações” que a Recorrente liquidou à Recorrida, no montante de €45.780,57 (quarenta e cinco mil e setecentos e oitenta euros e cinquenta e sete cêntimos), razão pela qual não pode ser mantida a sentença proferida pelo Tribunal “a quo”.
Pelo exposto, e pelo muito que doutamente será suprido por Vossas Excelências, deverá ser dado provimento ao presente recurso, revogando-se a sentença, ora em crise, sendo a acção julgada procedente e, em consequência, ser declarados nulos ou anulados os actos de autoliquidação da denominada “Taxa para financiamento do Sistema de Recolha de Cadáveres de Animais Mortos nas Explorações” que a Recorrente liquidou à Recorrida, no montante de EUR. 43.063,87 ((quarenta e três mil e sessenta e três euros e oitenta e sete cêntimos) com a consequente devolução de tal montante.
Porém, V. Exas., melhor julgando, farão, como sempre, JUSTIÇA!

2 – Não foram apresentadas contra-alegações.


3 – O Excelentíssimo Procurador-Geral Adjunto junto deste Tribunal emitiu o douto parecer de fls. 266/267, no sentido do não provimento do recurso, porquanto entende como na sentença recorrida que a doutrina do douto Acórdão do T. Constitucional n.º 539/2015, de 20.10.2015 é inteiramente transponível para o caso dos autos, pois que à semelhança do que ocorre com a “taxa de segurança alimentar mais”, também a questionada “taxa para financiamento do sistema de recolha de cadáveres de animais mortos nas explorações” constitui fonte de financiamento do “Fundo Sanitário e de Segurança Alimentar Mais” (adiante, FSSAM) que é caracterizado como um património autónomo, sem personalidade jurídica e dotado de autonomia administrativa e financeira que prossegue objectivos que se inscrevem no âmbito da protecção da segurança alimentar e da saúde do consumidor e do cumprimento das normas europeias em matéria de qualidade alimentar (arts. 2.º e 3.º do DL n.º 119/2012, de 15 de Junho).//Não podendo o tributo em questão ser qualificado como taxa por inexistir o nexo sinalagmático que caracteriza essa espécie de tributos, também o mesmo, à semelhança da “taxa de segurança alimentar mais”, apreciada no referido acórdão do TC, não pode ser qualificado como imposto porque, como aí se escreve, «a sua finalidade não é satisfazer os gastos gerais da comunidade, em cumprimento de um dever geral de cidadania, mas unicamente contribuir para o financiamento de uma atividade continuada de controlo e fiscalização da cadeia alimentar mediante a consignação de receitas a um Fundo que tem a missão específica de apoiar financeiramente projectos iniciativas e acções a desenvolver nessa área».// Trata-se de uma contribuição financeira que se destina ao financiamento de actividades no domínio da segurança alimentar, da saúde pública, da protecção ambiental e na protecção e sanidade animal (cfr. preâmbulo do DL n.º 19/2011 e art. 3.º do DL n.º 119/2012) e que, à semelhança do que ocorre com a aludida “taxa de segurança alimentar mais” e outros tributos, concretiza o princípio da responsabilidade partilhada na garantia da segurança alimentar entre os diversos operadores económicos inseridos na cadeia de produção e comercialização do ramo alimentar, como indiscutivelmente é o caso dos estabelecimentos de abate. Estes, tal como os demais operadores do ramo alimentar que suportam as contribuições em questão, enquanto operadores do sector em causa, são beneficiários das acções e programas desenvolvidos ou apoiados pelo FSSAM, benefício esse que, como esclarece o douto aresto que se vem acompanhando, não assenta numa relação de natureza sinalagmática, uma vez que «as contribuições financeiras respeitam a feixes de prestações difusas que apenas podemos presumir provocadas ou aproveitadas por certos grupos de contribuintes».// Não padece, pois, de inconstitucionalidade orgânica o diploma que criou tributo em causa, não sendo ilegais as liquidações que a coberto dele foram praticadas. (…).


4 – Questão a decidir
É a de saber se a sentença recorrida incorreu em erro de julgamento ao não julgar ilegais as autoliquidações impugnadas, no entendimento que, à semelhança do que sucede com a “Taxa de Segurança Alimentar Mais”, a taxa SIRCA tem a natureza de “contribuição financeira”, não estando a sua criação sujeita ao princípio da legalidade nos termos em que a Constituição o manda observar relativamente a tributos com a natureza de impostos.

5 – Na sentença objecto do presente recurso foram dados como provados os seguintes factos:
A) A impugnante no exercício da sua atividade e em cumprimento do DL 19/2011, de 7 de Fevereiro, procedeu às autoliquidações da denominada taxa SIRCA em 02/02/2015, 03/03/2015 e 31/03/2015, nos montantes de €12.482,99, €17.095,18 e €13.485,70, no total de €43.063,87 (fls. 17 a 24).
B) A impugnante pagou ao IFAP esses montantes, nessas datas (fls. 17 a 24).
C) A impugnante procedeu às autoliquidações em cumprimento das instruções recebidas do IFAP (fls. 17 a 32).

6 – Apreciando
6.1 Do alegado erro de julgamento da sentença recorrida
A sentença recorrida, a fls. 196 a 206 dos autos, julgou totalmente improcedente a impugnação judicial deduzida pela ora recorrente contra autoliquidações de “taxas para financiamento do Sistema de Recolha de Cadáveres de Animais Mortos nas Explorações (SIRCA)”, no entendimento de que os tributos em causa têm a natureza de “contribuição financeira (art. 165.º, n.º 1, alínea i), da CRP) - e não de taxas ou de impostos -, podendo ser criadas por Decreto-lei sem prévia autorização da Assembleia da República.
Fundamentou-se o decidido no Acórdão proferido pelo Tribunal Constitucional em 20 de Outubro de 2015 – Acórdão n.º 539/2015, de 20 de Outubro –, a propósito da denominada taxa de segurança alimentar mais, aprovada pelo DL 119/2012, de 15 de junho, que a sentença recorrida considerou atenta a identidade jurídica das denominadas taxas SIRCA e segurança alimentar mais que as considerações expendidas a propósito desta última são integralmente aplicáveis à taxa SIRCA, com as devidas adaptações. Após longa transcrição daquele Acórdão do Tribunal Constitucional (cfr. sentença recorrida, a fls. 93 a 105 dos autos), concluiu a sentença recorrida que (s)endo a taxa SIRCA uma contribuição financeira, as liquidações impugnadas não padecem de qualquer ilegalidade por vício de violação de lei, quer por violação do art. 4.º da LGT, quer por eventual desaplicação do regime jurídico aprovado pelo DL 19/2011 por inconstitucionalidade orgânica desse DL por violação da reserva de lei formal da Assembleia da República, nos termos dos arts. 103.º, n.º 2, e 165.º, n.º 1, alínea i), da CRP.
Discorda do decidido a recorrente, persistindo na alegação de que o Decreto-Lei n.º 19/2011, de 7 de Fevereiro (…) transformou a taxa em causa num verdadeiro imposto, porquanto, conforme resulta demonstrado, os beneficiários do SIRCA são apenas os respectivos produtores e apresentantes dos animais e não os estabelecimentos de abate, que são no novo diploma os sujeitos passivos da taxa, mais alegando que a “Taxa TSAM” nada tem a ver com a “Taxa SIRCA”, cujos pressupostos e finalidade se afiguram distintos daquela taxa, daí que o decidido pelo Tribunal Constitucional quanto à “taxa de segurança alimentar mais” não possa ser transposto para a taxa “SIRCA”, que alegadamente não tem a natureza jurídica de “contribuição financeira” ou de “taxa”, mas a de imposto, sendo que a sua criação não obedeceu ao princípio da legalidade tributária, consagrado no n.º 2, do artigo 103.º, da CRP, pois o Decreto-Lei n.º 19/2011, de 7 de Fevereiro foi aprovado nos termos do artigo 198.º, n.º 1, alínea a), da CRP, ou seja, como se a matéria em causa fosse da competência não reservada da Assembleia da República, pelo que são organicamente inconstitucionais as normas constantes do Decreto-Lei n.º 19/2011, de 7 de Fevereiro, designadamente o seu artigo 2.º, n.º 1, na medida em que procede à criação de um imposto sobre os estabelecimentos de abate em desrespeito pelos supramencionados comandos constitucionais e ilegais os actos de autoliquidação sindicados.
O Excelentíssimo Procurador-Geral adjunto junto deste STA no seu parecer junto aos autos e supra transcrito pronuncia-se no sentido de que o recurso não merece provimento, pois que, em síntese, lhe parece ter a taxa SIRCA natureza jurídica de “contribuição financeira”, sendo a doutrina do douto Acórdão do T. Constitucional n.º 539/2015, de 20.10.2015 (…) inteiramente transponível para o caso dos autos.
Vejamos.
A doutrina define as “contribuições” como prestações pecuniárias e coactivas exigidas por uma entidade pública em contrapartida de uma prestação administrativa presumivelmente provocada ou aproveitada pelo sujeito passivo (cfr. Sérgio Vasques, Manual de Direito Fiscal, Almedina, 2015, p. 260).
Entende o Tribunal Constitucional, ao arrepio de doutrina qualificada – vg. Sérgio Vasques, Suzana Tavares da Silva, para quem até à aprovação do “regime geral” constitucionalmente previsto as contribuições financeiras devem continuar a ser sujeitas à reserva de lei parlamentar -, no Acórdão que a sentença recorrida invoca para fundamentar a sua decisão do sentido da não inconstitucionalidade orgânica do Decreto-lei 19/2011, de 7 de Fevereiro, não estarem as contribuições financeiras sujeitas à reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República.
Não obstante, mesmo acatando esse entendimento – não incontroverso na doutrina, como referimos já – é lícito ao julgador sindicar o regime legal do tributo paracomutativo quando este se apresente desconforme com os princípios fundamentais que devem conformar o seu regime, designadamente com o princípio da igualdade.
No regime da taxa “Sirca”, tal como configurado pelo Decreto-Lei n.º 19/2011 – e ao contrário do que sucedia no regime precedente (Decreto-Lei n.º 244/2003, de 7 de Outubro) e do que lhe sucedeu (Decreto-Lei n.º 33/2017, de 23 de Março)-, o legislador estabeleceu que Para efeitos de financiamento do SIRCA é cobrada uma taxa aos estabelecimentos de abate relativamente a bovinos, ovinos, caprinos, suínos e equídeos, produzidos no território continental e apresentados para abate (…) – cfr. o n.º 1 do artigo 2.º do Decreto-lei n.º 19/2011, de 7 de Fevereiro -, estando os estabelecimentos de abate isentos do pagamento de tal taxa relativamente a animais que provenham de explorações em que os respectivos titulares, por si ou através de organizações de produtores, recorrendo ou não à prestação de serviços de terceiros, assegurem a recolha, o transporte, a eventual concentração em unidades intermédias aprovadas para o efeito e a destruição dos animais referidos no n.º 1 mortos nas suas explorações (cfr. o n.º 4 do artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 19/2011, de 7 de Fevereiro) e bem assim relativamente a animais para abate provenientes das regiões autónomas, de trocas intracomunitárias ou importados directamente para esse efeito (cfr. o n.º 6 do artigo 2.º), neste caso estando os apresentantes de animais para abate (…) obrigados a suportar os custos inerentes à recolha, ao transporte e à destruição dos cadáveres (cfr. o artigo 3.º do Decreto-lei n.º 19/2011, de 7 de Fevereiro).
Não oferece dúvidas que estando a taxa “SIRCA” afecta ao financiamento do sistema de recolha de cadáveres de animais mortos em explorações (SIRCA) – cfr. o artigo 1.º do Decreto-lei n.º 19/2011, de 7 de Fevereiro -, é o titular da exploração, e não o estabelecimento de abate, aquele que directamente beneficia da existência e funcionamento do “SIRCA”, compreendendo-se, pois, que seja a ele que se imponha o encargo de contribuir para o financiamento de tal sistema.
A lei pretérita e posterior assim o estabeleciam, aliás – cfr. o n.º 2 do artigo 5.º e o n.º 2 do artigo 9.º do Decreto-lei n.º 244/2003, de 7 de Outubro e artigos 7.º a 10.º do Decreto-lei n.º 33/2017, de 23 de Março -, sem prejuízo de, designadamente por razões de praticabilidade, o legislador impor aos estabelecimentos de abate a obrigação de liquidação, cobrança e entrega de tal tributo.
Esta solução legal, que o Decreto-Lei n.º 19/2011, de 7 de Fevereiro não observou, é a que melhor se afigura conforme ao princípio da igualdade, na sua dimensão de equivalência, pois que onera com o tributo aquele que, no circuito produtivo, é o directo beneficiário do serviço público prestado. O estabelecimento de abate não o é, e como tal, afigura-se desconforme a tal princípio configurá-lo não como substituto tributário, com ou sem retenção, mas como contribuinte directo.
Entendemos, pois, ser inconstitucional, por violação do princípio da igualdade, na sua dimensão de equivalência (artigo 13.º da Constituição), a taxa “SIRCA” tal como configurada pelo Decreto-Lei n.º 19/2011, de 7 de Fevereiro, na medida em que configura o “estabelecimento de abate” como contribuinte directo do tributo, quando o presumível beneficiário do serviço que esta se destina a financiar é, não ele, mas o titular da exploração.

O recurso merece provimento, sendo de julgar procedente a impugnação judicial deduzida, anulando as liquidações sindicadas e ordenando a restituição dos montantes pagos à recorrente, desacompanhados, porém, de juros indemnizatórios, por inexistência de “erro imputável aos serviços” dado o fundamento de ilegalidade julgado verificado.


- Decisão -
7 - Termos em que, face ao exposto, acordam os juízes da Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo em conceder provimento ao recurso, revogar a sentença recorrida, e julgar procedente a impugnação judicial, salvo quanto aos peticionados juros indemnizatórios.

Custas pela recorrida, que contra-alegou.


Lisboa, 3 de Maio de 2017. - Isabel Marques da Silva (relatora) - Pedro Delgado - Dulce Neto.

Segue acórdão de 28 de Junho de 2017:

Acordam na Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo:

A Fazenda Pública, notificada do Acórdão proferido nos presentes autos em 3 de Maio último, que concedeu provimento ao recurso interposto por A…………, S.A., da sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal de Penafiel que julgara totalmente improcedente a impugnação judicial por ela deduzida contra autoliquidações de taxa para financiamento do Sistema de Recolha de Cadáveres de Animais Mortos nas Explorações (SIRCA), revogando a sentença recorrida e julgando procedente a impugnação salvo quanto ao peticionado pagamento de juros indemnizatórios, vem, ao abrigo do disposto nos artigos 616.º, n.º 1 e 666.º, n.º 1, ambos do Código de Processo Civil - CPC, aplicável ex vi do disposto na alínea e) do artigo 2.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário - CPPT, requerer a sua reforma quanto a custas, porquanto, em síntese, o Acórdão a condenou custas, por ter contra-alegado, quando resulta dos autos, e do próprio Acórdão recorrido, que não contra-alegou, entendendo, por isso, não dever ser condenada em custas.

Vejamos.

Consta do Acórdão recorrido, quanto à condenação em custas, o seguinte:

“Custas pela recorrida, que contra-alegou”.

Contudo, como bem diz a Fazenda Pública, a recorrida não contra-alegou no recurso, daí que não possa ser condenada na taxa de justiça devida pelo impulso processual no recurso, pois que nenhum impulso processual desencadeou na fase do recurso.

A recorrida é responsável pelas custas devidas na 1.ª instância, porque a impugnação judicial foi julgada pelo STA procedente, e pelas custas devidas pelo recurso, salvo no que tange à taxa de justiça devida pelo impulso processual, não porque tenha contra-alegado, como erradamente se fez constar do Acórdão cuja reforma quanto a custas é peticionada, mas porque, sendo vencida, se entende que deu causa à acção – artigo 527.º, n.º 1 e 2 do CPC aplicável ex vi do disposto na alínea e) do artigo 2.º do CPPT.

Pelo exposto, é de deferir o pedido de reforma quanto a custas, reformando-se o Acórdão proferido nos autos quanto a custas nos seguintes termos – fls. 289 dos autos:

“Custas pela recorrida, salvo quanto à taxa de justiça devida pelo impulso processual no recurso, pois não contra-alegou”.


- Decisão -

Termos em que, pelo exposto, acordam os juízes deste STA em reformar o Acórdão proferido nos autos quanto a custas, nos termos supra explicitados.

Sem custas.

Lisboa, 28 de Junho de 2017. - Isabel Marques da Silva (relatora) - Pedro Delgado - Dulce Neto.