Acórdãos T CONFLITOS

Acórdão do Tribunal dos Conflitos
Processo:07/14
Data do Acordão:12/09/2014
Tribunal:CONFLITOS
Relator:GARCIA CALEJO
Descritores:CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO.
COMPETÊNCIA.
PEDIDO.
CAUSA DE PEDIR.
PROPRIEDADE PRIVADA.
DOMÍNIO PÚBLICO MARÍTIMO
Sumário:Para determinação da competência em razão da matéria de um tribunal, é necessário atender-se ao pedido e especialmente à causa de pedir formulados pelos AA., pois é desta forma que se pode caracterizar o conteúdo da pretensão do demandante.

A acção destinada ao reconhecimento da titularidade do direito de propriedade privada sobre um prédio introduzido no domínio público marítimo deve tramitar na jurisdição comum e não na jurisdição administrativa, de harmonia com os arts. 15º nº 1 e 17º nº 5 da lei 54/2005 de 15 de Novembro.

Nº Convencional:JSTA00069017
Nº do Documento:SAC2014120907
Data de Entrada:02/18/2014
Recorrente:A............. E B................, NO CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO ENTRE O TRIBUNAL JUDICIAL DE FIGUEIRA DA FOZ E O TRIBUNAL ADMINISTRATIVO E FISCAL DE COIMBRA
Recorrido 1:*
Votação:UNANIMIDADE
Meio Processual:CONFLITO
Objecto:CONFLITO NEGATIVO JURISDIÇÃO TJ FIGUEIRA DA FOZ - TAF COIMBRA
Decisão:DECL COMPETENTE TJ FIGUEIRA DA FOZ
Área Temática 1:DIR ADM CONT - CONFLITO JURISDIÇÃO
Legislação Nacional:CONST97 ART211 N1 ART212 N3.
ETAF02 ART1 N1 ART4 N1.
LOFTJ ART26.
L 52/08 DE 2008/08/28 ART26.
L 62/13 DE 2013/08/26 ART80 N1.
L 54/05 DE 2005/11/15 ART12 N1.
Jurisprudência Nacional:AC STA PROC07/04 DE 2004/11/03.
Referência a Doutrina:ALBERTO DOS REIS - COMENTÁRIO AO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL VOLI PAG110.
MANUEL DE ANDRADE - NOÇÕES ELEMENTARES DE PROCESSO CIVIL 1976 PAG94.
MÁRIO AROSO DE ALMEIDA - O NOVO REGIME DO PROCESSO NOS TRIBUNAIS ADMINISTRATIVOS 2005 PAG57.
GOMES CANOTILHO E VITAL MOREIRA - CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA ANOTADA 3ED PAG815.
FREITAS DO AMARAL - LIÇÕES DE DIREITO ADMINISTRATIVO 1989 VOLIII PAG439-440.
VIEIRA DE ANDRADE - A JUSTIÇA ADMINISTRATIVA 9ED PAG112 NOTA199.
Aditamento:
Texto Integral: Acordam no Tribunal de Conflitos:

I- Relatório:

1-1- A……………. e mulher B……………., residentes na Rua ….., nº …, ……, …….., propuseram, no Tribunal Judicial da Figueira da Foz, contra o Estado Português, Ministério do Ambiente e Ordenamento do Território com sede na Rua do Século, nº 51, Lisboa e Administração Regional Hidrográfica do Centro I.P., com sede no Edifício “Fábrica dos Mirandas”, Avenida Cidade Aeminiumm, Coimbra, acção comum ordinária, pedindo a condenação dos RR. a:

1- Reconhecerem que os AA. são os únicos donos e legítimos possuidores do prédio identificado no art. 1º da p.i.;

2- Absterem-se de praticar quaisquer actos que ofendam a propriedade e posse dos AA., designadamente exigir o pagamento de qualquer taxa de recursos hídricos;

3- Indemnizarem os AA. pelos danos morais por ele causados, num montante nunca inferior a 5.000 €.

Fundamentam estes pedidos, dizendo, em síntese, que são proprietários do prédio urbano que identificam, prédio que veio à sua posse por o terem adquirido através de escritura pública celebrada em 21-8-1997, sendo que tanto eles como os seus antepossuidores o têm vindo a possuir, habitando-o, aí recebendo visitas, nele pernoitando, confeccionando as suas refeições etc.

Nunca antes, desde tempos imemoriais e sobretudo durante as últimas décadas, até há cerca de dois a três anos, houve qualquer litígio ou dúvida quanto à qualificação do prédio, bem como do seu domínio provado.

O prédio foi anteriormente da propriedade da Câmara Municipal da Figueira da Foz, tendo sido desanexado do prédio que também identificam o qual, por sua vez, fazia parte do prédio denominado “………….. -…………..”, prédio este que veio a ser loteado e urbanizado pela dita Câmara Municipal, sendo que o lote de terreno dos AA., onde se encontra implantada a casa de habitação identificada no art. 1º da p.i, designado por Lote 51, foi vendido pela Câmara em hasta pública às pessoas que indicam, que nela edificaram a habitação, a qual foi sucessivamente transmitida até ter sido adquirida por eles, AA.

Entretanto, com o avanço das águas do mar e após a construção da urbanização que indicam pela Câmara Municipal da Figueira da Foz, o R. Estado veio a pôr em causa a propriedade privada dos AA. “redefinindo” uma nova linha limite do domínio público marítimo, situando-a naquilo que é a sua casa e no que foi propriedade privada da Câmara Municipal.

O Estado, em 15-11-1993, efectuou um auto de delimitação administrativa com o domínio público marítimo na praia da ………….., ao abrigo do nº 4 do art. 10º do Dec-Lei 468/71 e, por intermédio da R. Administração da Região Hidrográfica do Centro, começou há cerca de dois a três anos a afirmar que onde estão implantados a casa dos AA. e demais construções vendidas em hasta pública pela Câmara Municipal, que constituem propriedade privada, estão implantadas no domínio público marítimo, exigindo-lhes o pagamento de uma taxa (de recursos hídricos), pagamento que têm recusado, dado que o seu prédio constitui, como sempre constituiu, um bem do domínio privado, inclusive do domínio privado da Câmara Municipal da Figueira da Foz.

Os ditos terrenos não estão, nem podiam estar integrados no domínio público marítimo.

Os RR. vêm-lhes causando enormes prejuízos com o seu procedimento, provocando-lhes angústia, incómodos e noites sem dormir.

Por despacho judicial de 21-11-2011, foi declarada a procedência da excepção da incompetência material invocada pelos RR., considerando-se competentes para a apreciação da presente causa, os tribunais administrativos e incompetentes os tribunais comuns.

Em razão desta decisão, os mesmos AA. propuseram contra os mesmos RR. idêntica acção no Tribunal Administrativo e Fiscal de Coimbra.

Por decisão de 8-1-2013, este tribunal julgou verificada a excepção da incompetência do tribunal em razão da matéria, absolvendo da instância os demandados.

Verificado, assim, o conflito negativo de jurisdição, foram os autos remetidos a este Tribunal de Conflitos.

O relator, para aquilatar a identidade das acções propostas nos ditos tribunais, mandou juntar os elementos processuais em falta.

Verificada a dita identidade de acções o processo prosseguiu, tendo-se o M.P. pronunciado pela competência dos tribunais comuns “atentos os fundamentos que constam dos artigos 7 a 14”.

Corridos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir:

II- Fundamentação:

Como é absolutamente claro, o (único) assunto a apreciar e decidir será o de saber quais os tribunais competentes para decidir o presente pleito, se os tribunais comuns, se os tribunais administrativos e fiscais.

Os factos essenciais ao conhecimento do recurso, já acima se referiram. Designadamente já supra se mencionaram os fundamentos da acção e os pedidos deduzidos pelos AA..

Observemos agora os fundamentos das decisões proferidas no tribunal comum e no tribunal administrativo. Assim, na decisão de 21-11-2011, o Tribunal Judicial de Figueira da Foz referiu, entre o mais, que “com a presente acção pretendem os Autores ver reconhecido o seu direito de propriedade para que por essa via sejam consideradas ilegítimas as taxas de ocupação cobradas pelos Réus. Num juízo de prognose, se a pretensão dos autores merecer provimento, os Réus seriam condenados a não cobrar tais taxas, pois que tal acto é perturbador da propriedade dos Autores... Efectivamente, nos presentes autos o objectivo principal é impedir o pagamento de taxas para o que é relevante primeiramente a apreciação do direito de propriedade, uma vez que a cobrança das referidas taxas pela administração pública configura o único acto de turbação da propriedade alegada. Ou seja, o reconhecimento da propriedade dos Autores resume-se ao meio de impedir a prática dos actos administrativos . . . Reflexo disso mesmo é o facto de as partes se limitarem a discutir o modo de aferição dos limites do domínio público. Para além disso e tendo em consideração a relação controvertida tal como ela é configurada pelos AA., os Réus apresentam-se no uso do seu ius imperii uma vez que a sua actuação como autoridade administrativa afecta o direito de propriedade dos Autores. Acresce que a apreciação do peticionado pelos Autores não passa pela apreciação de normas de direito privado, mas antes por normas de direito administrativo que regulam a matéria do domínio público do Estado, tal como aconteceria na impugnação do acto administrativo de imposição de taxas e assim se conclui uma vez que o único acto que determina a produção de danos e a turbação da propriedade dos Autores é esse concreto acto”. Ou seja, a decisão do Tribunal Judicial da Figueira da Foz baseou-se na circunstância de os AA. pretenderem, de essencial, que sejam consideradas ilegítimas as taxas de ocupação que lhes são cobradas pelos RR., constituindo o reconhecimento do seu direito de propriedade sobre o prédio em questão, o (mero) ponto de partida para a sua contestação a tais taxas (de recursos hídricos). Além disso, ao efectuar a cobrança de taxas, os RR. apresentam-se no uso do seu ius imperii, afectando a sua actuação, como autoridade administrativa, o direito de propriedade dos AA. Por fim, a apreciação do pedido dos AA. não se relaciona pela apreciação de normas de direito privado, mas antes por normas de direito administrativo que regulam a matéria do domínio público do Estado.

Por sua vez, o Tribunal Administrativo e Fiscal de Coimbra ponderou no facto de os AA. virem a “solicitar, essencialmente e decisivamente que seja reconhecido que são os únicos e legítimos proprietários de determinado prédio, acrescentando que “o mais que pedem depende prejudicial e absolutamente daquela pretensão”. No caso dos autos não está em causa qualquer litígio emergente de uma qualquer relação jurídica administrativa. “Não se trata da impugnação de uns quaisquer acto ou norma administrativos, nem se trata de uma qualquer relação jurídica decorrente do exercício de poderes de autoridade pública. Está em causa o reconhecimento de que determinado prédio é propriedade privada dos AA.... Ora, estando em causa o reconhecimento de direito privado sobre determinado prédio, não é da competência da jurisdição administrativo dirimir o correspondente conflito”. Isto é, segundo esta decisão não estando em causa qualquer litigio emergente de uma qualquer relação jurídica administrativa, de uma qualquer relação jurídica decorrente do exercício de poderes de autoridade pública, antes se tratando do reconhecimento de direito privado sobre determinado prédio, não será da competência da jurisdição administrativa dirimir o presente litigio.

Vejamos:

Como nos parece pacífico, para determinação da competência em razão da matéria, é necessário atender-se ao pedido e especialmente à causa de pedir formulados pelos AA., pois é desta forma que se pode caracterizar o conteúdo da pretensão do demandante, ou nas doutas palavras de Alberto Reis, é assim que se caracteriza o “modo de ser do processo”(In Com. 1º, 110.)Quer dizer que, para se fixar a competência dos tribunais em razão da matéria, deve atentar-se à relação jurídica material em debate e ao pedido dela emergente, segundo a versão apresentada em juízo pelo demandante.

A competência em razão da matéria, “deriva da competência das diversas espécies de tribunais dispostos horizontalmente, isto é, no mesmo plano, não havendo entre elas uma relação de supra-ordenação e subordinação”, sendo que “na definição desta competência a lei atende à matéria da causa, quer dizer, ao seu objecto encarado sob o ponto de vista qualitativo - o da natureza da relação substancial pleiteada. Trata-se pois de uma competência ratione materiae. A instituição de diversas espécies de tribunais e da demarcação da respectiva competência obedece a um princípio de especialização, com as vantagens que lhe são inerentes”(Manuel Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, 1976, pág. 94.)

O art. 26º da LOFTJ (Lei da Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais, Lei 52/2008 de 28/8, vigente à data das decisões em conflito) estabelece que as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional são da competência dos tribunais judiciais (Hoje o art. 80º nº 1 da Lei 62/2013 de 26 de Agosto estabelece em idêntico sentido que “compete aos tribunais de comarca preparar e julgar os processos relativos a causas não abrangidas pela competência de outros tribunais”.). É que os tribunais judiciais, constituindo os tribunais regra dentro da organização judiciária, gozam de competência não descriminada, gozando os demais, competência em relação às matérias que lhes são especialmente cometidas. A competência dos tribunais judiciais determina-se, pois, por um critério residual, sendo-lhes atribuídas todas as matérias que não estiverem conferidas aos tribunais de competência especializada. Em sentido idêntico estipula o art. 64º do Novo C.P.Civil que “são da competência dos tribunais judiciais as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional”. Na mesma direcção aponta o art. 211º nº 1 da Constituição da República Portuguesa ao estabelecer que “os tribunais judiciais são os tribunais comuns em matéria cível e criminal e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais”.

Por outro lado e no que toca à competência dos tribunais administrativos, estabelece o art. 212º nº 3 da Constituição que “compete aos tribunais administrativos e fiscais os julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais”. Em sentido idêntico estabelece o art. 1º nº 1 do ETAF (Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais - Lei 13/2002 de 19/2 - com as alterações pela Lei 4-A/2003 de 19/2, 107-D/2003 de 31/12 e Dec-Lei 116/2009 de 31/7) que “os tribunais administrativos e fiscais são os órgãos de soberania com competência administrar a justiça em nome do povo, nos litígios emergentes das relações administrativas e fiscais”.

Quer dizer, face aos ditos arts. 1º nº 1 do ETAF e ao 212º nº 3 da Constituição, a competência dos tribunais administrativos e fiscais, dependerá da ponderação sobre se está, ou não, perante pleitos derivados de relações jurídicas administrativas (e fiscais), sendo que só no primeiro caso tal competência se verificará.

E o que constituirá uma relação jurídica administrativa?

Como refere Mário Aroso de Almeida (in Novo Regime do Processo nos Tribunais Administrativos, 2005, pág. 57) “as relações jurídico-administrativas não devem ser definidas segundo critério estatutário, reportado às entidades públicas, mas segundo um critério teológico, reportado ao escopo subjacente às normas aplicáveis”. Ou seja, segundo cremos, serão relações jurídicas administrativas as derivadas de actuações materialmente administrativas, praticadas por órgãos da Administração Pública ou equiparados. Por sua vez os Profs. Gomes Canotilho e Vital Moreira (in Constituição Anotada, 3ª edição, 815) referem a respeito de tais relações que “esta qualificação transporta duas dimensões caracterizadoras: 1- as acções e recursos que incidem sobre relações jurídicas em que, pelo menos, um dos sujeitos é titular, funcionário ou agente de um órgão de poder público (especialmente) da administração; 2 - as relações controvertidas são reguladas sob o ponto de vista material, pelo direito administrativo ou fiscal. Em termos negativos, isto significa que não estão aqui em causa litígios de natureza privada ou jurídico civil. Em termos positivos, um litígio emergente da relações jurídico administrativas e fiscais será uma controvérsia sobre relações jurídicas disciplinadas por normas de direito administrativo e/ou fiscal”. No acórdão do STA de 3-11-04 (in www.dgsi.pt.jsta.nsf), invocando-se o Prof. Freitas do Amaral (Lições de Direito Administrativo, edição 1989, Vol. III, págs. 439, 440) definiu-se a relação jurídica administrativa como “aquela que confere poderes de autoridade ou impõe restrições de interesse público à administração perante particulares, ou aquela que atribui direitos ou impõe deveres públicos aos particulares perante a administração”.

Concretizando o âmbito de jurisdição dos tribunais administrativos, exemplificativamente(Esta circunstância é denunciada pelo emprego na norma, da expressão «nomeadamente») estabelece o art. 4º nº 1 do ETAF (Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais) que “compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham nomeadamente por objecto...”, procedendo depois à enunciação de diversas situações.

Genericamente poder-se-á dizer que a competência dos tribunais administrativos e fiscais abrangerá as questões em que a Administração Pública age segundo um regime de direito administrativo, intervindo investida de poderes de autoridade.

No caso vertente, sem qualquer dúvida apreciável, podemos afirmar que o que despoletou o litígio que divide as partes, os AA. por um lado e os RR., pelo outro, foi a legalidade, ou ilegalidade, da cobrança de taxa administrativa (de recursos hídricos) aos AA, pela Administração Regional Hidrográfica do Centro I.P., por esta considerar que o prédio urbano deles está implantado no domínio público marítimo.

A este propósito referem os AA. na petição inicial que o Estado, por intermédio da Administração da Região Hidrográfica do Centro. IP. (ARH) “começou há cerca de dois a três anos a afirmar que o terreno onde está implantada a casa dos Autores e as demais construções vendidas em hasta pública pela Câmara Municipal da Figueira da Foz, que constituem propriedade privada, estão implantadas no domínio público marítimo, como tal o redefiniu naquele auto referido no art. 68º desta p.i, exigindo-lhes ... através daquela ARH, o pagamento da Taxa de Recursos Hídricos (TRH), com base na ocupação de terrenos do domínio público hídrico do Estado..., pagamento esse, recusado pelos Autores, impugnando a decisão de aplicação da referida TRH” (arts. 71º, 72º e 73º).

Quer dizer, segundo os AA. o pagamento da dita taxa resulta de o Estado ter redefinido o domínio público marítimo(O domínio público marítimo está definido no art. 3º da Lei 54/2005 de 15/11, sendo pertença do Estado como decorre do art. 4º do mesmo diploma.) na praia da …………. (onde se encontra a sua casa) e consequentemente ter passado a considerar que essa habitação e demais casas aí situadas, estão implantadas no domínio público marítimo(O domínio público marítimo está compreendido, juntamente com o domínio público fluvial, com o domínio público lacustre e com o domínio público de outras águas, no domínio público hídrico (art. 2º nº1 da Lei 54/2005 de 15/11.) (vide também art. 68º da p.i.). A redefinição desse domínio teve a ver, como os AA. profusamente referem na sua p.i, pelo avanço do mar naquela zona (vide designadamente o art. 64º da p.i.).

Pese embora estas circunstâncias os AA. continuam a sustentar que o local onde se encontra implantada a sua casa, tem a natureza privada. Daí o terem nesta acção formulado o pedido de reconhecimento de que são os únicos donos e legítimos possuidores do prédio que identificam.

Como decorre do art. 12º nº 1 da Lei 54/2005 de 15 de Novembro, a circunstância de um terreno se situar no âmbito de um domínio público, não obsta a que possam subsistir direitos de natureza privada já existentes. Com efeito, refere esta disposição que “são particulares sujeitas a servidões administrativas, os leitos e margens de águas do mar e de águas navegáveis e flutuáveis que forem objecto de desafectação e ulterior alienação, ou que tenham sido, ou venham a ser, reconhecidos como privados por força de direitos adquiridos anteriormente, ao abrigo de disposições expressas desta lei presumindo-se públicos em todos os demais casos”. Isto é e para o que aqui importa, as faixas de terreno qualificadas como margens, estão sujeitas a uma presunção juris tantum de propriedade pública, mas podem os particulares invocar sobre elas direitos de natureza privada, devendo para tal elidir essa presunção, propondo a pertinente acção.

Com vista ao reconhecimento destes direitos de natureza particular estabelece o art. 15º nº1 da mesma Lei que “quem pretenda obter o reconhecimento da sua propriedade sobre parcelas de leitos ou margens das águas do mar ou de quaisquer águas navegáveis ou flutuáveis pode obter esse reconhecimento desde que intente a correspondente acção judicial até 1 de Janeiro de 2014, devendo provar documentalmente que tais terrenos eram, por título legítimo, objecto de propriedade particular ou comum antes de 31 de Dezembro de 1864 ou, se se tratar de arribas alcantiladas, antes de 22 de Março de 1868”.

Quer dizer, quando os particulares pretendam ver reconhecida a sua propriedade privada sobre margens públicas (ou leitos), deverão intrometer o pleito nos tribunais comuns. Neste sentido estabelece (ainda) o art. 17º nº 5 do mesmo diploma que “a delimitação a que se proceder por via administrativa não preclude a competência dos tribunais comuns para decidir da propriedade ou posse dos leitos e margens ou suas parcelas»( Isto, sem prejuízo de que “se, porém, o interessado pretender arguir o acto de delimitação de quaisquer vícios próprios deste que se não traduzam numa questão de propriedade ou posse, deve instaurar a respectiva acção especial de anulação” (nº 6 do mesmo art. 17º).). Ou seja, mesmo no caso de se ter delimitado administrativamente as margens públicas (ou leitos), isso não prejudica a competência dos tribunais comuns para apreciar e decidir sobre a propriedade desses bens.

Por conseguinte, face a estes dispositivos compete aos tribunais comuns dirimir as questões de propriedade sobre, para o que aqui interessa, margens de águas do mar, ou seja, caberá a esses tribunais resolver as questões de direito que envolvam a qualificação jurídica de tais bens.

Neste sentido refere o Prof. Vieira de Andrade (in A Justiça Administrativa, 9ª edição, pág. 122, nota 199), “...a Lei nº 54/2005 determina que, embora a delimitação dos leitos e margens dominiais com terrenos privados seja feita por via administrativa (participada), a jurisdição administrativa só é competente para a acção especial de anulação, quando se invoquem vícios próprios do acto que não se traduzam na questão da propriedade ou da posse dos leitos e margens ou suas parcelas, já que estas questões competem aos tribunais comuns (artigo 17º nºs 5 e 6)”.

Nesta conformidade, face à forma como os AA. colocaram a acção e face ao pedido que formularam, a competência para apreciar do pleito, será dos tribunais comuns.

Elabora-se o seguinte sumário:

Para determinação da competência em razão da matéria de um tribunal, é necessário atender-se ao pedido e especialmente à causa de pedir formulados pelos AA., pois é desta forma que se pode caracterizar o conteúdo da pretensão do demandante.

A acção destinada ao reconhecimento da titularidade do direito de propriedade privada sobre um prédio introduzido no domínio público marítimo deve tramitar na jurisdição comum e não na jurisdição administrativa, de harmonia com os arts. 15º nº 1 e 17º nº 5 da lei 54/2005 de 15 de Novembro.

III- Decisão:

Por tudo o exposto, resolvendo o conflito negativo de jurisdição, declara-se ser o Tribunal Judicial da Figueira da Foz o competente para apreciação do pleito.

Sem custas.

Lisboa, 9 de Dezembro de 2014. - Ernesto António Garcia Calejo (relator) - Maria Fernanda dos Santos Maçãs - Hélder João Martins Nogueira Roque - Alberto Augusto Andrade de Oliveira - Raúl Eduardo do Vale Raposo Borges - José Francisco Fonseca da Paz.