Acórdãos T CONFLITOS

Acórdão do Tribunal dos Conflitos
Processo:02/21
Data do Acordão:02/15/2023
Tribunal:CONFLITOS
Relator:TERESA DE SOUSA
Descritores:CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO.
RESPONSABILIDADE CIVIL EXTRACONTRATUAL.
TITULAR DE ÓRGÃO DO ESTADO.
JURISDIÇÃO ADMINISTRATIVA E FISCAL
Sumário:Compete a jurisdição administrativa e fiscal conhecer da acção em que se pretende efectivar responsabilidade civil extracontratual contra titular de um órgão do Estado, por acto de que terá resultado o alegado direito à indemnização do autor e ocorrido no exercício das funções de Ministro daquele, por a acção tal como configurada pelo autor, tendo presente o pedido e a causa de pedir, ser enquadrável na previsão da alínea g) do nº 1 do art. 4º do ETAF.
Nº Convencional:JSTA000P30587
Nº do Documento:SAC2023021502
Data de Entrada:01/07/2021
Recorrente:CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO, ENTRE O TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE COIMBRA - JUÍZO DE COMPETÊNCIA GENÉRICA DE OLIVEIRA DO HOSPITAL E O TRIBUNAL ADMINISTRATIVO E FISCAL DE COIMBRA
REQUERENTE: AA
REQUERIDO: BB
Recorrido 1:*
Votação:UNANIMIDADE
Área Temática 1:*
Aditamento:
Texto Integral: Acordam no Tribunal dos Conflitos

1. Relatório
AA, com os sinais dos autos, intentou no Tribunal Judicial da Comarca de Coimbra, Juízo de Competência Genérica de Oliveira do Hospital, acção contra BB, Ministro da Agricultura, Florestas e do Desenvolvimento Rural, pedindo a condenação do Réu “a pagar ao Autor uma indemnização no valor de € 25.000,00 (vinte e cinco mil euros), acrescida de juros de mora vencidos desde a data da citação”.
Alegou, em síntese, que no exercício das suas funções governativas o Réu prestou declarações em duas ocasiões distintas – em discurso proferido numa cerimónia em Oliveira do Hospital, nas instalações da A..., e em audição na Comissão de Agricultura e do Mar da Assembleia da República – utilizando expressões que, atentos o teor e o contexto em que foram proferidas com a agravante da amplitude mediática, considera objectivamente ofensivas do seu bom nome e honra sentindo-se, em suma, ofendido, humilhado e diminuído na sua consideração social.
Mais alega que esteve presente na cerimónia em Oliveira do Hospital como Presidente da associação sem fins lucrativos que fundou com o objectivo de apoiar as vítimas dos incêndios. Nesta cerimónia, onde se deslocou o Réu no exercício das suas funções governativas e onde estiveram também presentes diversos autarcas, empresários e jornalistas, o Réu proferiu um discurso em que utilizou expressões que entende terem-lhe sido dirigidas e que considera ofensivas. Refere ainda que o Réu tornou a fazer novas ofensas públicas ao seu bom nome, em plena sessão da Comissão da Agricultura e do Mar no Parlamento, com transmissão no Canal do Parlamento.
Sustenta, ainda, que a ofensa destes direitos de personalidade, que cause danos não patrimoniais, é merecedora de tutela jurídica em sede de responsabilidade civil por factos ilícitos, nos termos conjugados do disposto nos artigos 496º, n.º 1, 484º e 70º do Código Civil (CC).
O Réu contestou e, além do mais, arguiu a excepção da incompetência material do Tribunal. O Autor pugnou pela competência do Tribunal defendendo a improcedência da excepção.
Em 20.09.2020, no Juízo de Competência Genérica de Oliveira do Hospital foi proferida decisão a julgar o Tribunal incompetente em razão da matéria, absolvendo o Réu da instância.
Remetidos os autos ao Tribunal Administrativo e Fiscal de Coimbra (TAF de Coimbra), foi aí proferida decisão em 09.11.2020 a declarar a incompetência em razão da matéria para conhecer do objecto dos autos, absolvendo o Réu da instância.
Suscitada a resolução do conflito negativo de jurisdição, foram os autos remetidos a este Tribunal dos Conflitos.
Neste Tribunal dos Conflitos as partes foram notificadas para efeitos do disposto no nº 3 do art. 11º da Lei nº 91/2019.
A Exma. Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer no sentido da atribuição da competência para o conhecimento do litígio ao Tribunal Administrativo e Fiscal de Coimbra.

2. Os Factos
Os factos relevantes para a decisão são os enunciados no Relatório.

3. O Direito
O presente Conflito Negativo de Jurisdição vem suscitado entre o Tribunal Judicial de Coimbra, Juízo de Competência Genérica de Oliveira do Hospital, e o TAF de Coimbra.
Entendeu o Juízo de Competência Genérica de Oliveira do Hospital que “O Autor peticiona uma indemnização por danos não patrimoniais por violação de direitos de personalidade, concretamente, alega ter sido ofendido e lesado no seu bom nome, por expressões utilizadas pelo réu na intervenção que efetuou na qualidade de Ministro da Agricultura, Florestas e Desenvolvimento Rural.
(…) Foi nesse contexto e no exercício de funções públicas que se compreendem (integram) as declarações proferidas pelo Sr. Ministro, que o Autor entende lesivas do seu bom nome, pois que ao falar publicamente enquanto Ministro da Agricultura e especificamente sobre medidas que o Governo estaria a promover com vista a ressarcir os respetivos prejuízos causados pelos incêndios, o Sr. Ministro não teve uma atuação estritamente pessoal, mas sim funcional, não deixando de sê-lo pelo facto de ter adotado um comportamento alegadamente lesivo de direitos fundamentais de um qualquer cidadão.
Ademais, todos os factos lesivos imputados ao Réu, ocorreram (alegadamente) enquanto este se achava investido nas suas funções ministeriais, como aliás expressou o Autor, em intervenções que efetuou na qualidade de Ministro da Agricultura, Florestas e Desenvolvimento Rural.
Inexistem, pois, dúvidas de que o Autor pretende, através do pedido indemnizatório, efetivar a responsabilidade civil extracontratual do Estado por facto ilícito (das entidades públicas e dos seus titulares) que imputa ao Réu Sr. Ministro.”.
Por sua vez o TAF de Coimbra considerou que “(…) estamos, como se disse, perante uma ação tendente à efetivação da responsabilidade civil extracontratual do R. pelos danos morais por este provocados ao A., por ocasião do exercício das funções de Ministro da Agricultura, Florestas e Desenvolvimento Rural, decorrentes da ofensa à sua honra e ao seu bom nome. (…) O art.º 4.º, n.º 1, alínea g), do ETAF remete-nos, desde logo, para o disposto na Lei n.º 67/2007, de 31/12, em cujo anexo foi aprovado o regime da responsabilidade civil extracontratual do estado e demais entidades públicas. Ora, segundo o art.º 1.º deste regime, “a responsabilidade civil extracontratual do Estado e das demais pessoas coletivas de direito público por danos resultantes do exercício da função legislativa, jurisdicional e administrativa rege-se pelo disposto na presente lei, em tudo o que não esteja previsto em lei especial” (n.º 1). (…) Acresce que, “sem prejuízo do disposto em lei especial, a presente lei regula também a responsabilidade civil dos titulares de órgãos, funcionários e agentes públicos por danos decorrentes de ações e omissões adotadas no exercício das funções administrativa e jurisdicional e por causa desse exercício” (n.º 3).
Como decorre expressamente do teor literal dos normativos acabados de transcrever, os mesmos não deixam de ressalvar e salvaguardar determinados regimes especiais que se mostrem previstos noutros diplomas legais. É o que sucede, por exemplo, com o regime resultante da Lei n.º 34/87, de 16/07, diploma que determina os crimes de responsabilidade de “titulares de cargos políticos ou de altos cargos públicos que sejam cometidos no exercício das suas funções, bem como as sanções que lhes são aplicáveis e os respetivos efeitos, o que se revela, aliás, em consonância com o facto de o art.º 1.º do regime anexo à Lei n.º 67/2007, de 31/12, acima citado, não conter qualquer alusão ou referência expressa à possibilidade de os titulares de cargos políticos poderem ser judicialmente demandados por responsabilidade solidária com o Estado ou em via de direito de regresso, pelos atos ilícitos que lhes possam ser diretamente imputados - tal possibilidade encontra-se salvaguardada por regime especial.
Neste contexto, e de acordo com o art.º 3.º daquela Lei n.º 34/87, de 16/07, “são cargos políticos, para os efeitos da presente lei: (...) d) o de membro do Governo”. Não temos, portanto, dúvidas de que o R., enquanto Ministro da Agricultura, Florestas e Desenvolvimento Rural, é titular de um cargo político, sendo-lhe, por isso, aplicável o regime especial vertido na aludida Lei n.º 34/87, de 16/07. (…)
Por conseguinte, visando o A. efetivar o seu direito de indemnização com base em responsabilidade aquiliana imputada, a título pessoal, a um titular de cargo político, impõe-se concluir que os tribunais competentes para conhecer do litígio que constitui o objeto do presente processo são os tribunais judiciais/comuns.
E acrescenta haver “uma segunda ordem de razões que sempre determinaria que a competência para conhecer a presente ação fosse atribuída aos tribunais comuns, ainda que se considerasse que à responsabilidade civil que o A. aqui pretende efetivar fosse aplicável o regime previsto no anexo à Lei n.º 67/2007, de 31/12.”, por estar em causa na acção “a responsabilidade civil emergente de declarações públicas (alegadamente lesivas) que foram proferidas por um titular de um cargo político, por ocasião, é certo, do exercício das suas funções, mas que se prendem com uma atuação estritamente pessoal e não funcional”.

Vejamos.
Cabe aos tribunais judiciais a competência para julgar as causas “que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional” [artigos 211º, nº 1, da CRP, 64º do CPC e 40º, nº 1, da Lei nº 62/2013, de 26/08 (LOSJ)], e aos tribunais administrativos e fiscais a competência para julgar as causas “emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais” [artigos 212.º, n.º 3, da CRP, 1.º, n.º 1, do ETAF].
A competência dos tribunais administrativos e fiscais é concretizada no artigo 4.º do ETAF com delimitação do “âmbito da jurisdição” mediante uma enunciação positiva (n.ºs 1 e 2) e negativa (nºs 3 e 4).
Tem sido reafirmado por este Tribunal, e constitui entendimento jurisprudencial e doutrinário consensual, que a competência material do tribunal se afere em função do modo como o Autor configura a acção e que a mesma se fixa no momento em que a acção é proposta. Como se afirmou no Acórdão deste Tribunal de 1.10.2015, Proc. nº 08/14 “A competência é questão que se resolve de acordo com os termos da pretensão do Autor, aí compreendidos os respectivos fundamentos e a identidade das partes, não importando averiguar quais deviam ser os termos dessa pretensão, considerando a realidade fáctica efectivamente existente ou o correcto entendimento do regime jurídico aplicável. O Tribunal dos Conflitos tem reafirmado constantemente que o que releva, para o efeito do estabelecimento da competência, é o modo como o Autor estrutura a causa e exprime a sua pretensão em juízo”.
Na presente acção, o Autor alega ter sido ofendido e lesado no seu bom nome, por afirmações e expressões utilizadas pelo Réu nas intervenções que efectuou, na qualidade de Ministro da Agricultura, Florestas e Desenvolvimento Rural, numa cerimónia em que participou em Oliveira do Hospital bem como na audição perante a Comissão de Agricultura e do Mar da Assembleia da República.
Pretende, assim, com o pedido de uma indemnização por danos morais, efectivar a responsabilidade civil extracontratual por facto ilícito que imputa ao Réu.
Ora, nos termos da alínea g) do nº 1 do art. 4º do ETAF, compete à jurisdição administrativa a apreciação de litígios que tenham por objecto questões relativas a “Responsabilidade civil extracontratual dos titulares de órgãos, funcionários, agentes, trabalhadores e demais servidores públicos, incluindo ações de regresso”.
Os titulares de órgãos são as pessoas individuais que desempenham funções nos órgãos da Administração Pública sendo que o “Governo é, do ponto de vista administrativo, o órgão principal da administração central do Estado, incumbido do Poder executivo” (cfr. Freitas do Amaral, Curso de Direito Administrativo, 2.ª ed., vol. I, p. 231).
Os factos lesivos alegadamente imputados ao Réu ocorreram em intervenções que este efectuou na qualidade de Ministro da Agricultura, Florestas e Desenvolvimento Rural, portanto enquanto titular do órgão e no desempenho da função administrativa.
Segundo Vieira de Andrade “a jurisdição administrativa só conhece das questões de responsabilidade civil por actos praticados pelos servidores públicos enquanto tais e, portanto, em conexão, pelo menos aparente, com o exercício de funções administrativas” (in A Justiça Administrativa, 2014, 13ª ed., p. 108.). Também Mário Esteves de Oliveira e Rodrigo Esteves de Oliveira, in Código de Processo nos Tribunais Administrativos”, vol. I, p. 60, anotam que “são deduzidos perante a jurisdição administrativa (…) os litígios respeitantes à responsabilidade civil dos funcionários, dos agentes, dos titulares de órgãos e dos demais servidores das pessoas colectivas de direito público (…) qualquer que seja o regime da prestação do seu trabalho ou do exercício do seu cargo, e qualquer que seja a natureza da actividade causadora do dano, desde que ocorra no exercício das suas funções e por causa delas (v. arts. 22.º e 271.º/1 da CRP). Se, porém, se tratar de um mero acto pessoal de um servidor público, a competência para a respectiva acção de responsabilidade já pertence aos tribunais judiciais”.
Este Tribunal dos Conflitos, em situação com alguma afinidade, afirmou no acórdão de 20.12.2012, Proc. 06/12: “privilegiando o factor de incidência subjectiva, centrado na personalidade pública da entidade em que se integram, deve interpretar-se a norma do art. 4º/1/h) [actualmente alínea g)] com o alcance de que o conhecimento das acções para efectivação de responsabilidade civil extracontratual dos titulares de órgãos, funcionários, agentes e demais servidores públicos das pessoas colectivas de direito público, por danos ocorridos no exercício das suas funções e por causa delas (art. 271º/1 CRP), qualquer que seja o regime da prestação do seu trabalho e qualquer que seja a natureza da actividade causadora do dano, está atribuído à jurisdição administrativa.
Aqui chegados, delimitado, nos termos expostos, o âmbito da jurisdição administrativa para as questões de responsabilidade civil extracontratual dos titulares dos órgãos, funcionários, agentes e demais servidores, das pessoas colectivas públicas, incluindo no seu perímetro toda a responsabilidade pelos actos funcionais dos mesmos, independentemente de relevarem da gestão pública ou da gestão privada daquelas, isto é, deixando de fora apenas a responsabilidade por actos pessoais sem qualquer conexão com o exercício da função, haveremos de concluir que, no caso em apreço, tal como decidiu o acórdão recorrido, a competência para apreciar a acção principal a instaurar pela Requerente e, por consequência, do presente procedimento cautelar, está cometida aos tribunais administrativos.
Importa salientar que não tem aplicação no caso a Lei nº 34/87, de 16 de Julho, referida na decisão do TAF de Coimbra, a qual “determina os crimes de responsabilidade que titulares de cargos políticos cometam no exercício das suas funções, bem como as sanções que lhes são aplicáveis e os respetivos efeitos”. Na verdade, os crimes de responsabilidade constituem uma categoria de responsabilidade criminal especial reservada aos titulares de cargos políticos e não é disso que se trata neste processo.
O Réu é titular de um órgão e o acto de que terá resultado o alegado direito à indemnização do Autor ocorreu no exercício das suas funções de Ministro, como aliás refere o Autor. Assim, a acção tal como configurada pelo Autor, tendo presente o pedido e a causa de pedir, é enquadrável na previsão da alínea g) do nº 1 do art. 4º do ETAF.
Deste modo, tem de concluir-se que é a jurisdição administrativa e fiscal a competente para conhecer da acção.
Pelo exposto, acordam em julgar competente para apreciar a presente acção o Tribunal Administrativo e Fiscal de Coimbra.
Sem custas.

Lisboa, 15 de Fevereiro de 2023. - Teresa Maria Sena Ferreira de Sousa (relatora) - Maria dos Prazeres Couceiro Pizarro Beleza.