Acórdãos T CONFLITOS

Acórdão do Tribunal dos Conflitos
Processo:013/17
Data do Acordão:07/05/2018
Tribunal:CONFLITOS
Relator:TÁVORA VICTOR
Descritores:CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO
Sumário:
Nº Convencional:JSTA000P23500
Nº do Documento:SAC20180705013
Data de Entrada:03/28/2017
Recorrente:CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO, ENTRE A COMARCA DE VIANA DO CASTELO, PONTE DE LIMA, INSTÂNCIA LOCAL, SECÇÃO DE COMPETÊNCIA GENÉRICA – J1 E OS TRIBUNAIS ADMINISTRATIVOS E FISCAIS.
AUTOR: A………..
RÉU: AUTO-ESTRADAS NORTE LITORAL – SOCIEDADE CONCESSIONÁRIA – AENL, S.A.
Recorrido 1:*
Votação:UNANIMIDADE
Área Temática 1:*
Aditamento:
Texto Integral: Conflito Negativo nº: 13/17

1. RELATÓRIO.

Acordam no Tribunal de Conflitos.

A………… intentou uma acção contra a Ré “Auto-Estradas Norte Litoral – Sociedade Concessionária – AENL, S.A.”, pedindo a condenação desta a pagar-lhe a quantia de € 5.067,90, acrescida de juros, a título de indemnização pelos danos que sofreu em consequência de um acidente de viação provocado pela presença de um animal de raça canina a vaguear numa via concessionada;

Na sua decisão, o tribunal na 1ª instância entendeu que o litígio deve ser dirimido perante os tribunais administrativos e, julgando verificada a excepção de incompetência absoluta do tribunal, absolveu a Ré da instância.

Interposto recurso pelo Autor foi decidido na Relação confirmar a decisão recorrida.

De novo inconformado, veio o Autor recorrer, agora de revista, tendo, no termo de tudo quanto alegou, pedido que se altere o despacho saneador-sentença considerando o Tribunal instância local de Ponte de Lima o tribunal judicial competente em razão da matéria para julgar a presente acção.

Por despacho de fls. 173, o Sr. Juiz Conselheiro exarou nos autos o seguinte Despacho: Tendo o Tribunal da Relação julgado incompetente o Tribunal Judicial por a mesma pertencer à jurisdição administrativa remetam-se os autos ao Tribunal de Conflitos nos termos do preceituado no artigo 101º nº 2 do Código de Processo Civil”. Foi o que acabou por ser feito.

Cabe destarte a este Tribunal de Conflitos decidir desta questão.

A posição do Autor A……… fundamenta-se no seguinte:

Conclusões:

1. Referem-se as presentes alegações ao recurso interposto pelo Autor, ora apelante, da sentença datada de 31-03-2016, que julgou verificada a excepção de incompetência absoluta do tribunal, em razão da matéria e consequentemente absolveu a Ré da instância.

2. O Autor, A………., instaurou no tribunal, instância local de Ponte de Lima, comarca de Viana do Castelo, acção de condenação contra a Ré “Auto-Estradas Norte Litoral – Sociedade Concessionária – AENL, S.A.,” no valor de € 5.067,90, acrescidos de juros, por danos decorrentes de acidente de viação ocorrido no dia 16 de Março de 2013, pelas 23:40 horas, na auto Estrada A27, KM 15,2, por ter sido surpreendido por um animal de raça canina a vaguear na via, do seu lado esquerdo, no sentido Viana do Castelo – Ponte de Lima, que não conseguiu contornar.

3. Por despacho de 15-10-2015 a Meritíssima Juiz do tribunal a quo manda notificar as partes para se pronunciarem quanto à questão da (in) competência material daquele tribunal para apreciação da presente acção.

4. Em 27 de Outubro de 2015 o Autor pronunciou-se no sentido de ser o tribunal da comarca de Viana do Castelo, Instância Local de Ponte de Lima, o materialmente competente para julgar a presente acção.

5. No saneador-sentença, de 31-03-2016, a fls. 92 o tribunal a quo veio a proferir decisão de o litígio dever ser dirimido em sede própria, nos tribunais administrativos (cfr. artigos 1º n.º 1 e 4.º, n.º 1, alínea f), ambos do ETAF, julgando verificada a excepção de incompetência absoluta do Tribunal a quo em razão da matéria, e, consequentemente, decidindo pela absolvição da Ré da instância.

6. Inconformado o Recorrente com o despacho saneador-sentença, interpôs recurso para o Tribunal da Relação de Guimarães, que, através de acórdão de 20.10.2016, confirmou a decisão recorrida.

7. A questão mantém-se e consiste em saber se o tribunal judicial é o competente, em razão da matéria, para julgar a presente acção, ou se essa competência recai sobre a jurisdição administrativa.

8. Questão prévia à verificação e determinação do tribunal competente é a natureza da matéria que fundamenta ou estrutura a acção, a qual consiste no direito de uma pessoa recorrer ao tribunal pedindo a solução para um litígio em que se ache envolvida, que no caso em concreto o direito de acção judicial pretende fazer valer um direito substantivo.

9. O Recorrente discorda do aresto recorrido pretendendo buscar, na última instância no Supremo Tribunal de Justiça a decisão apropriada ao seu diferendo ao que vem fundamentar.

10. A Ré "NORTE LITORAL - Auto-Estradas Norte Litoral - Sociedade Concessionária - AENL, S.A." até meados de Julho de 2010 denominava-se "EUROSCUT NORTE - Sociedade Concessionária da SCUT Norte - Litoral, S.A.".

11. Foi com esta sociedade que o Estado celebrou o contrato de concessão assinado em 17 de Setembro de 2001 e aprovado através da Resolução do Conselho de Ministros n.º 139/2001, de 31-08-2001, que regula e define.

12. Contrato de concessão esse que aprova a minuta de lanços de auto-estradas e conjuntos viários associados, designada por concessão SCUT do Norte Litoral, a que se refere a alínea c) do artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 119-B/99, de 14 de Abril, a celebrar entre o Estado Português e a EUROSCUT NORTE – Sociedade Concessionária da SCUT do Norte-Litoral, S.A.

13. Na Resolução de Conselho de Ministros, no seu capítulo II - ponto 5. Objecto e tipo de Concessão, expõe assim: “A concessão tem por objecto a concepção, projecto, construção, financiamento, conservação, exploração, em regime de portagens SCUT, e aumento de número de vias nos seguintes lanços de Auto-Estrada: a) IP 9 Nogueira-Estorãos; b) IP 9 Estorãos-Ponte de Lima (IP 1/ A 3); c) IC 1, Viana do Castelo (IP 9) - Caminha. (...)".

14. As respectivas Bases de Concessão foram aprovadas pelo DL 234/2001 de 28-08.

15. Consta do citado DL 234/2001 de 28-08, no capítulo XVI "Responsabilidade extracontratual perante terceiros 76 - Pela culpa e pelo risco: A Concessionária responderá, nos termos da lei geral, por quaisquer prejuízos causados no exercício das actividades que constituem o objecto da Concessão, pela culpa ou pelo risco, não sendo assumido pelo Concedente qualquer tipo de responsabilidade neste âmbito.”

16. Ora, os actos de concessão que passaram para a concessionária e que são da sua responsabilidade, passam a ser tratados como actos de gestão privada, transferindo o concedente (Estado) a responsabilidade pela culpa e pelo risco à empresa concessionária.

17. O Recorrente, e a Ré são entidades privadas, sendo a Ré, pessoa colectiva de direito privado, uma sociedade anónima constituída em termos de direito privado.

18. O artigo 211º, nº 1 da Constituição da República Portuguesa (CRP) no que respeita à jurisdição comum, consagra: “Os tribunais judiciais são os tribunais comuns em matéria cível e criminal e exercem em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais.”

19. O artigo 64.º do CPC confirma que “são da competência dos tribunais judiciais as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional”.

20. No que concerne aos tribunais administrativos e fiscais, o artigo 212º nº 3, da CRP refere: "Compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais”.

21. Por sua vez o Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF), aprovado pela Lei. Nº 13/2002, de 19/02 no seu artigo 1º nº 1 diz: “1 Os tribunais da jurisdição administrativa e fiscal são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo, nos litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais.”

22. O artigo 4º nº 1 aI. i) do ETAF enuncia, exemplificando situações sujeitas ou excluídas do âmbito dos Tribunais Administrativos e Fiscais, estabelecendo: “Compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais que tenham nomeadamente por objecto al. i) Responsabilidade civil extracontratual dos sujeitos privados aos quais seja aplicável o regime específico da responsabilidade do Estado e demais pessoas colectivas de direito público".

23. Estabelece o artigo 1º, nº 5, da lei nº 67/2007, de 31-12: “As disposições que, na presente lei, regulam a responsabilidade das pessoas colectivas de direito público, bem como dos titulares dos seus órgãos, funcionários e agentes, por danos decorrentes do exercício da função administrativa, são também aplicáveis à responsabilidade civil de pessoas colectivas de direito privado e respectivos trabalhadores, titulares de órgãos sociais, representantes legais ou auxiliares, por acções ou omissões que adoptem no exercício de prerrogativas de poder público ou que sejam reguladas por disposições ou princípios de direito administrativo".

24. No que respeita à extensão deste regime a entidades privadas apenas tem aplicação quando exerçam prerrogativas de direito público ou actuem ao abrigo de princípios de direito administrativo, quer se trate de entidades administrativas privadas, de criação pública, quer se trate de verdadeiros privados, quando actuem no exercício de funções públicas, como o caso de concessionárias.

25. A concessionária é uma S.A. de gestão privada não se enquadrando no exercício de direito público e que face ao regime da responsabilização da concessionária, nos termos das Bases LXXIII e LXIV da concessão, resulta o afastamento da aplicabilidade do regime da responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais entes públicos e nessa perspetiva afasta a possibilidade do objecto do presente litígio poder ter-se por incluído no âmbito da jurisdição administrativa.

26. Importa distinguir actos de gestão pública e actos de gestão privada para uma isenta apreciação.

27. São actos de gestão pública os que se compreendem no exercício de um poder público, integrando a realização de uma função pública da pessoa colectiva, independentemente de envolverem ou não, eles mesmos, o exercício dos meios de coerção e, independentemente, ainda, das regras técnicas ou de outra natureza, que na prática dos actos devam ser observadas.

28. Por outro lado, os actos de gestão privada são aqueles que envolvem uma actividade em que a pessoa colectiva, despida do poder público, se encontra e actua numa posição de paridade com os particulares a quem os actos respeitam, e, portanto, nas mesmas condições no mesmo regime em que poderia proceder um particular, com submissão às normas de direito privado.

29. As concessionárias, tendo por concedente o Estado, são empresas privadas com mera gestão privada apesar de as suas actividades terem natureza administrativa, como mostra claramente o DL nº 335-A/99 de 20-08 que aprovou as Bases da Concessão.

30. A este respeito refere e bem o Acórdão do Tribunal de Conflitos, processo nº 028/13 de 18-12-2013 "(...) já quem concebe a concessão como um acto de gestão mas que é privatizada ao ser contratualmente transferida para uma pessoa colectiva de direito privado, tende a defender o principio próprio da responsabilidade por actos de gestão privada. Tal só não se verifica, sendo de natureza administrativa a actividade do concessionário, “Sempre que os prejuízos que lhe são imputados (à entidade concessionária) decorram do exercício de poderes públicos de que estão investidos; a responsabilidade rege-se, nesse caso, pelo direito público ou então terá de ser justificada a posição contrária; mas quando tal não suceda, isto é, quando os actos ilícitos pela qual a entidade concessionária privada é demandada se insira nos actos corrente da sua actividade, estamos no âmbito do direito privado.”

31. Os actos de gestão pública, ao serem concessionados, " privatizados", passam a ser tratados como da responsabilidade do concessionário por actos de gestão privada.

32. No DL 234/2001 de 28-08, anteriormente citado, que aprova as Bases da concessão da concepção, projecto, construção, financiamento, exploração e conservação de lanços de auto-estrada e conjuntos viários associados, designada por Concessão SCUT Norte Litoral, no capítulo XVI "Responsabilidade extracontratual perante terceiros, Base LXXIII Pela culpa e pelo risco: A Concessionária responderá, nos termos lei geral, por quaisquer prejuízos causados no exercício das actividades que constituem o objecto da Concessão, pela culpa ou pelo risco, não sendo assumido pelo Concedente qualquer tipo de responsabilidade neste âmbito."

33. Actuando a concessionária sem as prerrogativas de direito público cuja existência é condição de aplicação do actual regime de responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais pessoas colectivas de direito público às pessoas colectivas de direito privado, "sempre estaria afastada a possibilidade de se incluir o caso presente no âmbito da justiça administrativa, nos termos do art. 4º, nº 1, al i) do ETAF."

34. E ainda: afastando-se expressamente, no regime especial previsto para a concessão em causa, a co-responsabilização do Estado pelas indemnizações devidas a terceiros por acidentes de viação ocorridos nas auto-estradas por falha objectiva de condições de segurança, remetendo para "o regime geral", encontra-se excluída a sua sujeição ao regime da responsabilidade extracontratual do Estado e demais entidades públicas, previsto na Lei nº 67/2007.

35. Neste sentido refere o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra o seguinte: "Encontrando-se em causa uma alargada violação por parte da Concessionária/Ré das obrigações de manutenção da auto-estrada em bom estado de conservação e de assegurar permanentemente em boas condições de segurança a circulação, nomeadamente, de manutenção das vedações em bom estado de conservação, o que se questiona são actos de mera gestão privada, em que aquela actua despida de prorrogativas de autoridade pública.

36. É o que se passa no caso vertente; a Ré incorre em responsabilidade civil por negligência na vigilância de um troço de auto-estrada cuja gestão lhe estava concessionada, dando azo a que um canídeo surgisse na mesma, provocando um acidente, com prejuízo para o veículo do Autor, aqui recorrente.

37. Este quadro factual não se enquadra juridicamente na previsão do artigo 1º, nº 5 da Lei nº 67/2007 de 31-12.

38. Sendo que o tribunal materialmente competente para conhecer da acção é o tribunal judicial.

39. Não pode o Autor, aqui recorrente, deixar de mencionar o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra; "1 - No exercício da actividade concessionada, os concessionários respondem normalmente pelos prejuízos causados a terceiros nos termos gerais do direito, isto é, segundo o regime do direito privado, só respondendo segundo o regime do direito administrativo relativamente aos actos praticados no exercício de poderes de autoridade, atribuídos por lei ou pelo contrato de concessão.

2 - Pertence ao tribunal comum a competência para conhecer da acção em que um utente imputa à concessionária da auto-estrada uma conduta omissiva do seu dever de vigilância no troço da via sob concessão, independente da posição adoptada sobre a natureza contratual ou extracontratual dessa eventual responsabilidade. 3 - Os tribunais do foro administrativo são materialmente incompetentes para conhecer da acção que tenha por objecto a responsabilidade das concessionárias de auto-estradas das concessões SCUT para com os utentes dos troços sujeitos à sua exploração.

40. Na senda do exposto, deverá ser dado provimento ao recurso alterando-se o despacho saneador, sentença recorrida, considerando o tribunal judicial, instância local de Ponte de Lima o tribunal judicial competente em razão da matéria, para julgar a presente acção.

41. O recorrente litiga com o benefício do Apoio Judiciário nas modalidades de dispensa de taxa de justiça e demais encargos com o processo, nomeação e pagamento da compensação de patrono.

O Ministério Público emitiu a fls. 183 ss resposta segundo a qual a competência para conhecer do presente recurso pertence à Jurisdição Administrativa.


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2. FUNDAMENTOS

2.1. Os factos.

Os factos que interessam à boa decisão da causa constam do Relatório sendo certo que o ali vem dito permite a compreensão do que se abordará de imediato traduzindo-se essencialmente na questão de indagar se a competência para conhecer da presente acção pertence à jurisdição comum ou administrativa.


+

2.2. O Direito.

Há que abordar os seguintes Pontos

- Bosquejo abreviado da problemática em análise.

O alcance do vínculo de concessão existente entre o Estado e a Ré Auto-Estradas Norte Litoral - Sociedade Concessionária AENL SA. Qual o Tribunal competente para julgar a presente acção.


+

2.2.1. Bosquejo abreviado da problemática em análise. O alcance do vínculo de concessão existente entre o Estado e a Ré Auto-Estradas Norte Litoral - Sociedade Concessionária AENL SA. Qual o Tribunal competente para julgar a presente acção.

O fim primordial que envolve o litígio do Autor com a Ré Auto-Estradas Norte Litoral - Sociedade Concessionária AENL SA, é o de o primeiro fazer valer perante esta última a responsabilidade civil por danos cuja responsabilidade eventualmente lhe cabe, em virtude de um acidente de viação provocado por um canino que vagueava na via acima referida, concessionada à Ré. Para que tal escopo possa ser alcançado, impõe-se previamente indagar e decidir qual o tribunal competente para conhecer do caso em análise.

Sucede por vezes, que “a pessoa colectiva de direito público encarrega outra entidade, geralmente de natureza privada de determinadas funções, transferindo-lhe temporariamente o exercício dos direitos e poderes necessários e impondo as obrigações e deveres correspondentes” (Cfr. Marcello Caetano "Manual de Direito Administrativo" pags. 1099.). É o que sucede aqui. Neste caso estamos perante um acto de concessão a uma entidade de direito privado, o que é evidenciado desde logo pela sigla SA. que se segue à denominação da Ré na acção - em suma uma pessoa colectiva de direito privado. O facto de aquela situação se verificar, não significa, contudo, que a entidade concessionária perca a sua natureza, sendo certo todavia que o concessionário desempenha um papel específico e de relevo na administração pública (Como refere Marcello Caetano in Ob. Cit. pags. 1100 "A Concessão implica a transferência temporária do exercício de direitos e poderes da pessoa colectiva de direito público necessários à gestão do serviço pelo concessionário".). Foi desta forma que a Ré assumiu, com o acto de concessão em causa, o dever de proceder à gestão da manutenção e segurança nas áreas de auto-estrada que lhe foram confiadas.

A Sociedade Ré celebrou com o Estado um contrato de concessão assinado em 17 de Setembro de 2001 e aprovado através da Resolução do Conselho de Ministros nº 139/2001 de 31/8/2001 que regula e define as pautas a seguir entre a EUROSCUT e o Estado Português. Tal contrato aprova a minuta de lanços de auto-estradas e conjuntos viários designada por concessão SCUT do norte Litoral a que se refere a alínea c) do artigo 2º do DL 119-B/99 de 14 de Abril a celebrar entre o Estado português e a EUROSCUT NORTE - Sociedade concessionária da SCUT do Norte Litoral SA. Trata-se propriamente de uma das formas que o contrato público pode assumir, ou seja, a de "um contrato de concessão de exploração do domínio através do qual a Administração Pública transfere para um particular a gestão de bens do domínio público cujo gozo este por sua conta e risco se encarregará de proporcionar" (João Caupers e Vera Eiró; "Introdução ao Direito Administrativo" Âncora, 12.ª Edição, 2016, págs. 298.).

. O artigo 408.º do Código dos Contratos Públicos manda aplicar, a título subsidiário a regulamentação legal dos contratos de concessão de obras públicas e de serviços públicos (A concessão é uma forma de uso de coisas públicas pelos particulares com vantagens que se pretendem para estes e para a Administração. O Estado mantém aqui a propriedade da coisa objecto do contrato, mas a gestão e administração directa é transferida para a entidade privada com todos os direitos inerentes; pode ainda o Estado fiscalizar a forma como a concessionária exerce tal actividade (Cfr. José Eduardo Figueiredo "Noções Fundamentais de Direito Administrativo", Almedina, Coimbra, 2010 2ª Edição, pags. 345. Diogo Freitas do Amaral "Curso de Direito Administrativo" II, Almedina 2011, pags. 576.). E estamos no caso vertente perante uma hipótese deste teor, com vista a que o Estado pudesse dinamizar a execução do Plano rodoviário Nacional.)

Na resolução do conselho de ministros supra-aludida, capítulo II - Ponto 5, pode ler-se: "A concessão tem por objecto a concepção, projecto e construção, financiamento, conservação, exploração em regime de portagens SCUT e aumento do número de vias nos seguintes lanços de auto-estrada: a) IP 9 Nogueira-Estorãos-Ponte de Lima (IP 1/A 3); CIC 1 Viana do Castelo (IP9 Caminha. As bases de construção foram aprovadas pelo DL 234/2001 de 28/8, sendo certo que a concessionária (aqui a Ré) deverá desempenhar as actividades concessionadas em regime exclusivo (Bases II e III e de acordo com as exigências de um regular contínuo e eficiente funcionamento do serviço público (Base IV), constituindo estrita obrigação da concessionária, assegurar assistência aos utentes da auto-estrada incluindo-se na mesma a vigilância das condições de circulação, nomeadamente no que toca à sua fiscalização e prevenção de acidentes. Caso o não faça nos termos adequados, terá, à luz do preceituado na Base LXXIII do DL 234/2001 de 28/8, que responder por culpa ou risco. Na verdade a responsabilidade extracontratual da Ré filia-se na omissão do dever de manter bem conservadas e em condições de segurança os troços de auto-estradas sob pena de incorrer em responsabilidade;

À data em que ocorreu o acidente, 24 de Setembro de 2011, vigorava já a Lei 67/2007 de 31 de Dezembro.

Exarados os considerandos supra expostos, põe-se agora o problema de saber qual a jurisdição com competência para dirimir a questão que opõe as partes em conflito; se a jurisdição administrativa ou, se antes, a comum. Estatui o artigo 4º nº 1 alínea i) do ETAF que "Compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham nomeadamente por objecto a responsabilidade civil extracontratual dos sujeitos privados, aos quais seja aplicável o regime específico da responsabilidade do Estado e demais pessoas colectivas de direito público".

A competência é um pressuposto processual, isto é, uma condição necessária para que o Tribunal se possa pronunciar sobre o mérito da causa através de uma decisão de procedência ou improcedência.

O art. 211º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa estabelece o princípio da competência jurisdicional residual dos tribunais judiciais, pois ela estende-se a todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais.

Este princípio da competência residual dos tribunais judiciais no confronto com as outras ordens de tribunais está consagrado ainda no art. 64º do Código de Processo Civil e art.º 40º, nº 1 da Lei nº 62/2013, de 26 de Agosto (Lei de Organização do Sistema Judiciário).

Nos termos do art. 212º, n.º 3 da C.R.P., “compete aos tribunais administrativos (...) o julgamento das acções que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes de relações jurídicas administrativas (...)".

E, de harmonia com o disposto no art. 1º do ETAF (de 2004, aqui aplicável visto a acção ter sido proposta em 14.10.2015 e, por isso, anteriormente à entrada em vigor da alteração introduzida pelo DL nº 214-G/2015, de 02.10), os tribunais de jurisdição administrativa são competentes para administrar a justiça nos litígios emergentes das relações jurídicas administrativas.

Por seu turno estatui o artigo 4º nº 1 do mesmo diploma que compete aos tribunais de jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham nomeadamente por objecto:

« (...)

g) Responsabilidade civil extracontratual das pessoas colectivas de direito público, incluindo por danos resultantes do exercício da função política e legislativa, nos termos da lei, bem como a resultante do funcionamento da administração da justiça;

h) Responsabilidade civil extracontratual dos titulares de órgãos, funcionários, agentes e demais servidores públicos;

i) Responsabilidade civil extracontratual dos sujeitos privados aos quais seja aplicável o regime específico da responsabilidade do Estado e demais pessoas colectivas de direito público».

Constata-se, assim, ter o ETAF operado um alargamento da competência dos tribunais administrativos em matéria de responsabilidade civil das pessoas colectivas através de duas diferentes vias.

Uniformizou o âmbito da jurisdição no que se refere à responsabilidade decorrente da actividade administrativa, passando a atribuir aos tribunais administrativos as questões de responsabilidade civil que envolvam pessoas colectivas de direito público, sem atentar na clássica distinção entre actos de gestão pública e actos de gestão privada [cfr. 1ª parte da citada alínea g)]. De igual modo passou a incluir no âmbito da Jurisdição Administrativa a responsabilidade civil extracontratual de sujeitos privados aos quais seja aplicável o regime específico da responsabilidade do Estado [cfr. citada alínea i)].

Com a Reforma do Contencioso Administrativo, alterou-se, no âmbito da responsabilidade extracontratual, o critério determinante da competência material entre jurisdição comum e jurisdição administrativa, que deixou de assentar na clássica distinção entre actos de gestão pública e actos de gestão privada, passando a jurisdição administrativa a abranger, por um lado, todas as questões de responsabilidade que envolvam pessoas colectivas de direito público, independentemente da questão de saber se tais questões se regem por um regime de direito público ou por um regime de direito privado.

E, por outro lado, passou a abarcar a responsabilidade extracontratual das pessoas colectivas de direito privado às quais seja aplicável o regime específico da responsabilidade do Estado e demais pessoas colectivas de direito público (É bem certo havermos já decidido em sentido contrário propendendo para a competência da jurisdição Cível para apreciar caso semelhante. É o que se passou com o acórdão proferido neste Tribunal a 18-12-2013 no processo nº 028/13. No entanto a evolução posterior doutrinária e jurisprudencial deste STA verificou-se em sentido inverso, razão pela qual entendemos seguir de perto a orientação mais recentemente adoptada, no presente conflito. Cfr. a título de exemplo O Ac. do STJ de 1-3-2018, 1203/12.0TBPTL. G1. S1; 15-3-2018 (P.0644/11); in Bases da DGSI, de 3 de Dezembro de 2015. Apêndice de 2016-09-26 in DRE. Acórdão de 12 de Novembro de 2015, Apêndice de 2016-09-26 DRE; 12-11-2015, Proc 24/15-70.).

Daqui decorre que, para determinar a competência dos tribunais administrativos no que concerne às acções de responsabilidade civil extracontratual de pessoa colectiva de direito privado, há que verificar, apenas e tão só, se a mesma está, ou não, sujeita ao regime da responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais entidades públicas, instituído pela Lei nº 67/2007, de 31 de Dezembro.

A este respeito, ensina Carlos Alberto Fernandes Cadilha que a norma que, no plano do direito substantivo, dá concretização prática ao disposto no art. 4º, nº 1. aI. i) do ETAF é a do art. 1º, nº 5 da referida Lei, a qual estabelece que «As disposições que, na presente lei, regulam a responsabilidade das pessoas colectivas de direito público, bem como dos titulares dos seus órgãos, funcionários e agentes, por danos decorrentes do exercício da função administrativa, são também aplicáveis à responsabilidade civil de pessoas colectivas de direito privado e respectivos trabalhadores, titulares de órgãos sociais, representantes legais ou auxiliares, por acções ou omissões que adoptem no exercício de prerrogativas de poder público ou que sejam reguladas por disposições ou princípios de direito administrativo» (Cfr. A. citado Regime da responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais entidades Públicas Anotado Coimbra Editora, pag. 48, apud Conflito 24/16.).

Explicita, assim, este preceito em que termos é que as entidades privadas podem ficar subordinadas a um regime de responsabilidade administrativa e, consequentemente, quando poderão ser demandadas em acções de responsabilidade civil perante os tribunais administrativos, nos termos do citado art. 4º, n.º 1 aI. i) do ETAF, com a consequente sujeição ao contencioso administrativo.

E dele pode concluir-se, por um lado, que isso acontece sempre que tais entidades desenvolvam uma actividade administrativa, o que significa ter o legislador adoptado, no que se refere às acções de responsabilidade civil, um critério funcional de Administração Pública, à semelhança do que fez no Código de Processo nos Tribunais Administrativos.

E, por outro lado, que são dois os factores indicativos do conceito de actividade administrativa.

Um constituído pelo exercício de prerrogativas de poder público, ou seja, quando, para a execução de tarefas públicas de que sejam incumbidas, lhes sejam outorgados poderes de autoridade.

Um outro, pela vinculação do exercício da actividade a um regime de direito administrativo, isto é, quando intervenham no exercício de tarefas que sejam reguladas por disposições ou princípios de direito administrativo.

Significa isto, no dizer de Carlos Alberto Fernandes Cadilha, que a submissão de entidades privadas ao regime de responsabilidade civil da administração terá de ser definida casuisticamente em função da natureza jurídica dos poderes que tais entidades tenham exercitado em dada situação concreta ou da sua subordinação a um regime de direito administrativo.

E esta dicotomia está presente nas entidades concessionárias que são chamadas a colaborar com a Administração na execução de tarefas administrativas através de um contrato administrativo, que poderá ser um contrato de concessão de obras públicas ou de serviço público, tal como acontece com a ré, Auto-estradas Norte Litoral Sociedade concessionária AENL.

Com vista a atribuir ao tribunal administrativo a competência para julgar a acção, faz o tribunal cível apelo ao estatuído no artigo 1º nº 5 da Lei 67/2007 onde se pode ler que “As disposições que, na presente lei, regulam a responsabilidade das pessoas colectivas de direito público, bem como dos titulares dos seus órgãos, funcionários e agentes, por danos decorrentes do exercício da função administrativa, são também aplicáveis à responsabilidade civil de pessoas colectivas de direito privado e respectivos trabalhadores, titulares de órgãos sociais, representantes legais ou auxiliares, por acções ou omissões que adoptem no exercício de prerrogativas de poder público ou que sejam reguladas por disposições ou princípios de direito administrativo".


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3. DECISÃO.

Pelo exposto acorda-se em julgar competente para o julgamento da acção nº 466/15.4T8PTL, a jurisdição administrativa e fiscal.

Sem custas.

Lisboa, 5 de Julho de 2018. – Paulo Távora Victor (relator) - Maria do Céu Dias Rosa das Neves – Isabel Francisca Repsina Aleluia São Marcos – Maria Benedita Malaquias Pires Urbano – António Leones Dantas – Ana Paula Soares Leite Martins Portela.