Acórdãos T CONFLITOS

Acórdão do Tribunal dos Conflitos
Processo:049/18
Data do Acordão:04/11/2019
Tribunal:CONFLITOS
Relator:SOUSA LAMEIRA
Descritores:CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO
Sumário:
Nº Convencional:JSTA000P24464
Nº do Documento:SAC20190411049
Recorrente:MUNICÍPIO DE FIGUEIRÓ DOS VINHOS, NO CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO, ENTRE A COMARCA DE LEIRIA – LEIRIA – INST. CENTRAL – SEC. CÍVEL – J1 E O TRIBUNAL ADMINISTRATIVO E FISCAL DE LEIRIA – U.O. 1.
Recorrido 1:*
Votação:UNANIMIDADE
Área Temática 1:*
Aditamento:
Texto Integral: CONFLITO Nº 49/18

Acordam no Tribunal de Conflitos

I - RELATÓRIO

1. Na Comarca de Leiria, Instância Local de Figueiró dos Vinhos, Secção de Competência Genérica o Município de Figueiró dos Vinhos intentou a presente acção declarativa de condenação sob a forma de Processo Comum contra A……….., Lda alegando resumidamente que vendeu à Ré o lote 1-B, sito na Zona Industrial da ……….., Freguesia de Figueiró dos Vinhos, mediante escritura pública outorgada em 11.02.2003.

Sucede que a Ré incumpriu com as obrigações a que estava obrigada, que constituíam uma verdadeira condição resolutiva do contrato, o que confere ao Autor o direito de resolução do contrato.

Conclui pedindo que:

a) Seja declarada a resolução do contrato de compra e venda do terreno de construção com a área de 5.947,50 m2, designado por lote 1.B, sito na …………, que confronta a Norte com Herdeiros de B……….., a Sul com estrada e lote n.º 3, Nascente com C……….. (lote n.º 2) e D……….. e Poente com o Lote n.º 1 - A, inscrito sob o artigo 4475 da freguesia de Figueiró dos Vinhos sob o n.º 05482713122002, celebrado entre o Autor e a Ré A…………, Lda, ou alternativamente a perda do direito de propriedade a favor do Autor, desde o dia 12 de Agosto de 2004;

b) Seja reconhecida a titularidade do direito de propriedade sobre o referido lote ao A;

c) Seja ordenado o cancelamento do registo de propriedade a favor da Ré sobre o referido lote;

d) Seja condenada a Ré A……….., Lda a restituir o lote referido em a), bem como todas as eventuais benfeitorias que lá tenha implantado.

2. Contestou a Ré A……….., Lda, que deduziu também pedido reconvencional.

3. Por despacho de fls. 429 a 432 foi decidido julgar o «tribunal materialmente incompetente para a tramitação e decisão deste processo, por serem competentes os tribunais administrativos e, em consequência absolvo a Ré da instância».

4. Na sequência do requerimento do Autor de fls. 437 foram os autos remetidos para o Tribunal Administrativo e Fiscal de Leiria.

5. Recebidos os autos no TAF de Leiria, por despacho datado de 31.07.2018 (fls. não numeradas), foi «declarada a incompetência absoluta deste tribunal para conhecer do litígio em questão nos presentes autos, absolvendo-se a demandada da instância».

6. Veio, então o Autor apresentar recurso para o Tribunal de Conflitos para resolução do Conflito Negativo de Jurisdição, tendo apresentado alegações e respectivas conclusões.

7. O Magistrado do Ministério Público teve vista dos autos, emitindo Parecer no sentido de ser atribuída a competência para o conhecimento e decisão da causa aos Tribunais Judiciais.

Corridos os Vistos legais, cumpre decidir.

II - FUNDAMENTAÇÃO

Os factos que relevam para a decisão são os que constam supra

III - A SUBSUNÇÃO

A questão que cumpre decidir é a de se saber qual a jurisdição materialmente competente para conhecer o presente litígio.

1- Os Tribunais encontram-se divididos internamente por categorias em função das matérias que devem apreciar.

Estes tribunais situam-se no mesmo plano horizontal apenas se distinguindo pela natureza das matérias que lhes são submetidas.

“Na base da competência em razão da matéria está o princípio da especialização, com o reconhecimento da vantagem de reservar para certos órgãos judiciários diferenciados o conhecimento de certos sectores do Direito, pela vastidão e pela especificidade das normas que os integram”, A. Varela, J. M. Bezerra e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, pág. 197.

A competência em razão da matéria do tribunal afere-se pela natureza da relação jurídica tal como é apresentada pelo autor na petição inicial, isto é, no confronto entre o respectivo pedido e a causa de pedir.

A competência em razão da matéria de um tribunal é a medida do objecto material da sua jurisdição.

“As regras que delimitam a jurisdição dos tribunais de acordo com a matéria ou o objecto do litígio, recebem a designação de regras de competência em razão da matéria”, Cfr. Anselmo de Castro, Direito Processual Civil Declaratório, vol. II, p. 34.

Deste modo a Jurisdição dos Tribunais encontra-se dividida em razão da matéria do litígio que é apresentado em juízo.

Ou, como referem Antunes Varela, J.M. Bezerra e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, p. 197 “a competência em razão da matéria distribui-se deste modo por diferentes espécies ou categorias de tribunais que se situam no mesmo plano horizontal...”.

2- Nos despachos em confronto, referidos supra I-3 e I-5, ambos os Tribunais se declararam materialmente incompetentes para conhecer do objecto do litígio.

Ambos declararam que se verificava a incompetência absoluta, em razão da matéria, do Tribunal.

A competência de um Tribunal em razão da matéria, ou seja saber se estamos perante um litígio que deve ser dirimido nos tribunais comuns ou nos tribunais administrativos, é determinada em função do pedido e da causa de pedir invocada.

A competência do Tribunal é questão que se resolve de acordo com os termos como é colocada a pretensão do Autor.

A Jurisprudência é pacífica neste ponto.

Assim, tem-se entendido que “para conhecer da incompetência absoluta do tribunal em razão da matéria há que considerar apenas os termos em que a acção foi proposta”, Ac. STJ de 4.3.97, C.J. (Ac. Sup.), T.I p.125; ou no dizer do Ac. RP de 7.11.2000, CJ t IV, p. 184 “a competência material do tribunal afere-se pelo thema decidendum concatenado com a causa de pedir”; cfr. ainda o Ac.RC de 11.3.97, Cl T II, p.25.

Em suma, a competência do Tribunal em razão da matéria determina-se e afere-se pelo objecto do pedido e pela natureza da relação material controvertida, tal como é apresentada pelo Autor.

3- Nos termos do n.º 1 do artigo 212 da Constituição da República Portuguesa «os tribunais judiciais são os tribunais comuns em matéria civil e criminal e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens jurisdicionais”.

Resulta do nº 3 do mesmo normativo que “compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações administrativas fiscais”.

Nos termos dos artigos 1º n.º 1, 4. n.º 1 e 2 do ETAF, aprovado pela Lei n.º 13/2002 de 19 de Fevereiro, os Tribunais Administrativos têm a sua competência limitada aos litígios emergentes das relações jurídicas administrativas,

Nos termos do artigo 66.º do Código de Processo Civil “são da competência dos tribunais judiciais as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional”.

Os tribunais comuns detêm a plenitude da jurisdição excepção feita quanto às causas que não sejam atribuídas por lei a outros - artigo 18.º n.º 1, da Lei n.º 3/99, de 13/1 (LOFTJ).

Por último importa ter presente que a competência se fixa no momento em que a acção é proposta - artigo 22.º n.º 1, da LOFTJ.

4- A questão a decidir é, pois e tão-somente a de saber qual o tribunal competente para conhecer do presente litígio (o Tribunal Judicial Comum ou o Tribunal Administrativo).

O Tribunal Judicial Comum entendeu que era materialmente incompetente para o conhecimento da causa sendo-o, na sua opinião, o Tribunal Administrativo, uma vez que estaríamos perante uma relação jurídica administrativa, sendo o autor uma entidade pública que actuou com vista à prossecução de um interesse público.

Entendimento diverso teve o TAF de Leiria.

Como se afirmou, os tribunais judiciais são a regra na nossa organização judiciária pelo que gozam de competência genérica ou residual sendo que os restantes, enquanto excepção, apenas “têm a sua competência limitada às matérias que lhes são especialmente atribuídas”, cfr. Antunes Varela, J. M. Bezerra e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, pag. 199.

Os Tribunais Administrativos, tal como resulta do normativo constitucional supra citado e também da Lei ordinária (artigo 1º, nº 1, do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais) são competentes para resolver os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais encontrando-se enumeradas no artigo 4º as várias hipóteses em que a competência lhes pertence.

A competência em razão da matéria afere-se, repete-se, pelos termos em que o Autor estrutura a pretensão que pretende fazer valer em juízo.

Como se afirma no Acórdão do Tribunal de Conflitos de 29-11-2006, Relator Conselheiro Rui Botelho “a competência (ou jurisdição) de um tribunal afere-se pela forma como o autor configura a acção, definida pelo pedido e pela causa de pedir, isto é, pelos objectivos com ela prosseguidos”, ou ainda como se escreveu no Acórdão do STJ de 27 de Maio de 2003, Relator Conselheiro Alves Velho “a competência em razão da matéria afere-se, em princípio, pelos termos em que o autor propõe ao tribunal que decida a questão, configurada pela qualidade ou natureza das partes, pelo pedido e pela causa de pedir”, ambos in www.dgsi.pt.

“Refere o Prof. Manuel de Andrade (apud “Noções Elementares de Processo Civil”, 1976, 91) que a competência «afere-se pelo “quid disputatum” (“quid decidendum”, em antítese com aquilo que será mais tarde o quid decisum); é o que tradicionalmente se costuma exprimir dizendo que a competência se determina pelo pedido do autor». (cf. ainda, o Prof. A. Dos Reis, “Comentário ao Código de Processo Civil”, 1ª, 110), in Ac. do Supremo Tribunal de Justiça de 13 de Março de 2008, Relator Conselheiro Sebastião Póvoas.

O Autor estruturou a presente acção invocando um contrato de compra e venda celebrado com a Ré, nos termos do qual o Autor vendeu à Ré um determinado lote de terreno, imputando à Ré a violação de certas obrigações que haviam sido fixadas no contrato, o que conferirá ao Autor o direito de resolver o contrato.

Podia a Ré ser demandada nos Tribunais Judiciais comuns por responsabilidade contratual, derivada do incumprimento daquele contrato, como foi inicialmente pelo Autor?

5- Como se viu supra a competência dos Tribunais Administrativos apenas se impõe quando estejam em causa litígios emergentes das relações jurídico-administrativas.

Segundo Freitas do Amaral, Direito Administrativo, vol. III, pág. 423 e ss, citado no Acórdão da Relação de Lisboa de 02.04.2009, C.J. Ano XXXIV, Tomo II, pág. 115 «a relação jurídica administrativa é aquela que confere poderes de autoridade ou impõe restrições de interesse público à Administração perante os particulares ou que atribui direitos ou impõe deveres públicos aos particulares perante a Administração».

Ensina também J. C. Vieira de Andrade que as relações jurídicas administrativas são «aquelas em que um dos sujeitos, pelo menos, é uma entidade pública ou uma entidade particular no exercício de um poder público legalmente definido», in A Justiça Administrativa, Lições, 3ª ed. 2000, pág. 79.

Podemos retirar destes ensinamentos que, por um lado, se encontram afastadas das relações jurídicas administrativas todos aqueles litígios que apresentem uma natureza meramente privada, e por outro é necessário que subjacente ao litígio e em causa estejam norma de direito público.

6- No contrato em causa Autor e Ré actuaram como qualquer ente privado numa relação jurídica privada. Um vende e outro compra determinado bem.

Não se vislumbra que o Autor tenha agido «numa situação de “jus imperii”» como se afirma no Parecer do MP.

As partes, Autor e Ré celebraram entre si, como dois entes privados e nessa qualidade, um contrato de empreitada, cujo objecto é puramente privado.

Este contrato reveste uma natureza privada e não pública.

Não estamos perante um contrato que deva ser qualificado pela lei como administrativo, nem quanto às pessoas que o celebraram nem quanto ao seu objecto.

Esse contrato não é qualificado pela lei como administrativo nem no seu objecto - venda de um terreno - está em causa um litígio relativo a cláusulas ou normas específicas de interesse público.

Assim, entendemos que nesta hipótese o Tribunal Judicial Comum é o competente em razão da matéria.

Em suma, ponderando que a competência do Tribunal em razão da matéria determina-se e afere-se pelo objecto do pedido e pela natureza da relação material controvertida, tal como é apresentada pelo Autor (e que nos presentes autos está apenas em questão o eventual incumprimento de um contrato de compra e venda de um terreno) entendemos que a competência para dirimir o presente litígio deve ser atribuída aos Tribunais Judiciais Comuns, como, aliás, o Autor pretendia ver decidido.

IV -DECISÃO

Por tudo o exposto, decide-se atribuir a competência para dirimir o presente litígio aos Tribunais Judiciais Comuns, muito concretamente à Secção de Competência Genérica da Instância Local de Figueiró dos Vinhos, da Comarca de Leiria.

Sem custas

Lisboa, 11 de Abril de 2019. – José António de Sousa Lameira (relator) – José Francisco Fonseca da Paz – Manuel Pereira Augusto de Matos – Teresa Maria Sena Ferreira de Sousa – Maria de Fátima Morais Gomes – José Augusto Araújo Veloso.