Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0780/14
Data do Acordão:11/23/2016
Tribunal:1 SECÇÃO
Relator:ANA PAULA PORTELA
Descritores:REPRIVATIZAÇÃO DE BENS NACIONALIZADOS
PRINCÍPIO DA PROTECÇÃO DA CONFIANÇA
PRINCÍPIO DA BOA-FÉ
PRINCÍPIO DA AUTONOMIA DAS AUTARQUIAS
Sumário:I - A decisão de reprivatizar a A…………. [«A………..»], inserta no DL n.º 45/2014, foi feita de harmonia com o disposto no art. 293.º, n.º 1, da CRP e da Lei n.º 11/90, de 05.04 [Lei Quadro de Privatizações - «LQP»] e, por força do mesmo quadro, tinha que revestir a forma de ato legislativo já que o uso do DL assim era imposto ou exigido [cfr. arts. 01.º, 04.º, n.º 1, 07.º, n.º 1, e 13.º todos da mesma «LQP»] e não através da forma ou de ato administrativo ou de ato de direito privado, nomeadamente, de deliberação societária.
II - A matéria e regime normativo inserto no referido DL n.º 45/2014 não integra ou preenche os comandos constitucionais insertos no art. 165.º, n.º 1, al. u), da CRP.
III - A Resolução do Conselho de Ministros n.º 30/2014 concretizador da privatização da «A…………» não é pressuposto legal da alteração dos Estatutos da empresa pública B………… nem o seu conteúdo e/ou efeitos a envolvem ou a operam.
IV - A reprivatização da «A………..» e o ato impugnado concretizador da mesma, não violam os princípios da proteção da confiança, da boa-fé [arts. 02.º e 266.º, n.º 2, da CRP, e 6.º-A do CPA] e da autonomia das autarquias locais [arts. 06.º, n.º 1, 237.º, n.º 1, e 242.º, da CRP e 04.º, n.ºs 2, 4 e 6, da Carta Europeia da Autonomia Local].
Nº Convencional:JSTA000P21185
Nº do Documento:SA1201611230780
Data de Entrada:06/26/2014
Recorrente:MUNICÍPIO DE MELGAÇO
Recorrido 1:PRESIDÊNCIA DO CONSELHO DE MINISTROS E OUTRAS
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: I. RELATÓRIO
Acordam em conferência na Secção de Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo:

1. O MUNICÍPIO DE MELGAÇO vem interpor neste STA ação administrativa especial contra o Conselho de Ministros, pedindo a anulação dos atos administrativos constantes do D.L. nº 45/2014, de 20 de Março, que aprovou o processo de reprivatização da A………., assim como os constantes da Resolução do Conselho de Ministros n.º 30/2014, de 8 de Abril que procedeu à alteração dos estatutos das empresas gestoras de sistemas multimunicipais de resíduos.

1.2. Citado o Conselho de Ministros veio o mesmo apresentar contestação nas quais se defende por exceção [incompetência do tribunal e falta de identificação dos contra-interessados] e por impugnação, pugnando pela procedência da exceção e improcedência do pedido, com consequente absolvição.

1.3. Notificado para os efeitos do art.87º do CPTA veio o Município de Melgaço defender a improcedência da exceção de incompetência do tribunal e identificar como contra-interessados a A……….. e Municípios de Caminha, Monção, Paredes de Coura, Valença do Minho, Vila Nova de Cerveira e B……….

1.4. Em 28.05.2015 foi proferido despacho saneador que julgou a jurisdição administrativa incompetente, em razão da matéria, para conhecer dos atos contidos no D.L. n.º 45/2014 absolvendo-se, nesse âmbito, os RR da instância tendo no mesmo despacho sido declarado o Tribunal competente para a apreciação e julgamento da presente ação quanto à anulação dos atos contidos na Resolução do Conselho de Ministros n.º 30/2014.

1.5. Convidadas as partes a produzir as suas alegações, o Conselho de Ministros alega da seguinte forma:

“1. A Entidade Demandada mantém tudo quanto referiu na sua contestação, quer no tocante à matéria de facto, quer ao direito.

2. Aliás, a esse respeito, não deixa de ser significativa a circunstância de o Autor, na sua resposta às exceções, não ter logrado minimamente refutar as razões invocadas pela Entidade Demandada na referida contestação (sendo que, ademais, se absteve de produzir alegações), limitando-se a referir:

“Relativamente ao alegado nos artigos 38.º a 106.º da contestação do Réu, o A. vem, por economia processual e para evitar repetições desnecessárias, reiterar tudo quanto alegou na petição inicial quando defende que estamos perante verdadeiros atos administrativos cuja legalidade deverá ser sindicada pelos Tribunais Administrativos, tal como, aliás, é devidamente sustentado no parecer jurídico junto com a petição inicial.”

3. Isto muito embora o Senhor Procurador-Geral Adjunto ter, aliás, emitido um longo e douto parecer, constante dos autos, em que conclui que «a jurisdição administrativa não é materialmente competente para conhecer da presente ação administrativa especial» e, de resto, essencialmente concordando com as razões invocadas pela entidade demandada em sede de defesa por impugnação.

4. A posição do Autor implica uma inaceitável e, salvo o devido respeito, absurda inversão das regras de aplicação e hierarquia dos atos normativos no nosso ordenamento constitucional. Assim, para o Autor, aparentemente Lex priori derogat posterior e mais: lex generalis derogat legi speciali!

5. A reprivatização não é matéria subsumível às bases gerais do estatuto das empresas públicas (conforme indicia o próprio legislador constituinte, ao abordá-la separadamente, no artigo 293.º da CRP). Logo, não é, nem logicamente poderia ser, objeto de qualquer norma constante do Decreto-Lei n.º 133/2013, de 3 de outubro.

6. A operação de reprivatização em questão encontra, naturalmente, a sua habilitação legal na Lei-Quadro das Privatizações, aprovada pela Lei n.º 11/90, de 5 de abril, na versão resultante da Lei n.º 50/2011, de 13 de setembro (ao abrigo do disposto no artigo 293.º da CRP), a qual constitui uma lei de valor reforçado.

7. O artigo 4.º da Lei-Quadro das Privatizações atribui expressamente ao Governo a competência para operar, por decreto-lei, a transformação em sociedade anónima das empresas públicas a reprivatizar, bem como para aprovar os respetivos estatutos; o artigo 14.º incumbe o Governo de aprovar, por resolução do Conselho de Ministros, as condições concretas de cada operação de reprivatização.

8. A tese do Autor põe diretamente em causa o disposto no artigo 112.º, n.º 5, da Constituição, pois se apenas em assembleia geral de acionistas se pudesse proceder a uma alteração dos estatutos de uma empresa pública sob forma societária que foi criada por diploma legal, isso implicaria atribuir a atos de outra natureza o poder de, com eficácia externa, modificar os preceitos do próprio diploma legal.

9. A tese de que, uma vez criada uma sociedade e aprovados os respetivos estatutos por decreto-lei, o poder jurisgénico se esgota, não tem o mínimo fundamento jurídico, desde logo por contrariar a regra lex posterior derogat legi priori – mesmo que o legislador, por absurdo, proibisse expressamente a alteração futura dos estatutos então aprovados por ato legislativo, uma tal norma seria impotente perante nova valoração político-legislativa da matéria, consubstanciada em norma que, apresentando nível hierárquico igual ou superior, a viesse derrogar ou revogar. Nem mesmo ao legislador constituinte originário se reconhece o poder de blindar absolutamente o Texto Fundamental contra incursões em sede de revisão constitucional (recorde-se que é pacificamente aceite que os limites materiais à revisão constitucional, estabelecidos no artigo 288.º, são superáveis mediante a chamada dupla revisão)!

10. Acresce que a suposta intenção de “blindagem” dos estatutos das entidades gestoras de sistemas multimunicipais contra alterações futuras não se acha minimamente expressa, ou sequer implícita, em qualquer dos respetivos atos legislativos, nem o Autor tenta sequer prová-lo.

11. A distinção entre classes de ações, a que se agarra o Autor, pertence ao passado – trata-se de direito pretérito, pois foi revogada por leis posteriores. A interpretação contrária, propugnada pelo Autor, levaria a concluir que inexiste unidade ou coerência no ordenamento jurídico e que o legislador pretendeu criar uma paradoxal situação de coexistência de algo e do seu contrário. Para o Autor, o legislador ─ mediante atos jurídicos de igual valor normativo -, ao mesmo tempo que permite o acesso por privados à totalidade do capital social da Concessionária e que estabelece regras destinadas a alienar a privados esse mesmo capital, considera essa mesma alienação como ferida de nulidade! Tal interpretação não faz qualquer sentido.

12. Do processo de reprivatização da A………. não resulta qualquer redução do papel dos municípios: estes, se assim o tiverem entendido, mantêm a sua participação social na concessionária, enquanto acionistas minoritários, com os mesmos direitos e deveres que tinham antes da reprivatização.

13. Não há qualquer violação do princípio da autonomia local, pois a Constituição não só é totalmente omissa quanto à definição concreta das matérias de competência autárquica, excluída a indicação do artigo 65.º, n.º 4 (habitação e urbanismo), como rejeita a «ideia de responsabilidade autónoma na gestão de um universo de interesses próprios» na definição da autonomia local, segundo a fórmula do Acórdão n.º 107/2003 do Tribunal Constitucional. Ademais, no que respeita ao domínio dos resíduos (e da gestão de sistemas multimunicipais, cuja titularidade – recorde-se – é do Estado e apenas deste, independentemente das entidades concessionárias), o interesse local deve necessariamente ser articulado com o interesse público a nível nacional.

14. Não se verifica, também, qualquer violação do princípio da confiança legítima e do dever de lealdade entre acionistas, pois desde há muito tempo que existem indícios consistentes da vontade do Governo implementar as medidas necessárias à abertura do sector dos resíduos ao sector privado, a saber: conjunto de diplomas legislativos a que o Decreto-Lei n.º 45/2014, de 20 de março, vem dar seguimento, numa evolução legislativa que aturadamente descrevemos na contestação, que denota uma forte intencionalidade liberalizante, que se foi, aliás, acentuando progressivamente; a evolução geral no sentido de uma progressiva diminuição do peso do Estado na economia e da associação de entidades privadas à prossecução de fins que diretamente correspondem à satisfação de interesses públicos – objetivo aliás já enunciado explicitamente na Lei n.º 11/90, de 5 de abril (Lei-Quadro das Privatizações), há 25 anos atrás.

15. O Autor, de resto, nem sequer prova ou mesmo invoca a verificação de qualquer comportamento do Estado apto a formar tal confiança, sendo que as meras crenças ou convicções psicológicas, não assentes em quaisquer factos concretos, não são aptas a dar origem a uma situação de confiança juridicamente protegida, como tem entendido pacificamente o STA.

16. Aliás, dificilmente a reprivatização da A………. e da Concessionária afetaria qualquer posição de confiança do Autor, dado que estas em nada afetam a continuação da existência e da utilidade de quaisquer alegados investimentos passados, pelo que o Autor continuará a beneficiar deles nos mesmos termos em que o fez até aqui. Recorde-se que, após a reprivatização, o Autor continuará a ser acionista minoritário da Concessionária, com os mesmos direitos e deveres que tinha anteriormente.

17. Acresce ainda que foi oferecida ao Autor e a todos os demais municípios acionistas a oportunidade, como acionistas, de exercer um direito de opção de venda das suas participações sociais em condições extremamente vantajosas, nos termos do artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 45/2014, de 20 de março – direito esse que o Autor entendeu por bem não utilizar. A violentação da confiança legítima só poderia ser ponderada se os sócios fossem obrigados a manter a sua posição jurídica na sociedade agora transferida para o setor privado, não podendo desvincular-se de um compromisso que teriam assumido em circunstâncias distintas. No presente caso, nenhum município foi mantido contra a sua vontade numa sociedade que passará a conviver com capitais maioritariamente privados.

18. A atuação do Governo foi inteiramente leal – no quadro das competências que lhe são constitucionalmente confiadas, nomeadamente os poderes legislativos. O Autor, como todos os demais municípios acionistas da Concessionária e ainda a Associação Nacional de Municípios Portugueses, foram ouvidos no âmbito do procedimento legislativo que deu lugar aos diplomas que concretizam o processo de privatização da A…………. e das várias Concessionárias. Além disso, foi-lhes dada a já referida oportunidade, como acionistas, de exercer o direito de opção de venda das suas participações sociais.

19. Acresce que a reprivatização da A………….. surge também no contexto dos compromissos internacionais assumidos pelo Governo, os quais impõem o cumprimento dos objetivos e das medidas previstas no Programa de Assistência Económica e Financeira que envolve a Comissão Europeia, o Fundo Monetário Internacional e o Banco Central Europeu, sendo certo que Portugal continua a ter de prestar contas aos seus credores mesmo após o fim do referido programa, até que a dívida contraída nesse contexto se encontre saldada.

20. Em conclusão, por todas as razões aqui apresentadas, deve entender-se que, manifestamente, não procedem os vícios invocados, tendo de soçobrar na íntegra a pretensão do Autor. “

Nestes termos, e nos mais de direito que V. Exas. mui doutamente suprirão, deve a entidade demanda ser absolvida do pedido por falta de fundamento das alegadas invalidades do Decreto-Lei n.º 45/2014, de 20 de março, e da Resolução do Conselho de Ministros n.º 30/2014, de 8 de abril (que não sofrem de nenhum dos invocados vícios).”

1.6. A A……………., S.A. (A…………) apresenta contra-alegações a fls. 417/424 que conclui da seguinte forma:

“Em fase do exposto, forçoso será concluir que inexistem quaisquer atos administrativos ínsitos na Resolução 30/2014 que padeçam de quaisquer vícios de ilegalidade e inconstitucionalidade relacionados com a alteração estatutária da B………………pela simples, mas decisiva, razão de que, a um tempo, a Resolução 30/2014 aprova o regulamento administrativo que disciplinou o concurso público para reprivatização da A………., não contendo quaisquer atos administrativos, e, a outro tempo, a alegada alteração estatutária não resulta da Resolução 30/2014, tendo sido antes operada pelo Decreto-Lei n.º 103/2014, de 2 de julho, publicado já depois de a presente ação ter sido proposta.

Com efeito, a Resolução 30/2014, em concretização do Decreto-Lei 45/2014 e tal como neste se encontra expressamente previsto, limita-se a aprovar o regulamento administrativo disciplinador do processo de reprivatização da A……….. – constituindo, assim, um regulamento administrativo e não mero ato administrativo –, não introduzindo qualquer alteração aos estatutos da B………, pelo que nenhuma invalidade lhe pode ser assacada.

Ademais, a Resolução 30/2014, que encontra precisamente no Decreto-Lei 45/2014 a sua lei habilitante, está em plena conformidade com o respetivo regime legal, pelo que, também a este nível, nenhuma invalidade lhe pode ser imputada.

Nestes termos e nos demais de Direito que V. Exas doutamente suprirão, deve a presente ação improceder, por não provada, com as legais consequências.”

1.7.O A. não apresentou alegações.

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Colhidos os vistos, cumpre decidir.

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II. FACTOS COM INTERESSE PARA A CAUSA:

1_ O Município de Melgaço é acionista, juntamente com a A…………., S.A. (A…………..) e mais 5 municípios, da sociedade gestora do sistema multimunicipal de triagem, recolha seletiva, valorização e tratamento de resíduos sólidos urbanos do Vale do Minho, a B……………, S.A (adiante B…………….).

2_ O DL nº113/96, de 05.08, criou o «sistema multimunicipal de triagem, recolha seletiva, valorização e tratamento de resíduos sólidos urbanos do Vale do Minho», integrando, como seus utilizadores originários, os municípios de CAMINHA, MELGAÇO, MONÇÃO, PAREDES DE COURA, VALENÇA e VILA NOVA DE CERVEIRA - artigo 1º - bem como aprovou os Estatutos da respectiva concessionária.

3_ A «exploração e gestão» desse sistema multimunicipal foram adjudicadas, em regime de concessão exclusiva, à B……………, SA, por um período de 25 anos, nos termos do DL nº294/94, de 16.11 [que estabelece o regime jurídico da concessão da exploração e gestão de resíduos multimunicipais de tratamento de resíduos sólidos urbanos] - artigo 3º, nº1, do DL nº113/96, de 05.08; e artigo 1º, nº1, do DL nº294/94, de 16.11.

4_ A B……………. rege-se pelo DL nº113/96, de 05.08, lei comercial e respectivos «Estatutos» publicados em Anexo a este diploma legal - artigos 2º, nºs 1 e 2, e 5º, nº1, do DL 113/96, de 05.08.

5_ O capital social da B……………… divide-se em ações «classe A» e «classe B», devendo as ações da «classe A» representar, no mínimo, 51% do capital social com direito a voto, e delas apenas poderiam ser titulares os municípios utilizadores do referido sistema multimunicipal de tratamento de resíduos sólidos urbanos e os entes públicos, entendidos estes nos termos da alínea e) do nº2 do artigo 1º da Lei nº71/88, de 24.05 - artigo 6º, nº3, do DL nº113/96, de 05.08; e artigos 6º, nº2, e 9º dos Estatutos da B……………

6_ A A………. é uma sociedade de capitais integralmente públicos, «sub-holding» do grupo C………. [C……….], que tem como objecto a gestão integrada dos resíduos sólidos urbanos [RSU], assegurando o tratamento e valorização dos resíduos, em regime de parceria com os municípios que fazem parte integrante de diversos sistemas multimunicipais criados para o efeito pelo DL nº294/94, de 16.11 [entretanto alterado pelo DL nº221/2003, de 20.09, e pelo DL nº195/2009, de 20.08].

7. A C………….. é, presentemente, titular da totalidade do capital social da A…………

8. Em 03.10.2013, no uso da autorização legislativa concedida pela Lei nº18/2013, de 18.02, foi publicado no DR, 1ª série, nº191, o DL nº133/2013, aqui dado por integralmente reproduzido, o qual estabelece os princípios e regras aplicáveis ao sector público empresarial, incluindo as bases gerais do estatuto das empresas públicas.

9. Em 20.03.2014, foi publicado no DR, 1ª série, nº56, o DL nº45/2014, aqui dado por integralmente reproduzido, que aprovou o processo de «reprivatização» da A………. e definiu os respectivos trâmites de procedimento.

10. O processo de reprivatização da A…………. ocorre mediante alienação das ações representativas de até 100% do seu capital social - artigo 2º, nº1, do DL nº45/2014, de 20.03.

11. A alienação das ações da A…………. efetua-se através de um concurso público e de uma oferta pública de venda dirigida aos seus trabalhadores, a realizar nos termos previstos na Lei nº11/90, de 05.04 [alterada pelas Leis nºs 102/2003, de 15.11, e Lei nº50/2011, de 13.09], e no DL nº45/2014, de 20.03.

12. Em 08.04.2014, foi publicada no DR, 1ª série, nº69, a RCM nº30/2014, que aqui se dá por integralmente reproduzida, e de onde se extrai, nomeadamente, o seguinte:

“Nos termos do nº1 do artigo 14º do DL nº45/2014, de 20.03, e das alíneas c) e g) do artigo 199º da Constituição, o Conselho de Ministros resolve:

1- Determinar que são alienadas 100% das ações da A………. e que o concurso público previsto no nº2 do artigo 2º do DL nº45/2014, de 20.03, tenha por objecto ações representativas de 95% do capital social da A……………..

2- Aprovar o caderno de encargos do concurso público, constante do anexo I à presente resolução, da qual faz parte integrante, no qual se estabelecem os termos e condições específicos a que obedece o concurso público previsto no número anterior.

3- Aprovar os termos do exercício pelos municípios da opção de alienação das participações sociais por aqueles detidas no capital das entidades gestoras de sistemas multimunicipais nas quais a A……….. é acionista, bem como do exercício do direito de preferência pelos restantes municípios da mesma entidade gestora, relativamente à referida alienação, os quais constam do caderno de encargos a que e refere o número anterior.

4- Determinar a abertura do concurso público previsto no nº2 do artigo 2º do DL nº45/2014, de 20.03, através do envio para publicação do anúncio no Jornal Oficial da União Europeia e no Diário da República.

5- Aprovar, no anexo II à presente resolução, da qual faz parte integrante, algumas condições da oferta pública de venda de ações da A………., dirigida exclusivamente a trabalhadores da A……….., no âmbito da qual os referidos trabalhadores podem adquirir ações representativas de 5% do capital social da A………..

6- Determinar que as ações que não sejam vendidas a trabalhadores, assim como aquelas cuja transmissão não se concretize, acrescem automaticamente às ações a adquirir pelo vencedor do concurso público, obrigando-se este a adquirir tais ações pelo preço por ação constante da sua proposta vinculativa.

7- Determinar que ao abrigo do artigo 16º do DL nº45/2014, de 20.03, compete à Ministra de Estado e das Finanças, com faculdade de subdelegação no Secretário de Estado das Finanças, aprovar o convite e todos os aspectos que, nos termos do caderno de encargos, devam ser fixados no mesmo.

8- Constituir uma comissão especial nos termos do artigo 20º da Lei nº11/90, de 05.04, alterada pelas Leis nºs 102/2003, de 15.11, e 50/2011, de 13.09, a qual é composta por três membros a nomear por despacho do Primeiro-Ministro.

9- Determinar que, nos termos do artigo 19º do DL nº45/2014, de 20.03, o Governo, através da D…………., coloca à disposição do Tribunal de Contas toda a documentação que integra o processo de venda, incluindo os pareceres e relatórios previstos na lei que regula estes processos.

10- Determinar que a presente resolução entra em vigor no dia seguinte ao da sua publicação.”

13. Em 10.04.2014, foi publicado no DR, II Série, nº71, Anúncio de procedimento nº1988/2014, relativo ao concurso público para a reprivatização da A…………, aqui dado por reproduzido.

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3. O DIREITO

3.1. DAS QUESTÕES A DECIDIR

Face aos termos da decisão proferida no saneador quanto à competência da jurisdição deste Tribunal e atentos os limites aí fixados para o âmbito do prosseguimento dos presentes autos, ilegalidades da RCM n.º 30/2014, cumpre conhecer das seguintes questões suscitadas na petição:

1_ «Inconstitucionalidade orgânica» que deriva da alteração unilateral dos estatutos da empresa pública B……….., por estar em causa matéria relativa a bases gerais das empresas públicas, que são da competência legislativa exclusiva da AR [artigo 165º, nº1 alínea u), da CRP].

2_ «Inconstitucionalidade material» por violação das normas que garantem a autonomia local e princípios da autonomia das autarquias locais.

3_“ Inconstitucionalidade material” por violação dos princípios da segurança jurídica, proteção da confiança, e proporcionalidade [arts. 02.º e 18º nº2 CRP].

4_Violação do regime previsto no Código das Sociedades Comerciais, e do dever de lealdade sobre os acionistas na alteração estatutária da B………..

Quanto às diversas questões suscitadas vamos seguir de perto o já decidido por este STA nos Processos 860/14, 910/14 e 800/14, todos de 13/10/2016 que aqui damos por reproduzidos, por aderência à fundamentação aí veiculada.

Comecemos por chamar aqui à colação todos os considerandos que nestes processos são feitos quanto à resenha histórica da normatividade aqui em questão, e em que se estabelece o contexto em que surge a decisão de aprovação do processo de reprivatização de até 100% das ações representativas do capital social da empresa «A……….», operada pelo DL nº45/2014 através dum concurso público e da oferta pública de venda dirigida a trabalhadores da mesma empresa, processo esse aberto pelo ato impugnado e de publicação do DL nº103/2014, de 02.07, que procedeu à alteração do DL nº113/96 […] e dos estatutos da «B………».

Como se diz nos referidos acórdãos e agora com referência ao caso concreto podemos decalcar a argumentação aí invocada quanto à situação dos autos, ou seja que:

IX. Assim, como primeiro ponto de enquadramento impõe-se ter como presente que a «A………», constituída como «Empresa Geral do Fomento, S.A.R.L.» em 22.12.1947, fazia parte do grupo empresarial «……….» tendo, em 25.09.1975 e nos termos do disposto no DL nº532/75, ingressado no sector público empresarial do Estado por efeito da sua nacionalização juntamente com as demais empresas que, à data, integravam aquele grupo […].

X. E, através do DL nº496/76, de 26.06 [diploma que veio aprovar os estatutos do então «Instituto de Participações do Estado» - «IPE»], foi transferida para o património deste Instituto [ver artigo 45º do Estatuto deste] enquanto integrada naquilo que constituiu a resposta, tal como decorre do preâmbulo do referido diploma, aos problemas surgidos com o facto da nacionalização de sectores básicos da economia nacional ter transferido «para o sector público um volume significativo de participações em empresas com estatuto de direito privado» e em que «grande parte das sociedades, atuando nesses sectores, desempenharam também importantes funções de controlo económico, quer através da detenção direta de partes de capital, quer através da implantação de uma complexa rede de participações cruzadas», com especial reflexo na «nacionalização de sociedades holding», como era o caso da «A……….» no seio do grupo que integrava no momento da nacionalização.

XI. É esse seu anterior perfil que vem a ser aproveitado, integrando, nomeadamente, o universo jurídico-público das empresas com vocação para a consultoria empresarial e para a gestão de participações sociais, a ponto de, enquanto sociedade de capitais integralmente públicos, ser desde 2000 uma «sub-holding» do grupo «C……………» qualidade e enquadramento que se mantinham a quando da publicação do DL nº45/2014.

XII. Por outro lado e contextualizando a decisão de aprovação do processo de reprivatização de até 100% das ações representativas do capital social da empresa «A………..», operada pelo referido DL, temos que a mesma ocorre no quadro de reforma que se operou ao nível da delimitação sectores, no caso, das regras de acesso da iniciativa privada à atividade de recolha, tratamento e rejeição de efluentes e de resíduos.

XIII. Com efeito, importa ter presente que a Lei nº46/77, de 08.07 [Lei de Delimitação de Sectores] havida sido objecto, nomeadamente, em 1993, de alteração no seu artigo 4º pelo DL nº372/93, de 29.10 [emitido no uso de autorização legislativa concedida pela Lei nº58/93, de 06.08], passando aí a prever-se, no que releva para a questão em discussão, que estava «vedado a empresas privadas e a outras entidades da mesma natureza o acesso às seguintes atividades económicas: […] a) Captação, tratamento e distribuição de água para consumo público, recolha, tratamento e rejeição de efluentes, em ambos os casos através de redes fixas, e recolha e tratamento de resíduos sólidos, no caso de sistemas multimunicipais; […] b) Captação, tratamento e distribuição de água para consumo público, recolha, tratamento e rejeição de efluentes, em ambos os casos através de redes fixas, e recolha e tratamento de resíduos sólidos, no caso de sistemas municipais, salvo quando concessionadas» [nº1], que «para o efeito do disposto nas alíneas a) e b) do número anterior, consideram-se, respectivamente, sistemas multimunicipais os que sirvam pelo menos dois municípios e exijam um investimento predominante a efetuar pelo Estado em função de razões de interesse nacional, e sistemas municipais todos os demais, bem como os sistemas geridos através de associações de municípios» [nº2], sendo que «as atividades referidas na alínea a) do nº1 e que se mantêm vedadas a empresas privadas e a outras entidades da mesma natureza podem ser exercidas, em regime de concessão, a outorgar pelo Estado, por empresas que resultem da associação de entidades do sector público, designadamente autarquias locais, em posição obrigatoriamente maioritária no capital social da nova sociedade, com outras entidades privadas» [nº3].

XIV. E que na sequência e no contexto dessa alteração havia, então, sido publicado o DL nº379/93, de 05.11, diploma através do qual se estabeleceu o regime de exploração e gestão dos sistemas multimunicipais e municipais das atividades de captação, tratamento e distribuição de água para consumo público, de recolha, tratamento e rejeição de efluentes e de recolha e tratamento de resíduos sólidos, e em que se reafirmou a titularidade estadual dos sistemas multimunicipais e a dos sistemas municipais pelos municípios ou associações de municípios, possibilitando-se, todavia, a entrada de capital privado nas entidades concessionárias responsáveis pela gestão e exploração dos sistemas multimunicipais sempre que tal capital privado mantivesse uma posição minoritária [ver seu artigo 3º, nº1 - exigência essa reiterada pelo artigo 3º do DL nº294/94, de 16.11 (diploma onde foi fixado o regime aplicável à gestão e exploração desses sistemas e que aprovou as bases das respectivas concessões, impondo-se no mesmo que cada concessionária fosse uma «empresa pública ou uma sociedade de capitais exclusiva ou maioritariamente públicos»)], sendo que, quanto aos sistemas municipais, permitiu-se também atribuição, em regime de concessão, da exploração e da gestão destes últimos a entidade pública ou privada de natureza empresarial, bem como a associação de utilizadores [ver, nomeadamente, os artigos 1º, 3º e 6º do referido DL].

XV. Assim, como veio a ser publicado o DL nº113/96, de 05.08 [adaptação feita aos presentes autos], ainda em materialização do regime definido pelo referido DL nº379/93, sendo que através daquele diploma, mormente e no que aqui releva para os autos, foi, por um lado, criado o sistema multimunicipal de triagem, recolha seletiva, valorização e tratamento de resíduos sólidos urbanos do «Vale do Minho», no qual o autor figura entre os municípios utilizadores originários, e, por outro, aprovados os estatutos da sociedade «B……………, S.A.» [nos termos constantes do anexo do referido DL], atribuindo-lhe o exclusivo da exploração e gestão do referido sistema multimunicipal em regime de concessão nos termos do referido DL nº294/94 e por um período de 25 anos [artigo 3º, nº1, do DL nº113/96 de 05.08].

XVI. De notar que a opção legislativa que havia sido feita no DL nº372/93 veio, entretanto, a ser reafirmada pela nova «Lei de Delimitação de Sectores» [a supra citada Lei nº88-A/97], já que esta manteve ainda a atividade do sector dos resíduos entre o leque de actividades de acesso vedado a entidades privadas [artigo 1º, nº1, alínea a)], permitindo, todavia, que fosse autorizada a sua «concessão» desde que cumprida a condição da concessionária manter capitais maioritariamente públicos, incluindo nestes os capitais detidos por autarquias [ver artigo 1º, nºs 1 e 3].

XVII. Ocorre que este regime, por força da referida Lei nº35/2013, veio a sofrer no domínio do sector dos resíduos uma significativa alteração, porquanto após mudança do critério relevante para qualificação dos sistemas multimunicipais [passou a ter, como critério único, os que servindo pelo menos dois municípios «exijam a intervenção do Estado em função de razões de interesse nacional» - sublinhado nosso - sem qualquer referência ou apelo ao saber se existe ou não um investimento predominante do Estado [ver nº2 do artigo 1º)], eliminou-se do leque de atividades que só poderiam ser concessionadas a entidades dotadas de capitais maioritariamente públicos a relativa à gestão e exploração da recolha e tratamento de resíduos sólidos [ver nº3 do artigo 1º].

XVIII. De tal eliminação decorreu, assim, o desaparecimento do impedimento legal da possibilidade de outorga pelo Estado da concessão de sistemas multimunicipais de gestão e exploração da recolha e tratamento de resíduos sólidos a empresas cujo capital social fosse maioritária ou integralmente subscrito por entidades do sector privado [ver artigo 1º, nº5, alínea b)].

XIX. E é em consonância com esta alteração que veio, então, a ser publicado o também aludido DL nº92/2013, o qual, revogando e substituindo o DL nº379/93, reiterou a opção de eliminação da atividade de recolha e tratamento de resíduos sólidos do leque de atividades reservadas a concessionárias do sector público empresarial [ver teor do artigo 1º, nº3 - onde, quanto aos sistemas multimunicipais, a exigência no capital social da entidade de natureza empresarial concessionária de capitais exclusivamente públicos ou duma posição obrigatoriamente maioritária de entidades públicas em associação apenas figura a atividade de captação, tratamento e distribuição de água para consumo público e de recolha, tratamento e rejeição de efluentes], viabilizando, assim, a realização de operações de alienação de participações sociais maioritárias a privados no sector dos resíduos.

XX. Pode, aliás, ler-se no seu preâmbulo que «em coerência com a alteração à Lei de Delimitação de Sectores efectuada pela Lei nº35/2013 […] introduzem-se as modificações necessárias à viabilização da operação de alienação de participações sociais a privados no sector dos resíduos, desaparecendo a regra da maioria pública nas entidades gestoras no subsector dos resíduos e, consequentemente, os poderes “in-house” do concedente sobre essas entidades» e que a «revisão do conceito de sistema multimunicipal, agora associado a razões de interesse nacional e desligado das necessidades de investimento predominante a realizar pelo Estado, permite reconduzir a esse conceito sistemas cuja titularidade estatal assenta em outras razões de interesse nacional».

XXI. É, pois, em todo este contexto que, como vimos, por um lado, surge a decisão de aprovação do processo de reprivatização de até 100% das ações representativas do capital social da empresa «A…………», operada pelo DL nº45/2014 através dum concurso público e duma oferta pública de venda dirigida a trabalhadores da mesma empresa, processo esse aberto pelo ato impugnado e que aprovou ainda o respectivo caderno de encargos do concurso e condições daquela oferta, bem como condições de exercício pelos municípios do direito preferência e da opção de alienação das participações sociais por aqueles detidas no capital das entidades gestoras dos sistemas multimunicipais nas quais a «A……………..» é accionista.

XXIII. Atente-se que, mercê da sua natureza e posição, a A……….. constituiu o «veículo» utilizado pelo Estado Português para assegurar o cumprimento da obrigação de manutenção da titularidade maioritariamente pública do capital social que derivava do quadro normativo anterior à reforma iniciada neste domínio em 2013, para o efeito figurando como acionista maioritária das 11 empresas concessionárias encarregadas de gerir os sistemas multimunicipais de valorização e tratamento de resíduos sólidos urbanos.

XXIV. A mesma ficou responsável pela titularidade de, pelo menos, 51% do capital de cada uma das entidades concessionárias que receberam a gestão e exploração de um sistema multimunicipal, ficando os municípios abrangidos por cada sistema com a titularidade de uma posição minoritária.

Tendo presente o referido contesto histórico que esteve na base do ato aqui em causa atenhamo-nos aos concretos vícios aqui suscitados pelo autor.

3.2. Começa o autor por invocar a «inconstitucionalidade orgânica» que deriva, a seu ver, da alteração unilateral dos estatutos da empresa pública B…………….., por estar em causa matéria relativa a bases gerais das empresas públicas, que são da competência legislativa exclusiva da AR [artigo 165º, nº1 alínea u), da CRP].

A este propósito, e por total concordância extrai-se do referido acórdão deste STA proferido no âmbito do proc. 800/14:

XXVII. Como resulta dos próprios termos insertos no DL nº45/2014 [ver preâmbulo e quadro normativo de habilitação invocado no mesmo] o processo de reprivatização da «A………….» rege-se «pelo disposto na Lei nº11/90 […] (Lei Quadro das Privatizações)», sendo que o Governo emanou o referido DL ao abrigo das competências e poderes que, constitucionalmente, lhe são conferidos pelas alíneas a) e c) do artigo 198º da CRP.

XXVIII. Para além do assento na competência legislativa do Governo definida pelo comando constitucional, faz-se, ainda, apelo no mesmo e enquanto também padrão normativo de referência à «LQP», diploma este que aprovou e no qual está contida a disciplina das operações de reprivatização da titularidade ou do direito de exploração dos meios de produção e outros bens nacionalizados depois de 25 de Abril de 1974 previstos no nº1 do artigo 293º da CRP [ver artigo 1º da «LQP»].

XXIX. Resulta deste preceito, o qual tem por epígrafe «reprivatização de bens nacionalizados depois de 25 de Abril de 1974», que «lei-quadro, aprovada por maioria absoluta dos Deputados em efetividade de funções, regula a reprivatização da titularidade ou do direito de exploração de meios de produção e outros bens nacionalizados depois de 25 de Abril de 1974, observando os seguintes princípios fundamentais: […] a) A reprivatização da titularidade ou do direito de exploração de meios de produção e outros bens nacionalizados depois do 25 de Abril de 1974 realizar-se-á, em regra e preferencialmente, através de concurso público, oferta na bolsa de valores ou subscrição pública; […] b) As receitas obtidas com as reprivatizações serão utilizadas apenas para amortização da dívida pública e do sector empresarial do Estado, para o serviço da dívida resultante de nacionalizações ou para novas aplicações de capital no sector produtivo; […] c) Os trabalhadores das empresas objecto de reprivatização manterão no processo de reprivatização da respectiva empresa todos os direitos e obrigações de que forem titulares; […] d) Os trabalhadores das empresas objecto de reprivatização adquirirão o direito à subscrição preferencial de uma percentagem do respectivo capital social; […] e) Proceder-se-á à avaliação prévia dos meios de produção e outros bens a reprivatizar, por intermédio de mais de uma entidade independente» [nº1], sendo que, nos termos do seu nº2, «as pequenas e médias empresas indiretamente nacionalizadas situadas fora dos sectores básicos da economia poderão ser reprivatizadas nos termos da lei».

XXX. Foi em concretização deste comando que veio a ser publicada a referida «LQP» da qual e no que releva se extrai que «a reprivatização da titularidade realizar-se-á, alternativa ou cumulativamente, pelos seguintes processos: a) Alienação das acções representativas do capital social; b) Aumento do capital social» [artigo 06º, nº1] e que esses processos são «realizados, em regra e preferencialmente, através de concurso público ou oferta pública nos termos do Código dos Valores Mobiliários» [ver nº2 deste preceito], sendo que «a reprivatização através de concurso público será regulada pela forma estabelecida no artigo 4º, no qual se preverá a existência de um caderno de encargos, com a indicação de todas as condições exigidas aos candidatos a adquirentes» [ver artigo 7º, nº1], ou seja, sujeita ao disposto nesta lei e mediante emissão de decreto-lei [ver artigo 4º, nº1 - DL esse através do qual se «aprovará o processo, as modalidades de cada operação de reprivatização, designadamente os fundamentos da adopção das modalidades de negociação previstas nos nºs 3 e 4 do artigo 6º, as condições especiais de aquisição de acções e o período de indisponibilidade a que se referem os artigos 11º, nº1, e 12º, nº2» - ver artigo 13º, nº1] e em que «a sociedade anónima que vier a resultar da transformação continua a personalidade jurídica da empresa transformada, mantendo todos os direitos e obrigações legais ou contratuais desta» [ver artigo 4º, nº3], competindo ao Conselho de Ministros a emissão de «decisão final sobre a apreciação e selecção dos candidatos» [ver nº2 do referido artigo 7º], bem como a aprovação «por resolução, de acordo com a lei, as condições finais e concretas das operações a realizar em cada processo de reprivatização» [ver artigo 14º].

XXXI. De referir, ainda, que o regime da «LQP» aplica-se também e com as devidas adaptações «à reprivatização da titularidade das empresas nacionalizadas que não tenham o estatuto de empresa pública» [ver seu artigo 25º].

XXXII. Tratando-se no caso da «A………..» dum processo de transferência do sector público para o sector privado de bem antes pertencente a este último sector e que havia sido nacionalizado após o 25 de Abril de 1974, […] daí denominar-se de «reprivatização» e não «privatização», afigura-se, à luz do que conjugadamente se disciplina nos artigos 165º, nº1, alíneas l) e u), e 293º da CRP, como correto e acertado o padrão normativo a que se fez apelo no DL nº45/2014, porquanto este diploma radica efetivamente o seu enquadramento e emissão no regime definido pela «LQP» enquanto concretização do comando constitucional previsto não no dito artigo 165º mas no artigo 293º.

XXXIII. Com efeito, presente a evolução registada no texto constitucional, após a várias revisões, e uma vez analisados os termos e o teor dos atuais comandos em confronto, ressalta, por um lado, a existência duma clara separação entre aquilo que é a cláusula de reserva de competência legislativa referente às «bases gerais do estatuto das empresas públicas» [alínea u), do nº1, do artigo 165º da CRP] e aquilo que constitui cláusula competencial respeitante à definição dos «meios e formas de [...] privatização dos meios de produção» [alínea l), do nº1, do artigo 165º da CRP], tanto mais que não são confundíveis a legiferação que disciplina as regras de transferência de propriedade e da natureza duma empresa, fazendo-a abandonar o universo jurídico-público e ingressar no sector privado, mas mantendo-a, enquanto unidade jurídico/produtiva ou aglomerado económico, sob controlo de sujeitos privados, por contraposição com aquela em que se definem as bases gerais ou o regime jurídico aplicáveis às empresas públicas enquanto tais.

XXXIV. Para além disso, da evolução e teor dos aludidos comandos constitucionais extrai-se, ainda, uma outra separação ou diferenciação em termos de reservas competênciais entre aquilo que é a definição do regime normativo para as operações de reprivatização da titularidade ou do direito de exploração dos meios de produção e outros bens nacionalizados depois de 25 de Abril de 1974 [previsto no artigo 293º da CRP e nele se incluindo apenas as operações de reprivatização incidentes sobre os meios de produção e bens alvo de nacionalização por parte das leis ordinárias publicadas entre 25 de Abril de 1974 e a data da entrada em vigor da Constituição de 1976 [ver Jorge Miranda e Rui Medeiros in: Constituição Portuguesa Anotada, Tomo III, Coimbra 2007, página 980; António de Sousa Franco e Guilherme D’Oliveira Martins in: A Constituição Económica Portuguesa. Ensaio Interpretativo, Coimbra 1993, página 278] e a definição geral do regime legal relativo às operações de privatização ou reprivatização que incidam sobre a titularidade ou direitos de exploração de meios de produção ou outros bens que ali não estejam abrangidos [ver artigo 165º, nº1, alínea l), da CRP - no qual se incluem, assim, a legiferação sobre as operações que vierem a recair sobre meios de produção/bens que nunca tenham sido alvo de nacionalização, bem como as operações incidentes sobre meios de produção/bens que tenham sido alvo de nacionalização antes de 25 de Abril de 1974 e, bem assim, das nacionalizações que ocorreram ou venham a ocorrer após a data da entrada em vigor da Constituição de 1976 (ver, Jorge Miranda e Rui Medeiros in: ob. cit., páginas 979/981)].

XXXV. Aliás, como referem Jorge Miranda e Rui Medeiros a «figura da privatização, ou seja, […] o processo de transferência para o sector privado de bens integrantes do sector público que nunca anteriormente estiveram integrados naquele sector privado […] está assim fora da órbita de atuação do artigo 293º da Constituição, sendo matéria de reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República [artigo 165º, nº1, alínea l)]», sendo que da conjugação dos referidos preceitos «divisam-se claramente dois regimes básicos relativos à transferência de bens do sector público para o sector privado» já que quanto ao regime da reprivatização de bens nacionalizados depois de 25 de Abril de 1974 o mesmo é «objecto de concretização jurídica através de lei-quadro parlamentar aprovada segundo um procedimento qualificado e com respeito de determinados princípios materiais» ao passo que o regime de privatizações dos restantes bens ou meios de produção públicos será fixado «através de uma lei da competência legislativa de reserva relativa da Assembleia da República, bastando para a sua aprovação uma maioria simples de deputados, podendo também ser fixado mediante decreto-lei autorizado, em qualquer caso sem subordinação aos princípios substantivos e procedimentais consagrados no nº1 do artigo 293º da Constituição» [in: ob. cit., página 979] [ver, igualmente, Paulo Otero in: Privatizações, Reprivatizações e Transferências de Participações Sociais no Interior do Sector Público, Coimbra 1999, páginas 43/44].

XXXVI. Aquela «LQP» foi concebida, tal como sustentou o Tribunal Constitucional [ver Acórdão nº71/90 (…)] «como uma norma sobre a produção normativa [à semelhança do que sucede com as leis de autorização legislativa, com as denominadas leis de enquadramento …], destinada a desempenhar uma função habilitante, na medida em que constitui pressuposto da prática, pelo Governo, dos atos normativos de reprivatização de cada empresa pública ou nacionalizada [os decretos-leis de transformação das empresas em causa em sociedades anónimas … e as resoluções do Conselho de Ministros que aprovam as condições finais e concretas das operações a realizar em cada processo de reprivatização…] e dotada de uma primariedade material e hierárquica [porque conformadora daqueles decretos-leis e daquelas resoluções e sobre uns e outras naturalmente prevalecente, não só em razão da sua específica função hierárquico-normativa, mas também por força do princípio da repartição de competências entre os órgãos de soberania - já que versando matéria sobre a qual primariamente só o Parlamento detém competência legislativa]», tratando-se de uma lei de «princípios, à semelhança das leis de bases, porquanto a Constituição revista consagra ela própria expressamente, em disposição final e transitória [artigo 296º] - [correspondente ao atual artigo 293º]» e «ordenadora ou de enquadramento de um processo normativo composto por um conjunto de atos nela previstos e a ela subordinados, a praticar pelo Governo, e nisto consistirá a sua função habilitante e simultaneamente conformadora», na certeza de que sendo a «LQP» uma «lei com valor reforçado» caberá ao mesmo Tribunal sindicar e controlar uma eventual ilegalidade de ato legislativo por violação da referida lei, aferindo se é, pelo menos, plausível, ou se não é manifestamente inexistente, que «o interesse nacional ou a estratégia definida para o sector» exijam o afastamento do recurso preferencial às modalidades-regra de privatização, ou se «a situação económica ou financeira da empresa o recomenda», ou se tal afastamento implicou «uma violação dos limites da discricionariedade consentida ao legislador», mas já não «sindicar especificamente o tipo de modalidade de reprivatização escolhido pelo legislador» [ver, neste sentido o Acórdão nº683/2006 do mesmo Tribunal].

XXXVII. No caso ora sob apreciação a decisão de privatizar a «A………..» inserta no DL nº45/2014, foi-o, pois, como referido, em respeito e obediência ao quadro constitucional e ordinário invocado e, por força do mesmo quadro, e na sequência do atrás exposto, tinha que revestir a forma de ato legislativo já que o uso de DL assim era imposto ou exigido [ver artigos 1º, 4º, nº1, 7º, nº1, e 13º todos da «LQP»] e não através da forma ou de ato administrativo ou de ato de direito privado, nomeadamente, de deliberação societária como se extrai da tese afirmada pelo município autor.

XXXVIII. Tal resultava imposto pelo disposto no artigo 293º, nº1, em articulação com o artigo 112º, nºs 3 e 5, ambos da CRP, e com a «LQP» [ver artigos 4º, 7º e 13º], sob pena de verificação ou de inconstitucionalidade, dada a realização de operação de reprivatização por um órgão que não é para tanto competente, ou, então, pelo menos, de ilegalidade reforçada, mercê da violação da exigência quanto à forma fixada pela referida lei-quadro para a concretização de qualquer ato de reprivatização, dado o desrespeito, por conseguinte, do valor reforçado de que goza a «LQP» enquanto «norma sobre a produção normativa» com uma «função habilitante» e que se mostra dotada de «primariedade material e hierárquica» [ver o citado Acórdão do TC nº71/90], infracções essas susceptíveis de, nomeadamente, conduzirem à sua desaplicação concreta por inconstitucionalidade [ver artigo 280º, nº2, alíneas b) e d), da CRP].

XXXIX. Defendem, aliás, Jorge Miranda e Rui Medeiros, quanto à forma de concretização da referida lei-quadro que «não obstante o assinalado silêncio do legislador constitucional, tudo aponta para que a lei-quadro de reprivatizações deva ser concretizada por ato legislativo», para assim apontando não só o elemento literal «a expressão lei-quadro sugere diretamente a ideia de uma lei destinada a servir de moldura a outras leis» já que «se quisesse que as reprivatizações em concreto fossem objecto de atos não legislativos a Constituição ter-se-ia referido, simplesmente, a lei das reprivatizações», mas também os elementos sistemático e histórico [in: ob. cit., página 996] [vide igualmente Lino Torgal em Da lei-quadro na Constituição Portuguesa de 1976, in: Perspectivas Constitucionais, II, (1997), páginas 923/926; M. Esteves Oliveira e outros in: Privatizações e Reprivatizações. Comentário à Lei-Quadro das Privatizações (2011), páginas 24/26, 36 e 62/63; Paulo C. Rangel em A concretização legislativa da Lei-Quadro das Reprivatizações (a propósito da inconstitucionalidade do Decreto-lei n.º 380/93 … in: Legislação nº23, página 10].

XL. Por outro lado e como supra sustentado, tendo aquele DL sido emitido ao abrigo do artigo 293º, nº1, da CRP, em conjugação e no quadro da «LQP», soçobra um qualquer entendimento que faça apelo àquilo que são os comandos constitucionais insertos no artigo 165º, nº1, alíneas l) e u), e a uma sua pretensa infracção, já que a matéria e regime normativo inserto no DL nº45/2014 não os integram ou preenchem minimamente, visto não estarmos em presença nem de ato legislativo relativo a bases gerais do estatuto das empresas públicas [ver aquela alínea u) do citado comando constitucional e o DL nº133/2013] e que, por isso, possa contender ou lhe deva qualquer respeito, nem sequer de um ato de privatização dos meios de produção que resulte abrangido na referida alínea l) do nº1 do artigo 165º.

XLI. Do facto de se dever caracterizar e inserir a «A……………» [de per si e quanto àquilo que são as suas participações] como sendo uma empresa pública integrada no sector empresarial do Estado, face ao que decorre conjugadamente do disposto nos artigos 5º, nº1, e 9º, nº1, 13º, nº1, 56º e 57º do citado DL nº133/2013, […] , já que enquanto organização empresarial constituída sob a forma de societária nos termos da lei comercial, o Estado, através da detenção das participações na «C……………», exerce de forma indireta uma influência dominante na mesma considerando, mormente, os vários pressupostos descritos no referido nº1 do artigo 9º daquele DL, tal todavia não implica, nem deriva minimamente que a disciplina daquilo que é a definição do enquadramento ou do regime da alienação da titularidade da mesma, através de operação de reprivatização, se deva conformar ou fundar/acolher naquilo que são as bases gerais do estatuto das empresas públicas insertos naquele DL nº133/2013, porquanto, como vimos, tratam-se de domínios ou planos diversos, sem que se possa sustentar que ocorra qualquer infracção aos artigos 5º, 9º, 13º, nº1, 34º, nº1, 56º e 57º do citado DL, ou ainda do artigo 165º, nº1, alínea u), da CRP.”

Porque toda esta argumentação se aplica à situação dos autos torna-se desnecessário qualquer acrescento.

Não ocorre, pois, qualquer inconstitucionalidade orgânica nos termos do referido art. 165º nº1 al. u) da CRP.

3.4. Vem o autor invocar «inconstitucionalidade material» consubstanciada na violação das normas e princípios que garantem a autonomia local.

A este propósito diz-se, também, nos acórdãos deste STA supra referidos e nomeadamente no proc. 800/14:

“LVI. A garantia constitucional da autonomia do poder local tem sido alvo de sucessivas e repetidas pronúncias por parte do Tribunal Constitucional, colhendo-se entre os mais recentes a pronúncia constante do Acórdão n.º 494/2015 [consultável no mesmo endereço].

LVII. Extrai-se da linha fundamentadora deste acórdão, naquilo que releva para a questão em discussão, que a “autonomia local é um dos pilares fundamentais em que assenta a organização territorial da República Portuguesa, tal como resulta do artigo 6.º, n.º 1, da Constituição” e que nesse contexto “deve ser associada ao princípio constitucional geral da unidade do Estado e, lida em contexto com a autonomia regional, o princípio da subsidiariedade e a descentralização administrativa”, para depois centrando a sua atenção no citado art. 235.º da CRP afirmar que se trata de norma que “garante e impõe a existência de autarquias locais em todo o país e «tem um sentido de garantia institucional, assegurando a existência de administração local autárquica autónoma» (Acórdão n.º 296/2013 …)”, já que as “autarquias locais são mais que «mera administração autónoma do Estado», uma vez que «concorrem, pela própria existência, para a organização democrática do Estado. Justificadas que são pelos valores da liberdade e da participação, as autarquias conformam um "âmbito de democracia" (Ruiz Miguel), num sistema que conta precisamente com o princípio básico de que toda a pessoa tem direito de participar na adoção das decisões coletivas que a afetam» (cfr. Acórdão n.º 432/93, n.º 1.2., cfr. também Acórdão n.º 296/2013, n.º 13, e o Acórdão n.º 109/2015, n.º 10)”.

LVIII. E avançando na sua linha fundamentadora afirma ainda que “segundo o artigo 3.º, n.º 1, da Carta Europeia da Autonomia Local, «o princípio da autonomia local pressupõe e exige, entre outros, o direito e a capacidade de as autarquias regulamentarem e gerirem, nos termos da lei, sob a sua responsabilidade e no interesse das respetivas populações, uma parte importante dos assuntos públicos» (Acórdão n.º 296/2013, n.º 14)” e que, como sustentado no Acórdão n.º 432/93, “esses interesses próprios das populações: «(…) justificam a autonomia e porque a justificam delimitam-lhe o conteúdo essencial. Eles entranham as razões de proximidade, responsabilidade e controlabilidade que proporcionam a auto-organização. O espaço incomprimível da autonomia é, pois, o dos assuntos próprios do círculo local, e «assuntos próprios do círculo local são apenas aquelas tarefas que têm a sua raiz na comunidade local ou que têm uma relação específica com a comunidade local e que por esta comunidade podem ser tratados de modo autónomo e com responsabilidade própria» (…)”, na certeza de que a “prossecução dos interesses próprios das populações locais pelas autarquias tem que ser conjugada com a prossecução do interesse nacional pelo Estado. De facto, como o Tribunal Constitucional já afirmou, «como as autarquias locais integram a administração autónoma, existe entre elas e o Estado uma pura relação de supraordenação-infraordenação, dirigida à coordenação de interesses distintos (os interesses nacionais, por um lado, e os interesses locais, por outro), e não uma relação de supremacia-subordinação que fosse dirigida à realização de um único e mesmo interesse - o interesse nacional, que, assim, se sobrepusesse aos interesses locais» (Acórdão n.º 379/96 …)”, sendo que, atento o disposto no n.º 1 do art. 237.º da CRP, “o legislador deve balancear a prossecução de interesses locais e do interesse nacional ou supralocal, gozando de uma vasta margem de autonomia”, mas que “ao desempenhar essa tarefa, «o legislador não pode pôr em causa o núcleo essencial da autonomia local; tem antes que orientar-se pelo princípio da descentralização administrativa e reconhecer às autarquias locais um conjunto de atribuições próprias (e aos seus órgãos um conjunto de competências) que lhes permitam satisfazer os interesses próprios (privativos) das respetivas comunidades locais» (Acórdão n.º 379/96, n.º 5.2., e Acórdão n.º 329/99, n.º 5.4.)”.

LIX. Daí que e continua “na síntese efetuada por Artur Maurício sobre a jurisprudência relativa à garantia da autonomia local: «a autonomia do poder local vem sendo essencialmente concebida como uma garantia organizativa e de competências, reconhecendo-se as autarquias locais como uma estrutura do poder político democrático e com um círculo de interesses próprios que elas devem gerir sob a sua própria responsabilidade» só podendo a «restrição legal desses interesses (…) ser feita com o fim da prossecução de um interesse geral, que ao legislador compete definir, não podendo, de todo o modo, ser atingido o núcleo essencial da garantia da administração autónoma». «Nos âmbitos que considera abertos à concorrência do Estado e das autarquias vem ainda o Tribunal entendendo (…) que são constitucionalmente legítimas compressões da autonomia local, não deixando, contudo, de fazer passar as medidas legislativas ou regulamentares em causa pelo crivo da adequação e da proporcionalidade»”, sendo que o “condicionamento ou compressão da autonomia local (nomeadamente dos seus elementos) pode apenas decorrer da lei, quando um interesse público nacional ou supralocal o justificar, e sempre com a ressalva do seu núcleo incomprimível”, presente que “«a autonomia municipal não pode afetar a integridade da soberania do Estado. De facto, os poderes locais também são, por natureza, limitados, pois não podem ser exercidos para além do âmbito de interesses (necessariamente locais) que os justificam, não podendo invadir espaços de deliberação ou atuação que devem permanecer reservados à esfera da comunidade nacional» (cfr. M. Lúcia Amaral, A Forma da República, Coimbra Editora, 2012, p. 385)”.

LX. Cientes do enquadramento relativo ao princípio e garantia em crise que antecede importa ainda ter presente, de harmonia com o já supra referido, que nos sistemas multimunicipais existentes neste domínio assiste-se e apela-se à intervenção do Estado em função de razões de interesse nacional o que acarreta que os interesses dos municípios, como o do aqui A., não são, por conseguinte, os únicos a serem ou deverem ser tidos em consideração, na certeza, porém, de que aos referidos sistemas multimunicipais é também confiada a prossecução de interesses próprios das populações daqueles municípios.

LXI. Na situação em presença constata-se que no âmbito do procedimento/processo legislativo os municípios, através da sua Associação Nacional, tiveram oportunidade de participar e tutelar/defender os interesses próprios das populações, esgrimindo e aduzindo seus argumentos [cfr., no caso, a referência de que foi/foram “ouvidas a Associação Nacional de Municípios Portugueses …” inserta nos preâmbulos do DL n.º 92/2013, do DL n.º 96/2014, do DL n.º 45/2014, e do DL n.º 102/2014, este último ainda com audição dos “municípios acionistas da ERSUC …”].

LXII. Se é certo que a pronúncia dos municípios através de seus órgãos autárquicos num procedimento legislativo ou num procedimento societário não é equivalente, nem é a mesma coisa, tal não significa que o art. 235.º da CRP exija ou imponha, para ser cumprida e efetivada a garantia nele inserta, um modelo de participação/pronúncia como o existente no âmbito do direito societário e muito menos que tal modelo tenha de ser transposto para o quadro do processo de reprivatização em questão.

LXIII. Esse entendimento constituiria, pois, um entorse àquilo que é a posição constitucional conferida no nosso ordenamento às autarquias locais e àquilo que são os poderes de participação nos procedimentos perante órgãos nacionais quando estejam em causa a colisão com interesses locais, porquanto o n.º 2 do art. 235.º da CRP visa tão-só que a opinião das autarquias não seja desconsiderada, que as mesmas sejam ouvidas, mas sem que detenham uma posição de bloqueio do procedimento decisório por parte dos órgãos nacionais.

LXIV. É certo que não nos poderemos esquecer que nosso sistema constitucional aponta para a conjugação do princípio da unidade do Estado com, nomeadamente, o princípio da autonomia local [cfr. citado art. 06.º, n.º 1, da CRP] e que não se pode aceitar que um órgão do poder central tome decisões que afetem interesses locais sem dar a oportunidade às autarquias, através de seus órgãos, de contribuírem para a definição do conteúdo dessas decisões [cfr. art. 235.º, n.º 2, da CRP].

LXV. Mas o “equilíbrio eficiente” entre princípio da “descentralização local” e o princípio da “unidade de ação na prossecução do interesse público”, tal como é afirmado por Jorge Miranda [in: Manual de Direito Constitucional”, Tomo III, 6.ª edição, págs. 237/239], no quadro da ideia de unidade estatal não se mostra compatível com a exigência de que as decisões tomadas pelos órgãos centrais no quadro dos sistemas multimunicipais, prosseguindo interesses nacionais, tenham de obter a concordância das autarquias locais num quadro ou ambiência disciplinado pelas regras societárias.

LXVI. Aquilo que é a prossecução do interesse nacional neste domínio não pode ficar refém, não pode ficar capturada pela afirmação dum interesse local, pela exigência dum procedimento societário tido como o único compatível do princípio da autonomia do poder autárquico.

LXVII. Para além disso a tese sustentada pelo A. não poderá ser acolhida porquanto não obstante a intervenção do Estado no setor do saneamento e dos resíduos dever envolver as competências dos municípios nesse domínio temos que o princípio em crise admite claramente restrições desde que respeitados o princípio da proporcionalidade e aquilo que é o seu núcleo essencial.

LXVIII. Ora a operação de reprivatização da «A………..» feita no quadro do processo de transformação do setor de resíduos, mormente, da gestão e exploração dos sistemas, transcende os interesses dos municípios, tanto mais que prossegue interesses que se prendem com a própria sustentabilidade económico-financeira dos sistemas multimunicipais tomados no seu conjunto, interesses a serem prosseguidos pelo Governo no âmbito daquilo que são as suas competências nesta matéria e que para serem prosseguidos não carecem do “acordo” dos municípios.”

Concluímos, pois, como neste acórdão e nos outros dois também decididos neste STA em 13/10/016 que o ato impugnado não viola normas ou o princípio da autonomia do poder local.

3.3. Violação dos princípios da segurança jurídica, proteção da confiança, e proporcionalidade [artigos 2º, e 18º nº2, da CRP].

Quanto à violação destes princípios também se pronunciaram os supra referidos acórdãos, a que aderimos por concordância com os mesmos, aqui se extraindo quanto ao que aqui releva a fundamentação constante no Ac. deste STA processo 910/14 de 13/10/016:

“LI. Enquanto fundamento de ilegalidade assacado ao ato impugnado pelo A. conta-se ainda o da infração por parte do mesmo e do quadro normativo que este veio concretizar dos princípios da proteção da confiança/segurança jurídica, da boa-fé, da legalidade, da proporcionalidade [arts. 02.º, 266.º, 267.º, da CRP, e 6.º-A do CPA].

LII. Inexistem dúvidas de que o Estado no momento da constituição da «E……….», através do DL n.º 53/97, quis instituir um regime nos termos do qual a atuação da referida sociedade se regeria para além dos seus estatutos pela lei comercial, mas, todavia, fê-lo por ato legislativo, enquanto afirmação duma opção político-legislativa primária, sendo que a natureza daquele ato não pode ser minimamente esquecida e/ou desconsiderada e sua sujeição ao princípio da autorrevisibilidade dos diplomas legais.

LIII. Ora tais opções político-legislativas e normas que as corporizam não tinham que ficar congeladas ou imóveis no tempo, como sustenta o A. fazendo apelo ao tempo decorrido desde a criação da «E…………..», detendo o Governo, no quadro da sua competência legislativa genérica [cfr. art. 198.º, n.º 1, al. a), da CRP], o poder de alterar/rever as políticas preexistentes e que se mostram vertidas em DL.

LIV. No caso e como vimos na sequência da alteração à Lei Delimitação de Setores produzida pela Lei n.º 35/2013 veio a ser publicado o aludido DL n.º 92/2013, diploma através do qual se procedeu, no que aqui releva, à reformulação do regime dos sistemas multimunicipais de exploração e gestão de resíduos sólidos, eliminando a obrigação de manutenção da titularidade maioritariamente pública do capital das sociedades concessionárias, regime esse que apontava e exigia a necessidade de conformação também das regras e estatutos daquelas mesmas sociedades concessionárias a ser feito também neste domínio por ato legislativo, como de facto o foi.

LV. É certo que, enquanto princípio, a liberdade de conformação conferida pela CRP ao legislador, no caso ao Governo nessa veste, não é absoluta, dado nunca poder afirmar-se sem reservas, já que possui limites, nomeadamente, o da segurança e da confiança na ordem jurídica garantida pelo Estado de direito.

LVI. Na verdade, a exigência da proteção da confiança constitui uma decorrência do princípio da segurança jurídica, imanente ao Estado de Direito, já que o princípio do Estado de Direito Democrático garante seguramente um mínimo de certeza nos direitos das pessoas e nas suas expetativas juridicamente criadas e, consequentemente, a confiança das pessoas e da comunidade na ordem jurídica e na atuação do Estado [cfr. art. 02.º da CRP].

LVII. Não podemos deixar de ter sempre como presente que as pessoas para além de liberdade carecem de segurança para poderem conduzir, planificar, estruturar e conformar de forma autónoma e responsável a sua vida e atividade.

LVIII. Nessa medida, a vida num Estado de Direito Democrático terá de estar ancorada necessariamente nos princípios da segurança jurídica e da proteção da confiança, cientes de que o princípio da boa-fé, tendo plena valia no plano da disciplina das relações administrativas e do respeito dos direitos e interesses em confronto, não constitui, todavia, um padrão de aferição da validade ou da legalidade quanto aquilo sejam as opções consagradas legislativamente em ato privatizador já que aí o padrão de aferição normativa se terá de fazer por referência aos princípios estruturantes da proteção da confiança e da segurança jurídica.

LIX. O princípio da segurança jurídica, enquanto implicado no princípio do Estado de Direito Democrático, encerra em si duas ideias basilares. Uma, a de estabilidade, no sentido de que as decisões dos entes públicos “não devem poder ser arbitrariamente modificadas, sendo apenas razoável a alteração das mesmas quando ocorram pressupostos materiais particularmente relevantes”. A outra, a da previsibilidade, que no essencial se “reconduz à exigência de certeza e calculabilidade, por parte dos cidadãos, em relação aos efeitos jurídicos dos atos normativos”.

LX. Daí que a realização e efetivação do princípio do Estado de Direito, no nosso quadro constitucional, impõe que seja assegurado um certo grau de estabilidade e previsibilidade às pessoas sobre as suas situações jurídicas, ou seja, que se mostre garantida a confiança na atuação dos entes públicos, porquanto “sem a possibilidade, juridicamente garantida, de poder calcular e prever os possíveis desenvolvimentos da atuação dos poderes públicos suscetíveis de se repercutirem na sua esfera jurídica” cada pessoa se converteria “em mero objeto do acontecer estatal” [cfr. Jorge Reis Novais in: “Os Princípios Constitucionais Estruturantes da República Portuguesa” (Coimbra 2004), págs. 261 e 262].

LXI. É, assim, que os princípios da proteção da confiança e da segurança jurídica pressupõem um mínimo de previsibilidade em relação aos atos do poder, no caso vertente do poder legislativo, de molde a que a cada pessoa seja garantida e assegurada a continuidade das relações em que intervém e dos efeitos jurídicos dos atos que pratica.

LXII. A propósito da “segurança jurídica” e da “proteção da confiança” refere o J.J. Gomes Canotilho que “… a segurança jurídica está conexionada com elementos objetivos da ordem jurídica - garantia da estabilidade jurídica, segurança de orientação e de realização do direito - enquanto a proteção da confiança se prende mais com as componentes subjetivas da segurança, designadamente a calculabilidade e previsibilidade dos indivíduos em relação aos efeitos jurídicos dos atos dos poderes públicos. A segurança e a proteção da confiança exigem, no fundo: (1) fiabilidade, clareza, racionalidade e transparência dos atos do poder; (2) de forma que em relação a eles o cidadão veja garantida a segurança nas suas disposições pessoais e nos efeitos jurídicos dos seus próprios atos. Deduz-se já que os postulados da segurança jurídica e da proteção da confiança são exigíveis perante qualquer ato de qualquer poder - legislativo, executivo e judicial. O princípio geral da segurança jurídica em sentido amplo (abrangendo, pois, a ideia de proteção da confiança) pode formular-se do seguinte modo: o indivíduo tem do direito poder confiar em que aos seus atos ou às decisões públicas incidentes sobre os seus direitos, posições ou relações jurídicas alicerçados em normas jurídicas vigentes e válidas por esses atos jurídicos deixado pelas autoridades com base nessas normas se ligam os efeitos jurídicos previstos e prescritos no ordenamento jurídico …” [in: “Direito Constitucional e Teoria da Constituição”, 7.ª edição, pág. 257].

LXIII. E, um pouco mais à frente, afirma ainda o mesmo Professor que a “mudança ou alteração frequente das leis (de normas jurídicas) pode perturbar a confiança das pessoas, sobretudo quando as mudanças implicam efeitos negativos na esfera jurídica dessas mesmas pessoas. O princípio do Estado de direito, densificado pelos princípios da segurança e da confiança jurídica, implica, por um lado, na qualidade de elemento objetivo da ordem jurídica, a durabilidade e permanência da própria ordem jurídica, da paz jurídico-social e das situações jurídicas; por outro lado, como dimensão garantística jurídico-subjetiva dos cidadãos, legitima a confiança na permanência das respetivas situações jurídicas. Daqui a ideia de uma certa medida de confiança na atuação dos entes públicos dentro das leis vigentes e de uma certa proteção dos cidadãos no caso de mudança legal necessária para o desenvolvimento da atividade dos poderes públicos” [in: ob. cit., págs. 259 e segs.].

LXIV. Temos, portanto, que para apreciar uma eventual lesão da proteção da confiança mostra-se essencial apurar se o Estado, no uso dos seus poderes, tomou efetivamente decisões ou encetou comportamentos suscetíveis de gerar nas pessoas expetativas de continuidade, se as mesmas tomaram decisões ou fizeram planos de vida ou de atividade com fundamento nessas mesmas expetativas, mas também se tais expetativas na continuidade da política estadual eram legítimas, já que fundadas ou justificadas por razões sérias apoiadas em bens e valores constitucionalmente protegidos, e se a mudança entretanto havida do comportamento dos poderes públicos não foi ela reclamada ou exigida por um interesse público que, pela sua acuidade, imperiosidade e valor, se deva sobrepor ao valor da tutela das expetativas criadas.

LXV. Tal entendimento corresponde àquilo que constitui a nossa jurisprudência constitucional, extraindo-se da fundamentação do Acórdão n.º 408/2015 do Tribunal Constitucional [no qual reitera e retoma os critérios firmados na sua jurisprudência anterior - cfr., entre outros, os Acórdãos n.ºs 287/90, 303/90, 556/2003, 128/2009, 176/2012, 187/2013, 355/2013, 862/2013, 202/2014, 413/2014 e 575/2014] de que o “princípio da proteção da confiança assume, na jurisprudência constitucional portuguesa, um conteúdo normativo preciso, que faz depender a tutela da confiança legítima dos cidadãos da verificação de alguns requisitos ou testes cumulativos. (…) Os primeiros testes procuram escrutinar a consistência e a legitimidade das expetativas dos cidadãos afetados por uma alteração normativa, havendo de concluir-se que aquela existe quando (1) o legislador tenha encetado comportamentos capazes de gerar nestes cidadãos expetativas de continuidade, (2) estas expetativas sejam legítimas, justificadas e fundadas em boas razões, (3) e as pessoas tenham feito planos de vida tendo em conta a perspetiva de continuidade do comportamento estadual”, sendo que “[c]aso todas estas condições se verifiquem, o percurso decisório quanto ao princípio da proteção da confiança culmina num exercício de ponderação entre interesses contrapostos, levado a cabo de acordo com o princípio da proporcionalidade em sentido estrito: de uma parte, a confiança (legítima) dos particulares na continuidade do quadro normativo vigente e, de outra, as razões de interesse público que motivaram a alteração” [consultável no mesmo sítio].

LXVI. Aqui chegados e cientes dos considerandos de enquadramento tecidos impõe-se, então, que nos interroguemos da procedência da argumentação expendida pelo A. para sustentar a tese que esgrimiu nos autos.

LXVII. E para concluir, desde já, pela sua improcedência.

LXVIII. Motivando tal juízo é certo que cada município conjuntamente com a «A……….» aceitou integrar e participar no capital social das sociedades concessionárias dos sistemas multimunicipais de valorização e tratamento de resíduos sólidos, como ocorreu com o aqui A. na «E…………», e que, muito possivelmente, o fizeram no pressuposto de que as mesmas se manteriam no universo jurídico-público, pese embora, não se vislumbre que opções então tomadas pelos municípios, seja por razões de natureza económica ou outra, se tenham estribado ou considerado essencial, enquanto legítima expetativa, na consideração de que a sociedade se iria sempre reger pela lei comercial.

LXIX. Ocorre que o ato impugnado e quadro normativo que concretiza e aplica não envolve, presentes os considerandos tecidos e a situação apurada nos autos, uma qualquer violação dos princípios da legalidade, da proporcionalidade, da proteção da confiança e da boa-fé [cfr. arts. 02.º, 266.º da CRP e 06.º-A do CPA/91] e da participação [cfr. art. 267.º da CRP].

LXX. Desde logo, importa ter presente que, de harmonia com o atrás referido, a forma utilizada do DL para a reprivatização e depois a emissão duma resolução por parte do Conselho de Ministros não envolve qualquer atuação ou exercício de poder de forma arbitrária, a ponto de por em causa o princípio da segurança jurídica e da proteção da confiança, tanto mais no contexto da mudança/reforma operada na orientação política naquele domínio e após prévia participação e audição dos municípios, nomeadamente do A., se fez uso do DL para proceder à reprivatização da «A………….» e da «RCM» para a materializar, atuação essa feita no quadro do Estado de direito e em observância do quadro constitucional.

LXXI. Por outro lado, não é minimamente infringida a confiança legítima dos municípios, como o aqui A., já que os mesmos puderam acompanhar a evolução legislativa ocorrida neste domínio desde o desencadear das alterações havidas na Lei de Delimitação de Setores e dos diplomas atrás referidos e, assim, antecipar aquilo que eram as necessárias consequências e decorrências para a sua esfera e posição, na certeza de que o próprio ato reprivatizador consagrou solução através da qual se permitia a sua saída do capital social das sociedades participadas com a «A…………», desonerando-os de terem de conviver no seio destas com uma maioria de capital privado.

LXXII. Com efeito, quer nos termos previstos no DL n.º 45/2014 [cfr. art. 11.º], como no ato impugnado [cfr. arts. 41.º/44.º do caderno de encargos aprovado em anexo à «RCM»], é conferido aos municípios acionistas daquelas mesmas sociedades, mormente ao A. na «E………….», o direito de, querendo, alienarem as suas participações, desvinculando-se, dessa forma, dos compromissos assumidos num determinado enquadramento ou contexto e em função de determinados pressupostos.

LXXIII. Daí que no contexto daquilo que foi sendo a reforma operada no setor através do quadro normativo referido, iniciada em julho de 2013 com a Lei n.º 35/2013 e cimentada com o regime inserto no DL n.º 92/2013, da participação/audição e acompanhamento que foi feito pela Associação Nacional de Municípios e pelos próprios Municípios, o ato de reprivatização e o ato impugnado concretizador da mesma não surgem como atos inesperados, de surpresa e ao arrepio daquilo que seria a marcha normal de todo aquele processo e a ponto de não contarem ou não poderem contar ou antecipar tal desfecho, inexistindo, como tal, ofensa da confiança legítima.

LXXIV. O A., para além de estar a par da mudança que se ia operar no setor e no sistema, também no quadro do processo reprivatizador não viu a sua posição jurídica totalmente ignorada, tendo-lhe sido conferida liberdade para alienar a sua participação social na «E……………..» e assim não ficar “amarrado” à mesma contra aquilo que seria a forma de defesa e prossecução dos seus interesses.

LXXV. Entender que o desenvolvimento do processo de reprivatização só seria válido e legal, respeitando este princípio, se feito nos termos propugnados pelo A., envolve uma leitura desacertada do mesmo e que não se mostra compatível com a tutela da confiança e da segurança jurídica [cfr. art. 02.º CRP] ou com a boa-fé [cfr. arts. 266.º da CRP, 06.º-A do CPA], nem com aquilo que são traves mestras do nosso ordenamento jurídico-constitucional, subvertendo aquilo que são as bases da soberania nacional e do Estado de direito, mercê do condicionamento ilegítimo que uma tal tese implica no e para o processo legislativo enquanto forma por excelência de prossecução do interesse nacional em cada momento, bem como para aquilo que são os poderes e as competências constitucionais dos órgãos de soberania.

LXXVI. No contexto do regime normativo que se mostra aprovado não é aceitável que a decisão de reprivatização tomada por órgão soberania e o procedimento aplicador da mesma [desenvolvido pelo mesmo órgão, mas agora na veste de órgão superior da Administração] careça, como condição de regularidade e de legalidade para prosseguir, de “autorização” dada através duma deliberação societária vinculativa tomada no quadro de assembleia geral de acionistas da sociedade participada pela empresa alvo da decisão reprivatizadora.

LXXVII. A admitir em tese que existisse no caso uma expetativa legítima e daí tivesse derivado um investimento de confiança sempre improcederia este fundamento de ilegalidade dado falhar o último requisito ou teste cumulativo, porquanto no exercício da ponderação entre interesses contrapostos, levado a cabo de acordo com o princípio da proporcionalidade em sentido estrito, a confiança dos municípios, nomeadamente, do aqui A., na continuidade do quadro normativo vigente não se pode sobrelevar em face das razões de interesse público que motivaram a alteração do quadro normativo neste domínio, termos em que inexiste qualquer ofensa aos princípios da proteção da confiança, da boa-fé ou da proporcionalidade.

LXXVIII. Para além disso e presente tudo o atrás exposto temos que o ato impugnado em nada infringe o princípio da legalidade [cfr. art. 266.º da CRP], quer na vertente da precedência da lei como no da prevalência da lei, já que o mesmo se mostra proferido no quadro e ao abrigo do que havia sido disciplinado pelo DL n.º 45/2014, diploma que o antecedeu e lhe conferiu sua base normativa, assim como nos seus termos observa e respeita aquilo que era e é o seu quadro normativo de referência e, bem assim, o demais que lhe é aplicável, na certeza de que inexiste alegação suficiente e demonstração probatória cabal nos autos de que na opção tomada de prossecução do interesse público através daquela decisão jurídico-pública de privatizar, tendo subjacentes os deveres de eficiência e de boa administração, a mesma no contexto não constituísse a forma mais eficiente de promover e satisfazer tal interesse.

LXXIX. Improcede, por conseguinte, de harmonia com o supra exposto toda a argumentação expendida pelo A. conducente às ilegalidades do ato impugnado por alegada infração, nomeadamente, dos arts. 02.º e 266.º da CRP, 06.º-A do CPA/91 e princípios convocados. “

Ou seja, são conferidos aos municípios acionistas daquelas mesmas sociedades, mormente ao A. na «B………….», o direito de, querendo, alienarem as suas participações, desvinculando-se, dessa forma, dos compromissos assumidos num determinado enquadramento ou contexto e em função de determinados pressupostos.

Daí que na reforma operada no setor através do quadro normativo referido, iniciada em julho de 2013 com a Lei n.º 35/2013 e cimentada com o regime inserto no DL n.º 92/2013, da participação/audição e acompanhamento que foi feito pela Associação Nacional de Municípios e pelos próprios Municípios, o ato de reprivatização e o ato impugnado concretizador da mesma não surjam como atos inesperados, de surpresa e ao arrepio daquilo que seria a marcha normal de todo aquele processo e a ponto de não contarem ou não poderem contar ou antecipar tal desfecho, inexistindo, como tal, ofensa da confiança legítima.

O autor continuou a ter liberdade para alienar a sua participação social na «B…………».

A decisão de reprivatização tomada por órgão soberania e o procedimento aplicador da mesma [desenvolvido pelo mesmo órgão, mas agora na veste de órgão superior da Administração] não necessita, pois, como condição de regularidade e de legalidade para prosseguir, de “autorização” dada através duma deliberação societária vinculativa tomada no quadro de assembleia geral de acionistas da sociedade participada pela empresa alvo da decisão reprivatizadora.

Não ocorreu, pois a violação dos arts. 02.º e 266.º da CRP, 06.º-A do CPA/91.

3.4. Vejamos, agora, se está em causa alteração estatutária da B…………… que só poderia ocorrer ao abrigo do regime que é previsto no Código das Sociedades Comerciais, o que não aconteceu.

Alega o autor que os princípios e regras aplicáveis ao sector público empresarial previstos no DL 133/2013 de 3/10, na parte atinente à transformação de empresas públicas deve ser realizada nos termos do CSC quando se trate de sociedade comercial.

E que, a alteração dos estatutos deve ser realizada nos termos do CSC por estar em causa uma sociedade comercial e que a extinção deve ser feito nos termos do art. 35º nº1 da mesma, sob pena de violação do dever de lealdade que impende sobre o acionista Estado.

A este propósito extrai-se do acórdão 800/14 supra referido, após se ter enquadrado a questão a nível normativo e histórico e que supra vem transcrita:

“XLVIII. O ato impugnado concretizador da privatização da «A…….» não é pressuposto legal da alteração dos Estatutos da «ERSUC», nem o seu conteúdo e/ou efeitos a envolvem ou operam, já que toda a definição e o desenvolvimento do procedimento privatizador e dos seus atos mostra-se, por um lado, condicionado por um “desfecho positivo” do concurso, dado inexistir qualquer transmissão de ações seja de que tipo for sem a celebração de contratos de compra e venda de ações entre «A……….» e os municípios em momento ulterior [cfr. arts. 30.º, n.º 2, 39.º, n.ºs 1 e 3, 41.º/49.º do caderno de encargos anexo à «RCM»], e por outro lado, surge gizado de forma independente e autónoma do processo e o procedimento de alteração estatutária da «ERSUC» sem, todavia, deixar de com o mesmo ter de estar conexionado ou em ligação, salvaguardando e integrando como dado certo e necessário a sua materialização através dum novo ato ulterior, tanto para mais que aquela alteração estava, aliás, pré-anunciada face àquilo que haviam sido, como aludido, as mudanças legislativas introduzidas nos regimes em matéria de delimitação de setores [cfr. Lei n.º 35/2013 nas alterações introduzidas à Lei n.º 46/77] e em matéria da exploração e gestão dos sistemas multimunicipais e municipais de recolha e tratamento de resíduos sólidos [cfr. DL n.º 92/2013 e DL n.º 96/2014].

XLIX. Nessa medida, na tese do A. os deveres entre acionistas e quadro normativo tido por violado pelo ato impugnado [cfr. arts. 24.º, 383.º e 386.º do «CSC», 01.º e 06.º do DL n.º 166/96 (na sua redação originária), 05.º e 09.º do DL n.º 133/2013] mostra-se assim desfocado ou deslocado do que deveria ser o seu efetivo e verdadeiro “alvo”, falhando a imputação das ilegalidades àquele ato em face daquilo que são o conteúdo, alcance e os efeitos deste e o seu quadro normativo de enquadramento, os quais, repita-se, não envolvem em termos expressos uma qualquer alteração ou modificação dos estatutos da «ERSUC», para além de que frise-se, ao invés do sustentado pelo A., o DL n.º 133/2013 não se aplica a atos de reprivatização como o em questão, nem o mesmo constitui uma lei de valor reforçado para efeitos de disciplina e definição normativa dos concretos procedimentos reprivatizadores.

L. Improcede, por conseguinte, de harmonia com o supra exposto toda a argumentação expendida pelo A. conducente às ilegalidades do ato impugnado por alegada infração, nomeadamente, dos arts. 01.º, 06.º do DL n.º 166/96, 05.º, 09.º do DL n.º 133/2013, 24.º, n.º 4, 383.º e 386.º do «CSC» e dos deveres societários [mormente, o dever de lealdade entre acionistas]."

Em suma, e por identidade de situações com a situação dos autos, não ocorre a ilegalidade invocada.

*

Em face de todo o exposto acordam os juízes deste STA em julgar a ação administrativa aqui em causa totalmente improcedente, absolvendo os RR. do pedido.

Custas a cargo do A.

D.N.

Lisboa, 23 de Novembro de 2016. – Ana Paula Soares Leite Martins Portela (relatora) – Alberto Acácio de Sá Costa Reis – António Bento São Pedro.