Acórdãos T CONFLITOS

Acórdão do Tribunal dos Conflitos
Processo:026/15
Data do Acordão:12/03/2015
Tribunal:CONFLITOS
Relator:ANA PAULA PORTELA
Descritores:CONTRATO DE ARRENDAMENTO.
CONTRATO DE CESSÃO DE EXPLORAÇÃO.
Sumário:I - Saber se o contrato intitulado de cessão de exploração e que a requerente apelida de contrato de arrendamento pretere exigências do art. 23º do DL 119/83 de 25/2 não implica a apreciação de litígios que tenham nomeadamente por objecto questões relativas à validade de atos pré- contratuais e à interpretação, validade e execução de contratos a respeito dos quais haja lei específica que os submeta, ou que admita que sejam submetidos, a um procedimento pré-contratual regulado por normas de direito público, nos termos e para os efeitos da alínea e) do nº1 do art. 4º do ETAF.
II - Face à forma como a causa de pedir se mostra estruturada na petição cautelar inicial, apenas cumpre ao juiz aferir se o contrato (seja arrendamento ou cessão de exploração) celebrado segundo as regras do direito privado, poderia ou não sê-lo.
III - O que significa que não está em causa um procedimento pré-contratual de um contrato sujeito a normas de direito público mas tão só a questão de saber se o procedimento utilizado, que foi um procedimento de direito privado, foi corretamente efetuado.
Nº Convencional:JSTA00069464
Nº do Documento:SAC20151203026
Data de Entrada:06/04/2015
Recorrente:A..., LDA, CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO, ENTRE O TRIBUNAL DA COMARCA DE LEIRIA, INST. LOCAL - SEC. COMP. GEN. - J1 E OS TAFS
Recorrido 1:*
Votação:UNANIMIDADE
Meio Processual:REC PRE CONFLITO
Objecto:AC RC
Decisão:DECL COMPETENTE JURISDIÇÃO COMUM.
Área Temática 1:DIR ADM CONT - CONFLITO JURISDIÇÃO.
Legislação Nacional:CONST05 ART212 N3.
ETAF02 ART4.
CPC13 ART99 ART278 N1.
CPP ART7 N1.
L 30/13 DE 2013/05/08.
L 107-D/03 DE 2003/12/31.
DL 197/99 DE 1999/06/08.
DL 119/83 DE 1983/02/25 ART23.
Jurisprudência Nacional:AC STA DE 1990/10/09 IN AJ N12 PAG26.; AC STA DE 1990/06/12 IN AJ N10-11.; AC STJ DE 1987/02/03 IN BMJ364 PAG591.; AC STJ DE 2002/11/05.
Referência a Doutrina:MÁRIO ESTEVES DE OLIVEIRA E RODRIGO ESTEVES DE OLIVEIRA - CÓDIGO DE PROCESSO NOS TRIBUNAIS ADMINISTRATIVOS VOLI PAG59.
MANUEL DE ANDRADE - NOÇÕES ELEMENTARES DE PROCESSO CIVIL 1956 PAG92.
MÁRIO ESTEVES DE OLIVEIRA E RODRIGO ESTEVES DE OLIVEIRA - CPTA E ETAF ANOTADOS VOLI 2004 PAG48 E SEGS.
PEDRO GONÇALVES - REGIME JURÍDICO DAS EMPRESAS MUNICIPAIS.
Aditamento:
Texto Integral: Acordam, em conferência, no Tribunal dos Conflitos
I- RELATÓRIO

1- A………………., L.DA, com os sinais dos autos, inconformada com o acórdão que declarou a incompetência, em razão da matéria, dos tribunais comuns, “Na expectativa de uma decisão breve” interpõe recurso para este Tribunal, ao abrigo do art. 101º, nº2, CPC, - na convicção de que “se fizesse uso da faculdade…conferida pelo art. 99º, 2, NCPC, o TAF de Leiria declarar-se-ia, também ele, incompetente em razão da matéria” pelo que sempre teria como destino o presente Tribunal -, requerendo que seja fixado o tribunal competente para conhecer da providência cautelar não especificada, de que é impetrante.

2- Admitido o conflito, a Recorrente conclui as suas alegações, do seguinte modo:

“1ª Pese o decidido, nenhum dos dois Tribunais que já se debruçaram sobre a questão logrou identificar quais as normas de direito público a que deve, no seu entender, ser submetido o concurso, ou hasta pública no procedimento pré-contratual tendente ao arrendamento de imóvel pertencente a IPSS e ao encontro do estatuído no art. 23°, 1 do DL 119/83.

2ª Em 1983 existiam três diplomas de direito público que previam explicitamente a realização de concursos públicos, quais sejam:

- O Decreto-Lei n.° 48871, diploma de 1969 que regulava as empreitadas de obras públicas que corressem total ou parcialmente por conta do Estado ou de instituto público autónomo.

- O Decreto-Lei n.° 211/79, que regulava as despesas com obras e aquisição de bens e serviços para o Estado.

- O Decreto-Lei n.° 390/82, que regulava sensivelmente as mesmas matérias, mas aplicado às autarquias locais.

3ª Já no domínio do direito privado e antes do DL 119/83 regulava, desde 1966, o art. 463° do Código Civil.

4ª Significa isto que, em 1983 a figura e procedimento do “concurso público” estava doutrinalmente definida e era aplicável quer em matérias de direito privado, quer de direito público. Logo, o emprego das figuras do concurso público ou da hasta pública, sempre com salvaguarda de melhor opinião, não faz com que sejam empregues na formação do contrato, quaisquer normas de direito público.

5ª Pelo que, a norma do art. 23° 1 do DL 119/83 não só não efectua qualquer remissão para uma norma de direito público, como aponta para instituto jurídico (também) com dimensão privatística que obriga as IPSS, que se encontrem nas circunstâncias normativamente relevantes e aí previstas, a:

a) Anunciar publicamente a abertura de concurso, ou a realização de hasta pública;

b) Em tal anúncio estabelecendo ou as condições do concurso (preço, prazo, condições de pagamento, outras contrapartidas, critérios de avaliação dos concorrentes, critérios de ordenação das propostas, prazo para recepção das propostas e publicitação da decisão fundamentada), ou as condições da hasta pública (preço base, condições de pagamento, dia de realização da hasta pública).

6ª Não existindo, na redacção aplicável da norma do art. 23° 1 do DL 119/83, qualquer reenvio para normas de direito administrativo, como já o decidiu o STJ (Ac. STJ de 05/11/2002), sempre com salvaguarda de melhor opinião, perde cabimento a aplicação da previsão da norma do da al. e) do art. 4° do ETAF.

7ª E a idêntica conclusão se chega por consideração da relação jurídica tal como descrita pela A. Em nenhum momento se invoca a violação de qualquer norma ou procedimento de índole pública ou administrativa, antes se descreve tal relação jurídica como puramente privada:

A competência do tribunal em razão da matéria afere-se pela natureza da relação jurídica apresentada pelo autor na petição inicial, independentemente do mérito ou demérito da pretensão deduzida. É na ponderação do modo como o autor configura a acção, na sua dupla vertente do pedido e da causa de pedir, e tendo ainda em conta as demais circunstâncias disponíveis pelo tribunal que relevem sobre a exacta configuração da causa, que se deve guiar a tarefa da determinação do tribunal competente para dela conhecer.

8ª Foram, pois, salvo melhor opinião, violadas as normas do art. 23° 1 do DL 119/83, da al. e) do art. 4° do ETAF e dos arts. 99.° e 278.°, n.°1, alínea a) do CPC ...”

3- B……………………., L.DA, requerida nos autos, veio apresentar as suas CONTRA-ALEGAÇÕES, concluindo:

“1. A tese defendida em recurso pela recorrente de que “não existindo, na redacção aplicável da norma do art. 23º 1 do DL 119/83, qualquer reenvio para normas de direito administrativo (...) “ não merece qualquer acolhimento.

2. A tese da recorrente é, na realidade incongruente, defende em sede de requerimento inicial de procedimento cautelar a impugnação do procedimento de formação do contrato e a formalidade dada a este ultimo por suposta violação do concurso público obrigatório, designadamente das normas que regulamentam o concurso público, e, por outro lado, em sede de recurso vem defender que o emprego das figuras do concurso público ou da hasta pública, não faz com que sejam empregues na formação do contrato, quaisquer normas de direito público.

3. Sendo igualmente incongruente a defesa do entendimento (da recorrente, e que nós saibamos, só da recorrente) que o art. 23° n°1 do DL 119/83, não remete para qualquer norma de direito administrativo, e, como tal, escaparia à previsão da al. e) do art. 4° do ETAF.

4. As regras da contratação pública previstas no Código dos Contratos Públicos aplicam-se a todo o sector público administrativo tradicional: o Estado, as Regiões Autónomas, as Autarquias Locais, os Institutos Públicos, as Fundações Públicas, as Associações Públicas e as Associações de que façam parte uma ou várias pessoas coletivas referidas anteriormente, e em certos casos também às IPSS.

5. Porém, nos casos em que seja aplicável o concurso público nos termos do art. 23° n°1 do DL 119/83 às IPSS, o mesmo é regulamentado por normas administrativas, de direito público, nomeadamente pelas normas previstas no Código dos Contratos Públicos.

6. O art. 1.º n.°1 do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais impõe aos Tribunais Administrativos e Fiscais a competência para administrar a justiça nos litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais e a alínea e) do art.4.° do ETAF abrange todos os litígios emergentes dos contratos que a lei submeta, ou que possam ser submetidos, a um procedimento de formação regulado por normas de direito público, o que, manifestamente reflecte a causa de pedir e o pedido desenhados pela recorrente em sede de requerimento inicial que despoletou a presente lide cautelar.

7. O desrespeito pelas regras da competência material gera a incompetência absoluta do Tribunal, nos termos do art. 96.°, alínea a) do novo CPC e que foi correctamente confirmada pelo Tribunal a quo, pelo que a decisão recorrida deve ser mantida.

Termos em que deve ser mantida a decisão Recorrida.”

4- O Exm° Procurador - Geral Adjunto emitiu parecer, concluindo pela competência dos tribunais comuns, extraindo-se do mesmo:

“(...)

Quando se diz que o Direito Administrativo é formado pelas normas que regulam as relações estabelecidas entre a Administração e outros sujeitos de direito no desempenho da actividade administrativa de gestão pública, quer-se precisamente excluir do âmbito do Direito Administrativo todas as actividades de gestão privada da Administração Pública que o Direito Administrativo não regula. O Direito Administrativo regula apenas e abrange, unicamente, a actividade de gestão pública da Administração. À actividade de gestão privada aplicar-se-á o direito privado — Direito Civil Direito Comercial, Direito do Trabalho etc.

5. O art. 4.º do ETAF delimita o âmbito da jurisdição administrativa, ganhando particular relevo para o que nos interessa, de entre as várias alíneas do n.°1, a alínea e) que dispõe — “Compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham nomeadamente por objecto questões relativas à validade de actos pré- contratuais e à interpretação, validade e execução de contratos a respeito dos quais haja lei específica que os submeta, ou que admita que sejam submetidos, a um procedimento pré-contratual regulado por normas de direito público”.

6. Dito isto, é bom de ver que o que se pretende com a presente acção é anular o contrato de arrendamento celebrado entre dois privados, sendo que nesta lide tanto o A. como as Rés estão em pé de igualdade. Não está em causa um fim de interesse público nem qualquer das Rés é uma entidade pública ou uma entidade particular no exercício de um poder público.

Acresce, por outro lado, que o facto do art. 23°, n° 1 do DL 119/83 impôr que o arrendamento de imóveis pertencentes às IPSS deverá ser feito em concurso ou hasta pública não implica a aplicação automática a este contrato do Código dos Contratos Públicos. Este estabelece a disciplina aplicável à contratação pública e o regime substantivo dos contratos públicos que revistam a natureza de contrato administrativo. Ora, um concurso pode ser aberto sem estar sujeito, obrigatoriamente, a este regime jurídico do CCP. E, no caso presente, parece óbvio que o concurso a ser aberto não será um contrato administrativo a que será aplicável tal regime jurídico e nem isso é imposto por aquele D.L. n° 119/83.

Por isso, não se aplica aqui o art. 4°, n° 1, e) do ETAF.

7. Como assim, somos de parecer que o presente pré-conflito de jurisdição deve ser dirimido com a atribuição de competência aos tribunais comuns.”

5- Sem vistos, mas com distribuição prévia do projeto de acórdão, cumpre decidir.

O DIREITO

Está aqui em causa, em sede de pré-conflito, aferir da competência material dos tribunais judiciais para o conhecimento de providência cautelar não especificada em que se formulam os seguintes pedidos:

“a) Sejam quer o procedimento de formação do contrato de arrendamento da praça de touros do Sítio da …., quer o contrato de arrendamento (cessão de exploração) celebrado entre as requeridas com tal objecto, julgados nulos.

b) Devem, em consequência, às requeridas ser ordenada a não execução do contrato nulo;

c) Deve ser fixada sanção pecuniária compulsória no valor de € 50.000,00 por cada corrida de touros que as mesmas requeridas, não obstante a condenação peticionada na alínea anterior, venham a realizar.

d) Deve a decisão a proferir, nos termos do disposto no n.° 1, do art. 369° CPC, dispensar a requerente do ónus de propositura da acção principal, decretando, pois, a inversão do contencioso.

Pretende a requerente que, porque está em causa um contrato celebrado por uma IPSS o mesmo é nulo por violação do art. 23° nº 1 do DL 119/83, atenta a al. e) do art. 4° do ETAF e os arts. 99.° e 278.°, n.°1, alínea a) do CPC.

Pelo que será competente o tribunal de jurisdição comum não obstante ambas as instâncias dos mesmos se terem julgado incompetentes em razão da matéria, o Tribunal da Comarca de Leiria e o Tribunal da Relação de Coimbra.

Para tanto fundamenta a sua pretensão no facto de, estando em causa a natureza da relação jurídica apresentada pelo autor na petição inicial, o emprego das figuras do concurso público ou da hasta pública não faz com que sejam empregues na formação do contrato quaisquer normas de direito administrativo, como já o decidiu o STJ (Ac. STJ de 05/11/2002).

Pretende a recorrente que, em 1983 a figura e procedimento do “concurso público” estava doutrinalmente definida e era aplicável quer em matérias de direito privado, quer de direito público. Logo, o emprego das figuras do concurso público ou da hasta pública, sempre com salvaguarda de melhor opinião, não faz com que sejam empregues na formação do contrato, quaisquer normas de direito público.

Pelo que, não tem cabimento a aplicação da previsão da norma da al. e) do art. 4° do ETAF.

Então vejamos.

Dispõe o art. 1º do ETAF que "os tribunais da jurisdição administrativa e fiscal são órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo, nos litígios emergentes de relações administrativas e fiscais".

Veio, assim, reafirmar-se a cláusula geral estabelecida no artigo 212° n.º 3 da Constituição, que define a competência material dos Tribunais Administrativos como dizendo respeito aos litígios emergentes das relações jurídico - administrativas.

A delimitação do poder jurisdicional atribuído aos tribunais administrativos faz-se, pois, segundo um critério material, ligado à natureza da questão a dirimir, tal como resulta do art. 212 nº3 da Const., nos termos do qual "compete aos tribunais administrativos...o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios das relações jurídicas administrativas."

E, nos termos do art. 4º do novo ETAF, aprovado pela referida Lei nº 13/2003 de 19 de Fevereiro, veio o legislador indicar exemplificativamente os litígios que se encontram incluídos no âmbito da jurisdição administrativa, assim como aqueles que dela se encontram excluídos. (neste sentido ver Mário Esteves de Oliveira e Rodrigo Esteves de Oliveira in Código de Processo nos Tribunais Administrativos Volume I, Anotação XXIX, Almedina, pág. 59).

A competência dos tribunais determina-se, assim, pelo pedido do A., não dependendo o seu conhecimento nem da legitimidade das partes nem da procedência da ação (ver Ac. S.T.A. de 12/6/90, A.j.nº10/11; Ac. S.T.A. de 9/10/90, A.J. nº12, pág.26; Ac. S.T.J. de 3/2/87, B.M.J. nº 364/591)

Diz M. de Andrade, (N.E. de Processo Civil, 1956, pag.92) que, a competência em razão da matéria atribuída aos tribunais, baseia-se na matéria da causa, no seu objecto, "encarado sob um ponto de vista qualitativo -o da natureza da relação substancial pleiteada."

Constitui jurisprudência pacífica que: “a competência material do tribunal afere-se pelos termos em que a acção é proposta e pela forma como se estrutura o pedido e os respectivos fundamentos. Daí que para se determinar a competência material do tribunal haja apenas que atender aos factos articulados pelo autor na petição inicial e à pretensão jurídica por ele apresentada, ou seja à causa de pedir invocada e aos pedidos formulados” (vide Ac. do STJ, de 14.05.2009).

É, pois, a partir da análise da forma como a causa se mostra estruturada na petição cautelar que teremos de encontrar as bases para responder à questão de saber qual é a jurisdição competente para o conhecimento da presente ação.

É certo que à luz do DL n.º 197/99 de 08 de Junho e do CCP a noção de contratos públicos é mais abrangente do que a noção de contrato administrativo podendo aqueles abranger não só os contratos que tenham a natureza administrativa mas também contratos privados celebrados por entidades públicas, quer ainda alguns contratos privados celebrados entre sujeitos privados, como aliás resulta do artigo 7.º, n.º 1 do CCP.

É certo também que a designação de contratos públicos no âmbito do CCP não pretende delimitar a natureza jurídica pública e/ou administrativa de um contrato, não sendo incompatível com a aplicabilidade do Código de Contratos Públicos o facto de estar em causa uma relação jurídica de direito privado.

E que, no âmbito do CCP, e independentemente de ser aqui aplicável, não é óbice à possibilidade de contratos de direito privado da administração serem regulados segundo princípios gerais de direito público ainda que não se trate de contrato administrativo.

Mas, utilizar como procedimento pré-contratual num arrendamento concurso público ou hasta pública implica o recurso a normas de direito público já que no âmbito do direito privado não existe qualquer limitação de escolha dos outorgantes com quem se pretende celebrar estes contratos.

Contudo, não é esse o verdadeiro cerne da questão aqui em causa, como infra veremos.

A questão que se coloca é a da integração da situação tal como a define o autor, no art° 4° n° 1 al e) do ETAF (Lei n° 13/2002, 19/02), com a redação da Lei n° 107-D/2003, de 31 de Dezembro nos termos do qual “Compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham nomeadamente por objecto questões relativas à validade de actos pré- contratuais e à interpretação, validade e execução de contratos a respeito dos quais haja lei específica que os submeta, ou que admita que sejam submetidos, a um procedimento pré-contratual regulado por normas de direito público”.

O ETAF de 1984 cessou a sua vigência em 31 de Dezembro de 2003, por ter sido revogado pelo art. 8°, aI. c), da Lei nº 13/2002, de 19FEV, que aprovou um novo ETAF e entrou em vigor em 1 de Janeiro de 2004 (cfr. arts. 1° da Lei nº 13/2002, e 4°, nº 2, da Lei nº 107-D/2003, de 31DEZ);

O ETAF de 2002 introduziu alterações substanciais em relação ao regime anterior nomeadamente a al. e) do nº 1 do art. 4° supra transcrito.

A este propósito diz Mário Esteves de Oliveira e Rodrigues Esteves de Oliveira, in “ C.P.T.A. e E.T.A.F Anotados", vol. I, 2004, pág. 48 e segs., e anotações ao art 4º al e) do ETAF, que “a opção tomada nesta alínea e), que constitui a grande revolução do Código na matéria, traduziu-se na adição à jurisdição dos tribunais administrativos do conhecimento dos litígios relativos a contratos precedidos ou precedíveis de um procedimento administrativo de adjudicação, independentemente da qualidade das partes nele intervenientes - de intervir aí uma ou duas pessoas colectivas de direito público ou apenas particulares - e independentemente de, pela sua natureza e regime (ou seja, pela disciplina da própria relação contratual), eles serem contratos administrativos ou contratos de direito privado (civil, comercial, etc.).”

A alínea e) do nº1 do art. 4º do ETAF é clara no sentido de que compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham nomeadamente por objecto questões relativas à validade de atos pré- contratuais e à interpretação, validade e execução de contratos a respeito dos quais haja lei específica que os submeta, ou que admita que sejam submetidos, a um procedimento pré-contratual regulado por normas de direito público.

Assim, os contratos cuja interpretação, validade ou execução pertence à jurisdição dos tribunais administrativos, nos termos da citada alínea e), são quaisquer contratos ­administrativos ou não - com exceção dos de natureza laboral, por força da alínea d) do art. 4º nº 3 - que uma lei específica submeta, ou admita que sejam submetidos, a um procedimento pré-contratual regulado por normas de direito público.

A aferição de estar em causa a aplicação de normas de direito público, como dizem Mário e Rodrigo Esteves de Oliveira, in Estatuto e CPTA anotados, Almedina, 2004, pg 57 e ss, e Pedro Gonçalves in “Regime Jurídico das Empresas Municipais” acarreta um esforço do intérprete ou do aplicador do direito na procura desse regime, na certeza, porém, de que estão hoje bem melhor definidas as competências, em matéria contratual, entre a jurisdição administrativa e jurisdição comum.

Atenhamo-nos, então, no caso sub judice, à situação em causa tal como a define a autora.

Vem esta invocar que a 1ª requerida Confraria de Nossa Senhora da ........ - Instituição Particular de Solidariedade Social Sem Fins Lucrativos — IPSS, é legítima proprietária da Praça de Touros do Sítio da ……………

E, decidiu a assinatura do contrato que chamou de cessão de exploração para o triénio de 2014/2016 (cfr. doc. 10 que se junta) com a 2ª requerida, quando o entendeu, em dia anterior a 17 de Março de 2014, sem qualquer aviso prévio, quer aos interessados, quer ao público em geral.

Ora, a seu ver, quer seja um contrato de arrendamento ou um similar deve aplicar-se o mesmo regime, ou seja, o art. 23º do DL 119/83 de 25/2 que, por isso, foi violado.

Desde logo, nos termos da petição cautelar vem invocada a existência de um contrato de exploração /contrato de arrendamento (qualificado pela requerente como de arrendamento embora formalmente apelidado de cessão de exploração) entre as requeridas e a violação pelo mesmo do art. 23º do DL 119/83 de 25/2.

Pelo que, a violação de lei que está na base do pedido cautelar é a relativa à bondade do procedimento, isto é, se o procedimento a seguir na situação dos autos deve ser um procedimento sujeito a normas de direito público quando o procedimento seguido foi um procedimento de direito privado.

Ou seja, não está em causa a validade interpretação ou execução de qualquer procedimento pré-contratual ao qual sejam aplicados preceitos de direito público mas apenas saber se o procedimento seguido de direito privado foi o correto ou não.

A questão objeto desta ação é, assim, a de saber se o contrato junto a fls 10 dos autos intitulado de cessão de exploração e que a aqui requerente apelida de contrato de arrendamento, e que corresponde a um contrato celebrado segundo o direito privado pretere exigências do art. 23º do DL 119/83 de 25/2 aqui aplicável.

É o seguinte o teor deste preceito:

(Realização de obras, alienação e arrendamento de imóveis)

1 - A empreitada de obras de construção ou grande reparação, bem como a alienação e o arrendamento de imóveis pertencentes às instituições, deverá ser feita em concurso ou hasta pública, conforme for mais conveniente.

2 - Podem ser efectuadas vendas ou arrendamentos por negociação direta, quando seja previsíveis que daí decorram vantagens para a instituição ou por motivo de urgência, fundamentado em ata.

3 - Em qualquer caso, os preços e rendas aceites não podem ser inferiores aos que vigorarem no mercado normal de imóveis e arrendamentos, de harmonia com os valores estabelecidos em peritagem oficial.

4 - Exceptuam-se do preceituado nos números anteriores os arrendamentos para habitação, que seguem o regime geral sobre arrendamento.

Sendo que, a Lei n.º 30/2013 de 8 de Maio alterou o mesmo art. 23º no sentido de que:

“(Realização de obras, alienação e arrendamento de imóveis)

1 - A empreitada de obras de construção ou grande reparação pertencentes às instituições devem observar o estabelecido no Código dos Contratos Públicos, à exceção das obras realizadas por administração direta até ao montante máximo de 25 mil euros.

2 - O disposto do número anterior não se aplica às instituições que não recebam apoios financeiros públicos.

3 - Podem ser efectuadas vendas ou arrendamentos por negociação direta, quando seja previsível que daí decorram vantagens para a instituição ou por motivo de urgência, fundamentado em ata.

4 - Em qualquer caso, os preços e rendas aceites não podem ser inferiores aos que vigorarem no mercado normal de imóveis e arrendamentos, de harmonia com os valores estabelecidos em peritagem oficial.

5 - Exceptuam-se do preceituado nos números anteriores os arrendamentos para habitação, que seguem o regime geral sobre arrendamento”.

Ora, o objeto subjacente à presente providência cautelar em nada implica a chamada à colação de normas de direito público que se apliquem a procedimento concursal mas tão só aferição se o procedimento seguido de direito privado está certo ou não.

E, questões relativas à interpretação do referido art. 23º e sua implicação no contrato dos autos é uma questão que compete aos tribunais comuns já que o contrato em causa foi celebrado segundo o direito privado.

O cerne da questão a decidir é se o procedimento pré-contratual que devia ter sido seguido era de direito público face àquele artigo 23º do DL 119/93 de 25/2.

E, o recurso que o juiz decisor há-de fazer à aplicabilidade daquele art. 23º à situação dos autos e à eventual remessa do mesmo para procedimentos pré-contratuais suscetíveis de fazerem parte do modo de atuação do direito público, e independentemente de a relação ser de direito privado, em nada chama à colação normas de direito público.

A questão é precisamente a de saber se estamos perante procedimento que devia ter seguido normas de direito público ou da validade de um procedimento de direito privado que foi o seguido.

Ora, estando em causa apenas a validade de um procedimento de direito privado, que foi o seguido, não está em causa a validade, interpretação ou execução de um procedimento pré-contratual sujeito a normas de direito público mas apenas a de saber se este deveria ter sido o seguido.

Pelo que, face à forma como a causa se mostra estruturada na petição cautelar inicial, apenas cumpre ao juiz aferir se o contrato (seja arrendamento ou cessão de exploração) celebrado segundo as regras do direito privado, poderia ou não sê-lo.

Não está em causa um procedimento pré-contratual de um contrato sujeito a normas de direito público mas tão só a questão de saber se o procedimento utilizado, que foi um procedimento de direito privado, foi corretamente efetuado.

Não vai, nesta providência cautelar não especificada, ser necessário o recurso a quaisquer normas de direito público, mas tão só aferir da compatibilidade entre o art. 23º do DL 119/83 de 25/2 e o contrato celebrado a que se reportam estes autos, de cessão de exploração ou arrendamento.

Pelo que, não serão os tribunais administrativos os competentes para conhecer da matéria em causa nos autos mas antes os tribunais comuns.


*

Em face de todo o exposto acordam os juízes deste Tribunal de Conflito em julgar competentes para o conhecimento da ação a que se reportam estes autos o Tribunal Judicial da Comarca de Leiria.

Sem custas.

Lisboa, 3 de Dezembro de 2015. – Ana Paula Soares Leite Martins Portela (relatora) – Mário Belo Morgado – Maria do Céu Dias Rosa das Neves – António da Silva Gonçalves – Alberto Augusto Andrade de Oliveira – Maria Clara Pereira de Sousa de Santiago Sottomayor.