Acórdãos T CONFLITOS

Acórdão do Tribunal dos Conflitos
Processo:038/21
Data do Acordão:03/23/2022
Tribunal:CONFLITOS
Relator:TERESA DE SOUSA
Descritores:CONFLITO DE JURISDIÇÃO
CONTRA-ORDENAÇÁO AMBIENTAL
TRIBUNAIS ADMINISTRATIVOS
Sumário:É da competência dos tribunais judiciais impugnação judicial na qual, no caso concreto, está em causa norma constitutiva da contra-ordenação que não se integra no conceito de matéria urbanística, antes constituindo uma contra-ordenação ambiental, cuja impugnação foi apresentada no Tribunal Judicial, e que está excluída do âmbito da alínea l) do nº 1 do art. 4º do ETAF.
Nº Convencional:JSTA000P29171
Nº do Documento:SAC20220323038
Data de Entrada:12/15/2021
Recorrente:CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO, ENTRE O TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LISBOA NORTE – JUÍZO LOCAL CRIMINAL LOURES – JUIZ 1 E O TRIBUNAL ADMINISTRATIVO DE CÍRCULO DE LISBOA
REQUERENTE: A.........., LDA
REQUERIDO: MINISTÉRIO PÚBLICO
Recorrido 1:*
Votação:UNANIMIDADE
Área Temática 1:*
Aditamento:
Texto Integral: Acordam no Tribunal dos Conflitos

1. Relatório
A………………, Lda e B…………….. são arguidas em processo de contra-ordenação, a primeira tendo sido punida com uma coima de €6.000,00, pela prática da contra-ordenação ambiental prevista e punida nos arts. 18º, nº 3, alínea c) do DL nº 46/2008, de 12/3 e 22º, nº 2, alínea b) da Lei nº 50/2006, de 29/8, por violação do previsto no art.11º, alínea f) do DL nº 46/2008, de 12/3; e, a segunda foi condenada no pagamento de uma coima de €2.600,00, pela prática da contra-ordenação urbanística prevista na alínea l) do nº 1 do art. 98º do DL nº 555/99, de 16/12, por violação do disposto no art. 97º, nº 1, do mesmo diploma.
As referidas coimas foram aplicadas por decisão do Vereador da Câmara Municipal de Odivelas (por delegação e subdelegação de competências do Presidente da Câmara), no âmbito do processo de contra-ordenação nº 275/CO/19.
Notificadas as decisões finais emitidas no referido processo as arguidas interpuseram as respectivas impugnações judiciais, nos termos do artigo 59º do DL nº 433/82, de 27/10.
Remetidos os autos ao Ministério Público do Tribunal da Comarca de Loures, este fez os autos presentes a esse Tribunal, nos termos do art. 62º, nº 1 do DL nº 433/82, de 27/10.

Por decisão proferida pelo Juízo Local Criminal de Loures (Juiz 1) do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Norte, em 29.01.2021, foi declarada a incompetência desse Tribunal, em razão da matéria, para apreciação dos recursos interpostos pelas arguidas, em síntese, face ao disposto no art. 4º, nº 1, al. l) do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF), considerando ser competente para o efeito o Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa.
Após trânsito, foi o processo remetido ao TAC de Lisboa.

Por despacho liminar de 03.07.2021, o TAC de Lisboa suscitou a incompetência daquele Tribunal, em razão da matéria, para a apreciação do recurso interposto pela arguida A……………, Lda, por em relação a ela não estar em causa no processo de contra-ordenação nº 257/CO/19, um ilícito urbanístico, mas sim uma contra-ordenação ambiental prevista e punida nos termos do disposto nos arts. 18º, nº 3, alínea c) do DL nº 46/2008, de 12/3 e 22º, nº 2, alínea b) da Lei nº 50/2006, de 29/8, por violação do previsto no art.11º, alínea f) do DL nº 46/2008, de 12/3.
Por decisão de 22.09.2021 o TAC de Lisboa julgou-se incompetente, em razão da matéria, para conhecer do recurso de impugnação contra-ordenacional, em matéria ambiental apresentando pela arguida A……………, Lda.
Os autos prosseguiram no TAC de Lisboa para se conhecer do recurso apresentado pela arguida B…………...
Transitada esta decisão, a Juíza do TAC de Lisboa suscitou o conflito negativo de jurisdição entre aquele Tribunal e o Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa – Juízo Criminal de Loures, Juiz 1, para este Tribunal dos Conflitos – despacho de 29.11.2021.
Remetido o processo a este Tribunal dos Conflitos a Exma. Procuradora Geral Adjunta emitiu parecer em 17.01.2022, no sentido de que a competência para julgar a impugnação judicial da decisão punitiva em causa deverá ser atribuída aos Tribunais Comuns, atenta a jurisprudência firmada deste Tribunal dos Conflitos de que, nos termos do art. 4º do ETAF, incumbirá aos tribunais comuns a competência material para julgar contra-ordenação que não se integra no conceito de matéria respeitante a urbanismo, e que constitui uma contra-ordenação ambiental.

2. Os Factos
Os factos relevantes para a decisão são os enunciados no Relatório.

3. O Direito
O presente Conflito Negativo de Jurisdição vem suscitado entre o Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa – Juízo Criminal de Loures, Juiz 1 e o Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa.
A questão que está em causa nos autos é a de saber qual a jurisdição competente para apreciar a impugnação judicial apresentada pela arguida A……………, Lda, na Câmara Municipal de Odivelas em 20.10.2020 e remetida pelo Ministério Público ao tribunal em 21.12.2020, respeitante à aplicação de uma coima por violação do disposto nos arts. 18º, nº 3, alínea c) do DL nº 46/2008, de 12/3 e 22º, nº 2, alínea b) da Lei nº 50/2006, de 29/8, por violação do previsto no art.11º, alínea f) do DL nº 46/2008, de 12/3.
Entendeu o Juízo Local Criminal de Loures que, face ao disposto na nova redacção do art. 4º, nº 1, al. l) do ETAF, dada pelo DL nº 214-G/2015, de 2.10 e que entrou em vigor em 1.9.2016, compete à jurisdição administrativa e fiscal conhecer da impugnação judicial em matéria de contra-ordenação por violação de normas de direito administrativo em matéria de urbanismo. E que, no caso concreto, “Acresce que o facto da contra-ordenação praticada pela arguida “A……………, Lda” ser punível com coima entre 6.000,00€ e 36.000,00€ e a contra-ordenação praticada pela B……………. ser punível com coima entre 25.000,00€ e 50.000,00€, fará com que a competência seja atribuída aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal (cfr. art. 28º, al. a) do C.P.P. ex vi art. 4º, nº 1. R.G.C.O.).”.
Remetido o processo ao TACL este, por sua vez, considerou-se incompetente em razão da matéria, por entender que “(…), no caso dos autos, atento o teor da decisão proferida no processo de contra-ordenação nº 257/CO (cfr. fls. 45-51 dos autos – suporte físico), da mesma resulta que a Recorrente A……………, Lda., foi punida com base nos seguintes fundamentos:a arguida A……………, Lda., na qualidade de empreiteira da obra, não efectuou nem manteve, conjuntamente com o livro de obra, o registo de dados de RCD’s. Tal facto viola o disposto na al. f) do artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 46/2008, de 12 de março, constituindo uma contraordenação ambiental leve, nos termos do artigo 18º, nº 3, alínea c) do Decreto-Lei nº 46/2008, de 12 de março, punida, nos termos da al. b) do nº 2 do artigo 22.º da Lei nº 50/2006, de 29 de agosto, com a coima a graduar entre €6 000 e € 36 000 em caso de dolo e por se tratar de pessoa coletiva (…). A arguida (…) praticou um facto ilícito e censurável, que preenche um tipo legal correspondente à violação de disposições legais e regulamentares relativas ao ambiente, que consagram direitos ou imponham deveres, para o qual se comina uma coima, nos termos do n.º 2 do artigo 1.º da Lei n.º 50/2006, de 29 de agosto, devendo como tal ser punida em conformidade.
Mais referiu que, “Nesta conformidade, verifica-se que a contra-ordenação em causa, aplicada à arguida “A………” se fundamenta na falta do registo de dados de resíduos de construção e demolição (RCD), que não se encontrava no local onde se realiza a obra, anexo ao livro de obra, respeitando, assim, a contra-ordenação a matéria ambiental e não a contra-ordenação em matéria de urbanismo, única para a qual a presente jurisdição administrativa detém competência, nos termos do disposto na já citada al. l) do nº 1 do art. 4º do ETAF.”.
E, no seguimento do decidido no Acórdão deste Tribunal dos Conflitos de 03.11.2020, Proc. 047/19, considerou que na acepção da alínea l), do nº 1 do art. 4º do ETAF devem ser incluídas as regras respeitantes à disciplina do direito administrativo da construção e à dos instrumentos de execução dos planos, ficando excluídas todas as impugnações contenciosas relativas às demais matérias, nomeadamente, ambientais, em sede de ilícito de mera ordenação social, e por não existir expressa disposição em contrário.
Mais considerou que, no caso sub judice, não é aplicável o disposto no art. 28º do CPP, pois, “para além de não existir conexão de processos (por não se verificar qualquer um dos critérios de conexão previstos no art. 24º do aludido diploma – note-se que vêm deduzidas impugnações que têm por base a prática de factos distintos e por diferentes arguidos), o citado preceito visa delimitar a competência territorial determinada pela conexão de processos (cujo objecto se insira no âmbito da competência material da mesma jurisdição) – vide, a título de exemplo, o discurso fundamentador do aresto do TRP, de 27/06/2007, no proc. 0741079, em www.dgsi.pt -, não regulando, nem atribuindo, competência em razão da jurisdição ao tribunal administrativo para a apreciação do presente recurso de contra-ordenação, a qual está tipificada no ETAF.

Vejamos.
Dispõe o art. 4º, nº 1, alínea l) do ETAF, na redacção introduzida pelo DL nº 214-G/2015, de 2/10, que:
1 - Compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham por objeto questões relativas a:
(…)
l) Impugnações judiciais de decisões da Administração Pública que apliquem coimas no âmbito do ilícito de mera ordenação social por violação de normas de direito administrativo em matéria de urbanismo;
Nos termos deste normativo e na redacção em vigor para o caso, o legislador previu, pois, a competência dos tribunais administrativos para o conhecimento das impugnações judiciais, no âmbito de ilícitos de mera ordenação social, mas restringido à violação de normas de direito administrativo em matéria de urbanismo.
Como se expendeu no Ac. deste Tribunal dos Conflitos de 27.09.2018, Proc. 023/18, no qual estava em causa um concurso de infracções relativo à violação de normas em matéria urbanística com violação de normas de outros domínios que não o urbanístico, quanto à opção legislativa relativa àquela alínea l) do nº 1 do art. 4º do ETAF:
«Daí que a opção tenha passado, nos termos da alínea l) do n.º 1 do art. 04.º do ETAF, pela atribuição da competência aos tribunais administrativos apenas das impugnações contenciosas de decisões que hajam aplicado coimas fundadas na violação de normas de Direito Administrativo em matéria de urbanismo [aqui entendido num âmbito que não abarca as regras relativas à ocupação, uso e transformação do solo (planos/instrumentos de gestão territorial), nem as regras relativas ao direito e política de solos, mas que inclui, mormente, as regras respeitantes à disciplina do direito administrativo da construção e à dos instrumentos de execução dos planos (v.g., reparcelamento, licenciamento e autorização de operações de loteamento urbano e de obras de urbanização e edificação)], ficando excluídas, salvo expressa disposição em contrário, todas as impugnações contenciosas relativas aos demais domínios/matérias tipificados em sede de ilícito de mera ordenação social e, assim, por este abrangidos.»
No Ac. deste Tribunal dos Conflitos de 03.11.2020 (indicado na decisão do TCAL), expendeu-se o seguinte: “(…) o legislador previa, pois, a competência dos tribunais administrativos para o conhecimento das impugnações judiciais, no âmbito de ilícitos de mera ordenação social, mas restringido à violação de normas de direito administrativo em matéria de urbanismo, como aliás é timbre da jurisprudência do Tribunal dos Conflitos”. Ou seja, tratando-se, no caso concreto, de norma constitutiva da contra-ordenação que não se integra no conceito de matéria urbanística, antes constituindo uma contra-ordenação ambiental, cuja impugnação foi apresentada no Tribunal Judicial, está excluída do âmbito da citada alínea l) do nº 1 do art. 4º do ETAF.
Com efeito, o direito do urbanismo é constituído pelo conjunto de normas e institutos públicos que, no quadro das directivas e orientações definidas pelo ordenamento do território, se destinam a promover o desenvolvimento e a conservação cultural da urbe (cfr. neste sentido o Ac. deste Tribunal de 21.03.2019, Proc. nº 037/18).
Ora, a previsão do art. 11º, al. f) do DL nº 46/2008, que nas obras sujeitas a licenciamento ou comunicação prévia nos termos do regime jurídico de urbanização e edificação, obriga o produtor de RCD, a efectuar e manter, conjuntamente com o livro de obra, o registo de dados de RCD, de acordo com o anexo ii daquele diploma, sendo constitutiva da contraordenação ambiental leve, por violação do art. 18º, nº 3º, al. c) do mesmo diploma, não efectuar o registo de dados de RCD ou não manter o registo dos respectivos dados, não se integra no conceito de matéria respeitante a urbanismo, antes integrando contra-ordenação respeitando a matéria ambiental. E, não existindo expressa disposição em contrário, a impugnação contenciosa relativa a esta matéria tipificada em sede de ilícito de mera ordenação social está excluída da previsão do art. 4º, nº 1, al. l) do ETAF e, da competência dos tribunais administrativos (cfr., o Ac. deste Tribunal dos Conflitos de 19.06.2019, Proc. 010/19).

Pelo exposto, acordam em julgar que a competência para a referida impugnação judicial cabe aos tribunais da jurisdição comum, concretamente ao Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Norte - Juízo Local Criminal de Loures – Juiz 1.
Sem custas.


Lisboa, 23 de Março de 2022. – Teresa Maria Sena Ferreira de Sousa (relatora) – Maria dos Prazeres Couceiro Pizarro Beleza.