Acórdãos T CONFLITOS

Acórdão do Tribunal dos Conflitos
Processo:061/17
Data do Acordão:06/07/2018
Tribunal:CONFLITOS
Relator:TERESA DE SOUSA
Descritores:FUNDO DE RESOLUÇÃO.
RESPONSABILIDADE CIVIL.
JURISDIÇÃO COMUM.
Sumário:É da competência dos Tribunais Judiciais o julgamento de uma acção intentada por depositante em banco intervencionado, contra aquele banco, o respectivo gestor de conta, o banco de transição e o Fundo de resolução, sendo pedida a condenação solidária de todos os réus, em que sejam imputados aos dois primeiros a violação de deveres bancários ou a mediação de títulos mobiliários, e em que o banco de transição é demandado, por se lhe imputar a qualidade de sucessor do banco intervencionado e o Fundo de Resolução apenas na qualidade de titular do capital do banco de transição.
Nº Convencional:JSTA000P23394
Nº do Documento:SAC20180607061
Data de Entrada:10/12/2017
Recorrente:CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO ENTRE A COMARCA DA GUARDA, GUARDA, INSTÂNCIA LOCAL, SECÇÃO CÍVEL – J1 E O TRIBUNAL ADMINISTRATIVO E FISCAL DE CASTELO BRANCO.
AUTOR: A………… E OUTRO.
RÉU: B………… E OUTROS.
Recorrido 1:*
Votação:UNANIMIDADE
Área Temática 1:*
Aditamento:
Texto Integral: Acordam no Tribunal dos Conflitos

1. Relatório
A………… e seu marido, C…………, identificados nos autos, intentaram, inicialmente, no Tribunal da Comarca da Guarda – Instância Local da Guarda, Secção Cível, a Acção Declarativa sob a Forma Comum, contra B…………, residente na Guarda, Banco Espírito Santo, SA, Novo Banco, S.A., e Fundo de Resolução, todos com sede em Lisboa, pedindo a condenação solidária de todos os Réus, a pagar aos Autores “(…) a quantia de € 32.000,00 (trinta e dois mil euros) a título de danos patrimoniais, acrescido de juros vencidos desde 20/09/2013 que nesta data – 07/11/2015 – se cifram em €2.721,32, assim como os juros vincendos, todos à taxa legal de 4% ao ano, até integral e efectivo pagamento e condenados ainda no pagamento de € 2.500,00 (dois mil e quinhentos euros), a título de indemnização por danos não patrimoniais…”, com os fundamentos constantes da sua petição inicial de fls. 8 e seguintes, que aqui se dão por reproduzidos.

O Fundo de Resolução contestou a fls. 119 a 139, tendo, suscitado a excepção da incompetência do Tribunal, considerando serem competentes os tribunais administrativos.

O Banco Espírito Santo, S.A. (BES) contestou a fls. 149 e ss. e o Novo Banco, S.A., contestou a fls. 260 e seguintes.

A Instância Local Cível da Guarda, onde a acção foi proposta, declarou-se incompetente em razão da matéria e absolveu os Réus da instância, considerando que a competência material pertence aos tribunais administrativos e fiscais – cfr. fls. 550 a 563.

Recebidos os autos no Tribunal Administrativo e Fiscal de Castelo Branco, foi igualmente declarada a incompetência em razão da matéria, por decisão de fls. 624 a 632 verso.

Ambas as decisões transitaram em julgado, dando origem ao presente conflito negativo de jurisdição.

A Exma Magistrada do Ministério Público emitiu parecer a fls. 671 a 675, no sentido de que a competência seja atribuída aos tribunais comuns.

2. Os Factos
Os factos pertinentes à decisão são os constantes da decisão do TAF de Castelo Branco, a fls. 626 a 628 e o indicado no Relatório supra.

3. O Direito
A questão que cumpre apreciar e decidir é a de saber qual a jurisdição materialmente competente para dirimir a causa.
A matéria em causa nos autos foi já decidida em dois recentes acórdãos deste Tribunal dos Conflitos, ambos proferidos em 22.03.2018, nos processos nºs 50/17 e 51/17, no sentido de atribuir a competência material para a causa aos Tribunais Comuns.
Assim, por se concordar inteiramente com o decidido em tais arestos, sendo certo que se debruçaram sobre acções semelhantes à presente e em que as decisões eram em tudo idênticas às proferidas nestes autos quanto à declaração de incompetência absoluta pelas jurisdições comum e administrativa e fiscal que originam o presente conflito, passamos a transcrever o que se expendeu no acórdão proferido no Conflito nº 50/17:
«Nas palavras de Manuel de Andrade, “na definição desta competência a lei atende à matéria da causa, quer dizer, ao seu objecto, encarado sob um ponto de vista qualitativo – o da natureza da relação substancial pleiteada”.
A regra geral é a de que são da competência dos tribunais comuns todas as causas que não forem, por lei, da competência de alguma jurisdição especial; aos tribunais especiais só competem as causas que a lei directamente lhes atribua.
Isto mesmo decorre do art 40º, n.º 1, da Lei 62/2013 de 26 de Agosto (Lei da Organização do Sistema Judiciário) ao estabelecer que as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional são da competência dos tribunais judiciais.
A competência dos tribunais judiciais determina-se, pois, por um critério residual, sendo-lhes atribuídas todas as matérias não conferidas aos tribunais de competência especializada.
No que toca à competência dos tribunais administrativos, determina o artigo 1º, nº 1, do ETAF (Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais - Lei 13/2002, de 19 de Fevereiro) que “os tribunais administrativos e fiscais são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo, nos litígios emergentes das relações administrativas e fiscais”.
É o artigo 4º do ETAF que enuncia em concreto o âmbito da jurisdição nos tribunais administrativos e fiscais.
No caso vertente, a Instância Local Cível da Guarda colocou enfoque nas normas das alíneas a) e g) do n.º 1 e na do n.º 2 desse artigo 4º, para rejeitar a competência material, embora fazendo uso de redacções desactualizadas dessas mesmas normas. Na verdade, tendo a acção dado entrada em juízo em 08.03.2016, aplicava-se já a redacção dada ao artigo 4º pelo DL 214-G/2015, de 2 de Outubro.
De qualquer forma, o que importa é saber quais as questões que, em matéria contratual e de responsabilidade civil extracontratual, cabem no âmbito da jurisdição dos tribunais administrativos e fiscais para depois se decidir se o presente litígio deve ser dirimido por essa mesma jurisdição.
Vejamos, então, o que dizem as alíneas e) a h):
e) Validade de atos pré-contratuais e interpretação, validade e execução de contratos administrativos ou de quaisquer outros contratos celebrados nos termos da legislação sobre contratação pública, por pessoas coletivas de direito público ou outras entidades adjudicantes;
f) Responsabilidade civil extracontratual das pessoas coletivas de direito público, incluindo por danos resultantes do exercício das funções política, legislativa e jurisdicional, sem prejuízo do disposto na alínea a) do n.º 4 do presente artigo;
g) Responsabilidade civil extracontratual dos titulares de órgãos, funcionários, agentes, trabalhadores e demais servidores públicos, incluindo ações de regresso;
h) Responsabilidade civil extracontratual dos demais sujeitos aos quais seja aplicável o regime específico da responsabilidade do Estado e demais pessoas coletivas de direito público.
Convoca-se ainda o disposto no n.º 2 do mesmo artigo, onde se prescreve:
2 - Pertence à jurisdição administrativa e fiscal a competência para dirimir os litígios nos quais devam ser conjuntamente demandadas entidades públicas e particulares entre si ligadas por vínculos jurídicos de solidariedade por terem concorrido em conjunto para a produção dos mesmos danos ou por terem celebrado entre si contrato de seguro de responsabilidade.
Na decisão da Instância Local Cível da Guarda escreveu-se:
“O que está em causa, parece-nos, sempre ressalvando melhor entendimento, não é o incumprimento unilateral de contrato de depósito bancário, mas a atuação dos Réus em cumprimento de resoluções impostas pelo Banco de Portugal.
E foi a diferenciação entre capitais seguros e de risco e quais eram ou não assumidos ou transferidos para o Novo Banco, de acordo com tais resoluções, que terá provocado a alegada lesão patrimonial e não patrimonial.
Dito de outro modo, as alegadas violações do dever de informação e lealdade por parte dos RR seriam inócuas para a produção de danos, não fora as instruções /normas do Banco de Portugal.
Daí que, quando os AA se dirigiram ao Banco para levantar o montante que aí possuíam, lhes terá sido dito que 'O Banco de Portugal não autorizava de momento' - vide art. 28º petição inicial.
Não fora as decisões administrativas, de duas uma: ou o montante investido pelos AA nas várias ações ainda aí permaneceria e teria de ser restituído ou tudo se passaria como um negócio civilista comum, sujeitando-se a entidade bancária a uma condenação e eventual execução ou até processo de insolvência, nos quais os credores reclamariam os seus créditos e seriam (ou não) pagos nos termos normais.
Face a tais deliberações do Banco de Portugal, alteraram-se as circunstâncias de facto e de direito, já que os 'passivos' foram transferidos para uma outra sociedade.
Não estamos, por isso, cremos, perante um caso de natureza meramente civilista, mas antes perante relações jurídicas complexas que envolvem entidades públicas e normas de direito administrativo.
O Fundo de Resolução é aqui demandado, não enquanto accionista - sendo certo que gozando o Novo Banco de personalidade jurídica mal se perceberia se demandasse o accionista, atento o disposto no art. 271º do CSC - mas justamente enquanto entidade com autonomia financeira, receitas e património próprio para prestar apoio financeiro à aplicação das medidas de resolução”.
Salvo o devido respeito, este raciocínio extravasa largamente o alegado pelos Autores.
E é Importante não esquecer que, como é pacificamente aceite pela doutrina e jurisprudência, a competência do tribunal em razão da matéria afere-se de harmonia com a relação jurídica controvertida, tal como definida pelo autor no que se refere aos termos em que propõe a resolução do litígio, a natureza dos sujeitos processuais, a causa de pedir e o pedido.
Ora, se atentarmos no conteúdo da petição inicial, logo constatamos que os factos alegados se conexionam com os institutos da responsabilidade civil pré-contratual, contratual e extracontratual, incidindo sobre actuações, alegadamente ilícitas e culposas, de funcionários do Banco Espírito Santo e do Novo Banco. Não tem, pois, aqui cabimento nenhuma das previsões das mencionadas alíneas f) a h) - que se referem a responsabilidade civil extracontratual das pessoas colectivas de direito público ou de quaisquer servidores públicos -, bem como também se não aplica a previsão da alínea e), na medida em que estamos perante contratos regulados por normas de direito privado.
Será, porém, que o n.º 2 do artigo 4º impõe a intervenção, no caso, dos tribunais administrativos, por vir demandado o Fundo de Resolução, pessoa colectiva de direito público?
A única referência que na petição inicial vem feita ao Fundo de Resolução consta do artigo 87, inserida no capítulo dedicado à legitimidade das partes, tendo os Autores aí alegado o seguinte:
“Por sua vez, o Fundo de Resolução é o único accionista do Novo Banco, S.A., sendo igualmente o responsável máximo pelas relações jurídicas retiradas ao BES e entregues ao Novo Banco, S.A., por força da supra aludida medida de resolução adoptada pelo Banco de Portugal”.
Tal matéria, que parece apenas querer justificar, no plano processual, a demanda do Fundo de Resolução, é claramente insuficiente para accionar a norma do n.º 2 do artigo 4º, na medida em que dela não resulta qualquer contributo desse Réu para a produção dos danos alegadamente sofridos pelos Autores.
DECISÃO
Nestes termos, decide-se o presente conflito de jurisdição atribuindo-se a competência material para a causa à Instância Local Cível da Guarda.»

Pelo exposto, acordam em decidir o presente conflito de jurisdição atribuindo a competência material para a causa à Instância Local Cível da Guarda.
Sem custas.

Lisboa, 7 de Junho de 2018. - Teresa Maria Sena Ferreira de Sousa (relatora) – Maria Rosa Oliveira Tching – Jorge Artur Madeira dos Santos – Pedro de Lima Gonçalves – António Bento São Pedro – António Leones Dantas.