Acórdãos T CONFLITOS

Acórdão do Tribunal dos Conflitos
Processo:030/22
Data do Acordão:04/18/2023
Tribunal:CONFLITOS
Relator:TERESA DE SOUSA
Descritores:CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO
DIREITO DE PROPRIEDADE
TRIBUNAIS JUDICIAIS
Sumário:É da competência dos Tribunais Judiciais julgar um litígio no qual se discute a titularidade do direito de propriedade sobre o imóvel em questão.
Nº Convencional:JSTA000P30889
Nº do Documento:SAC20230418030
Data de Entrada:11/07/2022
Recorrente:CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO, ENTRE O TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DA GUARDA - JUÍZO LOCAL CÍVEL DA GUARDA – JUIZ 2 E O TRIBUNAL ADMINISTRATIVO E FISCAL DE VISEU UO1
AUTOR: AA
RÉ: A..., SA
Recorrido 1:*
Votação:UNANIMIDADE
Área Temática 1:*
Aditamento:
Texto Integral:
Conflito nº 30/22

Acordam no Tribunal dos Conflitos

1. Relatório
AA e mulher BB, identificados nos autos, intentaram no Tribunal Judicial da Comarca da Guarda, Juízo Local Cível da Guarda, acção de processo comum contra A..., SA, formulando o pedido de ser a R. condenada a:
- Reconhecer o direito de propriedade dos AA sobre o prédio identificado em 1 da presente petição; restituir o mesmo aos AA com todos os frutos que produziu ou que possa vir a produzir na pendência da presente ação; a desocupar e repor a situação anterior a ocupação e utilização havidas; abster-se de qualquer acto lesivo do direito de propriedade dos AA sobre o referido prédio;
- pagar aos AA 4000,00 (quatro mil) EUR [de] indemnização correspondente ao abate de 80 árvores, prejuízo id em 11º”.
Em síntese, alegam ser proprietários e legítimos possuidores dos prédios rústicos identificados no art. 1º da petição inicial (p.i.). Mais alegam que a Ré ocupou, sem título, autorização ou consentimento que o justifique esse prédio, há cerca de um ano, ocupando-o com condutas de gás (transporte de gás natural em alta pressão armazenamento subterrâneo de gás natural). Factos estes violadores da posse e propriedade dos AA., os quais com essa actuação da Ré ficaram impedidos de utilizar a sua propriedade, nomeadamente, de a plantar, semear, pastar e recolher mato.
A Ré contestou por excepção e por impugnação.

Em 28.10.2021, no Juízo Local Cível da Guarda - Juiz 2, foi proferida decisão a julgar o tribunal incompetente em razão da matéria para apreciação e julgamento da acção intentada, absolvendo a Ré da instância [cfr. fls. 49 a 51 dos autos].
Remetidos os autos ao Tribunal Administrativo e Fiscal de Viseu (TAF de Viseu), a requerimento dos Autores (em 15.12.2021), foi aí proferida decisão em 19.09.2022 a declarar a incompetência em razão da matéria para conhecer do objecto dos autos, absolvendo a Ré da instância [cfr. fls. 64 a 67 verso dos autos].
Por despacho de 03.11.2022 foi suscitada oficiosamente a resolução do conflito negativo de jurisdição sendo os autos remetidos a este Tribunal dos Conflitos.
Neste Tribunal dos Conflitos as partes foram notificadas para efeitos do disposto no nº 3 do artigo 11º da Lei n.º 91/2019 e nada disseram.
A Exma. Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer no sentido de que a competência material para julgar a acção deverá ser atribuída ao Tribunal Judicial da Comarca da Guarda, Juízo Local Cível da Guarda, Juiz 2.

2. Os Factos
Os factos relevantes para a decisão são os enunciados no Relatório.

3. O Direito
O presente Conflito Negativo de Jurisdição vem suscitado entre o Tribunal Judicial da Comarca da Guarda, Juízo Local Cível da Guarda e o TAF de Viseu.
Entendeu o Juízo Local Cível da Guarda estar perante um litígio emergente de uma relação jurídica administrativa por “Perante este quadro e considerando que a causa de pedir e o pedido se estribam na responsabilidade civil extracontratual da ré, a situação cabe na previsão da alínea h), do n.º 1 do artigo 4.º do ETAF, norma que atribui aos tribunais da jurisdição administrativa competência para apreciar litígios que tenham por objecto a responsabilidade civil extracontratual dos sujeitos privados aos quais seja aplicável o regime específico da responsabilidade do Estado e demais pessoas colectivas de direito público, o que pressupõe que o sujeito privado é responsável num litígio emergente de relações administrativas extracontratuais (cfr. artigo 212.º, n.º 3 da Constituição da República Portuguesa e 1.º do ETAF). (…)
Destarte, a ré é parte num contrato celebrado com o Estado, conforme consta dos documentos juntos a fls. 14v a 45v pela ré, competindo, nomeadamente “8…) aos tribunais administrativos aferir da validade e regularidade dos procedimentos administrativos tendentes à constituição de servidões (artº 4º do ETAF, aprovado pela Lei nº 13/2002, de 19-02)” (in Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 20/11/2012, proferido no âmbito do processo n.º 168/1999.P1.S1, …).
O regime jurídico que regula a responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais pessoas colectivas de direito público – Lei nº 67/2007, de 3/12 – aplica-se às pessoas coletivas de direito privado, por acções ou omissões que adoptem no exercício de prerrogativas de poder público e que sejam reguladas por disposições ou princípios de direito administrativo, como é o caso da ré A..., S.A., concessionária da utilização da ....”.
Por sua vez o TAF de Viseu também se considerou incompetente em razão da matéria, além do mais, citando para o efeito jurisprudência deste Tribunal dos Conflitos, referindo que, “A alegação dos Autores reside apenas na violação pela Ré, do seu direito de propriedade. Pelo teor da sua pretensão facilmente se percebe que o que está em causa é a violação do direito de propriedade dos Autores, o que passa, desde logo, pelo reconhecimento do direito de propriedade do prédio em causa.
O que está em causa é apenas um reconhecimento do direito de propriedade de que o Autora se arroga e saber se a actuação da R. violou ou não tal direito de propriedade.
A questão material controvertida, tal como apresentada pelos Autores, na petição inicial, é, portanto, o reconhecimento e a reivindicação do direito de propriedade, a reposição do terreno no estado em que se encontrava, bem como a indemnização por prejuízos causados, o que configura o objecto típico de uma acção de reivindicação prevista no artigo 1311º do Código Civil.
A acção de reivindicação destina-se, portanto, a afirmar o direito de propriedade e a pôr fim à situação decorrente de actos que o violem, visando a declaração de existência desse direito e a restituição da coisa objecto do mesmo, tido como usurpada ou detida por outrem, pondo fim à sua violação, configurando, pois, tal acção uma acção real.
Ora, o reconhecimento do direito de propriedade não integra a noção de relação jurídica de natureza administrativa, conforme resulta do n.º 3 do artigo 212.º da Constituição da República Portuguesa e artigo 1º e 4º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, por inexistirem quaisquer normas de direito público que importe apreciar. (…)
O facto de existir um pedido indemnizatório não implica qualquer alteração à competência dos Tribunais, por estar em causa um pedido que decorre da violação do direito de propriedade do Autor.”

Vejamos.
Cabe aos tribunais judiciais a competência para julgar as causas «que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional» [arts. 211º, nº 1, da CRP; 64º do CPC e 40º, nº1, da Lei nº 62/2013, de 26/8 (LOSJ)], e aos tribunais administrativos e fiscais a competência para julgar as causas «emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais» [artigos 212º, nº 3, da CRP, 1º, nº 1, do ETAF].
A competência dos tribunais administrativos e fiscais está concretizada no art. 4º do ETAF (Lei n.º 13/2002, de 19 de Fevereiro, na redacção do DL nº 214-G/2015, de 2 de Outubro, que atendendo à data da propositura da acção, é a que aqui releva) com delimitação do “âmbito da jurisdição” mediante uma enunciação positiva (nºs 1 e 2) e negativa (nºs 3 e 4).
Tem sido reafirmado por este Tribunal, e constitui entendimento jurisprudencial e doutrinário pacífico, que a competência material do tribunal se afere em função do modo como o autor configura a acção e que a mesma se fixa no momento em que a mesma é proposta.
Como se afirmou no Ac. deste Tribunal de 01.10.2015, Proc. 08/14 “A competência é questão que se resolve de acordo com os termos da pretensão do Autor, aí compreendidos os respectivos fundamentos e a identidade das partes, não importando averiguar quais deviam ser os termos dessa pretensão, considerando a realidade fáctica efectivamente existente ou o correcto entendimento do regime jurídico aplicável. O Tribunal dos Conflitos tem reafirmado constantemente que o que releva, para o efeito do estabelecimento da competência, é o modo como o Autor estrutura a causa e exprime a sua pretensão em juízo”.
Analisados os termos e o teor da petição inicial constata-se estarmos perante um litígio cuja causa de pedir se situa no âmbito dos direitos reais, invocando os Autores ser de sua propriedade o prédio em causa nos autos, visando os AA., para além do reconhecimento da sua propriedade, alegando factos que visam demonstrar a titularidade do seu direito de propriedade sobre o prédio em causa, que consideram ter sido violado pela Ré, ser indemnizados por todos os prejuízos sofridos devido à ocupação levada a efeito pela Ré. Esta, por sua vez, contrapõe, a tal pretensão do reconhecimento do direito de propriedade que os Autores não comprovaram tal propriedade a seu favor e que nunca recebeu qualquer reclamação sobre os trabalhos em curso alegadamente na propriedade.
Ora, a jurisprudência deste Tribunal dos Conflitos tem, abundantemente, entendido que a competência para conhecer de acções em que se discutem direitos reais cabe apenas na esfera dos Tribunais Judiciais (cfr. Acs. de 30.11.2017, Proc. 011/17, de 13.12.2018, Proc.º 043/18, de 23.05.2019, Proc. 048/18 e de 23.01.2020, Proc. 041/19, todos consultáveis in www.dgsi.pt).
No acórdão de 23.05.2019, Proc. nº 048/19, em situação equiparável à presente, expendeu-se o seguinte: «(…) Com a alteração promovida em 2015, o artigo 4.º n.º 1 do ETAF encontra-se agora estruturado como se de uma enumeração taxativa se tratasse, ainda que esta natureza de elenco fechado seja meramente aparente, por força da “cláusula aberta” constante da alínea o), determinando a extensão da jurisdição às “relações jurídicas administrativas e fiscais que não digam respeito às matérias previstas nas alíneas anteriores”.
(…)
Com a reforma de 2015, a al. i), do nº 1 do art. 4º do ETAF passou a atribuir à jurisdição administrativa a competência para apreciar litígios que tenham por objeto questões relativas a “condenação à remoção de situações constituídas em via de facto sem título que as legitime”. (…)
Com a referida previsão normativa procurou-se dar resposta às dúvidas que então se suscitavam quanto a saber se o julgamento das situações de «via de facto» competia aos tribunais administrativos ou aos tribunais judiciais, ficando com a revisão de 2015, assegurado que “o pedido de restabelecimento de direitos ou interesses violados a que se refere a al. i) do nº 1, do art. 37º, do ETAF pode ser deduzido, não apenas para obter a remoção de efeitos produzidos por atos administrativos ilegais, mas também para reconstituir a situação jurídica que deveria existir, na sequência de operações materiais praticadas pela Administração sem título que o legitime (v. Mário Aroso de Almeida e Carlos Cadilha, Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos, Almedina, 2017, pág. 259).
(…) Poderá também colocar-se a questão de saber se os litígios relativos à apreciação de uma “apropriação irregular”, cuja diferença face à “via de facto” é apenas de grau de gravidade que se reconhece à ilegalidade subjacente à intervenção da entidade pública, ficaram, com a revisão de 2015, no domínio dos tribunais administrativos.
Neste conflito, que somos chamados a dirimir, discute-se precisamente se a nova alínea i) do art. 4º, nº 1 do ETAF abrange, ou não as ações reais como a dos autos, em que a controvérsia se centra primacialmente no reconhecimento do direito de propriedade sobre o imóvel reivindicado, face à atuação de uma entidade administrativa alegadamente ofensiva do direito de propriedade invocado pelo autor.
Importa, consequentemente, trazer à colação o disposto no art. 9º do CC, onde se prescreve que a interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada (nº 1), não podendo, no entanto, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso (nº 2).
Ora, nesta tarefa interpretativa, partindo da letra da lei e convocando quer o elemento histórico, quer o elemento racional ou teleológico, nos termos já supra aludidos, afigura-se-nos que a norma em causa deve ser interpretada no sentido de atribuir a competência aos tribunais administrativos para as ações em que a competência apenas está em causa a remoção de atuações ilegais da Administração.
Se, porém, se discutir a titularidade do direito de propriedade sobre o imóvel em questão, a competência continua a caber à jurisdição comum.»
Ora, é precisamente esta a situação dos autos, pelo que a competência para conhecer do objecto do litígio cabe aos Tribunais Judiciais (cfr. art. 64º do CPC).

Pelo exposto, acordam em julgar competente para apreciar a presente acção o Tribunal Judicial da Comarca da Guarda - Juízo Local Cível da Guarda, Juiz 2.
Sem custas.

Lisboa, 18 de Abril de 2023. - Teresa Maria Sena Ferreira de Sousa (relatora) – Maria dos Prazeres Couceiro Pizarro Beleza.