Acórdãos T CONFLITOS

Acórdão do Tribunal dos Conflitos
Processo:032/14
Data do Acordão:07/09/2014
Tribunal:CONFLITOS
Relator:ALBERTO AUGUSTO OLIVEIRA
Descritores:CONFLITO DE JURISDIÇÃO
BALDIOS
RESTITUIÇÃO DE POSSE
Sumário:Cabe aos tribunais judiciais conhecer de acção proposta por conselho directivo de baldio cujo pedido primário consiste na restituição da posse de uma parcela de terreno que integra esse baldio.
Nº Convencional:JSTA00068857
Nº do Documento:SAC20140709032
Data de Entrada:05/12/2014
Recorrente:MINISTÉRIO PÚBLICO NO CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO ENTRE O SUPREMO TRIBUNAL ADINISTRATIVO E FISCAL DE BRAGA
Recorrido 1:*
Votação:UNANIMIDADE
Meio Processual:CONFLITO.
Objecto:CONFLITO NEGATIVO JURISDIÇÃO STJ TAF DE BRAGA.
Decisão:DECL CONTETENTE TCIV ESPOSENDE.
Área Temática 1:CONFLITO DE JURISDIÇÃO.
Legislação Nacional:L 68/93 DE 1993/09/04 ART32.
CCIV66 ART1284.
Jurisprudência Nacional:AC TCF PROC013/14 DE 2014/06/19.; AC TCF PROC018/13 DE 2013/12/18.; AC TCF PROC032/13 DE 2013/09/26.
Aditamento:
Texto Integral: Acordam no Tribunal de Conflitos:

1.1. O Baldio dos Sargaceiros, representado pelo seu Conselho Directivo, intentou no Tribunal Judicial de Esposende acção declarativa contra o Município de Esposende em que, com invocação, nomeadamente, do artigo 1278º do Código Civil e dos artigos 4.º e 32.º da Lei 68/93, de 4.9, peticionou a condenação deste a:
«A – Reconhecer que os compartes do baldio dos Sargaceiros são os donos e legítimos possuidores e proprietários dos terrenos baldios identificados no número 4 desta peça;
B – Reconhecer que a parcela de terreno, melhor identificada nos números 37 e 38 desta peça, faz parte integrante do baldio dos Sargaceiros que, por isso, pertence aos respectivos compartes aqui representados pelo Autor;
C – Proceder à entrega da mesma parcela, livre de pessoas e bens aos respectivos compartes aqui representados pelo Autor;
C – Proceder à reposição do terreno na aludida parcela no exacto estado em que este se encontrava, antes do esbulho praticado pelo Réu, nomeadamente, repondo areia da mesma qualidade, natureza e quantidade necessárias à adequada regularização do respectivo solo, bem como à demolição de quaisquer obras executadas na dita parcela;
D – Abster-se, de futuro, da prática de quaisquer actos lesivos ou impeditivos ou meramente turbadores da posse e do direito de propriedade dos compartes do baldio dos Sargaceiros sobre a referida parcela;
E – Pagar aos compartes, aqui representados pelo Autor, uma indemnização pecuniária, pelos danos morais e patrimoniais, actuais e futuros, decorrentes da conduta ilícita do Réu, a liquidar em execução de sentença pelo facto de abusivamente, sem qualquer consentimento, terem invadido e ocupado a propriedade do Autor e aí procedido a obras lesivas dos interesses deste;
F – Pagar custas do processo e condigna procuradoria».

1.2. Para fundamentar tal pedido alegou, nomeadamente:
- A parcela identificada nos artigos 35, 36 e 37 da petição inicial integra o Baldio dos Salgueiros, sendo sua propriedade;
- Trata-se de areal baldio que sempre foi, e continua a ser, utilizado pelos apanhadores de sargaço, sargaceiros de Apúlia, desde tempos imemoriais, segundo usos e costumes, designadamente, através da “semarcada”;
- Desde tempos imemoriais, toda a comunidade – constituída pelos compartes do baldio em causa – sempre utilizou, e continua a utilizar, a totalidade dos terrenos do baldio segundo a referida regra costumeira, que, ainda hoje, é respeitada, com a consciência de que tais terrenos, sendo de todos, não eram, e continuam a não ser, pertença de ninguém em particular;
- Terrenos esses que sempre tiveram, como continuam a ter, uma afectação específica que é aquela que consta, aliás, do respectivo título aquisitivo: a secagem e recolha de sargaços;
- Os moradores de Apúlia e os respectivos utilizadores do baldio – os compartes sempre souberam e continuam a saber que os terrenos de Cedovém e Pedrinhas situados no baldio em causa, pertencem a todos em propriedade comum, pois foram adquiridos para uso e fruição da comunidade local e exclusivamente para esse fim;
- A parcela em causa, nos presentes autos, faz parte desse baldio e tem a área de 6.155,6 m2, a confrontar do Norte com A…………….., do Sul com a Estrada Municipal n° 501 e Travessa do Furado e do Poente com a Estrada Municipal nº 501 (artigo 37. da p.i);
- Desde o dia 4 de Abril de 2006, sobre a dita parcela de terreno, estão a ser efectuadas obras de vedação, de desaterro e de carregamento e remoção de areias do tocai, sob as ordens e por conta do Município de Esposende;
- Até à data, estima-se que já foram retirados do local e vendidos mais de 527,000 metros cúbicos de areia apta para construção, cujo preço no mercado de inertes era em 2006 de € 12,50 por metro cúbico;
- Tais obras de vedação, de desaterro e de carregamento e remoção de areias da dita parcela foram efectuadas abusivamente e sem qualquer autorização do Conselho Directivo ou de qualquer comparte e contra a manifesta oposição dos órgãos de administração do Baldio;
- Com a actuação supra descrita o Município denota apropriou-se ilicitamente da parcela em causa e desse modo, privou e continua a privar irremediavelmente os compartes da sua posse e utilização;
- Tais obras sempre se haverão de traduzir em actos lesivos da afectação que, desde tempos imemoriais, de forma reiterada e contínua sempre tiveram aqueles terrenos e em particular a dita parcela;
- Tais obras de ocupação, escavação e remoção com venda de areias se não forem paralisadas representarão irremediáveis prejuízos;
- Não resta outra alternativa ao Conselho Directivo do Baldio socorrer-se do presente meio processual para ser restituído à posse e propriedade plena dos compartes da dita parcela, e para ser ressarcido de todos os danos emergentes da lesão da propriedade decorrente da actuação do Município de Esposende.

1.3. O Município de Esposende, na contestação, suscitou a incompetência material do Tribunal, por entender ser competente a jurisdição administrativa.

1.4. O Tribunal Judicial de Esposende proferiu despacho saneador (fls. 139 a 149) julgando-se competente para dirimir o presente litígio.

1.5. O Município de Esposende recorreu para o Tribunal da Relação de Guimarães que julgou o recurso improcedente e confirmou a decisão recorrida.

1.6. O Município de Esposende recorreu, ainda, para o Supremo Tribunal de Justiça que, por acórdão de 11/11/2010 (fls. 151 a 156), deu provimento ao recurso, decidindo que a «competência em razão da matéria para conhecer da presente acção é do tribunal administrativo».

1.7. Face a essa decisão, o Autor propôs no Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga uma acção administrativa comum sob a forma ordinária formulando, no essencial, o mesmo pedido, assente na mesma causa de pedir.

1.8. Por sentença de 24/05/2013 (fls. 304 a 315), o Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga julgou-se igualmente incompetente para conhecer a acção.

1.9. As duas decisões transitaram em julgado.

1.10. Neste Tribunal o Digno Magistrado do Ministério Público requereu, ao abrigo dos artigos 110.º, n.º 3 e 111.º, n.º 2 do CPC, a resolução do presente conflito negativo de jurisdição.

Cumpre apreciar e decidir.

2.1. Os factos e a dinâmica processual apurados nos autos e com interesse para a resolução do conflito em causa são os acima referidos (note-se que na petição no TAF o autor acrescentou um pedido que não formulara na petição primeira, pelo que em relação a esse não existe directamente um conflito).

2.2. A competência é apreciada em função da causa de pedir e pedido.
O pedido e a causa de pedir estão acima indicados.
Torna-se decisiva, pois, a interpretação que se tenha da petição inicial.
O Supremo Tribunal de Justiça considerou, no que mais importa:
«Importará, agora, saber se o que está em causa na presente acção é a responsabilidade civil extracontratual do R. Município, ou seja, se a acção tem como objecto a responsabilidade de tal natureza.
Para aferir do objecto da acção, haverá que se ter em conta, naturalmente o que alegado vem pelo A. em sede de petição inicial, designadamente a causa de pedir invocada e o pedido formulado.
Ora, da causa de pedir invocada e do pedido formulado pode concluir-se que o que está essencialmente em causa, no presente litigio, é a responsabilidade civil extracontratual do R. Município, pretendendo o A. ver-se, em função da existência de responsabilidade de tal natureza, restituído definitivamente à posse do terreno/areal (restauração natural), enquanto parte integrante do baldio, e, bem assim, ser ressarcido, através da respectiva indemnização de todos os prejuízos causados e insusceptíveis de reconstituição natural.
Aliás, o próprio A o diz sob os artigos 73° a 76° da petição inicial, quando, pretendendo justificar a propositura da presente acção, afirma:

73. Pelo que, não resta outra alternativa ao Conselho Directivo do Baldio senão socorrer-se do presente meio processual para ser restituído Posse à posse e propriedade plena dos compartes, da parcela de terreno melhor identificada da nos (tens nos 35 a 38 desta peça;
74. E para ser ressarcido de todos os danos emergentes da lesão da propriedade decorrente da actuação do Município de Esposende.
75. Danos, alguns já irreversíveis, como o foi a, ambientalmente criminosa, retirada e venda de areias aptas para a construção civil.

É certo que o A. formula um pedido de reconhecimento do seu direito de posse e/ou propriedade quanto ao terreno que compõe o baldio e, consequentemente, sobre a parcela em causa nos autos, enquanto parte integrante do baldio; porém, não poderá autonomizar-se tal pedido relativamente aos restantes para definirmos o objecto da acção, tanto mais que, como é consabido, a responsabilidade civil extracontratual (cfr. art. 483°, n° 1 do CCivil) tem entre os seus pressupostos a – violação ilícita do direito de outrem - no caso, o direito de posse e fruição e/ou propriedade (este, no entendimento do A.), sem cuja alegação e pedido de reconhecimento não seria possível invocar a sua violação, através, de uma conduta ilícita, e, consequentemente, accionar a inerente responsabilidade civil extracontratual.
Assim, haver-se-á de concluir que, face ao exposto, a competência em razão da matéria para conhecer da presente acção é do tribunal administrativo, impondo-se, por isso, dar provimento ao agravo, absolvendo-se o R. da instância (arts. 101º e 105, n° 1 do CPCivil)»

Essa decisão, contrariando, como se viu, o que vinha das instâncias, não foi unânime, tendo merecido um voto de vencido do qual se excerta:
«a questão a resolver, in casu, consiste na restituição da posse de uma parcela de terreno, que integra um determinado baldio e na indemnização devida pela privação da coisa contra a vontade do possuidor através de um acto positivo de agressão à posse.
Estamos perante uma acumulação aparente de pedidos, havendo uma só pretensão - a entrega da coisa –, de cuja procedência resultam os pressupostos essenciais do direito à indemnização, de acordo com o disposto no art.1284° do Código Civil (CC). Ou seja, trata-se de um único pedido, embora complexo, dado que a restituição gera, só por si, a obrigação de indemnizar.
A responsabilidade extracontratual que se pretende determinar não decorre, assim, de uma qualquer relação jurídica administrativa, mas antes de uma relação de direito privado (existência de um direito de posse, pedido à abstenção de quaisquer actos que obstem ao seu exercício e, finalmente, condenação a indemnizar pelos danos causados). A actuação imputada à recorrente não aponta para normas de direito público (ou exercício de uma função pública para fins de direito ou interesse público) que atribuam poderes de autoridade para tal conduta.
Sendo a questão a dirimir consubstanciada numa relação jurídica de direito privado, deve a mesma regular-se pelas normas e princípios de direito civil, independentemente do facto de uma das partes ser uma pessoa colectiva pública.
De qualquer forma sempre há que considerar o disposto no art. 32° da Lei n°68/93, de 4 de Setembro, segundo o qual “é da competência dos tribunais comuns territorialmente competentes conhecer dos litígios que directa ou indirectamente tenham por objecto terrenos baldios, nomeadamente, os referentes ao domínio, delimitação, utilização, ocupação ou apropriação, contratos de cessão, deliberações dos seus órgãos ou omissões do cumprimento do disposto na lei”.
Cometendo esta norma especial competência aos tribunais judiciais para apreciar as causas nas quais esteja em questão a ocupação ou apropriação de terrenos baldios e estando o pedido de indemnização nelas formulado dependente dos de reconhecimento de domínio e restituição da coisa (perdendo aquele autonomia em termos de competência de acordo com o art. 969 n°1 do CPC) necessariamente, em nosso entender, com respeito pelo a opinião que fez vencimento, se deveria concluir pela forma que o fez o Tribunal “a quo”.
Pelas razões expostas negaria provimento ao agravo e confirmaria o acórdão recorrido».

Essas duas posições delimitam os termos da questão da competência em apreciação.
Afigura-se que a melhor apreciação é a de que, na verdade, o pedido primário consiste na restituição da posse de uma parcela de terreno que integra um determinado baldio. O pedido de indemnização é uma decorrência, e não o inverso.
O caso apresenta similitude com diversos conflitos julgados neste Tribunal em que estavam em causa acções de reivindicação e em que, não obstante a parte demandada ser entidade pública (município, como aqui), se julgou pela competência dos tribunais judiciais ‒ por mais recentes, os acs. de 09.6.2010, no processo nº12/10, 26.9.2013, no processo n.º 32/13, 18.12.2013, no processo n.º 18/13 e 19.06.2014, processo n.º 13/14.
E como se interpretou no aludido acórdão de 9.6.2010, processo n.º 012/10, em relação ao pedido indemnizatório que o autor cumulara com o pedido de restituição da parcela de terreno, «não constitui uma qualquer indemnização «in natura», mas a lógica consequência da sequela, que é um atributo característico dos direitos reais».
Na circunstância há mesmo, como se referiu, lei especial cometendo a competência aos tribunais judiciais.

3. Pelo exposto, julga-se que a competência para a acção cabe aos tribunais judiciais.
Sem custas.
Lisboa, 9 de Julho de 2014. – Alberto Augusto Andrade de Oliveira (relator) – Helena Isabel Gonçalves Moniz Falcão de Oliveira – Vítor Manuel Gonçalves Gomes – Mário Belo Morgado – José Francisco Fonseca da Paz – Fernando Manuel Pinto de Almeida.