Acórdãos T CONFLITOS

Acórdão do Tribunal dos Conflitos
Processo:055/13
Data do Acordão:02/27/2014
Tribunal:CONFLITOS
Relator:SOUTO DE MOURA
Descritores:RECURSO PARA O TRIBUNAL DE CONFLITOS.
CONTRATO DE TRABALHO.
JURISDIÇÃO COMUM.
COMPETÊNCIA EM RAZÃO DA MATÉRIA.
Sumário:CONTRATO DE TRABALHO TEMPORÁRIO *
Nº Convencional:JSTA00068612
Nº do Documento:SAC20140227055
Data de Entrada:10/09/2013
Recorrente:A..... E OUTROS, NO CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO, ENTRE O TRIBUNAL DO TRABALHO DO PORTO E O TRIBUNAL ADMINISTRATIVO E FISCAL DO PORTO
Recorrido 1:*
Votação:UNANIMIDADE
Meio Processual:CONFLITO.
Objecto:NEGATIVO JURISDIÇÃO TT PORTO - TAF PORTO
Decisão:DECL COMPETENTE TT PORTO.
Área Temática 1:DIR ADM CONT - CONTRATO.
Área Temática 2:DIR JUDIC - ORG COMP TRIB.
Legislação Nacional:CONST76 ART211 N1 ART212 N3.
ETAF02 ART1 ART4 N3 D.
LOFTJ99 ART18 N1 ART85 B.
CPC96 ART66 ART115 ART117 N1.
CPTA02 ART1 ART2 N2 G.
CTRAB09.
L 19/2007 DE 2007/05/22 ART18 ART21.
L 59/2008 DE 2008/09/11.
L 12-A/2008 DE 2008/02/27.
Jurisprudência Nacional:AC TCF PROC06/02 DE 2003/02/05.; AC TCF PROC0371/02 DE 2002/02/27.; AC TCF PROC0375/04 DE 2004/03/09.; AC TCF PROC013/05 DE 2006/01/19.; AC TCF PROC029/10 DE 2011/05/05.; AC TCF PROC01/08 DE 2008/05/21.; AC TCF PROC08/10 DE 2010/06/09.; AC TCF PROC025/10 DE 2011/03/29.
Aditamento:
Texto Integral: Conflito nº. 55/13-70.

A…….., B……, C….. e D….. interpuseram no TRIBUNAL ADMINISTRATIVO E FISCAL DO PORTO acção administrativa comum, sob a forma ordinária, que deu origem ao Proc. n.º 1644/12.3BEPRT, contra o INSTITUTO PORTUGUÊS DO SANGUE, IP. (doravante IPS).
O Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto declarou-se materialmente incompetente para apreciar e para decidir as pretensões formuladas pelos Autores e determinou a remessa dos autos para o TRIBUNAL DE TRABALHO DO PORTO (fls. 857 a 863), o qual, por seu turno, também declinou essa competência, vindo, em simultâneo, a considerar aquele tribunal administrativo como o competente em razão da matéria, para dirimir o litígio em causa que opõe as partes (fls. 884 a 888).
Foi solicitada, oficiosamente, pelo Tribunal de Trabalho do Porto, a resolução do presente conflito de jurisdição, ao abrigo do disposto no n.º 1 do art. 117.º do CPC, pelo que foi ordenada a remessa dos autos para este Tribunal de Conflitos (fls. 892).


1. PARECER DO Mº Pº

O Exmo. Procurador-Geral Adjunto neste Tribunal de Conflitos emitiu, a fls. 900 a 904, parecer do seguinte teor (transcrição):

1. Suscita-se nos presentes autos a resolução da conflito negativo de jurisdição entre o Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto e o Tribunal de Trabalho do Porto (Juízo Único, 3ª Secção), por ambos os tribunais se terem declarado incompetentes, em razão da matéria, e se atribuírem reciprocamente a competência para o julgamento da ação administrativa comum intentada pelos AA neles identificados contra o Instituto Português do Sangue, I.P.

2. Constitui pacifico entendimento jurisprudencial e doutrinário que a competência em razão da matéria do tribunal se afere pela natureza da relação jurídica, tal como ela é configurada pelo autor na petição inicial, ou seja, no confronto entre a pretensão deduzida (pedido), independentemente do seu mérito, e os respetivos fundamentos (causa de pedir).

Na ação em questão, os AA. pedem (1) a declaração da nulidade dos contratos de utilização celebrados entre o R. e as empresas de trabalho temporário, com quem celebraram contratos de trabalho temporário, (2) o reconhecimento aos AA. da qualidade de trabalhadores do R., ao abrigo de contratos de trabalho sem termo, (3) a declaração da ilicitude dos despedimentos/cessação dos contratos de trabalho, (4) a condenação do R. a reintegrar os AA., (5) a condenação do R. a pagar aos AA. as remunerações que deixaram de auferir desde a data dos despedimentos/cessação dos contratos de trabalho e (6) o reconhecimento da existência de créditos laborais a favor dos AA e juros de mora.

Em síntese, os AA. fundamentam tais pedidos na inexistência do motivo que justificou a celebração dos contratos de utilização de trabalho temporário, em violação das pertinentes disposições do Código do Trabalho e da Lei nº 19/2007, de 22 de Maio, em particular do seu artº 18º e, consequentemente, na prestação ininterrupta de atividade ao serviço do R. sob o regime de contrato de trabalho sem termo, de acordo com a disposto nos art. ºs 19º, nºs 3 e 21º da mesma lei.

A relação jurídica controvertida assim caracterizada pelos AA. na petição inicial é manifestamente regulada por normas de direito privado respeitantes ao regime do contrato de trabalho sem termo cuja existência pretendem ver reconhecida e tutelada.

As suas pretensões emergem da alegada existência de um contrato individual de trabalho de que se arrogam ser titulares e traduzem-se no reconhecimento de direitos que a lei concede aos trabalhadores vinculados a este tipo de contrato.

Não se mostra configurada uma relação de trabalho subordinada de natureza administrativa pois, como bem se refere na douta sentença do TAF do Porto, os AA não alegam a existência de uma relação contratual que se subsuma a qualquer norma de direito público, nomeadamente as normas que regulam o contrato de trabalho em funções públicas, em consonância com o regime jurídico aprovado pela Lei nº 12-A/2008, de 27 de fevereiro e pela Lei nº 59/2008, de 11 de setembro. Aliás, nenhum contrato de trabalho se mostra celebrado entre o R., na qualidade de entidade empregadora pública, e as AA. através do qual essa relação de natureza administrativa se pudesse ter estabelecido.

Consequentemente, impõe-se considerar que o litígio em causa não emerge de uma relação jurídica administrativa, entendida esta como “uma relação regulada por normas de direito administrativo, que atribuam poderes de autoridade ou imponham deveres, sujeições ou limitações especiais, a todos ou alguns dos intervenientes, por razões de interesse público, que não se colocam no âmbito de relações de natureza jurídico-privada”.

E não procederá em contrário, o entendimento perfilhado na douta sentença do Tribunal de Trabalho do Porto no sentido de que os contratos de trabalho dos AA foram convertidos sem dependência de quaisquer formalidades em contratos de trabalho em funções públicas, sendo-lhes aplicável o regime resultante das Leis nº 59/2008 e nº 12- A/2008.

Na verdade, relevante para a questão da competência é o facto de os AA. caracterizarem o vínculo jurídico que os liga ao R. como uma relação laboral de direito privado, por via de contratos de trabalho sem termo, de que emerge a sua pretensão de reconhecimento de direitos estabelecidos por lei para contratos do mesmo tipo.

Mas, conforme se decidiu, em situação próxima, no douto acórdão deste TC, de 3/09/2004, Proc. nº 0375/04, saber se existe relação jurídica dessa natureza e dela emergem os direitos que os AA. se arrogam é questão que já não respeita ao problema da competência, mas ao mérito da pretensão (Cf., no mesmo sentido, os acórdãos deste TC de 27/2/2002, proc. nº 0371/02; de 2/5/2003, proc nº 06/02; de 19/1/2006, proc. nº 13/05 e de 5/5/2011, proc. nº 029/10.).

3. Em face do exposto, deverá, em nosso parecer, resolver-se o presente conflito negativo de jurisdição, atribuindo-se aos tribunais judiciais e, dentro desta ordem jurisdicional aos tribunais do trabalho, a competência para conhecer e julgar a ação, nos termos dos art.ºs 211º, nº 1 e 212º, nº 3 da CRP; 18º, nº 1 e 85º, b) da LOFTJ; 66º do CPC e 1º e 4º, nº3, d) ambos do ETAF.”

2. CONFIGURAÇÃO DO CONFLITO:

2. 1. Conforme já se deixou assinalado, os AA interpuseram acção judicial no Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto, que denominaram “acção administrativa comum sob a forma de processo ordinário”, pedindo, muito sinteticamente, que sejam declarados nulos os contratos de utilização celebrados entre as várias empresas de trabalho temporário e o Réu IPS, que todos os AA sejam reconhecidos como trabalhadores do Réu em regime de contrato de trabalho sem termo, que seja declarada a ilicitude dos seus despedimentos e que, em consequência, lhes sejam reconhecidos os direitos a serem reintegrados e a receberem as remunerações que deixaram de auferir desde a data da cessação ilícita desses contratos de trabalho até ao trânsito em julgado da sentença.

Para tanto alegaram, em suma, que todos eles prestaram atividade profissional no Centro Regional de Sangue do Porto, do IPS. Os três primeiros AA como assistentes operacionais, competindo-lhes fundamentalmente a condução, conservação e manutenção de condições de higiene dos veículos, e a quarta A, numa primeira fase, como auxiliar de apoio, e num momento posterior, como assistente técnica, assegurando a promoção da dádiva de sangue por conta do IPS.

Referem que sempre prestaram trabalho sob a direção do Réu, que foi sempre o IPS a definir as escalas de serviço, a indicar os horários de trabalho, a dar instruções aos Autores sobre a forma de exercício das funções de cada um, a exercer o poder disciplinar ou a indicar quem deles podia gozar férias.

Os Autores deixaram ainda expresso, com particular relevo, o entendimento de que são nulos os contratos de utilização que então celebraram, por, no caso vertente, não estarem preenchidos os muito restritos requisitos para a admissibilidade legal de trabalho temporário, bem como que, por tal motivo, deve considerar-se que o trabalho foi por eles prestado ao IPS, mais em particular ao Centro Regional de Sangue do Porto, em regime de contrato de trabalho sem termo.

Na verdade, os AA responderam a anúncio de trabalho feito pelo Réu, os contratos destinaram-se a assegurar a realização normal do trabalho do serviço em questão e não, por exemplo, para responder a qualquer situação de acréscimo de trabalho. Daí que a intermediação de empresas de utilização de trabalho temporário não tivesse passado de um estratagema para o IPS fugir ao estabelecimento de um vínculo laboral definitivo, com os AA, e daí que devam ser tidos por nulos os contratos celebrados com as empresas de trabalho temporário.

2.2. Pese embora a ação judicial lhe tenha sido dirigida (deu origem ao Proc. n.º 1644/12.3 BEPRT), o Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto entendeu, mediante despacho proferido a 05-02-2013 (cf. fls. 857 a 863), ser materialmente incompetente para proceder ao julgamento das pretensões formuladas pelos AA, que enquadrou no âmbito do direito privado, concretamente do direito laboral, em virtude de estar em causa a questão controvertida da existência de contratos de trabalho sem termo, vinculativos para AA e Réu, vindo a determinar, em consequência, a remessa dos autos, para apreciação e para decisão, ao Tribunal de Trabalho do Porto.

Conforme se ajuizou, de modo mais expressivo, no aludido despacho: “(...) os Autores ao pretenderem ver declarada a nulidade daqueles contratos de utilização, com base nos quais alegadamente celebraram os seus contratos de trabalho temporário, pretendem simultaneamente o reconhecimento da existência de contratos de trabalho sem termo com o Réu, ou seja, de contratos individuais de trabalho, os quais são regulados por normas de direito privado. Na verdade, os Autores não alegam a existência de uma relação contratual que se subsuma a qualquer norma de direito público, nomeadamente, as normas que regulam o contrato de trabalho em funções públicas (...)”.

De igual sorte, também o Tribunal de Trabalho do Porto veio a declarar a sua incompetência, em razão da matéria, para o julgamento da acção, que deu origem ao Proc. n.º 545/13.2 TTPRT, por entender que, por força do disposto no n.º 2 do art. 17.º da Lei n.º 59/2008, de 11-09, os contratos individuais de trabalho foram convertidos em contratos de trabalho em funções públicas, sem dependência de quaisquer formalidades, o que determina que sejam considerados contratos de natureza administrativa, atendendo a que visam inequivocamente uma finalidade de interesse público.

Conforme se deixou assinalado no despacho proferido a 29-05-2013 (cf. fls. 884 a 888), que veio a declinar a competência material para a acção por parte do Tribunal de Trabalho do Porto: “(...) a entidade empregadora é o Instituto Português do Sangue, pessoa colectiva de direito público, e as funções que os Autores descrevem na petição são de inegável interesse público (...)”, afigura-se que “(..) os contratos alegadamente celebrados entre Autores e Réu, na medida em que visam essa finalidade de interesse público, devem ser considerados contratos de natureza administrativa” e ainda, acrescenta-se, que “(...) a transição para a modalidade de contrato de trabalho em funções públicas opera-se sem dependência de quaisquer formalidades (..)”.

Perante as antagónicas decisões do Tribunal Administrativo e do Tribunal de Trabalho, ambos do Porto, quanto à competência material para a decisão da causa, não subsistem dúvidas que ocorreu um conflito de jurisdição, de carácter negativo, que competirá a este Tribunal de Conflitos dirimir, de acordo com o disposto nos arts. 115.º e ss. do CPC.

3. APRECIAÇÃO

3.1. Conforme se viu, a questão controvertida subjacente ao presente conflito negativo de jurisdição prende-se precisamente com o enquadramento jurisdicional que deve vir a ser efectuado quanto à natureza jurídica dos contratos que levaram os AA a prestarem trabalho no Centro Regional de Sangue do Porto, organismo este integrante do Réu IPS.

Portanto, se a relação material controvertida dever ser apreciada e decidida, em exclusivo, na perspetiva do eventual reconhecimento dos pressupostos de existência de contratos individuais de trabalho, a competência material deve ser atribuída ao Tribunal de Trabalho do Porto; se, ao invés, a relação material controvertida tiver que ser apreciada e decidida com o reconhecimento dos pressupostos de existência de contratos da natureza administrativa, indiscutivelmente que essa competência deve ser reconhecida ao Tribunal Administrativo do Porto.

Como primeira nota importa assinalar que a questão da competência ou da incompetência do tribunal em razão da matéria para conhecer de determinado litígio é, naturalmente, independente do mérito ou demérito da pretensão deduzida pelas partes.

Acresce depois que a regra da competência dos tribunais da ordem judicial segue o princípio da residualidade, isto é, são da sua competência as causas não legalmente atribuídas à competência dos tribunais de outra ordem jurisdicional (arts. 66.º do CPC e 18.º, n.º 1, da LOFTJ, aprovada pela Lei n.º 03/99, de 13-01, ainda em vigor). Assim se o âmbito da competência dos tribunais administrativos não abranger o presente caso, competirá à jurisdição comum, com reconhecida competência residual, proceder ao julgamento da causa.

3.2. O n.º 1 do art. 211.º da Constituição da República Portuguesa (CRP), aditado na revisão de 1989, estabelece que “Os tribunais judiciais são os tribunais comuns em matéria cível e criminal e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais”. A seu turno, o n.º 3 do art. 212.º da mesma CRP, ao falar da jurisdição administrativa delimita-a pelo objectivo de “dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais”.

De modo complementar, o art. 2.º, n.º 2, al. g), do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, aprovado pela Lei 15/2002, de 22 de Fevereiro, veio afirmar, de um modo um tanto ou quanto tautológico, que compete aos tribunais administrativos a resolução de litígios respeitantes à interpretação, validade ou execução de contratos cuja apreciação pertença ao âmbito da jurisdição administrativa.

O critério de afectação de causas aos tribunais da ordem administrativa pela Constituição, ou seja, as acções e os recursos que tenham por objecto litígios emergentes de relações jurídicas administrativas, é de natureza material.

Face à referida definição de âmbito material pela Constituição, as relações jurídicas administrativas a que alude não podem deixar de ser as que se geram, modificam ou extinguem ao abrigo do direito administrativo substantivo.

Por seu turno, densificando o mencionado dispositivo constitucional, no quadro da administração da justiça, o Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF), aprovado pela Lei n.º 13/2002, de 19 de Fevereiro, diz-nos no n.º 1 do seu art. 1.º que “Os tribunais da ordem administrativa e fiscal são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo nos litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais.”

Seguidamente, o art. 4,º do ETAF, sob a epígrafe “âmbito da jurisdição”, enuncia, nas als. a) a n) do seu n.º 1, um conjunto de critérios que permitem, de um modo positivo, determinar a competência dos tribunais administrativos e fiscais ou, dito por outras palavras, o n.º 1 enumera exemplificativamente os litígios que constituem o objecto da jurisdição administrativa. Por seu turno, os n.º 2 e 3 do aludido art. 4.º delimitam, de um modo negativo, a competência dos tribunais administrativos, ou seja, enumeram um conjunto de litígios cuja resolução não compete à jurisdição administrativa.

Com particular destaque para a apreciação do caso vertente, importa aqui deixar assinalado o que estabelece a al. d) do n.º 3 do art. 4.º do ETAF: “Ficam igualmente excluídas do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal: (...) d) a apreciação de litígios emergentes de contratos individuais de trabalho, ainda que uma das partes seja uma pessoa colectiva de direito público, com excepção dos litígios emergentes de contratos de trabalho em funções públicas.”.

Significa isto que, por exclusão de partes, constituem competência da jurisdição comum, maxime dos tribunais de trabalho, o julgamento das acções judiciais que tenham por objecto litígios relacionados com contratos individuais de trabalho, mesmo que um dos contraentes seja uma pessoa colectiva de direito público, enquanto permanece, única e exclusivamente ressalvada na lei para a jurisdição administrativa, a apreciação e decisão dos conflitos inerentes aos contratos de trabalho em funções públicas.

3.3. Consabidamente, a competência em razão da matéria deve ser aferida pela natureza da relação material controvertida tal como é apresentada pelo autor na petição inicial, isto é, no confronto entre o pedido deduzido e a correspondente causa de pedir (vide maxime Acs. n.ºs 1/08 e 8/10 deste Tribunal dos Conflitos, proferidos, respectivamente, a 21-05-2008 e a 09-06-2010, acessíveis in www.dgsi.pt.).

Esta a jurisprudência perfilhada, de modo absolutamente pacífico, por este Tribunal de Conflitos (vide, entre muitos outros, os Acs. n.ºs 375, 14/10, 21/10, 25/10 e 29/10, proferidos, respectivamente, a 09-03-2004, 03-03-2010, 25-11-2010, 29-03-2011 e 05-05-2011, todos eles acessíveis in www.dgsi.pt.).

De forma mais impressiva para o caso vertente, conforme se deixou assinalado no citado Ac. n.º 375 de 09-03-2004: “(...) Se a Autora alega ter ajustado um contrato com o Arsenal do Alfeite para prestação de trabalho como médica e invoca também ter sido acordado que seriam aplicáveis na sua relação laboral as regras do contrato individual de trabalho, é o Tribunal de Trabalho o competente para apreciar se há fundamento legal para o seu despedimento e, em caso afirmativo, para decidir se há lugar à pretendida reintegração e ao pagamento de diversas quantias a que o Autor se julga com direito (...)”. Ou, também de forma paradigmática, disse-se no Ac. n.º 25/10 deste Tribunal de Conflitos, de 29-03-2011: “(...) Se o Autor alega ter ajustado um contrato individual de trabalho com o Estado para prestação de trabalho como auxiliar de limpeza, se os termos em que caracteriza o acordo não são incompatíveis com um contrato desse tipo e se, com fundamento naquele contrato pretende ver reconhecidos direitos que a lei geral reguladora do contrato individual de trabalho estabelece para os trabalhadores vinculados por contratos desse tipo é o Tribunal de Trabalho o competente para apreciar se há fundamento legal para a satisfação destas pretensões (...)”.

Para a análise da relação material controvertida, de acordo com o modo como ela foi formulada pelos AA na petição inicial, importa, desde já, assinalar que a denominação que foi atribuída à ação interposta (“acção administrativa comum sob a forma ordinária”) não vincula este Tribunal de Conflitos, nem tão pouco constitui fator relevante para a atribuição da competência material ao Tribunal Administrativo ou ao Tribunal de Trabalho do Porto.

Analisando o pedido formulado na petição inicial, não podem subsistir dúvidas de que os AA pretendem a constituição de uma relação laboral, regulada pelas normas de direito privado ou, dito por outras palavras, com a presente ação judicial os AA procuram, de um modo mais expresso, que seja declarada a nulidade dos contratos de utilização celebrados entre o Réu e as várias empresas de trabalho temporário, que lhes seja reconhecida a qualidade de trabalhadores do Réu ao abrigo de contratos de trabalho e que o IPS seja condenado a reintegrar os Autores, pagando-lhes as retribuições que consideram em dívida.

Em suma: de acordo com as pretensões que vieram a formular na petição inicial, os AA pretendem, de acordo com as correspondentes normas de direito laboral, que seja reconhecida a existência de contratos individuais de trabalho, em consequência da pretendida declaração de nulidade dos celebrados contratos de trabalho temporário, sem fazerem, note-se, a mínima referência à existência de contratos de natureza administrativa, maxime contratos de trabalho em funções públicas.

De modo consentâneo com estas pretensões, a causa de pedir desse processo prende-se precisamente com a alegação de que os AA desempenharam as suas funções de acordo com o poder diretivo do IPS, que foi sempre o Réu a definir as escalas de serviço, a indicar os horários de trabalho, a dar instruções sobre o modo como as funções deviam ser executadas, a exercer o poder disciplinar ou a indicar o gozo de férias, ou seja, indicam um conjunto de circunstâncias com o aparente intuito de obterem a caracterização de contratos individuais de trabalho.

Integrante da causa de pedir é também a alegação de que não estão preenchidos, in casu, os requisitos de admissibilidade dos contratos de trabalho temporário, que os Autores não foram selecionados para o desempenho de atividades sazonais ou para responder a situações de acréscimo excecional da atividade desenvolvida pela entidade recetora do trabalho, pelo que, nos termos da lei, deve considerar-se que o trabalho foi por eles prestado ao IPS, mais em particular ao Centro Regional de Sangue do Porto, em regime de contrato de trabalho sem termo.

Conforme se mostra apresentada na petição inicial a relação material controvertida, não subsistem quaisquer dúvidas que os Autores apelam para o direito laboral, para o trabalho subordinado regulado pelas correspondentes normas de direito privado, que entendem ser uma decorrência do regime legalmente imposto pelos nos n.º s 2 e 3 do art. 19.º da Lei n.º 19/2007, de 22-05, o qual prevê a nulidade dos contratos de utilização de trabalho temporário que não obedeçam aos requisitos legalmente previstos para o efeito (vide art. 18.º deste diploma legal) e que estabelece que o trabalho, assim realizado, se considera prestado em regime de contrato de trabalho sem termo.

Aliás, a Lei n.º 19/2007, de 22-05, que aprovou o novo regime jurídico do trabalho temporário, e depois dela o DL 260/2009 de 25 de setembro, integram indiscutivelmente o denominado direito privado, ao pretender regular as relações contratuais que se estabelecem entre trabalhadores temporários, empresas de trabalho temporário e empresas utilizadoras.

Acresce que nem uma referência é feita, na petição inicial, a contratos de natureza administrativa, nem tão pouco sobre a eventual conversão dos pretensos contratos individuais de trabalho em contratos de exercício de funções públicas, ao abrigo das Leis n.ºs 59/2008, de 11-09, e 12-A/2008, de 27-02, estes últimos, aliás, só invocados, no despacho que declinou a competência material do Tribunal do Trabalho do Porto.

A hipotética conversão negocial está, desde logo, dependente de prévia apreciação judicial relativamente à existência de contratos de trabalho por tempo indeterminado, vinculativos para os citados AA e para o Réu IPS. Sem estar previamente reconhecida a existência desses contratos individuais de trabalho, e o Réu IPS impugnou a ação interposta (vide a contestação de fls. 825 a 838), mostra-se impertinente aferir, em primeira linha, os requisitos que determinam a eventual conversão contratual, e muito em particular se tem aplicação, in casu, o regime jurídico previsto na Lei n.º 12-A/2008.

Para essa tarefa prévia é competente o Tribunal de Trabalho do Porto. Compete a este tribunal apreciar e decidir se existe fundamento para o reconhecimento de um vínculo laboral entre os AA e Réu, se os contratos de utilização estão feridos de nulidade, se os AA foram despedidos de uma forma ilícita ou se o Réu deve ser condenado a reintegrá-los e a pagar as remunerações que entretanto deixaram de auferir.

4. DECISÃO:

Com os fundamentos expostos acorda-se em resolver o presente conflito de jurisdição, atribuindo-se ao Tribunal de Trabalho do Porto, da jurisdição comum, competência para o conhecimento da questão controvertida que opõe os AA A……, B……., C..….. e D…… ao Réu Instituto Português do Sangue.

Lisboa, 27 de Fevereiro de 2014. - José Adriano Machado Souto de Moura (relator) -Vítor Manuel Gonçalves Gomes - Maria dos Prazeres Couceiro Pizarro Beleza - Alberto Acácio de Sá Costa Reis - Raul Eduardo do Vale Raposo Borges - Alberto Augusto Andrade de Oliveira.