Acórdãos T CONFLITOS

Acórdão do Tribunal dos Conflitos
Processo:01/17
Data do Acordão:05/24/2017
Tribunal:CONFLITOS
Relator:LEONES DANTAS
Descritores:CONFLITO DE JURISDIÇÃO
COMPETÊNCIA DOS TRIBUNAIS JUDICIAIS
ACÇÃO DE REIVINDICAÇÃO.
Sumário:I - A ação de reivindicação, prevista no artigo 1311.° do CC destina-se a afirmar o direito de propriedade e a pôr fim à situação decorrente de atos que o violem, visando, primeiramente, a declaração de existência do direito e, posteriormente, a sua realização, integrando por tal motivo dois pedidos: o de reconhecimento do direito e o de restituição da coisa, objeto desse direito;
II - As ações de reivindicação são, pois, ações reais, não se confundindo com as ações obrigacionais em que se exerça a responsabilidade civil extracontratual, nomeadamente, a derivada dos atos lesivos do direito de propriedade que integrem a causa de pedir daquelas ações;
III - Incumbe aos Tribunais Judiciais o julgamento de ações de reivindicação fundadas no artigo do 1311.º do Código Civil, em que, para além do reconhecimento do direito de propriedade sobre um imóvel e da restituição do mesmo, se peça também, alternativamente, para o caso de esta restituição não ser possível, o pagamento de uma indemnização pela perda definitiva daquele imóvel.
Nº Convencional:JSTA000P21892
Nº do Documento:SAC2017052401
Data de Entrada:01/04/2017
Recorrente:CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO, ENTRE O TAF DE MIRANDELA, UNIDADE ORGÂNICA 1 E O TRIBUNAL JUDICIAL DE VILA POUCA DE AGUIAR
AUTOR: A.......
RÉU: MUNICÍPIO DA RIBEIRA DE PENA
Recorrido 1:*
Votação:UNANIMIDADE
Área Temática 1:*
Aditamento:
Texto Integral: Conflito n.° 1/17

Acordam no Tribunal dos Conflitos:


I

A……….. propôs no então Tribunal Judicial da Comarca de Vila Pouca de Aguiar, ação declarativa de condenação, sob a forma ordinária, contra o MUNICÍPIO DE RIBEIRA DE PENA, alegando, em síntese: a) - que é dono e legítimo possuidor dos prédios que identifica no artigo 1º da petição inicial; b) - que tais prédios lhe advieram por adjudicação em inventário, sendo certo que também os adquiriu por usucapião, para o que alega factos tendentes à sua aquisição por esta via originária; c) - que em inícios de outubro de 2010, funcionários do Município de Ribeira de Pena, ou alguém a seu mando, ocuparam os referidos prédios, destruindo e demolindo as edificações que neles se encontravam e procederam à remoção de terras; d) - que no verão de 2010, o referido Município estabeleceu contactos com o autor no sentido de vir a adquirir os referidos prédios, o que não veio a suceder por falta de acordo, e que, sem acordo do autor, o Réu ocupou os mencionados prédios e destruiu as edificações neles existentes.

Com base nestes factos, peticionou, para além do reconhecimento de que é proprietário dos referidos prédios, o Autor pediu a condenação do Réu a desocupar a área dos mesmos, a recolocar todas as construções, edificações e plantações que existiam nos prédios em causa, ou, caso a reconstrução não seja possível ou não venha a ser realizada no prazo de 60 dias após a condenação da Réu, a condenação desta no pagamento da quantia de € 75.400,00, correspondente ao valor pecuniário das edificações e plantas derrubadas, bem como no pagamento de € 1.600,00, por não poder pernoitar nos prédios enquanto os mesmos não forem reconstruídos.

O Réu contestou impugnando os factos alegado pelos Autor, referindo, que apenas foi intervencionado um dos prédios que autor reivindica e, ainda assim, apenas porque a adquiriu, por compra, ao próprio autor.

Além disso, invocou que adquiriu o prédio ao Autor para poder fazer obras na estrada Cerva - Limões, pois que esta tem um declive muito acentuado e que se impunha aumentar o desenvolvimento da estrada de e para S. João, por forma a que a mesma viesse entroncar cerca de 50 metros mais abaixo, para minorar o seu abrupto e excessivo declive, tudo no interesse público e que, por isso, foi necessário sacrificar a casa e o terreno do autor, para o que chegaram a acordo na sua alienação a favor do Réu, mediante contrapartidas, sendo certo que não chegou a ser formalizado o negócio, até porque o próprio autor também não mostrou interesse em fazê-lo.

Suscitada oficiosamente a questão prévia da competência material do Tribunal Judicial para conhecer da ação instaurada, ouvidas as partes, nos termos do artigo 3º, n° 3, do Código do Processo Civil, foi proferido despacho, datado de 07-03-2012, em que o Tribunal, conhecendo da respetiva competência material, decidiu que «pelo exposto, julgo verificada a exceção dilatória de incompetência material, declarando o presente tribunal incompetente em razão da matéria para a apreciação da presente ação e, consequentemente, absolvo da instância os réus».

2 - Em 18 de abril de 2012, o Autor instaurou no Tribunal Administrativo e Fiscal de Mirandela a presente ação contra o mesmo Réu, pedindo a que o mesmo fosse condenado a:

«1. Reconhecer o A. dono e legitimo possuidor do prédio descrito no art. 1 supra, com a correção da área descrita no artigo 2°.

2. Abster-se praticar qualquer ato lesivo e ofensivo da propriedade do A..
3. Desocupar toda a área do prédio que esteja pela Ré ocupada.
4. Recolocar todas as construções, edificações e plantações que existiam no prédio antes da intervenção da Ré, conforme supra descrito.
5. Caso a reconstrução não seja hoje possível, ou não venha a ser realizada no prazo de 60 dias após condenação da Ré para o efeito, alternativamente, deve ser condenada a pagar ao A. a quantia de 75.400,00 €, correspondentes a: a) 49,600,00 €, para reconstrução das edificações existentes; b) 7.500,00 €, para reconstrução do muro de pedra que dividia o prédio; c) 7.500.,00 €, para reconstrução do muro de pedra que delimitava o prédio; d) 650.00 €, pelas 13 oliveiras retiradas; e) 150.00 €, pelos 3 castanheiros retirados; f) 10.000,00 €, para movimentos de terras para recolocar o solo no estado em que se encontrava.
6. Pagar ao A. 1.600,00€ acrescidos das quantias que o A. venha a desembolsar por não poder pernoitar no prédio enquanto este não for reconstruído, que se liquidarão em execução de sentença.»

Suscitada oficiosamente a questão da competência material dos Tribunais da Jurisdição Administrativa para conhecerem do presente litígio, foi proferido despacho, datado de 21 de setembro de 2016, em que se decidiu o seguinte: «Pelas razões e fundamentos expostos julga-se o presente Tribunal materialmente incompetente para a apreciação do presente litígio, determinando-se a absolvição da instância.
Custas pelo autor.
Registe e notifique.
Tendo em consideração que dos autos resulta que a presente ação já havia sido intentada também no Tribunal Judicial que também se declarou incompetente, conforme decisão cuja cópia foi junta aos autos na resposta apresentada pelo autor, notifique também as partes nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 111.º do CPC.»

3 - Na sequência da notificação deste despacho, veio o Autor referir que nada tinha a opor a que fosse suscitada oficiosamente a resolução do conflito junto do Tribunal competente».

Por despacho de 8 de novembro de 2016, foi determinada a remessa dos autos ao Exm.° Presidente deste Tribunal dos Conflitos, para resolução do conflito, nos termos do artigo 111.º, n° 1, do Código de Processo Civil.

Neste Tribunal, distribuído o processo, foi proferido parecer pelo Exm.° Procurador-Geral Adjunto que se pronunciou no sentido da resolução do conflito de jurisdição com a atribuição da competência aos Tribunais Judiciais.

Foi remetida eletronicamente cópia do presente acórdão aos Exm°s Juízes Adjuntos.

Cumpre decidir.


II

Resulta do artigo 211.º, n.° 1, da Constituição da República (CRP), que os tribunais judiciais são os tribunais comuns em matéria cível e criminal e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais.

Por outro lado, resulta do artigo. 212.°, n.° 3, daquele diploma que compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das ações e recursos contenciosos que tenham por objeto dirimir os «litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais».

A competência dos Tribunais Administrativos e Fiscais veio a ser concretizada no artigo 4.° do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, aprovado pela Lei n.° 13/2002 de 17 de fevereiro (Lei n.º 13/2002, de 19 de fevereiro, com as alterações decorrentes da Lei n.º 20/2012, de 14/05; da Lei n.º 55-A/2010, de 31/12; do DL n.° 166/2009, de 31/07; da Lei n.º 59/2008, de 11/09; da Lei n.º 52/2008, de 28/08; da Lei n.º 26/2008, de 27/06; da Lei n.º 2/2008, de 14/01; da Lei n.º 1/2008, de 14/01; da Lei n.º 107-D/2003, de 31/12; da Lei n° 4-A/2003, de 19/02 e objeto da Retificação n.º18/2002, de 12/04 e da Retificação n.º 14/2002, de 20/03 e Decreto-Lei n.º 214-G/2015, de 02/10.), no quadro das normas constitucionais acimas citadas, reafirmando-se no n.° 1 do artigo 1.° daquele diploma que «os tribunais da jurisdição administrativa e fiscal são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo nos litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais».

Na determinação do conteúdo do conceito de relação jurídico administrativa ou fiscal, tal como referem J.J. GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, deve ter-se presente que «esta qualificação transporta duas dimensões caracterizadoras: (1) as ações e recursos incidem sobre relações jurídicas em que, pelo menos um dos sujeitos é titular, funcionário ou agente de um órgão de poder público (especialmente da administração); (2) as relações jurídicas controvertidas são reguladas, sob o ponto de vista material, pelo direito administrativo ou fiscal. Em termos negativos, isto significa que não estão aqui em causa litígios de natureza «privada» ou «jurídico civil». Em termos positivos, um litígio emergente de relações jurídico administrativas e fiscais será uma controvérsia sobre relações jurídicas disciplinadas por normas de direito administrativo e/ou fiscal» (Constituição da República Portuguesa, Volume II, Coimbra Editora, 2010, p.p. 566 e 567.).

Por sua vez, resulta do artigo 64.° do Código de Processo Civil que «são da competência dos tribunais judiciais as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional».

Conforme ensina MANUEL DE ANDRADE, a propósito dos elementos relevantes para a determinação da competência para conhecer de determinado litígio, «são vários esses elementos também chamados índices de competência (CALAMANDREI). Constam das várias normas que provêem a tal respeito. Para decidir qual dessas normas corresponde a cada um, deve olhar-se aos termos em que foi posta a ação - seja quanto aos seus elementos objetivos (natureza da providência solicitada ou do direito para o qual se pretende a tutela judiciária, facto ou ato donde teria resultado esse direito, bens pleiteados, etc.), seja quanto aos seus elementos subjetivos (identidade das partes)»( Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora, 1976, p.p. 90 e 91.).

Prosseguia aquele autor, referindo que «a competência do tribunal - ensina REDENTI, “afere-se pelo quid disputatum (quid decidendum, em antítese com aquilo que será mais tarde o quid decisum)”; é o que tradicionalmente se costuma exprimir dizendo que a competência se determina pelo pedido do autor. E o que está certo para os elementos da ação está certo ainda para a pessoa dos litigantes»( Ibidem.).

Deste modo, é a partir da análise da forma como o litígio se mostra estruturado na petição inicial que poderemos encontrar as bases para responder à questão de saber qual é a jurisdição competente para o conhecimento do mesmo.

Foi também neste sentido que se fixou a jurisprudência deste Tribunal, conforme pode ver-se, entre outros, no acórdão de 12 de janeiro de 2010, proferido no processo n.° 1337/07.3TBABT.E1.S, da 1.ª secção, onde se refere «como se deixou já dito e se decidiu no Ac. deste S.T.J. de 13/3/2008, (…) “Para decidir a matéria da exceção, da incompetência material há que considerar a factualidade emergente dos articulados, isto é, a causa petendi e, também o pedido nos precisos termos afirmados pelo demandante” e mais adiante “no fundo, o que sucede com a competência do tribunal, sucede também com outros pressupostos processuais (legitimidade, forma de processo), ou seja, é a instância - no seu primeiro segmento consubstanciado no articulado inicial do demandante - que determina a resolução desses pressupostos”» (Disponível nas Bases de Dados Jurídicas da DGSI.).

Será, portanto, a partir da análise da forma como a causa se mostra estruturada na petição inicial, nomeadamente da causa de pedir e do pedido, que teremos de encontrar as bases para responder à questão de saber qual é a jurisdição competente para o conhecimento da presente ação.


III

1 - A decisão proferida no Tribunal Judicial invocou como fundamento o seguinte:

«Dentro deste contexto, verifica-se que, no caso dos autos, a causa de pedir e o pedido se estribam na eventual responsabilidade civil extracontratual da ré, Município de Ribeira de Pena, pessoa coletiva de tipo territorial (autarquia local) e entidade que, ninguém duvidará, é de direito público

Com efeito, e depois de invocar os factos jurídicos necessários à demonstração do seu direito absoluto violado (direito real de propriedade - artigo 483°, n°1, do CC), alega o autor que a ré praticou atos lesivos desse invocado direito de propriedade para, a final, peticionar a condenação da mesma por tal evento lesivo, designadamente, na restauração natural da situação criada, bem como no pagamento de uma indemnização em dinheiro. Note-se, de resto, que todos os danos alegadamente causados, o foram no âmbito de obras de melhoramento que aquela entidade levou a cabo numa estrada, logo, no âmbito de atos de gestão pública e interesse público.

O facto da presente ação se reconduzir a uma verdadeira ação de reivindicação, não tira qualquer valor ao que supra ficou dito.

Na verdade, veja-se o referido no Acórdão da Relação de Lisboa, de 26-04-2007, em que a autora numa ação de reivindicação, pede ainda a condenação da ré (Câmara Municipal) numa indemnização em quantia pecuniária, e onde se conclui que havendo pedido de indemnização civil formulado, a competência material é dos tribunais administrativos. Concluindo-se, ademais, que ainda que se reconhecesse alguma autonomia ao pedido de reconhecimento do direito de propriedade, essa autonomia sempre cederia perante o núcleo fundamental da pretensão da autora, dirigido à reparação da lesão operada nesse mesmo direito, pelo que atenta a conexão entre os pedidos, a sua apreciação deve ser conjunta e sendo o pedido fundamental o de indemnização, deve a sua apreciação ser feita pelo tribunal materialmente competente.

Cremos, pois, que ante o positivado no artigo 4.º, n° 1, alínea g), do ETAF e de acordo com a interpretação exposta, a efetivação da responsabilidade civil extracontratual da ré e o subsequente ressarcimento dos danos cansados (indemnização por reconstituição natural e em dinheiro) é matéria da competência dos Tribunais Administrativos, por se inserir na competência que a este atribui o artigo 4°, n° 1, aI. g), do ETAF: “Questões em que, nos termos da lei, haja lugar a responsabilidade civil extracontratual das pessoas coletivas de direito público (…)”.

Assim, o caso em apreço recai de pleno na hipótese normativa do artigo 4°, aI. g), do ETAF quando atribui à jurisdição Administrativa a composição dos litígios sobre “Questões em que, nos termos da lei, haja lugar a responsabilidade civil extracontratual das pessoas coletivas de direito público (...)".

Em conclusão, caracterizado o litígio entre as partes como tendo por objeto uma questão em que, nos termos da lei, há lugar a responsabilidade extracontratual de uma pessoa coletiva de direito público, são competentes para a presente ação os tribunais administrativos.

A incompetência material enforma a exceção dilatória de incompetência absoluta, de conhecimento oficioso no presente momento processual e geradora da absolvição dos réus da instância (cfr. 101°, 102°, n.°s 1 e 2, 105°, n° 1, 288, n° 1, al. a) e 494°, aI. a), todos os preceitos do Código de Processo Civil).

Pelo exposto, julgo verificada a exceção dilatória de incompetência material, declarando o presente tribunal incompetente em razão da matéria para a apreciação da presente ação e, consequentemente, absolvo da instância os réus.»

2 - Por sua vez, a decisão proferida pelo Tribunal da Jurisdição Administrativa fundamentou-se no seguinte:

«Em resumo, o autor alega que o réu violou o seu direito de propriedade, já que sem qualquer autorização ou consentimento, ocuparam o seu terreno e aí realizaram a demolição de construções existentes, arrancaram árvores e retiraram terras. Pretende que o réu seja condenado a reconhecer o direito de propriedade que detém, a devolver o terreno no estado em que se encontrava ou caso não seja possível ou o réu não dê cumprimento no prazo de 60 dias, a pagar o valor correspondente aos custos de reconstrução e reposição, bem como a indemnizar o autor pela impossibilidade de gozo e fruição do seu prédio desde 2011.

A questão material controvertida, tal como apresentada pelo autor na p.i., é o reconhecimento do direito de propriedade, a devolução do terreno no estado em que se encontrava (ou em alternativa o pagamento dos custos respetivos), bem como a indemnização pela impossibilidade de fruição do imóvel.

A alegação do autor reside apenas na violação, pelo Município réu, do seu direito de propriedade.

O autor não invoca sequer uma norma legal, mas pelo teor da sua pretensão facilmente se percebe que o que está em causa é a violação do direito de propriedade do réu, o que passa, desde logo, pelo reconhecimento das áreas do prédio em causa, que, como alegado no artigo 2º da p.i., não corresponderão à descrição que consta na Conservatória de Registo Predial de Ribeira de Pena.

Na p.i. não é identificado nenhum concreto procedimento administrativo ou um qualquer ato. Está em causa uma mera atuação material, imputada ao Município réu, que, no entender do autor, viola o seu direito de propriedade sobre o prédio.

O que está em causa é apenas um reconhecimento do direito de propriedade de que o autor se arroga e saber se a atuação do réu violou ou não tal direito de propriedade.

Ora, o reconhecimento do direito de propriedade não integra a noção de relação jurídica de natureza administrativa, conforme resulta do artigo 212.º, nº 3 da CRP, 1º e 4.º do ETAF, dado inexistirem quaisquer normas de direito público que importe apreciar.

Assim, em face da forma concreta como é configurada a ação na p.i. estamos perante matéria cuja competência pertence aos tribunais comuns dirimirem.

O Tribunal de Conflitos foi já chamado a pronunciar-se sobre a questão de saber quais os tribunais competentes para dirimirem os litígios que tenham por objeto o reconhecimento do direito de propriedade, tendo concluído que são os tribunais da jurisdição comum e não os tribunais da jurisdição administrativa e fiscal.

Veja-se a este propósito os acórdãos do Tribunal de Conflitos n.°s 035/13, de 27.11.2013, 024/13, de 15.052013, 018/13, de 18.12.2013 e 011/09, de 07.07.2009, do STA de 21.05.2014, Proc. 0663/12 e do Tribunal da Relação do Porto de 26.02.2013, Proc. 292/08.7TBVLP.P1 e de 04.11.2013, Proc. 790/08.2TVPRT.P2.

Da leitura da p.i. constata-se que o autor apenas pretende defender os seus direitos relativamente ao imóvel em causa: pretende que seja declarado proprietário do prédio em causa; que o réu seja condenado a reconhecer o seu direito de propriedade; e que o prédio seja restituído livre de pessoas e bens no estado em que se encontrava.

Está, portanto, em causa uma típica ação de reivindicação.

É certo que existe um pedido alternativo que se reporta ao pagamento de montantes pecuniários. Todavia os montantes em causa, pela forma como vêm descritos reportam-se aos custos de reconstrução e reposição do prédio em causa. Existe, por fim, uma pretensão indemnizatória que se reporta à impossibilidade de fruição do prédio pelo autor.

Em face disto, a presente ação pode ser configurada como uma ação de responsabilidade do Município, de modo a afirmar a competência dos Tribunais Administrativos, desde logo porque os montantes em causa reportam-se à natureza restitutiva da propriedade do autor, que engloba não a reconstrução das construções e a reposição de árvores e terras, mas também a fruição do prédio que alegadamente lhe tem vindo a ser negada.

De qualquer forma, o Tribunal de Conflitos conclui, no acórdão de 12.01.212, Proc.08/11, que «cabe aos tribunais comuns a competência para conhecer de ação ordinária, na qual os autores, invocando a qualidade de proprietários de prédio rústico abrangido por obras de construção de autoestrada levadas a efeito pelas rés, sociedades de direito privado, pedem a condenação destas no reconhecimento do seu direito de propriedade sobre aquele prédio, a reposição dos solos nas condições em que se encontravam anteriormente à intervenção das rés e, ainda, à respetiva condenação em indemnização pelos danos causados com tal intervenção.»

Aplicando esta jurisprudência à situação em apreço, caberá aos tribunais comuns a competência para conhecer de ação em que o autor, invocando a qualidade de proprietário de prédio ocupado pelo Município, pede a condenação deste ao reconhecimento do seu direito de propriedade sobre aquele prédio, reconstrução das edificações demolidas, replantação de árvores arrancadas e reposição dos solos nas condições em que se encontravam anteriormente (ou em alternativa, a pagar ao autor os valores correspondentes aos respetivos custos de reconstrução, replantação e reposição) e ainda à respetiva condenação em indemnização pela impossibilidade de fruição do prédio.

É assim de concluir pela absolvição da instância por verificação da incompetência absoluta em razão da matéria (artigos 14°, n.° 2 do CPTA e 96.°, 99,° e 278°, n.° 1, al. a) do CPC).

Uma vez que e imputável ao autor a interposição da presente ação neste Tribunal (fls. 229), cabe-lhe, nos termos do disposto no artigo 527.°, n.°s 1 e 2 do CPC ex vi do artigo 1° do CPTA, a responsabilidade pelo pagamento das respetivas custas processuais.»


IV

1 - Este Tribunal dos Conflitos tem sido inúmeras vezes chamado a resolver conflitos análogos àquele que se verifica no presente processo, podendo considerar-se que existe já jurisprudência estabilizada sobre as questões suscitadas.

Referiu-se, com efeito, no acórdão proferido no Conflito n.° 013/13, datado de 19-06-2014 (Disponível nas Bases de Dados Jurídicas da DGSI.), o seguinte:

«O presente conflito é análogo aos que foram resolvidos por este Tribunal em 09.6.2010, no processo n° 12/10, em 26.9.2013, no processo n.° 32/13, e em 18.12.2013, no processo n.° 18/13.

Também aí estavam em causa ações de reivindicação de propriedade, em moldes idênticos aos que se colocam nos presentes autos.

Concorda-se com a solução a que se chegou nesses processos. Por isso, por facilidade, remete-se para a fundamentação neles apresentada, destacando-se o seguinte trecho do acórdão datado de 18 de dezembro 2013:

«Salvo o devido respeito pela opinião em contrário, não se nos oferecem dúvidas que o desenho da causa de pedir e dos pedidos apresentados pelos autores quadram, perfeitamente, no âmbito da ação de reivindicação, contemplada no art. 1311.° do Código Civil (CC).

Na verdade, os autores cingem-se a pedir que sejam declarados como donos e legítimos proprietários do imóvel identificado supra e, em consequência, a condenação do réu a restituir a parcela de terreno e o imóvel (o edifício onde funcionou a Escola...) em causa, devoluto de pessoas e bens, em bom estado de conservação e em perfeitas condições, bem como as chaves do edifício em que está implantado no referido terreno. Ou seja, a questão a dirimir traduz-se em mera reivindicação de propriedade privada, não obstante uma das partes ter feição pública - o Município de Oeiras - […].

Com efeito, a ação de reivindicação, prevista no art. 1311.° do CC, é uma típica manifestação do direito de sequela, visando afirmar o direito de propriedade e pôr fim à situação ou atos que o violem, tendo como primeiro objetivo a declaração de existência do direito e, como escopo ulterior, a sua realização, nela concorrendo dois pedidos: o de reconhecimento do direito e o de restituição da coisa, objeto desse direito. (Salientam Antunes Varela e Pires de Lima: “A ação de reivindicação prevista neste artigo [art. 1311.°] é uma ação petitória que tem por objeto o reconhecimento do direito de propriedade por parte do autor e a consequente restituição da coisa por parte do possuidor ou detentor dela” - cf. Código Civil Anotado, 2.ª edição, 1987, Volume III, pág. 112.)

Compete aos autores, nesta ação, provar que são proprietários, constituindo o facto jurídico de que emerge a propriedade a causa de pedir da ação de reivindicação, tendo eles de alegar, como o fizeram, que a coisa se encontra em poder do réu. Destarte, para a procedência da ação tornar-se-á necessária a comprovação, por um lado, de um requisito subjetivo, que consiste em serem os autores os proprietários da coisa reivindicada, e, por outro, de um requisito objetivo, consistente na identidade entre a coisa reivindicada e a (ilegitimamente) possuída pelo réu, cujo ónus da prova incumbe aos autores/reivindicantes, por serem factos constitutivos do seu direito - art, 342.°, n.° 1, do CC. Comprovada a propriedade do imóvel e que este se encontra detido por terceiro, a sua entrega ao reivindicante só pode ser contrariada com base em situação jurídica (obrigacional ou real) que legitime a recusa de restituição – cf. 1311.º, n.° 2, do CC -, i.e., mediante a alegação e prova, pelo demandado - por via de exceção -, de factos impeditivos, modificativos ou extintivos daquele direito e integradores de qualquer relação obrigacional ou real que o obstaculizem - cf. art. 342.°, n.° 2 do CC.»

(…)

E no acórdão proferido no processo n° 12/10 já se havia julgado, em termos igualmente transponíveis para o presente caso:

«Com efeito, as ações de reivindicação são reais, o que imediatamente as distingue das ações de responsabilidade civil, que têm natureza obrigacional. A devolução da coisa, pedida pelo «dominus» que a reivindica, não constitui uma qualquer indemnização «in natura», mas a lógica consequência da sequela, que é um atributo característico dos direitos reais. E nem sequer é exata outra tese do acórdão - a de que a «reivindicatio» visa ‘a reposição no estado anterior ao ato ofensivo do direito’ de propriedade; pois a reivindicação tem por fim típico a devolução da coisa no seu estado atual, pedido a que poderá acrescer um outro, que será de ressarcimento, se esse estado for pior do que era antes por responsabilidade do detentor.

É desnecessário aduzir mais argumentos, ante a evidência de que a ação dos autos, enquanto ação de reivindicação, é alheia a uma qualquer responsabilidade extracontratual do réu. Donde se segue que a premissa menor do silogismo judiciário enunciado no acórdão ‘sub censura’ é falsa, inquinando a respetiva conclusão.

Ora, não há no ETAF uma norma que atribua competência à jurisdição administrativa para o conhecimento de ações de reivindicação (‘vide’, a propósito, o seu art. 4°). Solução que bem se compreende, pois o que nelas essencialmente se discute é a questão, puramente de direito privado, de saber se o direito real invocado pelo ‘dominus’ existe e é oponível ao réu, por forma a tirar a detenção da coisa; e só acidentalmente se colocará um problema ligado ao direito público - se o detentor se socorrer de regras desta ordem para titular e legitimar a sua detenção.

Consequentemente, e de concluir que a competência «ratione materiae» para conhecer da presente ação de condenação cabe, a título residual, aos tribunais comuns».

Conclui assim, no quadro jurisprudencial exposto, totalmente aplicável ao caso dos autos, que incumbe aos tribunais judiciais o conhecimento da ação.»

Esta jurisprudência deste Tribunal tem sido mantida, conforme se alcança entre outros do acórdão proferido no conflito n.° 052/14, de 26 de janeiro de 2017, de que foi extraído o seguinte sumário:

«I. As ações de reivindicação são ações reais, que não se confundem com as ações obrigacionais em que se exerça a responsabilidade civil extracontratual.

II. Assim, a «reivindicatio» não cabe na previsão do art. 4.º, n.° 1, al g), do ETAF.

III. E, porque também não cabem em qualquer outra das previsões do mesmo artigo, as ações de reivindicação devem ser conhecidas pelos tribunais comuns, cuja competência é residual [cfr. art.66.º do anterior CPC e atual art. 64.° do CPC/2013, art. 18.° da LOTJ e atual art. 40.º, n.° 1, da LOSJ).»

Também no presente caso estamos perante uma típica ação de reivindicação, em que é pedido o reconhecimento do direito de propriedade sobre um prédio, a restituição do mesmo, ou, alternativamente, a indemnização correspondente à privação desse prédio, além da reparação dos danos derivados da ocupação do prédio.

Em coerência com a jurisprudência acima referida, a jurisdição competente para conhecer do litígio que constitui o objeto do presente processo é a dos tribunais judiciais.

Na verdade, tal como emerge do pedido formulado pelo Autor, com base na causa de pedir descrita na petição inicial apresentada, o litígio a resolver não decorre de uma relação jurídico administrativa enformada pelo direito administrativo, sendo um litígio a resolver com base no direito privado, não se inserindo por esse motivo, na competência dos Tribunais Administrativos, tal como a mesma é definida nos artigos 1.º e 4.° do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, aprovado pela Lei n° 13/2002 de 17 de fevereiro.

Na sequência da entrada em vigor da Lei n.° 62/2013, de 26 de agosto (Lei da Organização do Sistema Judiciário), o Município de Ribeira de Pena faz parte da comarca de Vila Real.


v

Termos em que se decide resolver o presente conflito de jurisdição atribuindo a competência para conhecer da presente ação aos Tribunais Judiciais.

Sem custas.

Lisboa, 24 de maio de 2017. – António Leones Dantas (relator) – Nuno de Melo Gomes da Silva – Carlos Luís Medeiros de Carvalho – António Bento São Pedro – Olindo dos Santos Geraldes – Teresa Maria Sena Ferreira de Sousa.