Acórdãos T CONFLITOS

Acórdão do Tribunal dos Conflitos
Processo:038/15
Data do Acordão:12/03/2015
Tribunal:CONFLITOS
Relator:MELO LIMA
Descritores:CONTRATO DE ARRENDAMENTO.
RESOLUÇÃO DE CONTRATO.
PAGAMENTO.
RENDA.
COMPETÊNCIA.
Sumário:Compete aos tribunais comuns conhecer da acção proposta contra um município, com fundamento no incumprimento de um contrato de arrendamento de um prédio com pedido de resolução desse contrato e condenação no pagamento das rendas. (*)
Nº Convencional:JSTA00069465
Nº do Documento:SAC20151203038
Data de Entrada:09/11/2015
Recorrente:MAGISTRADO DO MINISTÉRIO PÚBLICO, NO CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO ENTRE O TRIBUNAL DA COMARCA DA GUARDA - INSTÂNCIA LOCAL - SECÇÃO CÍVEL J2 (TJCG) E O TAF DE CASTELO BRANCO (TAFCB)
Recorrido 1:*
Votação:UNANIMIDADE
Meio Processual:CONFLITO NEGATIVO
Objecto:SENT TJ GUARDA - SENT TAF CASTELO BRANCO
Decisão:DECL COMPETENTE JURISDIÇÃO COMUM
Área Temática 1:DIR ADM CONT - CONFLITO NEGATIVO
Legislação Nacional:CONST05 ART211 N1 ART212 N3.
ETAF02 ART1 N1 ART4 N1 ART5.
CPC13 ART64 ART581 N3.
CCP ART1 ART2 ART3 ART6 ART8 ART336 ART337-406.
LOFTJ ART18.
L 52/88 DE 1988/08/28 ART26.
Referência a Doutrina:GOMES CANOTILHO E VITAL MOREIRA - CONSTITUIÇÃO DA REPUBLICA PORTUGUESA ANOTADA VOLII 4ED REVISTA PAG566-567 3ED PAG815.
VIEIRA DE ANDRADE - A JUSTIÇA ADMINISTRATIVA 5ED PAG113.
ANSELMO DE CASTRO - DIREITO PROCESSUAL CIVIL DECLARATÓRIO 1981 VOLI PAG281.
MANUEL DE ANDRADE - NOÇÕES ELEMENTARES DE PROCESSO CIVIL 1963 PAG297.
ALBERTO DOS REIS - CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL ANOTADO VOLIII PAG106-107.
MÁRIO AROSO DE ALMEIDA - MANUAL DE PROCESSO ADMINISTRATIVO 2013 PAG175.
Aditamento:
Texto Integral: Conflito Negativo de Jurisdição
Acordam em conferência no Tribunal de Conflitos:

I RELATÓRIO

1. MASSA INSOLVENTE DE A……………., LDA instaurou, na Instância Local Secção Cível da Guarda, e por apenso ao Processo nº 919/12.6TBGRD, do 2º Juízo do Tribunal da Guarda, ação declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, contra o MUNICIPIO DA GUARDA, pedindo:

a) Se declare resolvido o contrato de arrendamento e promessa de compra e venda, outorgado em 23 de dezembro de 2010, entre o Município da Guarda e a Sociedade ora Insolvente, A……………, Lda.;

b) A condenação do Município da Guarda a pagar à A., a título de rendas vencidas e não pagas, a quantia de € 946.000,00;

c) A condenação do Município da Guarda a pagar à A. os valores de rendas que se vierem a vencer até trânsito em julgado da presente cisão;

d) A condenação do R. em custas, procuradoria e demais encargos legais.

2. Alegou, em síntese:

2.1 Em 28.08.2009, celebrou com o R. um contrato de arrendamento dos 2º e 3º Pisos do prédio urbano, sito na Rua ………….., conhecido por “Edifício ……….”, inscrito na matriz predial da freguesia da …… (Guarda) sob o artigo 839 e descrito na Conservatória do Registo Predial da Guarda sob o nº 1012 da mesma freguesia, no qual as partes acordaram que no primeiro ano de contrato a renda seria de € 2.000 e a partir da vigência do primeiro ano de contrato, caso o R. não exercesse o direito de opção de compra, a renda seria de € 25.000;

2.2 Em 23.12.2010, celebrou com o R. um contrato de arrendamento e promessa de compra e venda do referido prédio urbano;

2.3 No contrato celebrado em 2010, as partes acordaram que:

· A A. dava de arrendamento ao R. o 2º e o 3º pisos, pagando o R. a renda de € 25.000/mês, no primeiro ano do contrato;

· O R. ficava com o direito de optar pela compra do imóvel até 31.12.2010 e

· O preço da venda prometida seria de € 1.500.000,00, a pagar até à outorga da escritura pública, ficando tal pagamento dependente do recebimento por parte do R. do preço relativo à venda do edifício do Hotel Turismo da Guarda ao Turismo de Portugal, IP.;

2.4 Em janeiro de 2013, o R. comunicou ao Administrador da Insolvência a sua intenção de efetuar a aquisição do imóvel pelo preço de € 1.400.000,00, o que obteve a anuência da comissão de credores;

2.5 O R. obrigou-se a outorgar a escritura de compra e venda até final do mês de outubro de 2013, o que contou com a concordância da massa insolvente;

2.6 Por carta datada de 30.12.2013, o administrador da insolvência comunicou ao R. que aguardava até 31.01.2014 que fosse comunicada à comissão de credores o dia e hora da outorga da escritura de compra e venda do imóvel ou, em alternativa, que fosse entregue o montante devido a título de rendas.

2.7 O R. não respondeu à carta de 30.12.2013, permanecendo as instalações ocupadas;

2.8 O R. não pagou as rendas desde Maio de 2010, pelo que na data da declaração de insolvência da A., encontravam-se em dívida rendas no valor de € 491.000,00 e

2.9 Em 27.06.2013, o R., através de cheque, pagou € 70.000,00, a título de rendas, ficando em dívida rendas no valor de € 421,000, a que acresce o valor de € 525.000 relativo às rendas não pagas desde julho de 2012 até à data da apresentação da petição inicial.

Ainda no seu articulado inicial, logo a impetrante MASSA INSOLVENTE se pronunciou sobre a determinação da competência jurisdicional, atribuindo-a ao Tribunal Comum, invocando para tanto dois argumentos:

i. Aferindo-se, conforme jurisprudência pacífica, o problema da determinação da competência jurisdicional entre duas ordens jurídicas distintas pelo quid disputatum, então a competência é determinada pelo pedido expresso pelo autor, conjugado com os fundamentos fácticos pelo mesmo invocados como elementos constitutivos da formulação do mesmo (causa de pedir);

ii. Nos termos do artigo 85º, nº 1, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas [CIRE] («1 - Declarada a insolvência, todas as acções em que se apreciem questões relativas a bens compreendidos na massa insolvente, intentadas contra o devedor, ou mesmo contra terceiros, mas cujo resultado possa influenciar o valor da massa, e todas as acções de natureza exclusivamente patrimonial intentadas pelo devedor são apensadas ao processo de insolvência, desde que a apensação seja requerida pelo administrador da insolvência, com fundamento na conveniência para os fins do processo»), a ação intentada pelo Senhorio/massa insolvente com vista à resolução do contrato e à cobrança das rendas em dívida, deverá correr por apenso ao processo de insolvência.

3. O R. contestou ora impugnando, ora excecionando a incompetência absoluta em razão da matéria dos tribunais judiciais, argumentando, neste particular, que dizendo a ação respeito à responsabilização de pessoa coletiva de direito público por alegada ação lesiva levada a cabo por alegado incumprimento de contrato, a competência para decidir a ação cabe ao foro administrativo, por força do disposto nas alíneas f) e i do artigo 4º do ETAF.

4. Na réplica, o A. pronunciou-se pela improcedência da exceção, alegando que a questão sub iudicio nada tem a ver com a interpretação de contratos e de normas de direito administrativo, estando apenas em causa uma ação que o senhorio intentou com vista a resolver o contrato de arrendamento e obter o pagamento das rendas em dívida, pelo que competentes para o seu conhecimento são os tribunais judiciais.

5. Em 17.02.2015, a Instância Local, Secção Cível, da Guarda declarou-se materialmente incompetente para a apreciação do litígio e absolveu o R da instância, «sem prejuízo do disposto no nº 2 do art. 99º do CPC», e

6. Por despacho de 17.03.2015, na apreciação conjugada do pedido de remessa dos autos para o TAF de Castelo Branco, formulado pelo A, e da ausência de oposição por parte do R., aquela Instância Local, Secção Cível, ordenou a remessa dos autos ao Tribunal Administrativo e Fiscal de Castelo Branco.

7. Aqui, por decisão de 14 de maio de 2015, transitada em julgado, foi declarado que o Tribunal Administrativo era «materialmente incompetente para conhecer das ações intentadas».

8. Ao abrigo do disposto nos Artigos 115º, 116º e 117º, todos do Código de Processo Civil (CPC), o Exmo. Procurador-Geral Adjunto requereu, em 11 de setembro de 2015, neste Tribunal dos Conflitos, a resolução do conflito negativo de jurisdição entre O TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DA GUARDA — INSTÂNCIA LOCAL — SECÇÃO CÍVEL — J2 (TJCG) e o TRIBUNAL ADMINISTRATIVO E FISCAL DE CASTELO BRANCO (TAFCB).

9. Distribuído o projeto pelos Exmos. Adjuntos, é altura de decidir.

10. O thema decidendum reconduz-se a saber e definir qual das jurisdições em confronto — administrativa ou civil comum — é a competente.

II Conhecendo.

1. Suscitada uma questão de conflito (in casu, negativo) de competência entre tribunais, impõe-se ter presente, em primeira linha, o ordenamento judiciário que fundamentará o âmbito da discussão e, a final, o sentido da decisão.

1.1 Consabidamente, a lei fundamental consagrou o princípio da pluralidade de jurisdições, ou dizer a existência de diferentes categorias de tribunais sob um critério de repartição de competências de modo que as funções judiciais são atribuídas a vários órgãos enquadrados em jurisdições diferenciadas e independentes entre si.

Dizer, então, que a Constituição da República se, por um lado, dispõe no art. 211º nº 1 que «Os tribunais judiciais são os tribunais comuns em matéria cível e criminal e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais», acrescentando no nº 2 do mesmo dispositivo, que «Na primeira instância pode haver tribunais com competência específica e tribunais especializados para o julgamento de matérias determinadas», dispõe, por outro, no art. 212.°, n.º 3, que «compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objeto dirimir litígios emergentes de relações administrativas e fiscais».

1.2 Já no âmbito da lei ordinária, o Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais [ETAF] aprovado pela Lei n.º 13/2002, de 29 de fevereiro, se, num primeiro momento, define numa fórmula ampla que «Os tribunais da jurisdição administrativa e fiscal são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo, nos litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais» (Art. 1º/1), enumera, depois, por mera indicação do objeto (sic, “nomeadamente”), os litígios cuja apreciação lhes compete. [Art. 4º nº1 als. a) a n)]

Pari passu, na assunção daquele papel residual dos Tribunais Judiciais decorrente da antedita norma constitucional, a Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais (Lei n.º 3/99, de 13 de janeiro) [LOFTJ] ora dispõe que «São da competência dos tribunais judiciais as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional» (De igual modo, o art. 64º do CPC), ora «determina a competência em razão da matéria entre os tribunais judiciais, estabelecendo as causas que competem aos tribunais de competência específica» [Art.18º/1 e 2; Vide, ainda: Lei n.º 52/2008, de 28 de Agosto, Art.º 26º/1 e 2]

Voltando à Lei Fundamental, impõe-se ter presente que logo aí se previne a existência de conflitos de competência: «A lei determina os casos e as formas em que os tribunais previstos nos números anteriores se podem constituir, separada ou conjuntamente, em tribunais de conflitos» (Art. 209º/3)

1.3 Subjaz ao presente processo uma questão de conflito negativo de competência, vale dizer, um conflito de competência em razão da jurisdição em que dois tribunais — TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DA GUARDA — INSTÂNCIA LOCAL — SECÇÃO CÍVEL — J2 (TJCG) e TRIBUNAL ADMINISTRATIVO E FISCAL DE CASTELO BRANCO (TAFCB)-, integrados em ordens jurisdicionais diferentes, declinam o poder de conhecer da mesma questão.

Integrando-se aquele TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DA GUARDA — INSTÂNCIA LOCAL — SECÇÃO CÍVEL — J2 (TJCG) na categoria dos Tribunais Judiciais, logo no aludido âmbito residual, importará realçar a função que compete e distingue o Tribunal Administrativo.

Reproduzindo o texto constitucional, o ETAF atribui-lhe o julgamento das ações e recursos contenciosos que tenham por objeto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais.

Punctum saliens, a referência às relações jurídico-administrativas (ou fiscais).

Ponto relativamente ao qual julga-se pertinente lembrar, aqui, os ensinamentos de Gomes Canotilho e Vital Moreira:

«Esta qualificação transporta duas dimensões caraterizadoras: (1) as ações e recursos incidem sobre relações jurídicas em que, pelo menos, um dos sujeitos é titular, funcionário ou agente de um órgão de poder público (especialmente da administração); (2) as relações jurídicas controvertidas são reguladas, sob o ponto de vista material, pelo direito administrativo ou fiscal. Em termos negativos, isto significa que não estão aqui em causa litígios de natureza “privada” ou “jurídico-civil”. Em termos positivos, um litígio emergente de relações jurídico-administrativas e fiscais será uma controvérsia sobre relações jurídicas disciplinadas por normas de direito administrativo e/ou fiscal (cfr. ETAF, art. 4º)

O conceito de relações jurídico-administrativas deve ser entendido neste contexto como uma referência à possibilidade de alargamento da jurisdição administrativa a outras realidades diversas das tradicionais formas de atuação (ato, contrato e regulamento), complementando aquele critério. Pretende-se, com o recurso a este conceito genérico, viabilizar a inclusão na jurisdição administrativa do amplo leque de relações bilaterais e poligonais, externas e internas, entre a Administração e as pessoas civis e entre entes da Administração, que possam ser reconduzidas à atividade de direito público, cuja caraterística essencial reside na prossecução de funções de direito administrativo, excluindo-se apenas as relações jurídicas de direito privado. Trata-se de um conceito suficientemente dúctil e flexível para enfrentar os desafios do “novo direito administrativo”, mas que não pode deixar de ser entendido como complementar da tradicional dogmática das formas de atuação administrativa.» (CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA ANOTADA Vol. II, 4ª Edição Revista, Coimbra Editora, págs. 566-567 [Negrito e sublinhado do Relator])

2. As decisões objeto de apreciação.

2.1 - TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DA GUARDA — INSTÂNCIA LOCAL - SECÇÃO CÍVEL — J2 (TJCG).

A decisão proferida no sentido da incompetência em razão da matéria, fundamentou-a o Tribunal Judicial do seguinte modo:

«Quanto à competência de cada uma das categorias dos Tribunais, distingue a Constituição da República Portuguesa (doravante designada pela sigla CRP) entre os tribunais comuns em matéria cível e criminal (que exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outros tribunais — artigo 211º, nº 1, da CRP) e os Tribunais Administrativos e Fiscais (aos quais compete o julgamento das ações e recursos contenciosos que tenham por objeto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais — artigo 212º, nº 3, da CRP).

Ao definir a competência dos Tribunais Administrativos e Fiscais nos moldes referidos, pretendeu a Lei Fundamental consagrar a ordem judicial administrativa como uma jurisdição própria, ordinária, e não como uma jurisdição excecional em face dos tribunais judiciais, servindo o citado art. 212º nº 3, da CRP para delimitar o sentido da parte final do nº 1 do normativo [concretizado no art. 64º do NCPC], que atribuiu aos tribunais judiciais uma jurisdição residual, de modo a que uma questão de natureza administrativa passa a pertencer à ordem judicial administrativa quando não esteja expressamente atribuída a nenhuma outra jurisdição — neste sentido, Vieira de Andrade, in A Justiça Administrativa, Coimbra, 5ª Edição, pág. 113 e Gomes Canotilho, Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, Coimbra, 3ª Edição, pág. 815.

Ao nível da lei ordinária, impõe-se atentar em ordem à apreciação da exceção em apreço, no art. 1º do Novo Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, aprovado pela Lei 13/2002, de 19 de fevereiro, nos termos do qual “os Tribunais da jurisdição administrativa e fiscal são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo nos litígios emergentes de relações jurídicas administrativas e fiscais”.

Quanto à competência de tais tribunais, preceitua o art. 4º, nº 1 do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, que “compete aos tribunais de jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham nomeadamente por objeto:

(…)

e) Questões relativas à realidade de atos pré -contratuais e à interpretação, validade e execução de contratos a respeito dos quais haja lei específica que os submeta, ou que admita que sejam submetidos, a um procedimento pré-contratual regulado por normas de direito público;

f) Questões relativas à interpretação, validade e execução de contratos de objeto passível de ato administrativo, de contratos especificamente a respeito dos quais existam normas de direito público que regulem aspetos específicos do respetivo regime substantivo, ou de contratos em que pelo menos uma das partes seja uma entidade pública ou um concessionário que atue no âmbito da concessão e que as partes tenham expressamente submetido a um regime substantivo de direito público;

(…)”

Ora, resulta assente nos autos que entre a sociedade insolvente que deu origem à A. e o R. foram celebrados dois acordos (...), celebrados em agosto de 2009 e dezembro de 2010, respetivamente, mediante os quais estabeleceram estipulações várias relativas ao uso e gozo por uma entidade terceira de um imóvel então propriedade da dita sociedade, assim como relativas a uma futura aquisição da propriedade do imóvel pelo R.

O R. é um município.

No âmbito do primeiro acordo estipulou-se logo que o preço a pagar pelo imóvel estava sujeito a um preço de avaliação exigível para a aquisição de bens por entidades públicas — vide cláusula 12ª, alínea e).

Por sua vez o próprio montante da contraprestação pecuniária devida pelo uso e gozo do imóvel foi estipulado de forma variável em face da futura concretização ou não da alienação do imóvel a favor do réu. — vide cláusula 4ª, alíneas a) e b).

Já no segundo acordo, o preço acordado pela transmissão da propriedade do imóvel surge estipulado sem alusão qualquer ao dito processo de avaliação.

Sucede que, por força do disposto, desde logo, nos artigos 1º, 2º, nº1 alínea c), e 6º nº1 alínea d), este último a contrario, do Código dos Contratos Públicos, aprovado pelo DL nº 18/2008, em vigor desde 29.09.2008, que, por isso, é aplicável aos acordos em apreço nos autos, a locação ou aquisição de imóveis pelo R estava sujeita aos procedimentos para formação de contratos previstos no dito compêndio normativo.

O Código dos Contratos Públicos encerro normas de natureza pública.

É desprovido de sentido, ..., defender-se, ..., que o que pretende exigir a R. é, tão-somente, o cumprimento de obrigações emergentes do contrato porquanto tal exigibilidade está, obviamente, dependente da validade do mesmo.

A apreciação de tal validade é, ..., por via da sujeição dos negócios em causa à disciplina do Código da Contratação Pública, questão relativa à interpretação, validade e execução de contratos especificamente acerca dos quais existam normas de direito público que regulam aspetos do respetivo regime substantivo que, assim recai sob a previsão da alínea f) do nº1 do artigo 4º do ETAF, pelo que a competência para a sua apreciação cabe aos tribunais administrativos e fiscais, e não já aos comum, por força da norma contida no artigo 64º do NCPC, gerando o incompetência absoluta do mesmo, por força do disposto no artigo 96º, alínea a), do mesmo diploma.»

2.2 O Tribunal Administrativo e Fiscal de Castelo Branco.

Argumenta do seguinte modo:

«[A] competência material do tribunal afere-se pelos termos em que a ação é proposta e pela forma como se estrutura o pedido e os respetivos fundamentos, atendendo-se, apenas, aos factos articulados pelo autor da P.I. e à pretensão jurídica por ele apresentada, ou seja, à causa de pedir invocada e aos pedidos formulados.

[…]

Em face dos pedidos que a A. formula e dos factos que alega para os sustentar, ...., as questões que a A. submeteu a decisão judicial são, em síntese, as seguintes:

a) Saber se o R. incumpriu definitivamente o contrato que as partes designaram por promessa de compra e venda, por ter exercido a opção de compra do imóvel, mas depois não ter celebrado a respetiva escritura;

b) Saber se o R incumpriu definitivamente os contratos de arrendamento por falta de pagamento pontual das rendas,

c) Saber se o R. deve pagar à A. as rendas vencidas e vincendas.

Ora atendendo à forma como a A. estrutura a ação, estamos perante uma ação respeitante a responsabilidade civil contratual emergente do incumprimento de negócios jurídicos que não foram, nem estão, nem do ponto de vista pré-contratual, nem do ponto de vista de regime substantivo, submetidos a um regime regulado por norma de direito público.

Com efeito, atendendo à forma como o litígio é introduzido pela A. em juízo, concluímos que não estamos perante:

a) Questões relativas à interpretação, validade ou execução de contratos de objeto passível de ato administrativo [Cfr. art. 4º, nº1, alínea f), do ETAF, 1ª alternativa;

b) Questões relativas à interpretação, validade ou execução de contratos que as partes tenham expressamente submetido a um regime substantivo de direito público [Cfr. artigo 4º, nº1 alínea f), do ETAF, 3ª alternativa], nem

c) Questões relativas à interpretação, validade ou execução de contratos especificamente a respeito dos quais existam normas de direito público que regulem aspetos específicos do respetivo regime substantivo [Cfr. Artigo 4º, nº1, alínea f), do ETAF, 2ª alternativa].

[……………]

Entendeu, ..., o tribunal judicial da Guarda que os contratos que a A. invoca na P.I. estão submetidos ao regime substantivo dos contratos públicos previsto no Código dos Contratos Públicos (CCP), motivo pelo qual considera a jurisdição administrativa competente para decidir da presente ação.

Porém, entendemos que assim não é.

Com efeito, dispõe o artigo 2º [1º] do CCP que:

“5. O regime substantivo dos contratos públicos estabelecido na parte III do presente Código é aplicável aos que revistam a natureza de contrato administrativo.

6. Sem prejuízo do disposto em lei especial, reveste a natureza de contrato administrativo o acordo de vontades, independentemente da sua forma ou designação, celebrado entre contraentes públicos e co-contratantes ou somente entre contraentes públicos, que se integre em qualquer uma das seguintes categorias:

a) Contratos que, por força do presente código, da lei ou da vontade das partes, sejam qualificados como contratos administrativos ou submetidos a um regime substantivo de direito público;

b) Contratos com objeto passível de ato administrativo e demais contratos sobre o exercício de poderes públicos;

c) Contratos que confiram ao co-contratante direitos especiais sobre coisas públicas ou o exercício de funções dos órgãos do contraente público;

d) Contratos que a lei submeta, ou que admita que sejam submetidos, a um procedimento de formação regulado por normas de direito público e em que a prestação do contraente possa condicionar ou substituir, deforma relevante, a realização das atribuições do contraente público.”

Os contratos de arrendamento e os contratos promessa de compra e venda de imóveis não são contratos que a lei qualifique de contratos administrativos ou que submeta a um regime substantivo de direito público [não estamos perante um contrato interadministrativo, regulado no art. 338º do CCP; não estamos perante uma parceria público-privada, regulada nos artigos 339º a 342º do CCP; não estamos perante uma empreitada de obras públicas, regulada nos artigos 343º a 406º do CCP; não estamos perante uma concessão de obras públicas e de serviços públicos, regulada nos artigos 407º a 430º do CCP; não estamos perante uma locação de bens móveis, regulada nos artigos 431º a 436º do CCP; não estamos perante uma aquisição de bens móveis, regulada nos artigos 437º a 449º do CCP; nem estamos perante uma aquisição de serviços, regulada nos artigos 450º a 454º do CCP] Por outro lado, a A. não alega nem de outro modo transparece dos autos, que as partes tenham qualificado tais contratos como administrativos ou os tenham submetido a um regime substantivo de direito público, pelo que se encontra afastada a aplicação da alínea a) do nº6 do art. 2º [1º] do CCP.

Não estamos perante um contrato de objeto passível de ato administrativo, nem de um contrato sobre o exercício de poderes públicos (regulado nos artigos 336º e 337º do CCP), pelo que se encontra afastada a aplicação da alínea b) do nº6 do art. 2º [1º] do CCP.

A A. não alega, nem transparece de outra forma dos autos, que os contratos de arrendamento e promessa de compra e venda que celebrou com o R. lhe tenham atribuído direitos especiais sobre coisas públicas ou o exercício de funções dos órgãos do R, pelo que não está preenchida a previsão normativa da alínea c) do nº6 do art. 2º [1º] do CCP.

Finalmente a A. também não alega, nem transparece dos autos, que as prestações que por via dos contratos ficou obrigada a realizar possam condicionar ou substituir, de forma relevante, a realização das atribuições do R., pelo que também não se verifica a hipótese da alínea d) do nº6 do art. 2º [1º] do CCP.

Do exposto, conclui-se que os contratos de arrendamento e promessa de compra e venda invocados na P.I. para sustentar os pedidos que a A. formula não estão submetidos ao regime substantivo dos contratos públicos estabelecido na parte III do CCP – cf. Artigo 2º [1º], nº5 e nº6, a contrario, do CCP. Deste modo, ao contrário do que decidiu o tribunal judicial, a competência para conhecer da presente ação não se enquadra no artigo 4º, nº1 alínea f), do ETAF.»

3. Quid iuris?

3.1 É entendimento comum, na doutrina como na jurisprudência, que a competência (ou a iuris dictio) de um tribunal se determina pela forma como o autor configura a ação, sendo definida pelo respetivo objecto, tal como se mostra delimitado pelo petitum formulado e pela respetiva causa petendi.

Tenha-se presente, aliás, como nos termos do artigo 5º do ETAF, «a competência dos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal fixa-se no momento da propositura da causa, sendo irrelevantes as modificações de facto e de direito que ocorram posteriormente».

3.1.1 No que ao petitum concerne, devera o mesmo ser entendido como o efeito jurídico que se pretende obter com a ação (581º/3NCPC), ou, nas palavras de Anselmo de Castro, como «o círculo dentro do qual o tribunal se tem de mover para dar solução ao conflito de interesses que é chamado a decidir» ( Dto. Proc. Civil Declaratório, Almedina, Coimbra, 1981, Vol. I, 201)

A partir da ideia de que «pedido é a enunciação da forma de tutela jurisdicional pretendida pelo autor e do conteúdo e objeto do direito a tutelar»( Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora, Lda, 1963, p. 297) (dir-se-á com A. dos Reis, que «a providência jurisdicional solicitada pelo autor deve entender-se, não em termos abstratos, mas nos termos positivos e concretos definidos na petição inicial, com referência portanto ao direito que se pretende fazer valer e à incidência material desse direito» ( CPC Anotado, III 106-107).

3.1.2 A respeito da causa petendi, a partir da norma ínsita no artigo 498º/4 da lei adjetiva civil – Artigo 581º nº4, do NCPC - identificava-a M. Andrade com «o ato ou facto jurídico (...) donde o Autor pretende ter derivado o direito a tutelar; o ato ou facto jurídico que ele aduz como título aquisitivo desse direito» ( Ob. cit. p.297

)

Do normativo sob referência decorre, na verdade, o conceito legal de causa de pedir, como “o acto ou facto jurídico de que procede a pretensão deduzida em juízo”, “donde o Autor pretende ter derivado o direito a tutelar; o acto ou facto jurídico que ele aduz como título aquisitivo desse direito”. [M. Andrade, ob. cit. Pág. 297]

“Quando se diz que a causa de pedir é o acto ou facto jurídico de que emerge o direito que o Autor se propõe fazer valer, tem-se em vista não o facto jurídico abstracto tal como a lei o configura, mas um certo facto jurídico concreto, cujos contornos se enquadram na configuração legal.”

Causa de pedir é assim, o facto material e concreto que, em cada caso, se alega para justificar o pedido.

3.2 Lidas as fundamentações das decisões em conflito, poder-se-á dizer, de uma parte, que inexiste qualquer divergência no que respeita à identificação da natureza e objecto da acção efetivamente proposta, assim quanto ao pedido, assim quanto à causa de pedir.

O dissídio entre as instâncias administrativa e civil comum radica, de uma forma determinante, na aplicação ou não ao caso concreto da norma ínsita no artigo 4º, nº1 alínea f) do ETAF: enquanto o Tribunal Judicial da Comarca da Guarda entendeu-a aplicável in casu, já o Tribunal Administrativo e Fiscal de Castelo Branco entendeu que a competência para conhecer da presente ação não se enquadra naquele dispositivo.

Atalhando caminho, acompanha-se a fundamentação decorrente do Tribunal Administrativo e Fiscal de Castelo Branco.

3.2.1 Deixou-se referido que a competência de um tribunal se determina pela forma como o autor configura a acção, sendo definida pelo respetivo objecto, tal como se mostra delimitado pelo petitum formulado e pela respetiva causa petendi.

Primeiro elemento identificador, o pedido.

Dizer, a enunciação da forma de tutela jurisdicional pretendida pelo autor e do conteúdo e objeto do direito a tutelar.

In casu, qual a tutela jurisdicional solicitada ao tribunal?

Reza a final do peticionado:

«a) Se declare resolvido o contrato de arrendamento e promessa de compra e venda, outorgado em 23 de dezembro de 2010, entre o Município da Guarda e a Sociedade ora Insolvente, A………….., Lda.;

b) A condenação do Município da Guarda a pagar à A., a título de rendas vencidas e não pagas, a quantia de € 946.000,00;

c) A condenação do Município da Guarda a pagar à A. os valores de rendas que se vierem a vencer até trânsito em julgado da presente decisão;

d) A condenação do R. em custas, procuradoria e demais encargos legais.»

Manifestamente, a pretensão formulada pela A. (i) seja no sentido do objeto imediato – ou dizer, as providências concedidas pelo juiz através das quais é atuada determinada forma de tutela jurídica (condenação, declaração, etc), ou dizer ainda, a providência que se pretende obter com a ação – tendo em vista a obtenção duma iuris dictio que lhe reconheça o direito de resolução do contrato de arrendamento e promessa de compra e venda outorgado, em 23 de dezembro de 2010, entre o Município da Guarda e a Sociedade ora insolvente, A…………. Lda; (ii) seja no sentido do objeto mediato ou dizer a consequência jurídica material que se pede ao tribunal para ser reconhecida –, traduzida, in casu, na formulada pretensão de condenação do Município no pagamento das rendas vencidas [€ 946.000,00] e não pagas e vincendas até ao trânsito em julgado da decisão, não constitui senão a pretensão última da A., o interesse primacial que visa obter com o recurso aos meios judiciais.

Manifestamente, pois, uma ação judicial no quadro da responsabilidade civil contratual, visando o reconhecimento do inadimplemento definitivo das obrigações contratualmente assumidas pelo R. Município e a obtenção do pagamento das prestações em dívida por parte do mesmo Município.

3.2.2 Segundo elemento identificador, a causa petendi.

Sem necessidade de particulares considerações “o acto ou facto jurídico de que procede a pretensão deduzida em juízo” deflui de forma óbvia do alegado no peticionado e acima enunciado em 1 - 2, na justa medida em que comporta ora o contrato outorgado entre A……………, Lda e o Município da Guarda, ora o incumprimento quer com referência à prometida compra e venda do imóvel, quer com referência ao arrendamento do mesmo imóvel, por parte do R. Município.

De forma clara, impõe-se concluir que também com referência à causa de pedir, esta torna óbvia a identificação da ação como uma ação de responsabilidade civil contratual.

Primo conspectu, poder-se-ia dizer desde já que, na atenção aos pedidos formulados e à causa de pedir, ficaria de todo excluída a invocação do regime constante da apontada alínea f), do art. 4º do ETAF.

Relembrando Gomes Canotilho e Vital Moreira: (i) com o recurso ao conceito genérico de relações jurídico-administrativas, pretendeu-se viabilizar a inclusão na jurisdição administrativa do amplo leque de relações bilaterais e poligonais, externas e internas, entre a Administração e as pessoas civis e entre entes da Administração, que possam ser reconduzidas à atividade de direito público cuja caraterística essencial reside na prossecução de funções de direito administrativo, excluindo-se apenas as relações jurídicas de direito privado (ii) sendo certo que “em termos positivos, um litígio emergente de relações jurídico-administrativas e fiscais será uma controvérsia sobre relações jurídicas disciplinadas por normas de direito administrativo e/ou fiscal”.

Sabendo-se como o artigo 1º, nº1 do ETAF, na senda do artigo 212º, nº3 da Constituição da República estabelece que, de um modo geral, pertence ao âmbito da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação dos litígios emergentes de relações jurídicas administrativas e fiscais e tendo por certo que «[u]ma relação jurídica é regulada por norma de Direito Administrativo e deve ser, por isso, qualificada como uma relação jurídica administrativa quando lhe sejam aplicáveis normas que atribuam prerrogativas de autoridade ou imponham deveres, sujeições ou limitações especiais a todos ou a alguns dos intervenientes, por razões de interesse público, que não se colocam no âmbito de relações de natureza jurídico-privada», ( MÁRIO AROSO DE ALMEIDA, MANUAL DE PROCESSO ADMINISTRATIVO, Almedina, 2013, p. 175 (Negrito, do Relator)

) no caso concreto será, então, de considerar que na ação sub iudicio, a sua fundamentação essencial e os pedidos nela formulados não são subsumíveis ao conceito jurídico-administrativo antedito, antes conformarão uma ação típica de processo que corre e cabe aos tribunais comuns não envolvendo a sua resolução a convocação e aplicação de quaisquer regimes de direito público.

Certo, porém, que os tribunais divergiram entre si referenciando o punctum pruriens do seu dissídio no âmbito do contencioso dos contratos.

Deixou-se referida a adesão à argumentação expendida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Castelo Branco.

Adesão, especifica-se agora, nomeadamente quando afastou a aplicabilidade, in casu, do regime substantivo dos contratos públicos previsto no Código dos contratos Públicos.

Acompanha-se tal fundamentação e em abono da mesma transcreve-se de MÁRIO AROSO DE ALMEIDA o seguinte ensinamento:
«Em matéria de contratos, resulta do artigo 4º, nº1 do ETAF que pertence ao âmbito da jurisdição administrativa a apreciação dos litígios relativos a contratos administrativos nas cinco espécies em que, tal como ela hoje se encontra delimitada pelos artigos 1º, nº6, 3º e 8º do CCP, a figura se desdobra no nosso ordenamento jurídico.
Como se poderá ver de seguida, existe, no entanto, um ponto sensível em relação ao qual se coloca a questão de saber se todos os contratos administrativos estão submetidos à jurisdição administrativa:
esse ponto tem que ver com a questão de saber em que termos devem as partes submeter um contrato a um regime substantivo com objeto passível de contrato de direito privado.
Por outro lado, o âmbito da jurisdição administrativa em matéria de contratos é mais amplo do que a categoria dos contratos administrativos: na verdade pode dizer-se que o critério do contrato administrativo é um dos critérios adotado pelo artigo 4º nº1, do ETAF, mas não é o único critério do qual ele faz depender a delimitação do âmbito da jurisdição administrativa em matéria de contratos.

Com efeito, os critérios são três, nos termos que se passam a enunciar:

1º Critério do Contrato Administrativo (Artigo 4º, nº1, alínea f), do ETAF)

Estão, desde logo, abrangidos pelo âmbito da jurisdição administrativa os contratos que apresentem alguma das três notas de administratividade a que se reporta o artigo 4º, nº1 alínea f) do ETAF:

a) Os “contratos com objeto passível de ato administrativo” ou relativos ao “exercício de poderes públicos”, que determinam a (ou se comprometem à futura) produção de efeitos correspondentes à prática, pelo contraente público, de um ato administrativo unilateral (cfr. artigo 1º nº6, alínea b), do CCP);

b) Os contratos cujo regime substantivo das relações entre as partes é total ou parcialmente regulado por normas de Direito Administrativo;

b’) Em primeiro lugar, os contratos administrativos típicos, como tal previstos regulados por normas específicas de Direito Administrativo (cfr. artigo 1º, nº6, alínea) do CCP), o que compreende:

(i) os tipos contratuais previstos no Título II da Parte III do CCP (empreitada de obras públicas; concessões; aquisição e locação de bens móveis ou serviços por contraentes públicos);

(ii) todos os demais contratos administrativos típicos ou, pelo menos nominados, previstos em legislação avulsa (que, nessa qualidade, se encontram desde logo submetidos ao regime do Título I da Parte III do CCP).

b”) Em segundo lugar, os contratos que “confiram ao contraente privado direitos especiais sobre coisas públicas ou o exercício de funções dos órgãos do contraente público”. Na verdade, mesmo que não sejam contratos administrativos típicos, estes contratos são submetidos pela alínea c) do nº6 do artigo 1º do CCP a um regime substantivo de Direito Administrativo por se tratar de contratos administrativos por natureza, em razão da natureza público do respetivo objeto;

c) Os contratos que, sendo uma das partes um contraente público (nos termos dos artigos 3º e 8º do CCP) ou um concessionário atuando no âmbito da concessão, as partes tenham optado, de moda expresso e inequívoco, por qualificar como administrativos ou por submeter a um regime substantivo de Direito Administrativo, que pode ser o regime da Parte III do CCP ou um regime previsto em legislação avulsa para qualquer tipo específico de contrato administrativo (cfr. artigos 1º, nº6 alínea a), e 3º e 8º do CCP).

Importa notar que, nesta última categoria de contratos, estamos perante os chamados contratos administrativos atípicos com objeto passível de contrato de direito privado, isto é, contratos que, por não corresponderem a um tipo específico, legalmente previsto e regulado, de contrato administrativo, nem serem contratos administrativos por natureza, em razão da natureza pública do seu objeto, poderiam ser contratos de direito privado, não fora a vontade das partes de os qualificar como contratos administrativos. Ora sucede que, no regime anterior ao atual ETAF e ao CCP, era precisamente em relação a esta categoria de contratos que, em muitas situações concretas, se colocavam dificuldades quanto a saber se determinado contrato devia ser qualificado como um contrato administrativo ou como um contrato de direito privado, e, por consequência, devia ser submetido à apreciação dos tribunais administrativos ou dos tribunais judiciais.

No propósito de clarificar a questão, objetivizando quanto a este ponto, o critério de delimitação do âmbito da jurisdição o artigo 4º, nº1 alínea f), do ETAF passou a fazer depender a competência da jurisdição administrativa do requisito de as partes, terem expressamente submetido o contrato a um regime substantivo de direito público. Por conseguinte, não pode deixar de entender-se, à face deste preceito do ETAF, que um contrato administrativo com objeto passível de contrato de direito privado só pode ser submetido à apreciação dos tribunais administrativos se as partes o tiverem expressamente submetido a um regime substantivo de direito público.» ( Ob. cit. págs.161-163

)

Como se deixou já referido, nos termos da Constituição da República «os tribunais judiciais são os tribunais comuns em matéria cível e criminal e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens jurídicas» (Art. 211º, nº1).

Está, desta arte, excluída do âmbito da jurisdição administrativa a apreciação de litígios em matéria cível e criminal que envolvem a aplicação de normas de direito privado e de direito criminal.

No presente conflito, o pomo de discórdia entre o Tribunal Judicial e o Tribunal Administrativo reconduz-se à aplicação ao litígio submetido a juízo do critério do contrato administrativo segundo o disposto no artigo 4º, nº1, alínea f) do ETAF.

Subscreveu-se a fundamentação assumida na decisão proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Castelo Branco.

À sobreposse, tomando em consideração o ensinamento doutrinário deixado transcrito, dir-se-á que, nos termos em que o A. configurou a ação, assim quanto à causa petendi, assim quanto ao petitum – a traduzir uma questão de responsabilidade civil contratual decorrente do incumprimento de um contrato outorgado entre um senhorio e o inquilino, seja quanto ao arrendamento (por falta no cumprimento da prestação renda), seja quanto à promessa de compra e venda de imóvel (por inobservância definitiva do prazo acordado para a celebração da escritura) – será de concluir no sentido da não verificação, in casu, das notas de administratividade decorrentes do referido artigo 4º, nº1, alínea f) do ETAF, como sejam: (i) os “contratos com objeto passível de ato administrativo”, ou relativos ao “exercício de poderes públicos”; (ii) os contratos cujo regime substantivo das relações entre as partes é total ou parcialmente regulado por normas de Direito Administrativo – seja com referência aos contratos administrativos típicos, seja com referência aos contratos que “confiam ao contraente privado direitos especiais sobre coisas públicas ou o exercício de funções dos órgãos do contraente público” – como sejam, ainda, os contratos que sendo uma das partes um contraente público ou um concessionário atuando no âmbito da concessão, as partes tenham optado, de modo expresso e inequívoco, por qualificar como administrativos ou por submeter a um regime substantivo de Direito Administrativo.

Nesta conformidade, impõe-se, no presente conflito de jurisdição, considerar competente, em razão da matéria, a jurisdição comum para o conhecimento da ação proposta.


*

III DECISÃO

Termos em que acordam os juízes do Tribunal dos Conflitos em resolver o conflito negativo de jurisdição, considerando que a mesma cabe aos Tribunais Comuns e atribuindo ao TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DA GUARDA – INSTÂNCIA LOCAL – SECÇÃO CÍVEL – J2 (TJCG) a competência material para os ulteriores termos da ação.

Sem custas, ex vi art. 96º do Decreto nº 19 243, de 16-01-1931.

Lisboa, 3 de dezembro de 2015. – Joaquim Maria Melo de Sousa Lima (relator) – Ana Paula Soares Leite Martins Portela – Mário Belo Morgado – Maria do Céu Dias Rosa das Neves – Fernando Manuel de Oliveira Vasconcelos – Alberto Augusto Andrade de Oliveira.