Acórdãos T CONFLITOS

Acórdão do Tribunal dos Conflitos
Processo:033/21
Data do Acordão:11/08/2022
Tribunal:CONFLITOS
Relator:TERESA DE SOUSA
Descritores:CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO
Sumário:
Nº Convencional:JSTA000P30173
Nº do Documento:SAC20221108033
Data de Entrada:11/10/2021
Recorrente:CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO, ENTRE O TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE AVEIRO - JUÍZO DE COMPETÊNCIA GENÉRICA DE ALBERGARIA–A–VELHA – JUIZ 2 E O TRIBUNAL ADMINISTRATIVO E FISCAL DE AVEIRO
AUTOR: CHUC – CENTRO HOSPITALAR E UNIVERSITÁRIO DE COIMBRA, EPE
RÉU: A…………………..
Recorrido 1:*
Votação:UNANIMIDADE
Área Temática 1:*
Aditamento:
Texto Integral: Conflito 33/21
Acordam no Tribunal dos Conflitos

1. Relatório

Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra, EPE, intentou no Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro, Juízo de Competência Genérica de Albergaria-a-Velha, acção declarativa de condenação contra A………………, pedindo a sua condenação no pagamento da quantia de €4.255,92, bem como juros vencidos e vincendos.
Em síntese, alega que prestou cuidados de saúde a pessoa entrada no Serviço de Urgência daquele Hospital, em 23.02.2014, que teria sido vítima de agressão imputada ao Réu. Pretende obter o pagamento dos encargos daí resultantes, de acordo com o disposto na Portaria nº 291/03, de 8 de Abril e do DL nº 218/99, de 15 de Junho.
Em 29.04.2021, no Juízo de Competência Genérica de Albergaria-a-Velha, foi proferida decisão a julgar o Tribunal incompetente em razão da matéria por considerar ser da competência dos tribunais administrativos a apreciação de litígios, como o dos autos, que tenham por objecto questões relativas a relações jurídicas entre pessoas colectivas de direito público ou entre órgãos públicos, reguladas por disposições de direito administrativo ou fiscal, nos termos da alínea j) do nº 1 do art. 4° do ETAF.
Remetidos os autos ao Tribunal Administrativo e Fiscal de Aveiro (TAF de Aveiro), foi aí proferida sentença em 08.07.2021 a declarar a incompetência em razão da matéria, apoiando-se em jurisprudência proferida pelo Tribunal dos Conflitos sobre a matéria em discussão.
Suscitada a resolução do conflito negativo de jurisdição, foram os autos remetidos a este Tribunal dos Conflitos.

Neste Tribunal dos Conflitos foi dado cumprimento ao disposto no nº 3 do artigo 11°, da Lei nº 91/2019.

A Exma. Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer no sentido da atribuição da competência aos tribunais da jurisdição comum.

2. Os Factos

Os factos relevantes para a decisão são os enunciados no Relatório.

3. O Direito

O presente Conflito Negativo de Jurisdição vem suscitado entre o Tribunal Judicial de Aveiro, Juízo de Competência Genérica de Albergaria-a-Velha, e o Tribunal Administrativo e Fiscal de Aveiro.
Entendeu o Juízo de Competência Genérica de Albergaria-a-Velha que: "Ora, com a presente acção, o Autor, que é uma pessoa colectiva de direito público (com natureza de entidade pública empresarial, criada pelo DL 50-A/2007, de 28.02, integrada do Serviço nacional de Saúde, dotada de autonomia administrativa, financeira e patrimonial), pretende ser ressarcido dos montantes despendidos na assistência médica realizada em pessoa agredida pelo ora réu, ou seja, de serviços prestados no âmbito da sua função pública de promover e garantir o acesso a todos os cidadãos aos cuidados de saúde nos limites dos recursos humanos, técnicos e financeiros disponíveis.
Assim sendo, na base do direito que o Autor pretende exercitar através da presente acção está uma relação jurídica de natureza administrativa, devendo como tal considerar-se "aquelas em que um dos sujeitos, pelo menos, seja uma entidade pública ou uma entidade particular no exercício de um poder público, actuando com vista à realização de um interesse público legalmente definido ".
(...)No art. 4° do ETAF, enunciam-se, exemplificativamente, as questões ou litígios, sujeitos ou excluídos do foro administrativo, definindo o mesmo normativo, no âmbito da competência dos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal, além de outras, a competência para apreciação de litígios que tenham por objecto questões relativas a relações jurídicas entre pessoas coletivas de direito público ou entre órgãos públicos, reguladas por disposições de direito administrativo ou fiscal (cfr. aI. j) do nº 1 do citado artigo 4°)".
Por sua vez o TAF de Aveiro considerou que: "A questão da incompetência material do tribunal surge face ao regime implementado pelo Decreto-Lei n.º 218/99, de 15.06, que estabelece a disciplina de cobrança de dívidas pelas instituições e serviços integrados no Serviço Nacional de Saúde, e no qual, de resto, o autor sustenta a sua pretensão.
Tal questão concerne ao âmbito da jurisdição, resultando da leitura conjugada das disposições contidas no mencionado diploma, com base nos elementos literal e sistemático de interpretação da lei (cf art. 9.º n.º 1 do Código Civil), que o conhecimento da questão trazida a juízo compete à jurisdição comum.
Na verdade, a questão encontra-se resolvida pela jurisprudência do Tribunal dos Conflitos que, debruçando-se especificamente sobre esta matéria, a decidiu com enumeração exaustiva das razões pelas quais o conhecimento destas acções deve ter-se por arredado do âmbito da jurisdição administrativa.".
Vejamos.
Cabe aos tribunais judiciais a competência para julgar as causas "que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional” [artigos 211°, nº 1, da CRP; 64º do CPC; e 40º, nº 1, da Lei nº 62/2013, de 26/08 (LOSJ)], e aos tribunais administrativos e fiscais a competência para julgar as causas "emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais" [arts. 212º, nº 3, da CRP, 1º, nº1, do ETAF].
A competência dos tribunais administrativos e fiscais é concretizada no artigo 4.º do ETAF com delimitação do "âmbito da jurisdição" mediante uma enunciação positiva (nºs 1 e 2) e negativa (nºs 3 e 4).
Tem sido reafirmado por este Tribunal, e constitui entendimento jurisprudencial e doutrinário consensual, que a competência material do tribunal se afere em função do modo como o A. configura a acção e que a mesma se fixa no momento em que a acção é proposta. Como se afirmou no Ac. deste Tribunal de 01.10.2015, Proc. 08/14 "A competência é questão que se resolve de acordo com os termos da pretensão do Autor, aí compreendidos os respectivos fundamentos e a identidade das partes, não importando averiguar quais deviam ser os termos dessa pretensão, considerando a realidade fáctica efectivamente existente ou o correcto entendimento do regime jurídico aplicável. O Tribunal dos Conflitos tem reafirmado constantemente que o que releva, para o efeito do estabelecimento da competência, é o modo como o Autor estrutura a causa e exprime a sua pretensão em juízo".
É, pois, a partir da análise da forma como a causa se mostra estruturada que iremos encontrar a resposta à questão de saber qual é a jurisdição competente para o conhecimento da presente acção.
O Autor funda a sua pretensão, de pagamento de dívidas no âmbito de prestação de serviços de tratamentos médicos efetuados no seu serviço de urgência, no disposto no DL nº 218/99, de 15 de Junho, que estabelece o regime de cobrança de dívidas pelas instituições e serviços integrados no Serviço Nacional de Saúde, e no disposto na Portaria n° 291/03, de 8 de Abril.
Esta questão (pagamento de dívidas hospitalares em consequência da prestação de cuidados de saúde), como refere o TAF de Aveiro, já foi conhecida neste Tribunal dos Conflitos, nomeadamente nos Acórdãos de 07.03.2006, Proc. nº 022/05, de 14.03.2006, Proc. nº 021/15, de 19.10.2017, proferido no Proc. nº 041/17, de 30.05.2019, Proc. nº 08/19, de 06.06.2019, Proc. nº 06/19, de 31.10.2019, Proc. nº 024/19 e de 21.11.2019, Proc. nº 029/19, no sentido de que resulta do DL nº 218/99, que compete à jurisdição comum conhecer das ações em que as instituições e serviços integrados no serviço nacional de saúde visem obter a condenação dos réus no pagamento das quantias devidas pelos cuidados de saúde por si prestados.
Como se expendeu no Acórdão de 14.03.2006, acima indicado, "(...) a competência material dos Tribunais para a decisão do litígio configurado em determinada acção afere-se pelo pedido formulado nessa mesma acção, analisado à luz da respectiva causa de pedir, a menos que exista lei que especialmente fixe tal competência.
A acção em causa, como se disse, foi proposta pelo Hospital (...), contra a (...). E, como resulta do estatuído nos art.ºs 1° e 4° do Dec-Lei n.º 297/02, de 11/12, a inclusão daquele Hospital no Serviço Nacional de Saúde, que se verificava ao tempo de alguns dos serviços médicos prestados (pelo menos os que tiveram lugar em 2001) por ser então uma pessoa colectiva de direito público, foi mantida com a sua transformação em sociedade anónima de capitais exclusivamente públicos.
Ora, já o Dec-Lei n.° 147/83, de 5/4, estipulava no seu art.º 1 que todas as acções para cobrança de dívidas a estabelecimentos resultantes da prestação de serviços de saúde seguiriam os termos do processo sumaríssimo, com determinadas adaptações, o que, como tal forma de processo não existia no contencioso administrativo, pressupunha a atribuição de competência à jurisdição comum, como aliás era prática judiciária corrente.
Por seu lado, o Dec-Lei n.º 194/92, de 8/9, que nos termos do seu art.º 1° regulava a cobrança de dívidas às instituições e serviços públicos integrados no Serviço Nacional de Saúde, atribuindo nomeadamente força executiva às certidões de dívida emanadas daquelas instituições e serviços e fixando a competência do “Tribunal da comarca" em que se encontrasse sediada a entidade exequente para as correspondentes acções executivas, e que, no seu art.º 13º, revogou aquele Dec-Iei n.º 147/83, embora mantendo, como se vê, a competência da jurisdição comum, foi expressamente revogado pelo art.º 14º do Dec.-Lei n.º 218/99, de 15/6, que é hoje, segundo o seu art.º 1º, o diploma que estabelece o regime de cobrança de dívidas pelas instituições e serviços integrados no Serviço Nacional de Saúde em virtude dos cuidados de saúde prestados, mas que não refere de forma expressa qual o tribunal materialmente competente para o efeito de processar e decidir as questões respectivas.
Limita-se este diploma, no seu art.º 7º, a determinar a competência territorial do Tribunal da sede da entidade credora, não incluindo agora a expressão "Tribunal da comarca", mas sem que tal omissão implique, só por si, que o legislador tenha pretendido introduzir qualquer alteração respeitante à competência, pois a actual expressão pode significar apenas que considerou desnecessário referir-se a uma competência material que pretendia manter.
Com efeito, parece o actual diploma pressupor a manutenção da competência material dos Tribunais da jurisdição comum, isto perante a análise do seu próprio preâmbulo, em que o legislador manifesta claramente a intenção de alterar apenas as regras processuais do regime de cobrança das dívidas hospitalares essencialmente mediante a substituição da acção executiva pela declarativa, pelo facto de entretanto se ter constatado que a força executiva conferida às aludidas certidões não provocara a celeridade e a simplicidade processuais visadas pelo diploma anterior na medida em que na generalidade dos casos a existência do crédito reclamado judicialmente e a verdadeira identidade do devedor eram discutidas em sede de embargos à execução.
E parece manifesto que, se o legislador tivesse então em vista que a alteração das regras processuais abrangesse também alguma alteração sobre a competência dos Tribunais ou da jurisdição em que o processo devesse correr, não se compreenderia que naquele preâmbulo não se fizesse a mínima alusão a tal nem qualquer síntese de razões explicativas da nova opção. Ou seja, nada referindo a tal respeito apesar das pormenorizadas explicações preambulares sobre os seus objectivos, parece pelo menos lógico interpretar o dito diploma como não tendo visado introduzir qualquer inovação sobre a competência dos Tribunais que deveriam proceder à análise e decisão das questões respeitantes às dívidas hospitalares.
Acresce que no mesmo sentido aponta o disposto no art.º 6º do mencionado Dec.-Lei n.º 218/99, ao estabelecer a possibilidade de as instituições e serviços integrados no Serviço Nacional de Saúde se constituírem partes civis em processo penal relativo a facto que tenha dado origem à prestação de cuidados de saúde, para dedução de pedido de pagamento das respectivas despesas, possibilidade essa que aponta de forma praticamente decisiva para a competência da jurisdição comum, que é aquela onde correm os processos penais. Caso contrário, isto é, se o legislador pretendesse que a competência coubesse à jurisdição comum quando os devedores fossem accionados em processo criminal e à jurisdição administrativa quando fossem accionados fora desse processo, estaria ele a consagrar a competência de duas ordens jurisdicionais diferentes para apreciar questões da mesma natureza, de forma incongruente, pois a distribuição de competência entre jurisdições se baseia precisamente na natureza das questões a decidir.

Assim, e ainda porque o litígio em questão não integra uma relação jurídica entre pessoas de direito público desenvolvida sob a égide do direito público, mas antes uma relação jurídica estabelecida no âmbito da gestão privada da entidade credora, pelo que o seu objecto não se enquadra na previsão de qualquer das als. do art.º 4° do E.T.A.F., conclui-se que se trata aqui de um caso nítido em que se justifica uma interpretação extensiva, por ser manifesto que o legislador disse menos do que aquilo que pretendia dizer, sendo consequentemente de interpretar o citado Dec.-Lei n.º 218/99 no sentido de consagrar a competência dos Tribunais integrados na jurisdição comum para apreciar os pedidos de condenação no pagamento de dívidas hospitalares por prestação de cuidados de saúde.
(...) Ora, é manifesto que o regime da cobrança de dívidas consagrado no citado Dec.-Lei não atende à causa das lesões determinantes dos tratamentos prestados, salvo (art.ºs 9º a 12º) no tocante a dívidas resultantes de acidentes de viação, o que não é o caso. Assim, apenas há que ter em conta a causa de pedir invocada, integrada somente por aqueles factos a que o mencionado diploma reconhece a eficácia de determinar a competência do Tribunal, e que consistem em não mais do que a prestação de cuidados de saúde por instituições e serviços integrados no Serviço Nacional de Saúde, independentemente da qualidade dos assistidos. Quer isto dizer que a referência feita na petição inicial à qualidade dos assistidos enquanto servidores públicos apenas releva para determinação da legitimidade passiva, pois, se não o fossem, tal legitimidade caberia a eles próprios ou aos causadores das lesões que tenham originado os tratamentos; e não é essa legitimidade, mas a causa de pedir, que tem eficácia na determinação da competência material do Tribunal."
Assim, aderindo ao entendimento seguido por este Tribunal de Conflitos, entendemos que a competência no caso dos autos pertence aos tribunais da jurisdição comum.
Pelo exposto, acordam em julgar competente para apreciar a presente acção o Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro, Juízo de Competência Genérica de Albergaria-a-Velha, Juiz 2.
Sem custas.

Lisboa, 8 de Novembro de 2022. - Teresa Maria Sena Ferreira de Sousa (relatora) – Maria dos Prazeres Couceiro Pizarro Beleza.