Acórdãos T CONFLITOS

Acórdão do Tribunal dos Conflitos
Processo:013/16
Data do Acordão:07/07/2016
Tribunal:CONFLITOS
Relator: SÃO PEDRO
Descritores:CONFLITO DE JURISDIÇÃO
ACÇÃO DE REIVINDICAÇÃO
CADUCIDADE
DECLARAÇÃO DE UTILIDADE PÚBLICA
Sumário:É da competência dos tribunais judiciais o julgamento de uma acção onde o autor pede o reconhecimento do seu direito de propriedade, a restituição da coisa e a caducidade da declaração de utilidade pública, caso exista.
Nº Convencional:JSTA000P20800
Nº do Documento:SAC20160707013
Data de Entrada:03/23/2016
Recorrente:A......, NO CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO ENTRE O TRIBUNAL DA COMARCA DA MADEIRA,SANTA CRUZ,INSTÂNCIA LOCAL - SEC. COMP. GEN. - J2 E O TRIBUNAL ADMINISTRATIVO E FISCAL DO FUNCHAL.
Recorrido 1:*
Votação:UNANIMIDADE
Área Temática 1:*
Aditamento:
Texto Integral: Conflito nº: 13/16.
Tribunal de Conflitos

Acordam no Tribunal de Conflitos

1. Relatório

1.1 A………, intentou contra o GOVERNO REGIONAL DA REGIÃO AUTÓNOMA DA MADEIRA e o MUNICÍPIO DE SANTA CRUZ uma acção declarativa comum, sob a forma sumária no Tribunal Judicial de Santa Cruz, terminando com os seguintes pedidos:

“(…) Deve a presente Acção Comum ser declarada por procedente e por provada e, em consequência, serem ambos os réus, Região Autónima da Madeira e Município de Santa Cruz, condenados, conjunta e solidariamente, a reconhecer o seguinte:

1- O autor, com exclusão de outrem é único dono e possuidor do prédio rústico, situado no sítio da …., …………. ou ………., freguesia e concelho de …….., com a área de 2.290 m2, composto por cultura arvense de regadio, pastagem e bananal e confronta do Norte com B…….., C……. e outros, Sul com D……… e C…….. e outros, Leste com ribeira e E…….. e F……….. e Oeste com o Caminho, inscrito na matriz sob parte do artigo cadastral n.º 21/13 da Secção “AQ”, da referida freguesia e concelho e descrito na Conservatória do Registo Predial de Santa Cruz sob o n.º 5084/20090520.

2- Em decorrência, a abrir mão da totalidade da superfície do prédio “sub-judice” devolvendo à posse efectiva do autor, não mais perturbando de nenhum modo o direito de propriedade.

3 – A caducidade de toda e qualquer D.U.P. (Declaração de utilidade pública) que, tenha existido sobre o prédio “sub-judice” pelo menos até á data da interposição da presente acção e qualquer procedimento administrativo de expropriação à mesma conexa.

(…)”.

1.2. Justifica a sua pretensão alegando que “por razões inexplicáveis o Governo Regional da RAM procedeu à construção da Via Rápida Funchal/Santa Cruz e ocupou a totalidade do prédio rústico pertença do autor” (artigo 2º da petição inicial) e que “até hoje a RAM através de qualquer um dos seus departamentos que tratam das Expropriações e grandes obras de equipamento público não notificou o autor da existência de qualquer processo administrativo de expropriação precedente à ocupação e construção da via Rápida” (artigo 6º da petição inicial). “O autor deseja que a RAM abra mão de toda a superfície do prédio que ocupou e onde construiu a Via Rápida por ocupação ilícita, reconhecendo o direito de propriedade do requerente, reconstituindo o prédio ao seu estado natural e anterior às obras da Via Rápida.” (artigo 11º da petição inicial). “Também deseja que o réu Município de Santa Cruz reconheça o direito de propriedade do autor” (artigo 12º da petição inicial)

1.3. O Município de Santa Cruz contestou a acção arguindo a excepção da ilegitimidade por não ser parte na relação jurídica controvertida. Por impugnação alega não ter procedido a qualquer ocupação ou construção, nem ter procedido a qualquer declaração de utilidade pública o prédio ora em causa.

1.4. A Região Autónoma da Madeira contestou a acção. Alegou, além do mais, que a “parcela de terreno, representada na planta junta à p.i. como doc. N.º 3 foi ocupada para a construção da Via Rápida Funchal/Aeroporto – Troço Cancela Aeroporto” tendo sido identificada no respectivo projecto como parcela 415 (doc. 2) ” – artigo 5º da contestação. Contudo alega ainda a ré “… essa parcela de tereno foi adquirida pelo Estado Português em 1974” – artigo 7 da contestação - “através de escritura pública outorgada a 27-1.1974 – artigo 8º da contestação”, não tendo por essa razão sido desencadeado qualquer procedimento expropriativo – artigo 13º da contestação.

Em reconvenção pede o réu a condenação do autor a reconhecer que o prédio em causa integra de forma legítima e sem ofensa para terceiros, o domínio público rodoviário regional e ordenar-se o cancelamento da descrição predial n.º 5084 da freguesia de Santa Cruz e, consequentemente, de toso os averbamentos e inscrições; ou, subsidiariamente, ser reconhecido o direito de propriedade sobre o imóvel adquirido por acessão industrial imobiliária.

1.5. O autor respondeu às excepções e ao pedido reconvencional.

1.6. Por decisão de 18-02-2015, o Tribunal Judicial da Comarca da Madeira – Santa Cruz – Instância Local – Sec. Comp. Gen. J2 julgou-se incompetente, em razão da matéria, por entender que os réus “constituem entidades administrativas” e actuaram enquanto entidades que prosseguem interesses públicos, e actuaram no âmbito de relações jurídicas administrativas. “Em conclusão – diz a decisão – o tribunal competente para apreciar a questão vertida nos presentes autos é o tribunal administrativo (cfr. art. 4º n.º 1, g) do ETAF) e não o Tribunal Judicial (…)”.

1.7. A decisão referida transitou em julgado e o autor pediu a remessa dos autos para o TAF de Funchal, ao abrigo do disposto no art. 99º, 2 do CPC.

1.8. Por decisão de 15-12-2015 o TAF do Funchal, por decisão que também transitou em julgado, declarou-se incompetente em razão da matéria, por entender que estava perante uma acção de reivindicação de propriedade e não uma acção de responsabilidade civil extracontratual.

1.9. Perante as decisões transitadas em julgado declinando a competência foi suscitado neste Tribunal de Conflitos a resolução do conflito negativo de jurisdição.

1.10. Colhidos os vistos legais, foi o processo submetido ao Tribunal de Conflitos para julgamento.

2. Fundamentação

2.1. Matéria de facto

Com interesse para o julgamento da questão da competência consideram-se relevantes os factos e ocorrências processuais seguintes:

a) A…………., intentou contra o GOVERNO REGIONAL DA REGIÃO AUTÓNOMA DA MADEIRA e o MUNICÍPIO DE SANTA CRUZ uma acção declarativa comum, sob a forma sumária no Tribunal Judicial de Santa Cruz, terminando com o seguinte pedido:

“ (…)

Deve a presente Acção Comum ser declarada por procedente e por provada e, em consequência, serem ambos os réus, Região Autónima da Madeira e Município de Santa Cruz, condenados, conjunta e solidariamente, a reconhecer o seguinte:

1- O autor, com exclusão de outrem é único dono e possuidor do prédio rústico, situado no sítio da …., …………… ou ………., freguesia e concelho de ………., com a área de 2.290 m2, composto por cultura arvense de regadio, pastagem e bananal e confronta do Norte com B…….., C……… e outros, Sul com D………. e C…….. e outros, Leste com ribeira e E……. e F…….. e Oeste com o Caminho, inscrito na matriz sob parte do artigo cadastral n.º 21/13 da Secção “AQ”, da referida freguesia e concelho e descrito na Conservatória do Registo Predial de Santa Cruz sob o n.º 5084/20090520.

2- Em decorrência, a abrir mão da totalidade da superfície do prédio “sub-judice” devolvendo à posse efectiva do autor, não mais perturbando de nenhum modo o direito de propriedade.

3 – A caducidade de toda e qualquer D.U.P. (Declaração de utilidade pública) que, tenha existido sobre o prédio “sub-judice” pelo menos até á data da interposição da presente acção e qualquer procedimento administrativo de expropriação à mesma conexa.

(…)”

b) Justifica a sua pretensão alegando que “por razões inexplicáveis o Governo Regional da RAM procedeu à construção da Via Rápida Funchal/Santa Cruz e ocupou a totalidade do prédio rústico pertença do autor” (artigo 2º da petição inicial) e que “até hoje a RAM através de qualquer um dos seus departamentos que tratam das Expropriações e grandes obras de equipamento público não notificou o autor da existência de qualquer processo administrativo de expropriação precedente à ocupação e construção da via Rápida” (artigo 6º da petição inicial). “O autor deseja que a RAM abra mão de toda a superfície do prédio que ocupou e onde construiu a Via Rápida por ocupação ilícita, reconhecendo o direito de propriedade do requerente, reconstituindo o prédio ao seu estado natural e anterior às obras da Via Rápida.” (artigo 11º da petição inicial). “Também deseja que o réu Município de Santa Cruz reconheça o direito de propriedade do autor” (artigo 12º da petição inicial).

c) o Tribunal Judicial e o Tribunal Administrativo, por decisões transitadas em julgado, consideraram-se incompetentes, em razão da matéria, para julgar a acção.

2.2. Matéria de Direito

Como decorre do exposto estamos perante um conflito de jurisdição. Com efeito o Tribunal Judicial e o Tribunal Administrativo declararam-se incompetentes para julgar a presente acção, onde o autor pede o reconhecimento do direito de propriedade, a restituição do seu prédio ocupado pela ré, por nele ter-se sido implantada parte de uma estrada e, ainda, a declaração de caducidade de qualquer acto expropriativo, caso exista.

Como é entendimento generalizado deste Tribunal de Conflitos a competência do tribunal “afere-se pelo quid disputatum (quid decidendum, em antítese com aquilo que será mais tarde o quid decisum)” (…) A competência do tribunal não depende, pois, da legitimidade das partes nem da procedência da acção. É ponto a resolver de acordo com a identidade das partes e com os termos da pretensão do Autor compreendidos aí os respectivos fundamentos, não importando averiguar quais deviam ser as partes e os termos dessa pretensão”- MANUEL DE ANDRADE, Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra, 1979, pág. 91 e acórdãos do Tribunal de Conflitos de 4-7-2006, proc. 11/2006, de 26.9.96 (Ap. D.R., p. 59), 27.2.02, procº. nº 371/02, 9.3.04, proc.º nº 4/03, 23.9.04, proc.º nº 5/04, Acs. do STA de 12-01-88, proc.º n.º 24.880, in Ap. D.R., p. 106 e do STJ de 6-06-78, in BMJ, 278, 122. No mesmo sentido ver ainda o Ac. do STJ de 14-5-2009, proc. 09S0232, sublinhando todavia que o tribunal, apesar de atender apenas “aos factos articulados pelo autor na petição inicial e à pretensão jurídica por ele apresentada (causa de pedir e pedidos) não está vinculado às qualificações jurídicas do autor”.

A solução deste caso é, a nosso ver, bastante simples, uma vez que não existem quaisquer dúvidas sobre o “quid disputatum”, que se traduz em três pretensões: reconhecimento do direito de propriedade; restituição da coisa; caducidade de declaração de utilidade pública, caso exista.

O Tribunal Judicial qualificou a pretensão do autor como traduzindo um pedido de condenação dos réus a título de responsabilidade civil extracontratual, e por isso, invocando o art. 4º, 1, al. g) do ETAF, atribuiu a competência à jurisdição administrativa.

Mas não tem qualquer razão, pois não foi com fundamento na verificação dos pressupostos da responsabilidade civil que o autor estruturou a sua petição inicial. As três pretensões em que resume o “pedido” não visam a efectivação da responsabilidade civil extracontratual.

Com efeito, nas duas primeiras pretensões o autor invoca a titularidade do direito de propriedade, pede o seu reconhecimento e, consequentemente, pede a restituição da coisa no estado em que se encontrava antes da alegada ocupação. Trata-se, portanto sem qualquer dúvida, de uma acção de reivindicação, tal como vem prevista no art. 1311º do Código Civil. Deste modo a competência para apreciar estes pedidos (acções reais) é dos Tribunais Judiciais, uma vez que não se incluem em qualquer das hipóteses do art. 4º do ETAF e a competência dos Tribunais Judiciais ser residual (art. 64º do CPC) – cfr. entre muitos outros os acórdãos deste Tribunal de Conflitos – ac. de 10-3-2015, conflito 050/13; 4-2-2016, conflito 046/15; 22.4.2015, conflito 01/15; 25-9-2014, conflito 027/14; 5-6-2014, conflito 01/14; 30-10-2014, conflito 015/14; 19-6-2014, conflito 013/14; 6-2-2014, conflito 047/13; 16-2-2012, conflito 020/11.

O conhecimento da terceira pretensão do autor, que se traduz na declaração de caducidade de qualquer acto expropriativo (declaração de utilidade pública), caso exista, também é da competência dos tribunais judiciais, por força do disposto no art. 13º, n.º 4 do Código das Expropriações, segundo o qual a “declaração de caducidade pode ser requerida pelo expropriado ou por qualquer outro interessado ao tribunal competente para conhecer do recurso da decisão arbitral (…)”, sendo competente para conhecer do recurso da decisão arbitral o tribunal judicial da comarca da localização dos bens (art. 51º e 52º do Código das Expropriações).

Neste sentido se pronunciou o acórdão do STA de 19-6-2008, proferido no processo 0143/08, citando jurisprudência concordante: “(…) a competência para conhecer do pedido de declaração da caducidade da expropriação, formulado pelo ora recorrente, na acção a que respeitam os autos, cabe aos tribunais judiciais e não aos tribunais administrativos. Neste sentido se tem pronunciado a mais recente jurisprudência, designadamente a deste Supremo Tribunal, como se vê, entre outros, pelos acórdãos desta 1ª Secção de 14.2.02 (Rº 48271), de 27.6.02 (Rº 48021), de 3.5.04 (Rº 529/03) e de 12.3.08 (Rº 744/07) (Na doutrina e também neste sentido, veja-se José Osvaldo Gomes, Expropriações por Utilidade Pública, Texto Editora, 342, ss,.). (…)”. Igual entendimento tem sido seguido nos tribunais judiciais – cfr. acórdão do STJ de 28-1-2003, proferido no processo 02A4284; do TRP de 7-7-2005, proferido no processo 0523469.

Do exposto resulta que o Tribunal Judicial é competente para julgar todas as pretensões do autor, devendo ser nesse sentido resolvido o presente conflito negativo de jurisdição.

3. Decisão

Face ao exposto, os juízes do Tribunal de Conflitos, acordam em julgar competente para o julgamento da presente acção o Tribunal Judicial

Sem custas.

Lisboa, 7 de Julho de 2016. – António Bento São Pedro (relator) – Gabriel Martim dos Anjos CatarinoTeresa Maria Sena Ferreira de SousaJosé Tavares de PaivaJorge Artur Madeira dos SantosFernanda Isabel de Sousa Pereira.