Acórdãos T CONFLITOS

Acórdão do Tribunal dos Conflitos
Processo:05/21
Data do Acordão:11/08/2022
Tribunal:CONFLITOS
Relator:TERESA DE SOUSA
Descritores:CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO
Sumário:
Nº Convencional:JSTA000P30163
Nº do Documento:SAC2022110805
Data de Entrada:02/12/2021
Recorrente:CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO, ENTRE TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DO PORTO, JUÍZO CENTRAL CÍVEL DO PORTO JUIZ 3 E O TRIBUNAL ADMINISTRATIVO E FISCAL DO PORTO UO1
AUTOR: GESTÃO DE OBRAS PÚBLICAS DA CÂMARA MUNICIPAL DO PORTO EMPRESA MUNICIPAL.
RÉU: A........, S.A. E OUTROS.
Recorrido 1:*
Votação:UNANIMIDADE
Área Temática 1:*
Aditamento:
Texto Integral: Conflito nº 5/21

Acordam no Tribunal dos Conflitos

1. Relatório
Gestão de Obras Públicas da Câmara Municipal do Porto, EEM, intentou no Tribunal Judicial da Comarca do Porto, Juízo Central Cível do Porto, acção declarativa de condenação contra A……….., SA, pedindo a condenação no pagamento da quantia de €160.282,02, bem como juros moratórios vencidos à taxa de 17,6% no montante de €25.350,03 e vincendos, à mesma taxa, até integral pagamento (redução do pedido a fls. 101 e sgs.).
Em síntese, a Autora alega que em 05.12.2008 celebrou com a empresa B………., Lda. dois contratos de empreitada de obras públicas e que, para garantia do cumprimento das suas obrigações no âmbito destes contratos de empreitada, foram emitidas e prestadas pelo Banco Réu as garantias bancárias, sem prazo e à primeira solicitação, nos valores de €48.006,14, €48.579,88, €48.006,14 e €48.579,88. Porque no âmbito dos contratos de empreitada a B………… não cumpriu com as suas obrigações, a Autora, no termo dos processos judiciais com efeito suspensivo que correram entre si e a sociedade empreiteira, solicitou à Ré o pagamento imediato das quantias tituladas pelas garantias bancárias, o que esta não satisfez. Sustenta ainda que a Ré se obrigou a pagar aquelas importâncias, de forma incondicional e irrevogável, à primeira solicitação da Autora.
A Ré contestou e deduziu incidente de intervenção acessória provocada, que foi admitido. Os intervenientes contestaram e foi arguida a incompetência material do Tribunal, tendo o Autor replicado a sustentar a competência.
Em 10.02.2020, no Juízo Central Cível do Porto, foi proferida decisão a julgar o tribunal incompetente em razão da matéria por considerar que o conhecimento da matéria relativa ao litígio cabe na previsão do nº 1, alíneas a) e e) do artigo 4° do ETAF.
Remetidos os autos ao Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto (TAF do Porto), foi aí proferida sentença em 13.01.2021 a declarar a incompetência em razão da matéria com fundamento de não estar em causa nos autos um litígio emergente de uma relação jurídica administrativa mas antes uma questão de direito privado.
Suscitada a resolução do conflito negativo de jurisdição, foram os autos remetidos a este Tribunal dos Conflitos.
Neste Tribunal dos Conflitos as partes foram notificadas para efeitos do disposto no nº 3 do artigo 11º da Lei nº 91/2019. A Autora veio defender a competência dos tribunais judiciais para a resolução do litígio em discussão.
O Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido da atribuição da competência aos tribunais da jurisdição comum, no caso ao Tribunal Judicial da Comarca do Porto, Instância Central Cível.

2. Os Factos
Os factos relevantes para a decisão são os enunciados no Relatório.
3. O Direito
O presente Conflito Negativo de Jurisdição vem suscitado entre o Tribunal Judicial do Porto, Juízo Central Cível do Porto e o Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto, Juízo dos Contratos Públicos.
Entendeu o Juízo Central Cível do Porto que "(...) estamos perante a apreciação de um litígio que tem por objecto a execução de uma caução prestada no âmbito de um contrato de empreitada de obra pública a respeito do qual há lei específica que o submete, ou que admite seja submetido, a um procedimento pré-contratual regulado por normas de direito público, constituindo o litígio uma relação jurídica administrativa, cuja competência para decidir está atribuída pelo art. 4° aI. a) e e) do ETAF aos Tribunais Administrativos".
Por sua vez o TAF do Porto considerou que "(...) é manifesto que entre a A. e a R. não existe nenhuma relação jurídica administrativa que determinasse a competência deste Tribunal, tão pouco está em causa nos autos uma questão reportada à validade e execução de contratos administrativos ou de quaisquer outros contratos celebrados nos termos da legislação sobre contratação pública, por pessoas coletivas de direito público ou outras entidades adjudicantes.
Na realidade, o que está em causa é a relação entre o garante (banco) e o beneficiário (credor principal) da garantia, relação essa na qual a entidade administrativa não assume quaisquer poderes de autorictas, constituindo uma mera relação de direito privado e que independente em relação ao contrato-base. Note-se que a circunstância de o contrato-base, em que são partes o dador da ordem, o mandante da garantia, e o beneficiário, se tratar de um contrato administrativo, não altera a natureza privada da relação estabelecida entre a A. e R. Tão pouco a circunstância de a questão invocada pela R. - quanto à caducidade das garantias - convocar um regime de direito administrativo, determina que, para efeitos de competência, se trate de um litígio emergente de relações jurídicas administrativas e fiscais".
Vejamos.
Cabe aos tribunais judiciais a competência para julgar as causas “que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional” [artigos 211.°, n.º1, da CRP; 64.° do CPC; e 40.°, n.º1, da Lei n.º 62/2013, de 26/08 (LOSJ)], e aos tribunais administrativos e fiscais a competência para julgar as causas "emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais" [artigos 212.°, n.º 3, da CRP, 1.º, n.º1, do ETAF].
A competência dos tribunais administrativos e fiscais é concretizada no artigo 4° do ETAF com delimitação do "âmbito da jurisdição" mediante uma enunciação positiva (nºs 1 e 2) e negativa (nºs 3 e 4).
Tem sido reafirmado por este Tribunal, e constitui entendimento jurisprudencial e doutrinário consensual, que a competência material do tribunal se afere em função do modo como o A. configura a acção e que a mesma se fixa no momento em que a acção é proposta. Como se afirmou no Ac. deste Tribunal de 1.10.2015, Proc. 08/14 "A competência é questão que se resolve de acordo com os termos da pretensão do Autor, aí compreendidos os respectivos fundamentos e a identidade das partes, não importando averiguar quais deviam ser os termos dessa pretensão, considerando a realidade fáctica efectivamente existente ou o correcto entendimento do regime jurídico aplicável. O Tribunal dos Conflitos tem reafirmado constantemente que o que releva, para o efeito do estabelecimento da competência, é o modo como o Autor estrutura a causa e exprime a sua pretensão em juízo".
É, pois, a partir da análise da forma como a causa se mostra estruturada que iremos encontrar a resposta à questão de saber qual é a jurisdição competente para o conhecimento da presente acção.
A Autora pede a condenação da Ré no pagamento de quantias tituladas por garantias bancárias autónomas, à primeira solicitação, que a Ré prestou a seu favor, a pedido da B………. S.A, empresa com quem a Autora celebrou contratos de empreitada de obras públicas, para caucionar o cumprimento das obrigações assumidas no âmbito daqueles contratos.
Como se diz no acórdão do STJ de 23.06.2016, Proc. 414/14.9TVLSB.L1.S1, «a garantia autónoma (. . .) é uma forma contratual típica quanto à sua existência, atípica quanto à sua regulamentação, âmbito em que vigora o princípio da liberdade contratual (artº 405º do Código Civil) e que assenta, em regra, num triângulo cujas faces correspondem a três relações contratuais distintas: uma primeira referente ao contrato-base, também chamado principal, ou seja o celebrado entre o credor garantido e o devedor (ordenante ou ordenador), do qual decorrem as obrigações garantidas; uma segunda relativa ao contrato concluído entre o devedor desse primeiro contrato e um garante, normalmente, um banco, pelo qual este se vincula, mediante uma retribuição (a comissão) a prestar uma garantia ao credor (o beneficiário); e finalmente uma terceira respeitante ao contrato de garantia autónoma, propriamente dito, estabelecido entre o garante (o banco) e o credor (o beneficiário) em que o primeiro se obriga a pagar ao segundo uma soma pecuniária determinada, uma vez comprovado o incumprimento do contrato principal ou base (no caso de garantia autónoma simples) ou de imediato, quando este simplesmente o interpele a realizar essa prestação (no caso de garantia automática à primeira solicitação), mas renunciando, desde logo, o garante, em qualquer caso, a opor ao beneficiário (credor no contrato-base) quaisquer excepções relativas ao contrato fundamental.
A autonomização em relação ao contrato-base é um dos traços distintivos da garantia bancária e uma das características que lhe conferem autonomia, que na fiança não existe por esta ser caracterizada pela acessoriedade, sendo que essa autonomia é bem mais patente quando a garantia deve ser prestada à primeira solicitação, "on first demand"».
Apesar da existência de contratos de empreitada de obras públicas celebrados entre a Autora e a sociedade empreiteira, o presente litígio não respeita ao cumprimento desse contrato nem de contrato celebrado nos termos da legislação sobre contratação pública, mas, antes, ao cumprimento do contrato de garantia autónoma, propriamente dito, estabelecido entre o garante (o banco) e o credor (ou beneficiário). E, entre estes - garante e credor - existe uma mera relação de direito privado que é independente do contrato base.
Não estamos, por isso, perante um litígio subsumível na alínea e) do nº 1 do art. 4° do ETAF, ou emergente de uma relação jurídica administrativa para cujo conhecimento seja competente a jurisdição administrativa. Ora, sendo da competência dos tribunais judiciais conhecer e decidir as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional, conclui-se que a competência material para conhecer da presente acção cabe à jurisdição comum (cfr., em casos similares, o Acórdão do Tribunal dos Conflitos de 05.11.2013, Proc. 029/12 e, entre outros, o Acórdão do TCA Norte de 30.11.2012, Proc. 00004/09.8BEPRT, disponíveis em www.dgsi.pt).
Pelo exposto, acordam em julgar competente para apreciar a presente acção o Tribunal Judicial da Comarca do Porto, Juízo Central Cível do Porto, Juiz 3.
Sem custas.

Lisboa, 8 de Novembro de 2022. - Teresa Maria Sena Ferreira de Sousa (relatora) - Maria dos Prazeres Couceiro Pizarro Beleza.