Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0447/03
Data do Acordão:12/14/2004
Tribunal:2 SUBSECÇÃO DO CA
Relator:ALBERTO AUGUSTO OLIVEIRA
Descritores:ACÇÃO PARA RECONHECIMENTO DE DIREITO.
PATRIMÓNIO CULTURAL.
ACTO DISCRICIONÁRIO.
Sumário:I - A acção para reconhecimento de direito ou interesse legítimo dos artigos 69.º e 70.º da LPTA não contempla a possibilidade de o tribunal condenar a Administração à prática de um acto essencialmente discricionário, ou melhor (pois que a Administração deve obediência ao princípio da decisão – artigo 9.º do CPA), o tribunal não pode decidir, por antecipação, do conteúdo de acto essencialmente discricionário, exactamente porque o sentido do acto envolve a ponderação, que à Administração incumbe, das circunstâncias do momento em que tal acto é praticado ou se presume como praticado, e tais circunstâncias não são antecipáveis;
II - Os termos do artigo 25.º da Lei n.º 107/2001, de 8 de Setembro, o impulso para a abertura de um procedimento administrativo de classificação ou inventariação de bens culturais pode provir de qualquer pessoa ou organismo, público ou privado, nacional ou estrangeiro; não tem qualquer abrigo legal a condenação da Administração a considerar a própria interposição da acção de reconhecimento do direito a uma certa classificação como requerimento do particular de abertura do respectivo procedimento administrativo.
Nº Convencional:JSTA00061386
Nº do Documento:SA120041214447
Data de Entrada:02/26/2003
Recorrente:A...
Recorrido 1:CM DE PENAFIEL
Votação:UNANIMIDADE
Meio Processual:REC JURISDICIONAL.
Objecto:SENT TAC PORTO.
Decisão:NEGA PROVIMENTO.
Área Temática 1:DIR ADM CONT - RECONHECIMENTO DIRINT LEGIT.
Legislação Nacional:L 107/2001 DE 2001/09/08 ART15 ART25 ART94.
L 169/99 DE 1999/09/18 ART64.
CONST97 ART2 ART111.
L 83/95 DE 1995/08/31 ART20.
Jurisprudência Nacional:AC STA PROC1571/02 DE 2003/11/14.
Referência a Doutrina:VIEIRA DE ANDRADE A JUSTIÇA ADMINISTRATIVA 4ED PAG212.
Aditamento:
Texto Integral: Acordam em Subsecção, na 1.ª Secção do Supremo Tribunal Administrativo:
1.
1.1. A…, casada, residente no Lugar de Mesão Frio, Valpedre, Penafiel, instaurou, no Tribunal Administrativo do Círculo do Porto, acção popular sob a forma de acção de reconhecimento de direitos e interesses legítimos contra a Câmara Municipal de Penafiel, pedindo a sua condenação:
“a.- a reconhecer que o denominado "conjunto de Mesão Frio" deverá ser declarado como tendo interesse cultural relevante, na área do concelho de Penafiel;
b.- pelo que o mesmo "conjunto" deverá ser objecto de especial protecção e valorização;
c.- reconhecendo-se, consequentemente, o seu valor histórico, arquitectónico, etnográfico, social, industrial e técnico;
d.- mais se reconhecendo que tais bens, identificados nos documentos juntos, reflectem valores de memória, antiguidade, autenticidade, raridade e exemplaridade;
e. – e que seja declarado que tal «conjunto» é de «interesse municipal» sujeito ao regime das disposições legais respectivas, nomeadamente a Lei 107/2001;
Mesmo que assim se não entender, nesta última parte,
f.- que a Ré seja condenada a proceder a todos os actos que conduzam à mesma classificação, no prazo de um ano a contar de sentença definitiva (art. 24º, n.º 3, da mesma Lei n.º 107/2001), por idênticas razões”.
1.2. A acção foi indeferida liminarmente, por despacho de fls. 264-269.
1.3. Inconformada, a autora deduziu o presente recurso, em cujas alegações, e após convite para cumprimento do n.º 2 do artigo 690.º do Código de Processo Civil, concluiu:
“A.- A questão aqui levantada - classificação do denominado "conjunto de Mesão Frio".- era, e é, da estrita competência da Assembleia Municipal de Penafiel,
B.- já que, pelas suas características relatadas, pela sua localização e pelo desconhecimento que dele tem a esmagadora maioria dos portugueses, tem um mero interesse concelhio; assim,
C.- quando o IPPAR iniciou tal processo de classificação e praticou um largo conjunto de actos nesse sentido, estava, ilicitamente, a exercer competências que não lhe pertenciam,
D.- tanto no quadro legislativo anterior, como no actual; por isso,
E.- não tinha a Autora que recorrer de um acto ilícito que,
F.- de resto, não lhe foi notificado,
G.- e de que ela tenha conhecimento casual bastante mais tarde.
H.- Desde sempre, após a legislação posterior ao 25 de Abril, que os órgãos municipais tiveram atribuições e competências na área da cultura.
I.- Tal acto de arquivamento estava ferido de nulidade (absoluta), por ter ocorrido uma forma de incompetência absoluta (em relação à actividade do IPPAR),
J.- padecendo inclusive do vício de inconstitucionalidade, na medida em que lesou o princípio da autonomia das autarquias locais,
K.- sofrendo de idêntica inconstitucionalidade a douta Sentença em apreço, na medida em que pretende que a Autora tivesse de recorrer, previamente, de um acto inconstitucional,
L.- violando também o princípio da subsidariedade que tem suporte constitucional.
M.- Daí que não se tenha, sequer, que colocar a questão da natureza complementar do tipo de "acção" utilizada pela Autora; de facto.
N.- se esta não tinha que recorrer de tal acto de arquivamento, era livre para utilizar a forma processual adoptada. SEM CONCEDER:
O.- no caso dos autos, esta forma processual é o meio mais adequado a alcançar uma tutela judicial efectiva em relação aos interesses defendidos.
P.- Há casos, como este, que são de plena jurisdição, permitindo-se a condenação plena da Administração,
Q.- tanto perante actos administrativos concretos, como perante omissões da Administração.
R.- Foi prematuro o acto de indeferimento in limine, que não existe neste caso,
S.- para além da Douta Julgadora a quo não ter fundamentado a pretensa "evidência" para indeferir.
T.- Foram violadas as disposições: nº 1 do art. 234.º-A do C.P.Civil, Lei n.º 13/85, de 6 de Julho, art. 3.º, n.º 1, art. 7, n.º 1, art. 9, art. 17.º, art. 21.º, art. 26.º; Dec.Lei n.º 100/84, de 29 de Março, als. f), h), n.º 1, do art. 2.º, arts. 39.º e 51 do mesmo diploma; Lei n.º 107/2001, de 8 de Setembro, disposições diversas; Lei n.º 159/99, de 14 de Setembro, disposições diversas; Lei n.º 169/99, de 18 de Setembro, disposições diversas; art. 133.º, al. b) do CPA; arts. 133.º e 2.º, n.º 2, do C.P.Administrativo; arts 235 n.ºs 1 e 2 da C. Política, art. 6.º, n.º 1 da C. Política; art. 288º, al. n) da C. Política; art. 7.º, n.º 6, da C.P.; arts. 69º e 70º da LPTA; art. 269 da C. Política, art. 1.º, 40.º e 36º da LPTA; art. 234º, n.º 4, al. a) e e) do C.P.Civil, arts. 158º e 653.º do C.P.Civil.
Termos em que a douta sentença em apreço deverá ser revogada, com as legais consequências, nomeadamente ordenando-se o prosseguimento dos autos, como é de Justiça”.
1.4. A entidade demanda contra-alegou, concluindo sobre as primeiras alegações da recorrente:
“1. No caso em apreço existe um acto administrativo - despacho de arquivamento do processo de classificação, praticado em 01.10.16, pelo vice-presidente do IPPAR - susceptível de ser impugnado contenciosamente por recurso que asseguraria cabalmente uma tutela efectiva e eficaz dos direitos e interesses legalmente protegidos, sendo por este motivo injustificado e desnecessário o exercício do direito de acção (n.º 2, do art.° 69.°, da LPTA);
2. O que configura um pressuposto processual negativo que se reconduz a excepção dilatória de conhecimento oficioso (CFR. Ac. STA de 21/X/87 Rec. N.° 25.501);
3. Por outro lado, o despacho de arquivamento do processo de classificação, praticado em 01.10.16, pelo vice-presidente do IPPAR é um acto administrativo praticado no exercício do poder discricionário, que, certamente, teve em consideração o princípio da igualdade, o princípio da proporcionalidade, o princípio da justiça, o princípio da imparcialidade e o princípio da boa fé (n.° 2, do art.° 266.°, da CRP e arts. 3.° e segs. do CPA).
4. Pelo que, não pode o ora recorrente lançar mão do meio processual previsto no art.° 69.° da LPTA (vide Contencioso Administrativo, anotado, comentado - jurisprudência, Almedina, edição de 1995, pág. 264, anot. ao art.° 69.° da LPTA);
5. Na verdade, sendo o processo de classificação em apreço praticado no âmbito do exercício do poder discricionário, não podem os tribunais ser chamados a decidir directamente sobre o modo como deve ser prosseguido o interesse público, que actos devem ser praticados e que medidas ser tomadas para melhor o realizar, sob de estarmos a violar um princípio acolhido na Constituição portuguesa, o princípio da separação de poderes (art.° 2 e 111.° da CRP).
Nestes Termos, não deve ser concedido provimento ao recurso jurisdicional”.
1.5. Face às novas conclusões nas alegações da autora, decorrentes do convite, a entidade demandada respondeu, ao abrigo do artigo 690.º, n.º 5, do CPC, concluindo:
“1. A questão de direito que importa aqui analisar prende-se com a possibilidade de o ora recorrente poder lançar mão, neste caso concreto, do meio processual previsto nos art.°s 69.° e segs. da LPTA e, nessa análise, há que atender ao disposto no n.° 2, do art.° 69, daquele diploma legal, que determina que "As acções só podem ser propostas quando os restantes meios contenciosos, incluindo os relativos à execução de sentença, não assegurem a efectiva tutela jurisdicional do direito ou do interesse em causa."
2. E, no caso em apreço, a ora recorrente podia sempre ter-se socorrido do meio processual previsto nos arts.º 24.° e segs. da LPTA, o recurso contencioso, atendendo a que impugnando judicialmente o despacho de arquivamento do processo de classificação, de 01.10.16, do vice-presidente do IPPAR, acto definitivo e decisório, seria assegurada a efectiva tutela jurisdicional do direito ou do interesse em causa.
3. No artigo 5.°, al. b), das novas alegações, a recorrente faz referência às alterações a que foi submetido o art.° 268,° da Constituição da República Portuguesa, através das revisões de 1989 e 1997.
4. Contudo, o recorrente não passou, depois das revisões de 1989 e 1997 ao texto constitucional, a ter um direito de opção entre o recurso contencioso e a acção para reconhecimento de um direito, só podendo recorrer a esta se aquele não constituir meio adequado e suficiente para assegurar a tutela jurisdicional efectiva, continuando o recurso contencioso a ser o meio processual preferencial de reacção contra actos da administração.
5. O que se verificou foi a consequente necessidade da compatibilização entre art.º 69.°, da LPTA e as referidas revisões constitucionais, facto esse que gerou alguma controvérsia na doutrina e jurisprudência, hoje resolvida no sentido da chamada teoria do alcance médio que defende o carácter complementar ou residual da acção relativamente ao recurso contencioso, após pronúncia do Tribunal Constitucional sobre a constitucionalidade daquela disposição da LPTA (cf. Ac. TC n.° 104/99, de 14.02.99, DR II Série de 10.04.99 e n.° 105/99, DR II Série, de 15.05.99).
6. A tudo isto acresce o facto da nova redacção do art.° 268.° do texto constitucional, ter sempre como limite a autonomia do poder administrativo, i.e., a estabilidade do caso decidido e a discricionariedade quanto ao mérito da decisões administrativas.
7. Não podendo os tribunais ser chamados a decidir directamente sobre o modo como deve ser prosseguido o interesse público, que actos devem ser praticados e que medidas ser tomadas para melhor o realizar, sob de estarmos a violar um principio acolhido na Constituição portuguesa, o princípio da separação de poderes (art.° 2 e 111.° da CRP).
8. E neste caso concreto o que está em causa é o exercício do poder discricionário da administração, não podendo o ora recorrente lançar mão do meio processual previsto no art.º 69 da LPTA.
Nestes termos, não deve ser concedido provimento às novas alegações apresentada pela recorrente”.1.6. O EMMP emitiu o seguinte parecer:
“A meu ver, o recurso jurisdicional não merece provimento.
Com efeito, o processo relativo à classificação da Quinta de Mesão Frio, levado a cabo pelo IPPAR, a pedido da Câmara Municipal de Penafiel, foi arquivado por despacho de 01.10.01, publicado através do edital n.º 28/01 de 27/11.
E a questão que se põe no caso «sub judice» é a de saber se a recorrente pode intentar acção de reconhecimento de direitos, nos termos dos arts. 69.º e segts. da LPTA.
Ora, estabelecendo o n.º 2 do art. 69.º da LPTA que «as acções só podem ser propostas quando os restantes meios contenciosos ... não assegurem a efectiva tutela jurisdicional do direito...», a verdade é que a recorrente poderia ter-se socorrido do recurso contencioso previsto nos art. 24.º e segts. da LPTA, para impugnar aquele acto de arquivamento, que se apresentava eventualmente lesivo dos seus interesses, sendo certo que, tal como se diz na sentença recorrida, «os tribunais administrativos não podem substituir-se à Administração activa no exercício da função administrativa»”.Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.
2.
2.1. Está sob recurso o despacho de fls. 264-269, que indeferiu liminarmente a acção de reconhecimento de direito proposta pela ora recorrente.
Comecemos por recordar que o pedido formulado na petição é de condenação da Câmara Municipal de Penafiel a:
“a.- a reconhecer que o denominado "conjunto de Mesão Frio" deverá ser declarado como tendo interesse cultural relevante, na área do concelho de Penafiel;
b.- pelo que o mesmo "conjunto" deverá ser objecto de especial protecção e valorização;
c.- reconhecendo-se, consequentemente, o seu valor histórico, arquitectónico, etnográfico, social, industrial e técnico;
d.- mais se reconhecendo que tais bens, identificados nos documentos juntos, reflectem valores de memória, antiguidade, autenticidade, raridade e exemplaridade;
e. – e que seja declarado que tal «conjunto» é de «interesse municipal» sujeito ao regime das disposições legais respectivas, nomeadamente a Lei 107/2001;
Mesmo que assim se não entender, nesta última parte,
f.- que a Ré seja condenada a proceder a todos os actos que conduzam à mesma classificação, no prazo de um ano a contar de sentença definitiva (art. 24º, n.º 3, da mesma Lei n.º 107/2001), por idênticas razões”.
Como se sintetizou no despacho liminar, a autora articulou:
“(...) que os bens imóveis existentes no lugar de Mesão Frio, onde a Autora reside e é proprietária de um prédio urbano, constituem no seu conjunto um bem de interesse municipal, por razões históricas, sociais, arquitectónicas, etnográficas, cultural, etc. A pedido da Câmara Municipal de Penafiel o IPPAR no ano de 1989, iniciou o processo de classificação da casa de Mesão Frio para, cujo processo no ano de 1996 alargou-se ao "conjunto rural de Mesão Frio" . No âmbito do processo de classificação, a 16.07.96 pela Directora Regional do IPPAR foi apresentada uma proposta de classificação do referido conjunto, propondo as medidas cautelares previstas no art. 18° da Lei n.º 13/85, de 6.07 e abrindo a respectiva instrução para a correspondente classificação por despacho de 22.07.96.
O processo seguiu os seus trâmites normais, sem qualquer reclamação por parte dos restantes interessados, até que aquando da Revisão do PDM a Câmara de Penafiel, por ofício de 27.04.2001, solicitou alteração da Zona de Protecção da Quinta de Mesão Frio e, um grupo de moradores, representando 1% de moradores daquele lugar, pediram a suspensão em definitivo do processo de classificação. Consequentemente foi determinado o arquivamento da instrução do processo de classificação”.
E o despacho liminar veio a dar por assente, exactamente, que:
“Face aos elementos carreados para os autos pela Autora, ressalta que no ano de 1989 foi dado início ao processo de classificação do inicialmente da Casa de Mesão Frio e, posteriormente, extensível em 1996 ao conjunto denominado de Mesão Frio, que correu os seus termos normais segundo a Lei então em vigor n.º 13/85, de 6 de Julho, durante o período de instrução o conjunto de bens imóveis que compõem o Lugar de Mesão Frio beneficiaram do regime de protecção próprio de bens em vias de classificação. Após, a instrução do referido processo, em virtude da oposição manifesta de alguns proprietários, foi determinado o arquivamento do processo de classificação por despacho do Vice-Presidente do IPPAR, com publicação de 1 de Outubro de 2001”.
2.2. Depois de apresentar um panorama geral sobre o tipo de acções em que a presente se integra, o despacho liminar, na imediata sequência da matéria dada por assente, veio a fundamentar-se especificamente de direito, e a decidir, nos seguintes termos:
“Ora, o acto de arquivamento do processo de classificação mencionado, traduz-se na prática de um acto administrativo definitivo e executório, passível de impugnação através de recurso contencioso. Assim, não pode a Autora vir utilizar o meio de acção de reconhecimento de direito, quando estamos perante um processo já de classificação que culminou com a prática de um acto administrativo, do qual podia recorrer e sendo que se o acto fosse anulado, obteriam o que aqui pretendem a classificação de património cultural do conjunto Mesão Frio.
Assim, existindo na ordem jurídica acto administrativo proferido por entidade com competência dispositiva na matéria que está em causa por via da presente acção (independentemente de tal entidade não ser a Ré na presente acção), e relativamente a tal matéria, a impugnação do aludido acto administrativo e subsequente execução do julgado, era de molde a conferir tutela aos interesses do interessado, pelo que numa tal, pode e deve formular-se o aludido juízo de natureza funcional sobre a desnecessidade do uso do meio processual da acção.
E, mais se diga que os tribunais administrativos não podem substituir-se à Administração activa no exercício da função administrativa, não podendo dessa forma modificar os actos administrativos, nem praticar outros actos administrativos em substituição daqueles que repute ilegais, nem sequer pode condenar a Administração a praticar este ou aquele acto administrativo.
Apenas cumpre aos tribunais administrativos exercer a função jurisdicional.
Daí que, sendo o recurso contencioso de anulação o meio por excelência de garantia contencioso dos cidadãos, se trate de um contencioso de mera legalidade, ou de mera anulação e não um contencioso de plena jurisdição (art. 6° do ETAF).
O que não significa que haja casos excepcionais de recursos contenciosos de anulação que sejam de plena jurisdição.
Também, no contencioso das acções administrativas o tribunal tem outros poderes, o que também é excepcional, face ao carácter excepcional das acções, apenas admissíveis nas situações previstas na lei.
Nos presentes autos a Autora socorreu-se da acção de reconhecimento de direitos para pedir que lhe seja reconhecido a classificação do Lugar de Mesão Frio de interesse municipal ou a condenação da Ré a proceder a todos os actos que conduzam aquela classificação no prazo de um ano a contar da sentença definitiva.
Perante estes pedidos o que a Autora pretende é que o Tribunal exerça ele as competências conferidas a outras entidades e constantes da Lei 107/2001, de 8 de Setembro ou que a Câmara realize o processo de classificação, que se traduz na condenação da Ré à prática de um acto administrativo - qual seja - realizar o processo de classificação.
Só que, a iniciativa de um processo de classificação é conferida por lei a qualquer pessoa ou organismo, público ou privado, nacional ou estrangeiro (cfr. art. 26° da Lei n.º 107/2001), sendo que a classificação de bens de interesse municipal compete aos municípios, antecedida de parecer dos competentes órgãos e serviços do Estado (art. 94° da citada lei).
E, como tal, não pode o tribunal aceder a tal pretensão nem em sede de acção ordinária, nem em sede de recurso, nem muito menos em sede de acção de reconhecimento de direito”.
Em face do exposto indefiro liminarmente a petição pela não verificação do pressuposto do art. 69.º da Lei de Processo nos Tribunais Administrativos, pelo que absolvo a ré da instância”.
Observa-se da fundamentação apresentada que a decisão liminar, para além de alguns enunciados de ordem genérica, radica em duas fontes autónomas, cada uma delas com vocação para poder, por si, resolver a questão, isto é, determinar o indeferimento liminar.
Vejamos separadamente.
2.2. A primeira fonte baliza-se na existência de prévio acto administrativo que poderia ter sido impugnado.
Àquela fonte corresponde o ataque da alegação da recorrente concentrado nas conclusões A a N.
Independentemente da forma como o problema vem colocado nas alegações, deve dizer-se que o indeferimento liminar não poderia fundar-se na não impugnação do citado despacho do IPPAR.
É que esse fundamento supõe que se possa afirmar, sem discussão, que o acto do IPPAR resolveu a matéria que a autora quer ver reconhecida nos autos.
Mas não se pode realizar tal afirmação.
Na verdade, o que a autora pediu foi a condenação da Ré no reconhecimento do “interesse municipal” do denominado conjunto de Mesão Frio”, “interesse municipal”, e não outro.
Nos termos do artigo 15.º, n.º 2, da Lei n.º 107/2001, de 8 de Setembro, os bens móveis ou imóveis podem ser classificados como de interesse nacional, de interesse público ou de interesse municipal, sendo que se consideram “de interesse municipal os bens cuja protecção e valorização, no todo ou em parte, representem um valor cultural de significado predominante para um determinado município” (n.º 6 do mesmo artigo); e dispõe o artigo 94.º, da mesma Lei, que a classificação de bens culturais como de interesse municipal incumbe aos municípios (n.º 1), sendo antecedida de parecer dos competentes órgãos e serviços do Estado (n.º 2).
Por sua vez, dispõe o artigo 64.º, n.º 2, alínea m), da Lei n.º 169/99, de 18 de Setembro, em redacção mantida pela Lei n.º 5-A/2002, que compete à câmara municipal no âmbito do planeamento e do desenvolvimento, “Assegurar, em parceria ou não com outras entidades públicas ou privadas, nos termos da lei, o levantamento, classificação, administração, manutenção, recuperação e divulgação do património natural, cultural, paisagístico e urbanístico do município, incluindo a construção de monumentos de interesse municipal”.
Ora, por um lado, o acto de arquivamento pelo IPPAR foi produzido num procedimento que não foi direccionado, especialmente, para a classificação de determinado imóvel ou conjunto como de interesse municipal; por outro lado, aquele arquivamento, se pode ter resolvido - não interessa aqui saber se, sim - o que toca ao reconhecimento de interesse mais vasto que o interesse municipal (interesse nacional ou interesse público), nada decidiu, quanto à classificação do conjunto “Mesão Frio” como de interesse municipal, ou, pelo menos, e é, por si só, decisivo, face ao quadro normativo vigente à data da propositura da acção, tal arquivamento não arreda, de nenhum modo, a possibilidade de a Câmara Municipal proceder àquela classificação.
2.3. A segunda fonte para o indeferimento liminar conjuga a impossibilidade do tribunal se substituir à Administração na função administrativa e na impossibilidade de se substituir aos particulares nas suas relações com a Administração.
Está sublinhada nos dois seguintes parágrafos do despacho:
“Perante estes pedidos o que a Autora pretende é que o Tribunal exerça ele as competências conferidas a outras entidades e constantes da Lei 107/2001, de 8 de Setembro ou que a Câmara realize o processo de classificação, que se traduz na condenação da Ré à prática de um acto administrativo - qual seja - realizar o processo de classificação.
Só que, a iniciativa de um processo de classificação é conferida por lei a qualquer pessoa ou organismo, público ou privado, nacional ou estrangeiro (cfr. art. 26° da Lei n.° 107/2001), sendo que a classificação de bens de interesse municipal compete aos municípios, antecedida de parecer dos competentes órgãos e serviços do Estado (art. 94° da citada lei)”.
Já mencionámos algumas disposições que respeitam à competência para a classificação de bens. Recorde-se, agora, que a autora funda a acção, no respeitante aos direitos que pretende ver reconhecidos, na Lei n.º 107/2001. Precisamente, esta Lei regula, nos artigos 23.º a 30, o procedimento administrativo respeitante à classificação ou inventariação de bens. E dispõe o artigo 25.º
“Artigo 25.º
Início do procedimento
1 – O impulso para a abertura de um procedimento administrativo de classificação ou inventariação pode provir de qualquer pessoa ou organismo, público ou privado, nacional ou estrangeiro
2 – A iniciativa do procedimento pode pertencer ao Estado, às regiões autónomas, às autarquias locais ou a qualquer pessoa singular ou colectiva dotada de legitimidade, nos termos gerais.
(...)”.
Ora, como disse o despacho liminar, resulta da petição que a autora começa por pretender que o tribunal profira já uma decisão que corresponde a uma decisão que só pode ser tomada em procedimento administrativo e pela competente autoridade administrativa.
Depois, só nessa impossibilidade, que concede, pretende que a interposição da acção corresponda à abertura de tal procedimento.
Também não é possível.
A recorrente pode ter razão quando afirma que na acção de reconhecimento de direitos se permite “a condenação plena da Administração”, “tanto perante actos administrativos concretos, como perante omissões da Administração” (conclusões P e Q das alegações), mas o articulado da petição não revela situação de facto e de direito que permita tal condenação.
Com efeito, por um lado, não revela a autora que tenha havido qualquer acto concreto da Câmara sobre qualquer pedido correspondente à declaração de interesse municipal que pretende obter; por outro lado, também não revela a autora, na sua petição, que tenha havido qualquer omissão sobre um qualquer pedido desse tipo.
Deve afirmar-se que a classificação dos bens culturais releva da actividade discricionária da Administração (cfr., por exemplo, os artigos 15.º e 25.º da Lei n.º 107/2001).
Ora, como se disse no Ac. de 14.11.2003, rec. 1571/02 “O tribunal não pode impor à Administração a prática de um acto essencialmente discricionário, ou melhor (pois que a Administração deve obediência ao princípio da decisão – artigo 9.º do CPA), o tribunal não pode decidir, por antecipação, do conteúdo de acto essencialmente discricionário, exactamente porque o sentido do acto envolve a ponderação, que à Administração incumbe, das circunstâncias do momento em que tal acto é praticado ou se presume como praticado, e tais circunstâncias não são antecipáveis; por isso, o limite da extensão da tutela assegurada por este meio jurisdicional, a acção de reconhecimento, é o da autonomia do poder administrativo, o que exclui condenações que ponham em causa o exercício de poderes discricionários (cfr. JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, “A Justiça Administrativa – Lições”, Almedina 1998, pág. 112, FILIPA URBANO CALVÃO, “Os Actos Precários e os Actos Provisórios no Direito Administrativo", Universidade Católica Portuguesa, 1998, pág. 317).
No ordenamento jurídico vigente [Nota: à data da instauração da acção], o tribunal pode sindicar a legalidade de acto praticado ou presumido, em sentido favorável ou desfavorável ao requerente, pode anulá-lo e impor, mesmo, em execução de sentença, a prática do acto que nas circunstâncias em que o primeiro foi praticado devia ter sido praticado, mas não pode impor, em abstracto, e em geral, a prática de um acto que radica num poder discricionário da Administração”.
Assim, tem toda a razão o despacho liminar quando considerou que os tribunais não se podiam substituir à administração activa no exercício da função administrativa.
No caso dos autos, e como sublinhou o despacho sob recurso, acresce um elemento, que é resultante do poder de iniciativa de um processo de classificação.
É que, em pedido subsidiário, intentava a autora substituir o impulso de abertura do procedimento administrativo, que pode realizar, junto da entidade administrativa que considera competente, pelo impulso processual constituído pela acção de reconhecimento de direitos.
Sem dúvida que a autora teria possibilidade de vir a tribunal pedir o reconhecimento do seu direito a impulsionar o procedimento administrativo, se, porventura, tal direito não lhe tivesse sido reconhecido pela Administração; nessa circunstância, o tribunal, apreciando e concluindo pela existência de tal direito, condenaria a Administração a reconhecê-lo.
Não é nada disso que se passa com a presente acção.
A satisfação dos pedidos formulados implicava ou que o tribunal se substituísse à Administração na sua função administrativa, o que desrespeitaria o princípio da separação de poderes (artigo 2.º e 111.º da CRP), ou que se substituísse aos particulares na sua actividade perante a Administração, o que não tem qualquer abrigo legal (note-se que, presentemente, mesmo no quadro da acção especial para condenação na prática do acto devido, do CPTA, parece que tem que ser respeitado o “princípio da provocação” da Administração pelo particular - expressão em Vieira de Andrade, “A Justiça administrativa”, 4.ª edição, pág. 212).
3. Pelo exposto, nega-se provimento ao recurso.
Custas pela recorrente.
Considerando o disposto no artigo 20.º da Lei n.º 83/95, de 31 de Agosto, fixa-se a taxa de justiça em 150 euros e a procuradoria em 75 euros.
Lisboa, 14 de Dezembro de 2004. – Alberto Augusto Oliveira (relator) – João Belchior – Políbio Henriques.