Acórdãos T CONFLITOS

Acórdão do Tribunal dos Conflitos
Processo:018/16
Data do Acordão:10/20/2016
Tribunal:CONFLITOS
Relator:MARIA DO CÉU NEVES
Descritores:ACÇÃO DE RESPONSABILIDADE CIVIL EXTRACONTRATUAL
Sumário:I - Se a causa de pedir invocada pelos autores, se consubstancia não na restituição do terreno, mas apenas que se reconheça que ocorreu a violação do seu direito de propriedade relativamente ao uso da servidão de água sobre este terreno, de tal forma que se dê como verificada a ilicitude da conduta dos RR, e consequentemente, lhes seja concedida uma indemnização em espécie e em dinheiro, estamos perante uma verdadeira acção de responsabilidade civil extra contratual.
II - Considerando que os RR actuaram exclusivamente no âmbito de poderes e prorrogativas de direito público, na execução de uma obra pública, em representação do Estado, em virtude do respectivo contrato de concessão, inexistem dúvidas que estamos perante actos de gestão pública [que por definição genérica, correspondem aos actos que se compreendem no exercício de um poder público, integrando eles mesmos a realização de uma função pública da pessoa colectiva, independentemente de envolverem ou não o exercício de meios de coacção e independentemente ainda das regras técnicas ou de outra natureza, que na prática dos actos devam ser observadas].
III - Por força do disposto no artº 4º, nº 1, al. i) do ETAF e artº 5º, nº 1 da Lei 67/2007 de 31/12, são competentes para decidir do mérito da presente acção os Tribunais Administrativos.
Nº Convencional:JSTA000P21032
Nº do Documento:SAC20161020018
Data de Entrada:05/20/2016
Recorrente:CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO, ENTRE O TRIBUNAL JUDICIAL DE AMARANTE E O TRIBUNAL ADMINISTRATIVO E FISCAL DE PENAFIEL
Recorrido 1:AUTOR: A...
RÉU: C... E OUTROS
Votação:UNANIMIDADE
Área Temática 1:*
Aditamento:
Texto Integral: Acordam no Tribunal de Conflitos
A……………. e B……………. devidamente identificados nos autos, intentaram no TAF de Penafiel, acção declarativa de condenação, sob a forma de processo comum contra a C………….., S.A, a D............. A.C.E. e a E…………….., Ldª, pedindo a condenação solidária das RR a:

a) «Reconhecer os AA como donos e legítimos proprietários do prédio rústico denominado “Propriedade do ………..”, sito no Lugar de ……….., da freguesia de ………, concelho de Amarante, descrito na CRP sob o nº 17.743, inscrito na respectiva matriz rústica sob o artº 129, que deu origem ao actual artº R-583;

b) Reconhecer o direito de servidão de aproveitamento das águas provenientes da nascente denominada “…………” existente no prédio rústico sito no lugar de ………., inscrito na matriz predial rústica da freguesia de ………. sob o artº 727 e descrito na CRP com o nº 00296, na proporção de um dia por semana – de quarta-feira ao pôr-do-sol, a quinta-feira ao pôr-do-sol – e dela conduzidas para o prédio dos autores em questão;

c) Pagar-lhes a quantia de €.6.000,00 a título de indemnização pelos prejuízos sofridos pelos autores desde que foi cortada a água até à presente data, na actividade agrícola por eles desenvolvida no mesmo prédio, em consequência da perda absoluta do aproveitamento das águas, durante esse período;

d) Realizar as obras necessárias à restituição dos autores do domínio e da fruição de tais águas, de forma a que seja assegurado o seu aproveitamento ou, subsidiariamente a pagar aos AA a quantia de €.12.584,00, a título de compensação pela desvalorização do prédio e com a perda definitiva de rendimentos futuros dele retirados, resultantes da perda de aproveitamento das mesmas águas;

e) Reparar os danos patrimoniais que ainda vierem a ocorrer, a liquidar em execução de sentença;

f) Condenados a pagar a condigna reparação dos danos morais no valor de € 3.000,00;

g) E os graves e contínuos danos morais que lhes venham a causar e que se vierem a liquidar em execução de sentença;

h) A tais quantias devem acrescer juros moratórios vencidos e vincendos, à taxa legal, até integral pagamento, bem como as custas e procuradoria».

O TAF de Penafiel em sede de despacho saneador, julgou verificada a excepção incompetência, em razão da matéria, para conhecer do objecto da acção – cfr. fls. 740 a 742.

Entretanto, notificados desta decisão, os AA comunicaram aos autos que havia corrido termos no Tribunal Judicial de Amarante, uma acção previamente intentada, em tudo idêntica à presente, com os mesmos fundamentos e o mesmo pedido, que correu o seu trâmite no 2º juízo, sob o nº 1321/112TBAMT, acção esta que, após a fase dos articulados, igualmente findou com a prolação de despacho que julgou aquele tribunal, incompetente em razão da matéria, absolvendo os mesmos RR da instância – cfr. fls. 729 a 731.

Atenta a decisão em ambas as acções, quer pelo TAF de Penafiel, quer pelo Tribunal Judicial de Amarante, a declararem-se incompetentes em razão da matéria, com trânsito em julgado, vieram os AA a fls. 755 suscitar o presente conflito.

Alegam, os AA, em síntese, o pedido de condenação formulado contra os RR nos termos supra referidos, bem como, a existência de um conflito negativo de jurisdição, em que tribunais de jurisdições diferentes declinam a competência para julgarem a presente acção, requerendo a resolução do presente conflito, o que foi admitido por despacho proferido no TAF de Penafiel [fls. 820], tendo os autos sido remetidos ao Tribunal de Conflitos.


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Cumpre apreciar e decidir.

2. A factualidade com relevo para a resolução do conflito a decidir e que resulta dos autos, é a supra referida em sede de relatório, designadamente do pedido formulado pelos AA.


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Estamos perante um conflito negativo de jurisdição motivado pela pronúncia de duas decisões judiciais, de sentido inverso, emitidas, primeiro, por um tribunal da jurisdição comum e, subsequentemente, por um tribunal da jurisdição administrativa e fiscal, decisões que, mutuamente, declinaram a competência material para dirimir o litígio submetido a juízo.

O poder jurisdicional, é sabido, encontra-se repartido por diversas categorias de tribunais, segundo a natureza das matérias das causas que perante eles se suscitam - cfr. arts. 209º e segs da Constituição da República Portuguesa (CRP).

Nos termos do disposto no artº 211º, nº 1 da CRP, os tribunais judiciais são os tribunais comuns em matéria civil e criminal e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens jurídicas.

Estabelecendo o artº 40º, nº 1 da Lei nº 62/2013, de 26/8 – Lei da Organização do Sistema Judiciário (LOSJ) -, que os tribunais judiciais têm competência para as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional (também o artº 64º do CPC).

Por sua vez, artº 212º, nº 3 da CRP estabelece que, compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais”.

Também o artº 1º, nº 1 do ETAF, na redacção aplicável, estatui que, “os tribunais administrativos e fiscais são órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo, nos litígios emergentes das relações administrativas e fiscais”.

A existência de várias categorias de tribunais supõe, naturalmente, um critério de repartição de competência entre eles, necessariamente de natureza objectiva, de acordo com a natureza das questões em razão da matéria, podendo, como tal, dar origem a conflitos de jurisdição.

A determinação do tribunal competente em razão de matéria, é aferida em função dos termos em que é formulada a pretensão do autor, incluindo os respectivos fundamentos, ou seja, afere-se por referência à relação jurídica controvertida, tal como exposta na petição inicial, atendendo-se ainda à identidade das partes, pretensão formulada e respectivos fundamentos, sendo, no entanto, nesta fase, indiferente o juízo de prognose acerca da viabilidade ou não da acção, face à sua configuração - cfr. entre muitos outros, os acórdãos do Tribunal dos Conflitos de 28-09-2010, processo nº 2/10 de 29-03-2011, processo nº 25/10, de 02-03-2011, processo 9/10 e de 09-09-2010, proc. 011/10.

É, pois, inequívoco que a competência é apreciada em função da causa de pedir e pedido, aferidos à data da propositura da acção, sendo que, no caso, o reconhecimento de direitos e a indemnização peticionada é resultado dos prejuízos sofridos em resultado da actuação das RR no âmbito de actos de gestão pública [construção de um troço de uma auto-estrada, na sequência de um contrato de empreitada de obra pública celebrado entre as RR]

Vejamos, pois, a quem compete apreciar e decidir da matéria em causa, sendo que, o TAF de Penafiel, chamando à colação dois acórdãos do Tribunal de Conflitos [020/11 de 16/02/2012 e 016/14 de 10/09/2014] entendeu estarmos perante uma acção de revindicação do direito de propriedade e portanto, uma acção real, atribuindo a competência à jurisdição comum.

Há, pois que determinar se o pedido dos AA corresponde a uma acção de reivindicação ou a uma acção de responsabilidade civil.

E resulta da análise dos autos tratar-se claramente de uma acção de responsabilidade civil extra contratual, em que os AA alegando que os RR ofenderam o seu direito de servidão de aproveitamento de águas de nascente, causando-lhes os prejuízos que descrevem, pretendendo desta forma ser indemnizados quer sob a forma de reposição natural [realização de obras], quer através do pagamento de determinadas quantias em dinheiro.

Com efeito, o facto de se pedir o reconhecimento da propriedade do terreno, onde alegadamente se encontra constituída a servidão de aproveitamento das águas provenientes de nascente, não faz, só por si, com que se esteja perante uma acção real de reconhecimento da propriedade e consequente restituição da coisa, nos termos do disposto no artº 1311º do Código Civil, como decidido no TAF de Penafiel.

Na verdade, no caso dos autos, os AA não pedem a restituição do terreno, mas apenas que se reconheça que ocorreu a violação do seu direito de propriedade relativamente ao uso da servidão de água sobre este terreno, de tal forma que se dê como verificada a ilicitude da conduta dos RR, e consequentemente, lhes seja concedida uma indemnização em espécie e em dinheiro. Trata-se, assim, de uma verdadeira acção de responsabilidade civil extracontratual.

Por outro lado, também não gera dúvidas que os RR, embora entidades privadas, agiram ao abrigo de um contrato de empreitada na construção de um troço de uma auto-estrada, portanto de concessão de obra pública, praticando actos de gestão pública.

Deste modo, qualificando-se a acção como de responsabilidade civil extracontratual, e considerando que os RR actuaram exclusivamente no âmbito de poderes e prorrogativas de direito público, na execução de uma obra pública, actuando em representação do Estado, em virtude do respectivo contrato de concessão, inexistem dúvidas que estamos perante actos de gestão pública [que por definição genérica, correspondem aos actos que se compreendem no exercício de um poder público, integrando eles mesmos a realização de uma função pública da pessoa colectiva, independentemente de envolverem ou não o exercício de meios de coacção e independentemente ainda das regras técnicas ou de outra natureza, que na prática dos actos devam ser observadas].

Ora, dispondo o artº 4º do ETAF, na redacção à data aplicável, [nº 1, al. i)] que compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham por objecto, nomeadamente, a responsabilidade civil extra contratual dos sujeitos privados aos quais seja aplicável o regime específico da responsabilidade do Estado e demais pessoas colectivas de direito publico, dúvidas não restam quanto à competência da jurisdição administrativa para dirimir o presente litígio.

Acresce que, actualmente, para delimitar a competência material dos tribunais administrativos em matéria de responsabilidade civil extracontratual, há que ter presente a Lei nº 67/2007 de 31 de Dezembro sobre o regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e demais Entidades Públicas.

Neste diploma, a respeito do âmbito de aplicação do referido regime preceitua o art. 1º, nº 5, o seguinte: As disposições que, na presente lei, regulam a responsabilidade das pessoas colectivas de direito público, bem como dos titulares dos seus órgãos, funcionários e agentes, por danos decorrentes do exercício da função administrativa, são também aplicáveis à responsabilidade civil de pessoas colectivas de direito privado e respectivos trabalhadores, titulares de órgãos sociais, representantes legais ou auxiliares, por acções ou omissões que adoptem no exercício de prerrogativas de poder público ou que sejam regulados por disposições ou princípios de direito administrativo.”

Na prática, e tal como se tem vindo a entender, o nº 5 do art. 1º da Lei nº 67/2007 concretiza o princípio previsto no art. 4º, nº 1, alínea i) do ETAF, de que compete aos tribunais administrativos apreciar as questões atinentes à responsabilidade civil extracontratual dos sujeitos privados aos quais seja aplicável o regime específico da responsabilidade do Estado e demais pessoas colectivas de direito público.

3. Pelo exposto, julga-se que a competência para a acção cabe aos tribunais administrativos.

Sem custas.

Lisboa, 20 de Outubro de 2016. – Maria do Céu Dias Rosa das Neves (relatora) – João Moreira Camilo – Maria Benedita Malaquias Pires Urbano – Gabriel Martim dos Anjos Catarino – José Adriano Machado Souto de Moura – Ana Paula Soares Leite Martins Portela.