Acórdãos T CONFLITOS

Acórdão do Tribunal dos Conflitos
Processo:013/15
Data do Acordão:09/17/2015
Tribunal:CONFLITOS
Relator:JOSÉ VELOSO
Descritores:CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO
PROPRIEDADE
JAZIGO
Sumário:Os tribunais da jurisdição administrativa são os competentes para conhecer de pedido de reconhecimento de propriedade de jazigo, situado em cemitério público, titulada por alvará emitido pela entidade autárquica, mas alegadamente com base numa declaração de cedência falsa.
Nº Convencional:JSTA000P19402
Nº do Documento:SAC20150917013
Data de Entrada:03/13/2015
Recorrente:CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO ENTRE A COMARCA DO PORTO ESTE E TAF DE PENAFIEL
AUTOR: A...
RÉU: B...
Recorrido 1:*
Votação:MAIORIA COM 2 VOT VENC
Área Temática 1:*
Aditamento:
Texto Integral: I. Relatório

1. A……………, identificado nos autos, demandou no então Tribunal Judicial da Comarca de Paços de Ferreira a sua irmã B……………. pedindo a sua condenação no seguinte:

- A reconhecer que o jazigo nº22 do Cemitério de …….., com alvará emitido pela Junta de Freguesia de …… [JF…] em 01.03.2007, é da titularidade do autor;

- A reconhecer que foi ela que lhe cedeu o uso desse jazigo por documento que assinou nessa mesma data, ou seja, 01.07.2007;

- A abster-se de enfeitar e assear esse jazigo, por falta de título e de consentimento do autor;

- A colocar nesse jazigo uma floreira em granito, e uma jarra cinzenta, que o integram.

Como causa de pedir invoca o alvará [folha 14 destes autos] em seu nome emitido pela JF… com base na declaração de cedência do jazigo, alegadamente da autoria da ré [folha 16 destes autos].

2. Por seu turno, a ré deduziu pedido reconvencional pedindo a condenação do autor a reconhecê-la como legítima titular do jazigo em causa, ou seja, o nº22 do Cemitério de ……..

Como causa de pedir invoca a falsidade da declaração de cedência do jazigo ao autor, seu irmão, com base na qual foi emitido pela JF… alvará em nome dele, e o anterior averbamento desse jazigo em seu nome, por acordo entre os irmãos.

3. Por decisão datada de 09.12.2014, o agora Tribunal Judicial da Comarca de Porto Este [Instância Local de Paços de Ferreira, Secção Cível] julgou-se incompetente em razão da matéria para o conhecimento da lide por entender que tal competência seria «do respectivo tribunal do foro administrativo» [folhas 72 a 74 destes autos].

4. Remetidos os autos ao Tribunal Administrativo e Fiscal de Penafiel, veio este, em sede de saneador, a declarar-se também materialmente incompetente por a competência caber aos «tribunais integrados na jurisdição comum» [folhas 83 a 90 destes autos].

5. O Ministério Público pronunciou-se no sentido deste conflito de jurisdição ser resolvido com a atribuição da competência material para o litígio «aos tribunais da jurisdição administrativa» [folhas 101 a 104 destes autos].

6. Colhidos que foram os «vistos» legais, importa apreciar, e decidir, o conflito negativo de jurisdição.

II. Apreciação

1. A questão colocada a este Tribunal de Conflitos reconduz-se apenas a definir se a «competência em razão da matéria» para a apreciação do litígio vertido na acção declarativa de condenação aqui em causa cabe aos tribunais da jurisdição comum ou aos tribunais da jurisdição administrativa.

O tribunal da jurisdição comum que sobre essa questão se pronunciou, arredou de si tal competência por entender, fundamentalmente, que tanto o objecto da acção como o da reconvenção versam directamente sobre uma relação jurídica de natureza administrativa, pois está em causa, em lugar cimeiro, a titularidade de parcela de terreno de cemitério, ou seja, de coisa pública, adquirida através de negócio jurídico celebrado com uma autarquia, ou seja, com a administração local.

O tribunal da jurisdição administrativa entendeu, por sua vez, e sobre a mesma questão, que a competência em razão da matéria não lhe cabia, porque apesar do objecto da disputa na acção ser um bem dominial público, administrado pela autarquia e afecto a um fim de utilidade pública, o certo é que a causa de pedir radica na cedência do uso do jazigo alegadamente celebrada entre privados, os irmãos autor e ré, razão pela qual o litígio não versa sobre uma relação jurídica de natureza administrativa.

2. Os tribunais são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo [artigo 202º da CRP], sendo que cabe aos tribunais judiciais a competência para julgar as causas «que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional» [artigos 211º, nº1, da CRP; 64º do CPC; e actual 40º, nº1, da Lei nº62/2013, de 26.08], e aos tribunais administrativos a competência para julgar as causas «emergentes de relações jurídicas administrativas» [artigos 212, nº3, da CRP, 1º, nº1, do ETAF].

Assim, na sequência das normas constitucionais e legais, e tal como vem sendo entendido, aos tribunais judiciais, ou da chamada jurisdição comum assiste uma competência genérica e residual, pois são competentes para «todas as causas» que «não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional».

Os tribunais administrativos, por seu turno, não obstante terem a competência limitada aos litígios que emerjam de «relações jurídicas administrativas», são os tribunais comuns em matéria administrativa, tendo «reserva de jurisdição nessa matéria, excepto nos casos em que, pontualmente, a lei atribua competência a outra jurisdição» [ver AC TC nº508/94, de 14.07.94, in Processo nº777/92, e AC TC nº347/97, de 29.04.97, in Processo nº139/95].

A cada uma destas duas jurisdições, comum e administrativa, caberá, portanto, um determinado «quinhão» do poder jurisdicional que, em bloco, pertence aos «tribunais», sendo que o mesmo é determinado essencialmente em função das matérias versadas nos diferentes litígios carentes de tutela jurisdicional.

E tais matérias são aferidas através de determinados «índices de competência», entre os quais sobressaem «os termos em que a acção se mostra proposta pelo autor», isto é, o pedido formulado e a causa de pedir que o fundamenta.

Doutro modo, e como tem sido dito, «a competência dos tribunais em razão da matéria, ou jurisdição, afere-se em função da configuração da relação material controvertida, ou seja, em função dos termos em que é formulada a pretensão do autor, incluindo os seus fundamentos» [por todos, AC STA de 27.09.2001, Rº47633; AC STA de 28.11.2002, Rº1674/02; AC STA de 19.02.2003, Rº47636; AC Tribunal de Conflitos de 02.07.2002, 01/02; AC Tribunal de Conflitos de 05.02.2003, 06/02; AC Tribunal de Conflitos de 23.09.04, 05/05; AC Tribunal de Conflitos 04.10.2006, 03/06; AC Tribunal de Conflitos de 17.05.2007, 05/07; AC Tribunal de Conflitos de 29.03.2011, 025/10].

3. No artigo 4º do actual ETAF, em vigor desde 01.01.2004, é feita enumeração exemplificativa de matérias litigadas cujo conhecimento pertence [alíneas do nº1] ou não pertence [alíneas do nº2 e nº3] aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal.

Entre elas se destaca, por pertinente ao presente caso, a alínea a) do seu nº1, segundo a qual «compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal» a apreciação de litígios que tenham por objecto a tutela «…dos direitos e interesses legalmente protegidos dos particulares directamente fundados em normas de direito administrativo ou fiscal ou decorrentes de actos jurídicos praticados ao abrigo de disposições de direito administrativo ou fiscal».

E nesta precisa linha de concretização de competência material estipula agora o nº2 do artigo 2º do CPTA, sobre imposições da tutela jurisdicional efectiva, que «A todo o direito ou interesse legalmente protegido corresponde a tutela adequada junto dos tribunais administrativos, designadamente para efeito de obter: a) O reconhecimento de situações jurídicas subjectivas directamente decorrentes de normas jurídico-administrativas ou de actos jurídicos praticados ao abrigo de disposições de direito administrativo».

4. A integração do presente litígio no âmbito material de uma ou outra dessas referidas jurisdições determina-se, assim, sobretudo pelo pedido formulado pelo autor e pelos fundamentos invocados para o sustentar, isto é, pelos termos em que a acção foi proposta.

Na acção declarativa em referência o seu autor pede, a título principal, que a ré seja condenada a reconhecer a sua titularidade do direito de uso do jazigo nº22 do Cemitério de …….., e fundamenta tal pretensão na concessão desse direito por deliberação da JF…, titulada por alvará emitido em 01.03.2007, com base na declaração de cedência alegadamente subscrita pela ré.

Esta última, em reconvenção, veio formular o mesmo pedido principal do autor, agora em seu favor, ou seja, ser reconhecida como titular do respectivo alvará, com fundamento na aquisição, por compra, da parcela de terreno em questão, e na falsidade da alegada declaração de cedência feita ao autor.

Os demais pedidos formulados pelo autor estão, seguramente, numa relação de dependência do referido pedido principal, razão pela qual é este a determinar a competência do tribunal [artigos 87º, nº3, do CPC então em vigor, e 82º, nº3, do actual CPC].

É pacífico, tanto na doutrina como na jurisprudência, que os cemitérios públicos são bens dominiais, possuídos e administrados pelos municípios, e freguesias, e estão afectos a um fim de utilidade pública: a inumação de cadáveres humanos em condições suficientes de sanidade e de dignidade [ver artigos 34º, nº4 alínea b), e 66º, nº2 alínea h), da Lei nº166/89, de 18.09, alterada pela Lei nº5-A/2002, de 12.01, e pela Lei nº67/2007, de 31.12].

A utilização das parcelas de terreno dos cemitérios públicos pelos particulares, para sepulturas e implantação de jazigos, depende da prévia «concessão» da respectiva entidade da administração local, e é titulada pelo «alvará» que não só a formaliza como a publicita [ver, na doutrina, Marcello Caetano, Manual de Direito Administrativo, volume II, Almedina, Coimbra, 1980, páginas 919, 937, 938, e 946 e seguintes; Vítor Manuel Lopes Dias, Cemitérios, Jazigos e Sepulturas, páginas 422 e seguintes; Pires de Lima, Propriedade e Transmissão de Jazigos, RT, Ano 44º; Cunha Gonçalves, Tratado de Direito Civil, volume III, páginas 54 e 55; ver, na jurisprudência, AC STA de 07.03.89, Rº026036; AC STA de 10.03.92, Rº029754; AC STA de 24.09.98, Rº043843; AC STA de 13.02.2001, Rº046706; AC STA de 06.03.2002, Rº046143; AC do Tribunal de Conflitos de 08.07.2003, 010/02; AC Tribunal de Conflitos de 05.05.2010, 015/09].

O direito de propriedade de particulares sobre jazigos só existe, pois, se e na medida em que exista aquele direito de uso privativo da respectiva parcela do bem do domínio público, direito este que só se constitui através daquele título especial, a concessão, que podendo embora ser «acto», configura normalmente um «contrato administrativo».

A «concessão» é, assim, e nestes casos, uma forma da autarquia local, sem se demitir do seu domínio, proporcionar aos particulares mais e melhor extracção das utilidades inerentes à coisa pública, constituindo na esfera jurídica deles um «direito ao uso privativo da parcela de terreno do cemitério», que é «um direito subjectivo público» [Freitas do Amaral, in A Utilização do Domínio Público pelos Particulares, páginas 170 e seguintes; Fernando Alves Correia, in Revista de Direito e Justiça, UCP Faculdade de Direito, página 114].

Este direito subjectivo público nasce, pois, na esfera jurídica do concessionário, tendo como fonte ou um «acto administrativo» ou um «contrato administrativo de concessão», e estando fundado, portanto, num negócio jurídico praticado ao abrigo de «disposições de direito administrativo».

Trata-se, aqui, de um direito de natureza administrativa, que tem um conteúdo diferenciado dos correspondentes direitos de natureza civil, o que resulta «do seu regime próprio, onde encontramos circunstâncias ou obrigações que lhe concedem uma tipicidade inconfundível», como a de poderem ser usados «apenas em conformidade com os Regulamentos, as autorizações e as práticas adequadas à função específica […]» [Vítor Manuel Lopes Dias, in Cemitérios, Jazigos e Sepulturas, páginas 369 e 370].

O que significa claramente que a respectiva autarquia, enquanto administração local, tem um largo controlo sobre o uso, a fruição, e a disposição de sepulturas e jazigos, sendo certo que a sua transmissão inter vivos não poderá ser «eficaz» sem o consentimento ou autorização da mesma [AC STA de 06.03.2002, Rº046143].

5. Na situação em apreço, o litígio objecto da acção declarativa de condenação traduz-se, tal como vimos, na questão do «reconhecimento» da posição jurídica subjectiva que se arrogam tanto o autor como a ré, e que, aquele, funda numa deliberação e num alvará emitidos com base na «declaração de cedência» feita, alegadamente, pela ré. Sendo que esta, por sua vez, invocando a falsidade da «cedência», que funcionou como «pressuposto de facto da emissão do alvará» a favor do autor, pretende que o jazigo remanesça na sua titularidade.

O que significa que, no fundo, a solução a dar ao litígio passará pela apreciação da validade, mesmo que o seja a título incidental, da decisão administrativa que é titulada pelo alvará emitido ao autor em 01.03.2007.

Nestes termos, como bem refere o Magistrado do Ministério Público junto deste Tribunal de Conflitos, o presente litígio emerge de uma controvérsia sobre uma relação jurídica administrativa, entendida esta como «relação regulada por normas de direito administrativo, que atribuam prerrogativas de autoridade ou imponham deveres, sujeições ou limitações especiais, a todos ou alguns dos intervenientes, por razões de interesse público, que não se colocam no âmbito de relações de natureza privada» [ver Mário Aroso de Almeida e Carlos Alberto Fernandes Cadilha, in Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos, Almedina, 2005, página 15; Marcelo Rebelo de Sousa e André Salgado de Matos, in Direito Administrativo Geral, D. Quixote, 2009, Tomo III, páginas 274 e seguintes; José Carlos Vieira de Andrade, in A Justiça Administrativa, Almedina, 8ª edição, páginas 57 e 58].

Ou então, como já vinha sendo dito, entendida como «aquela que, por via de regra, confere poderes de autoridade ou impõe restrições de interesse público à Administração perante os particulares, ou que atribui direitos ou impõe deveres públicos aos particulares perante a Administração» [ver Diogo Freitas do Amaral, in Curso de Direito Administrativo, Almedina, 2ª Reimpressão, 2003, volume II, página 518].

Certo é que o objecto do litígio vertido na acção declarativa de condenação que foi intentada pelo autor contra a ré, sua irmã, encontra pleno cabimento na já referida alínea a) do nº1 do artigo 4º do ETAF, na medida em que nela se visa, a título principal, «a tutela de direitos e interesses legalmente protegidos de particulares directamente […] decorrentes de actos jurídicos praticados ao abrigo de disposições de direito administrativo […]».

6. Nos termos de quanto fica exposto, considerando a competência residual dos tribunais judiciais [artigos 211º, nº1, da CRP; 64º do CPC; e 40º, nº1, da Lei nº62/2013, de 26.08], e em particular, no tocante à competência dos tribunais da jurisdição administrativa, o que é disposto nos artigos 212º, nº3, da CRP, 1º, nº1, e 4º, nº1 alínea a), do ETAF, impõe-se decidir o presente conflito de jurisdição mediante a atribuição a estes últimos da competência material para conhecer da acção em causa.

III. Decisão

Nestes termos, decidimos o presente «conflito de jurisdição», atribuindo aos tribunais da jurisdição administrativa a competência, em razão da matéria, para conhecer do objecto da acção declarativa interposta por A…………. contra B…………..

Sem custas.

Lisboa, 17 de Setembro de 2015. – José Augusto Araújo Veloso (relator) – José Francisco Fonseca da Paz – António Pires Henriques da Graça – Maria Benedita Malaquias Pires Urbano – Fernando Manuel de Oliveira Vasconcelos (Vencido, pelas razões abaixo referidas pela Sra. Conselheira Prazeres Beleza) – Maria dos Prazeres Couceiro Pizarro Beleza (Vencida. Entendo que a competência é dos tribunais judiciais porque a questão principal é a da propriedade do jazigo (e não da validade do alvará ou da concessão de uso).