Acórdãos T CONFLITOS

Acórdão do Tribunal dos Conflitos
Processo:020/20
Data do Acordão:12/15/2021
Tribunal:CONFLITOS
Relator:TERESA DE SOUSA
Descritores:CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO
DIREITO DE PROPRIEDADE
Sumário:Incumbe aos tribunais judiciais o julgamento de uma acção entre particulares em que se discute a titularidade do direito de propriedade sobre um terreno.
Nº Convencional:JSTA000P28702
Nº do Documento:SAC20211215020
Data de Entrada:08/13/2020
Recorrente:CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO, ENTRE O TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DO PORTO, JUÍZO LOCAL CÍVEL DE VILA DO CONDE – JUIZ 2, E O TRIBUNAL ADMINISTRATIVO E FISCAL DO PORTO UO1
AUTOR: A............... E OUTROS
RÉU: HERANÇA ABERTA POR ÓBITO DE C.............
Recorrido 1:*
Votação:UNANIMIDADE
Área Temática 1:*
Aditamento:
Texto Integral: Conflito nº 20/20


Acordam no Tribunal dos Conflitos

1. Relatório
A………………… e B……………, identificados nos autos, intentaram no Tribunal Judicial da Comarca do Porto, Juízo Local Cível da Póvoa do Varzim, acção declarativa com processo comum contra a Herança Aberta por óbito de C………………., sendo herdeiros as pessoas identificadas na petição inicial, pedindo a condenação de todos os Réus:
a) Demolir a construção levada a cabo ilegalmente;
b) Em alternativa, a executar as obras necessárias de demolição das escadas de acesso ao terraço, bem como a serem impedidos de utilizar mais o cimo da construção para qualquer efeito.
c) A garantir o correto encaminhamento das águas pluviais nas cobertura contíguas ao prédio dos Autores;
d) Proceder à pavimentação dos espaços onde se encontram os animais e encaminhar as águas de lavagem dos mesmos para a rede pública de saneamento, conforme artigo 118º do RGEU;
e) A estabelecer a ligação da rede predial de drenagem de águas residuais à rede pública.
Os AA. alegam serem proprietários de fracção autónoma que identificam a qual se situa junto do imóvel propriedade dos RR., herdeiros da herança aberta por óbito de C…………….., e invocam que as acções destes no prédio, que descrevem, “obstam a um pleno uso da propriedade dos Autores em condições de higiene e salubridade”.
Em sede de contestação, os Réus deduziram a excepção da incompetência em razão da matéria.

Em 02.02.2020, no Juízo Local Cível de Vila do Conde, Juiz 2 foi proferida decisão [cfr. fls. 101 a 103] a julgar o tribunal incompetente em razão da matéria para apreciação da acção intentada.

Remetidos os autos ao Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto (TAF do Porto), a pedido dos AA, foi em 15.07.2020 proferido saneador-sentença a declarar a incompetência em razão da matéria para conhecer do objecto dos autos [cfr. fls. 114-115].
Suscitada oficiosamente a resolução do conflito – fls. 115 -, foram os autos remetidos a este Tribunal dos Conflitos.

Neste Tribunal dos Conflitos as partes foram notificadas para efeitos do disposto no n.º 3 do artigo 11.º. da Lei n.º 91/2019 e nada disseram.
A Exma. Procuradora Geral Adjunta emitiu parecer no sentido da atribuição da competência material aos Tribunais da Jurisdição Comum.

2. Os Factos
Os factos relevantes para a decisão são os enunciados no Relatório.

3. O Direito
O presente Conflito Negativo de Jurisdição vem suscitado entre o Juízo Local Cível de Vila do Conde, Juiz 2 e o Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto.
Entendeu o Juízo Local Cível de Vila do Conde que “no caso sub judice, ao contrário do que defendem os Autores não está em causa qualquer acção de reivindicação ou a realização de obras abusivas em prédio da propriedade dos Autores, mas antes a alegada violação pelos Réus de normas relativas à construção e edificação de um anexo e normas relativas às condições especiais de salubridade das edificações e dos terrenos.” E concluiu que “Estando em causa aplicação de normas de direito de administrativo, e sendo na alegada violação das mesmas que os Autores baseiam a sua pretensão de demolição e de condenação na execução de determinadas obras em cumprimento de regras de salubridade, não podemos afirmar que estamos no âmbito de uma relação jurídico-privada, regulada exclusivamente pelo direito privado, embora existam reflexos/consequências para os Autores enquanto privados, pelo que a competência para apreciar as pretensões/pedidos formulados cabe aos Tribunais Administrativos nos termos do artigo 4.º, n.º 1, alínea o) do ETAF”.
Por sua vez o TAF do Porto também se considerou incompetente em razão da matéria por que “a relação material controvertida e a factualidade que a sustenta, assim como, a causa de pedir e os pedidos derramados na p.i., foram todos construídos pelos AA. numa visão puramente civilista tanto mais que sustentam a sua pretensão ao abrigo dos artigos 1360.º e 1362.º do Código Civil (cf. artigos 14.º e 43.º da p.i.), comandos legais que se inserem no tema da propriedade de imóveis e da servidão de vistas, mais especificamente na matéria dos limites das construções e edificações e intervalos-distâncias entre as mesmas, com especial incidência nas janelas, portas, varandas, terraços, eirados e outras obras semelhantes”. E que: “na contraparte da relação material contravertida apresentada pelos AA. não se encontra qualquer pessoa colectiva de direito público ou pessoa colectiva de direito privado que exerça poderes de autoridade pública ou de interesse público, contra a qual se possa exigir a prática de acto administrativo ou qualquer operação material”.

Vejamos.
Cabe aos tribunais judiciais a competência para julgar as causas «que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional» [arts. 211º, nº1, da CRP, 64º do CPC e 40º, nº1, da Lei nº 62/2013, de 26/8 (LOSJ)], e aos tribunais administrativos e fiscais a competência para julgar as causas «emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais» [arts. 212º, nº3, da CRP, 1º, nº1, do ETAF].
A competência dos tribunais administrativos e fiscais é concretizada no art. 4º do ETAF (Lei nº 13/2002, de 19 de Fevereiro, na redacção do DL nº 214-G/2015, de 2 de Outubro, que atendendo à data da propositura da acção, é a que aqui releva) com delimitação do “âmbito da jurisdição” mediante uma enunciação positiva (nºs 1 e 2) e negativa (nºs 3 e 4).
Tem sido reafirmado por este Tribunal, e constitui entendimento jurisprudencial e doutrinário consensual, que a competência material do tribunal se afere em função do modo como o autor configura a acção e que a mesma se fixa no momento em que a mesma é proposta.
Como se afirmou no Ac. deste Tribunal de 01.10.2015, Proc. 08/14 “A competência é questão que se resolve de acordo com os termos da pretensão do Autor, aí compreendidos os respectivos fundamentos e a identidade das partes, não importando averiguar quais deviam ser os termos dessa pretensão, considerando a realidade fáctica efectivamente existente ou o correcto entendimento do regime jurídico aplicável. O Tribunal dos Conflitos tem reafirmado constantemente que o que releva, para o efeito do estabelecimento da competência, é o modo como o Autor estrutura a causa e exprime a sua pretensão em juízo”.
Tal como os AA. configuram a acção, verifica-se que os pedidos são dirigidos contra sujeitos privados e respeitam, em síntese, ao reconhecimento do seu direito de propriedade e à condenação dos RR. na demolição de construções e no correcto encaminhamento de águas pluviais para que os AA. possam usar plenamente a sua propriedade em condições de higiene e salubridade.
Tomando em consideração o pedido e a causa de pedir e constatando que os RR., sujeitos privados, não actuaram no exercício de prerrogativas de poder público ou ao abrigo de disposições ou princípios de direito administrativo, concluímos que a questão dos autos não emerge de qualquer relação jurídica administrativa, mas de uma relação no âmbito do direito privado.
Deste modo, não se inscrevendo a acção em nenhuma das alíneas do nº 1 do art. 4º, do ETAF, que permitam submeter o litígio ao âmbito da jurisdição administrativa, e sendo da competência dos tribunais judiciais conhecer e decidir as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional, conclui-se que a competência material para conhecer da presente acção cabe à jurisdição comum.

Pelo exposto, acordam em julgar competente para apreciar a presente acção o Tribunal Judicial da Comarca do Porto - Juízo Local Cível Vila do Conde, Juiz 2.
Sem custas.

Lisboa, 15 de Dezembro de 2021. – Teresa Maria Sena Ferreira de Sousa (relatora) – Maria dos Prazeres Couceiro Pizarro Beleza.