Acórdãos T CONFLITOS

Acórdão do Tribunal dos Conflitos
Processo:037/19
Data do Acordão:02/06/2020
Tribunal:CONFLITOS
Relator:MANUEL AUGUSTO DE MATOS
Descritores:CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO
Sumário:
Nº Convencional:JSTA000P25568
Nº do Documento:SAC20200206037
Data de Entrada:07/08/2019
Recorrente:A................., NO CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO, ENTRE O TRIBUNAL JUDICIAL DO PORTO ESTE - JUÍZO DO TRABALHO DE PENAFIEL - JUIZ 1 E O TRIBUNAL ADMINISTRATIVO E FISCAL DE PENAFIEL
Recorrido 1:*
Votação:UNANIMIDADE
Área Temática 1:*
Aditamento:
Texto Integral: Conflito negativo de jurisdição
Acordam no Tribunal dos Conflitos:

I - RELATÓRIO

1. A…………… participou em 21-06-2017 no Tribunal do Trabalho de Penafiel - Comarca de Porto Este a ocorrência de um acidente de trabalho no dia 12-01-2016 quando, no exercício das suas funções de assistente operacional na área de apoio à acção educativa no Município de Penafiel, transportava um armário de um piso para outro, de que lhe resultou uma lesão.

Na sequência de promoção pelo Ministério Público, veio ser proferida naquele Tribunal, em 11-09-2017, decisão a declarar aquele Juízo do Trabalho materialmente incompetente para conhecer da acção proposta, absolvendo as demandadas da instância, considerando-se, em conclusão:

«1.ª A relação estabelecida entre uma beneficiária da medida contrato-emprego-inserção e um município, ao abrigo de um "contrato emprego inserção", celebrado ao abrigo da Portaria n.º 128/2009, de 30/01, não é qualificável como de contrato de trabalho.

2.ª O Tribunal do trabalho não dispõe de competência, em razão da matéria, para conhecer de um acidente sofrido no âmbito de execução de um contrato Emprego Inserção, celebrado ao abrigo da Portaria n.º 128/2009, de 30/01.»

Transitada a decisão, veio a mesma autora intentar no Tribunal Administrativo e Fiscal de Penafiel acção administrativa contra o Município de Penafiel e contra o Instituto do Emprego e Formação Profissional, I.P. (IEFP) pedindo a sua condenação solidária:

- No pagamento de uma quantia a ser fixada, a título de indemnização pela IPG

- incapacidade geral permanente e ou pela IPP - incapacidade permanente parcial que se vier ou vierem a apurar;

- No pagamento da quantia de 5.000,00 €, a título de indemnização por danos não patrimoniais.

Fundamentou a sua pretensão alegando, em síntese, que sofreu um acidente em 12-01-2016 durante o desempenho das suas funções de apoio à acção educativa em execução do projecto de trabalho socialmente necessário no Centro Escolar de …………, ao abrigo do Contrato Emprego-Inserção + por si celebrado em 16-04-2015 com aquele Município no âmbito da Medida Contrato Emprego-Inserção + para Desempregados Beneficiários do Rendimento Social de Inserção e outros Desempregados Elegíveis, regulamentada pela Portaria n.º 128/2009, de 30 de Janeiro, alterada e republicada pela Portaria n.º 20-B/2014, de 30 de Janeiro.

Por decisão proferida em 02-05-2019, foi julgada verificada a excepção dilatória de incompetência, absoluta, em razão da matéria do Tribunal Administrativo de Penafiel, determinando-se a absolvição dos demandados da instância.
Para tanto, o Tribunal Administrativo prevaleceu-se da jurisprudência do Tribunal dos Conflitos com expressa invocação dos acórdãos aí proferidos nos processos n.ºs 15/17 e 40/18, com transcrição de extenso trecho do primeiro.
Sublinhando-se aí o seguinte segmento textual do citado acórdão proferido em 19-10-2017, no conflito n.º 15/17:
«No fundo, o que o presente processo visa é a garantia do direito à reparação das consequências de um acidente sofrido por um trabalhador no desempenho das suas funções, ou seja de um normal acidente de trabalho.

O acidente em causa preenche todas as condições para ser considerado como um acidente de trabalho, nos termos da Lei n.º 98/2009, de 4 de Setembro, e dada a relação do regime destes acidentes com o regime jurídico do contrato de trabalho, por força do disposto no art. 4.º, n.º 4, alínea b) do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, conforme acima se referiu, a competência para conhecer do presente processo deve ser atribuída aos tribunais judiciais.

Na verdade embora a relação que liga o trabalhador sinistrado ao Município tenha elementos de natureza administrativa, dada a sua relação com a atribuição do estatuto de beneficiário do Rendimento Social de Inserção, o litígio é resolvido pela aplicação do direito privado, do regime dos acidentes de trabalho que é parte integrante da disciplina jurídica do contrato de trabalho.»

Tendo-se ainda considerado que a situação apreciada «é perfeitamente equiparável à situação tratada no supra referido Acórdão (e, bem assim, no Acórdão n.º 040/18), razão pela qual a fundamentação supracitada é aplicável mutatis mutandis e a fortiori ao caso sub juditio».

Ambas as decisões a enjeitar a competência transitaram em julgado.

Verifica-se a existência efectiva de um conflito negativo de competência sobre a matéria em causa, ou seja, in casu, sobre qual a jurisdição, comum ou administrativa, materialmente competente para o conhecimento das questões emergentes do acidente sofrido por A…………….. nas circunstâncias e enquadramento contratual já referidos.

É esse o conflito cuja resolução vem pedida e que cumpre decidir.

2. O Ministério Público emitiu parecer concluindo que, resolvendo-se o presente conflito de jurisdição, deverá o tribunal judicial ser declarado competente, em razão da matéria, para o conhecimento da acção.

II - FUNDAMENTAÇÃO

1. Uma vez que dois tribunais integrados em diferentes ordens jurisdicionais declinaram, por decisões transitadas em julgado, a competência para conhecer da mesma questão, desenha-se aqui, sem dúvida, um conflito de jurisdição que cabe a este Tribunal resolver, nos termos do disposto nos artigos 109.º, n.ºs 1 e 3, e 110.º do Código de Processo Civil.

2. Como este Tribunal tem reiteradamente afirmado, a competência afere-se em função dos termos da acção, ou configuração da relação material controvertida, tal como definidos pelo autor (v., entre outros, o acórdão de 21-04-2016, proferido no proc. n.º 042/15 e mais jurisprudência aí referenciada).

3. Proclama o artigo 202.º, n.º 1, da Constituição da República que os tribunais são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo, sendo que cabe aos tribunais judiciais a competência para julgar as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional, conforme disposto no artigo 211.º, n.º 1, da Lei Fundamental e no artigo 40.º, n.º 1, da Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto (Lei da Organização do Sistema Judiciário).

Aos tribunais administrativos e fiscais pertence o julgamento das acções que tenham por objecto dirimir litígios emergentes das relações administrativas e fiscais (artigos 212.º, n.ºs 1 e 3 da Constituição), estabelecendo o artigo 1.º, n.º 1, do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, na sua actual redacção, conferida pelo Decreto-Lei n.º 214-G/2015, de 2 de Outubro, que «Os tribunais da jurisdição administrativa e fiscal são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo, nos litígios compreendidos pelo âmbito de jurisdição previsto no artigo 4.º deste Estatuto».

A competência dos tribunais em razão da matéria, ou jurisdição, afere-se em função da configuração da relação material controvertida, dos termos em que é formulada a pretensão.

Como lembra o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto no seu parecer, a questão em apreço já mereceu a atenção deste Tribunal dos Conflitos, tendo-se fixado jurisprudência no sentido de que «o acidente sofrido por um trabalhador, beneficiário do Rendimento Social de Inserção, a exercer funções para um município, no âmbito de um contrato emprego-inserção, no tempo e no local de trabalho, deve ser considerado como acidente de trabalho, nos termos dos artigos 8.º e 9.º da Lei n.º 98/2009, de 4 de Setembro. Citam-se, neste sentido os acórdãos do tribunal dos Conflitos de 19-10-2017 e de 25-01-2018, proferidos nos processos n.ºs 15/17 e 53/17, respectivamente.

Acrescentando-se no mesmo parecer:

«Com efeito, como nesse último aresto se deixou expresso, do "contrato emprego-inserção+" não decorre um vínculo de emprego público, não estando a situação do trabalhador que celebrou com uma autarquia local um contrato dessa natureza, como ocorre no caso vertente, contemplado em qualquer das hipóteses previstas no art. 2.º do DL n.º 503/99, de 20 de Nov.

Por outro lado, como também se assinala no mesmo douto aresto, o art. 4.º, n.º 4, al. b), do ETAF expressamente exclui do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios decorrentes de contratos de trabalho, ainda que uma das partes seja uma pessoa colectiva de direito público, com excepção dos litígios emergentes do vínculo de emprego público».

Os contornos da presente acção são, reconhece-se no mesmo parecer, para os efeitos em causa, idênticos aos apreciados nos aludidos Conflitos n.ºs 15/17 e 53/17 merecendo, por isso, salvo melhor entendimento, idêntico tratamento no que concerne à aferição e determinação da competência, em razão da matéria, para o conhecimento da causa.

Efectivamente, este Tribunal dos Conflitos tem vindo a decidir com uniformidade que, em situações com contornos fáctico-jurídicos similares aos apresentados pela autora:

«I - O acidente sofrido por um trabalhador, beneficiário do Rendimento Social de Inserção, a exercer funções de pedreiro, para um município, no âmbito de um contrato emprego-inserção, no tempo e no local de trabalho, deve ser considerado como acidente de trabalho, nos termos dos artigos 8.º e 9.º da Lei n.º 98/2009, de 4 de Setembro.

II - O município, enquanto destinatário do trabalho prestado, é responsável pela reparação das consequências do acidente referido no número anterior, nos termos do n.º 1 do artigo 3.º da referida Lei.

III - Não tendo o trabalhador em causa um vínculo para o exercício de funções públicas de nomeação ou de contrato de trabalho em funções públicas, o acidente em causa não pode ser considerado como acidente em serviço, nos termos do Decreto-lei n.º 503/99, de 20 de Novembro.

IV - Nos termos do artigo 4.º, n.º 4, alínea b), do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, incumbe aos tribunais judiciais a competência para conhecer de processo visando a reparação das consequências do referido no número 1.»

No acórdão de 19-10-2017, a que pertence o sumário que vem de se transcrever, proferido no Conflito n.º 015/17 (Relator: Cons. António Leones Dantas), estava em causa «saber qual é o tribunal competente para conhecer de um acidente sofrido por um trabalhador, beneficiário do Rendimento Social de Inserção, ao serviço de uma Câmara Municipal, a desempenhar funções de pedreiro, no quadro de um "contrato de emprego-inserção+", na recuperação de áreas urbanas», contrato esse com clausulado idêntico ao celebrado entre a autora e o Município de Penafiel apresentado na acção, foi expresso o entendimento de que considerou-se.

«Decorre, em síntese, deste contrato que o trabalhador se obriga a prestar ao Município de Moura a sua actividade, tendo como contrapartida dessa prestação os direitos discriminados na cláusula 3.ª, nomeadamente: «a) Uma bolsa de ocupação mensal, de montante igual ao valor do Indexante dos Apoios Sociais; b) Um subsídio de alimentação referente a cada dia de actividade, de valor correspondente ao atribuído à generalidade dos trabalhadores do primeiro outorgante ou, na sua falta, ao atribuído aos trabalhadores que exerçam funções públicas; c) O pagamento das despesas de transporte, entre a residência habitual e o local de actividade, se não for assegurado o transporte até ao local de execução do projecto; d) Um seguro que cubra os riscos que possam ocorrer durante e por causa do exercício das actividades integradas no projecto de trabalho socialmente necessário».

Nos termos do n.º 2 desta cláusula 3ª, o Município «compromete-se a respeitar as condições de higiene e segurança no trabalho a que estiver obrigado nos termos legais e convencionais do sector de actividade em que se integra» e na sequência desta obrigação cria as condições para que o trabalhador beneficie de «um seguro que cubra os riscos que possam ocorrer durante e por causa do exercício das actividades integradas no projecto de trabalho socialmente necessário».

Em execução desta obrigação, o Município outorgou com uma companhia de seguros um contrato para a transferência de responsabilidade civil por acidente de trabalho e foi na execução deste contrato que a seguradora assistiu o sinistrado através dos seus serviços clínicos e apresentou ao Tribunal a participação que deu origem ao presente processo.

Por outro lado, nos termos do contrato celebrado, o trabalhador tem direito a «um período até ao limite de horas correspondentes a 4 dias por mês, para efectuar diligências de procura activa de emprego, devendo comprovar a efectivação das mesmas».

O trabalho a que se refere o contrato é prestado, nos termos da cláusula 2.ª, «no Concelho de Moura e realizar-se-á de acordo com o horário que legal e convencionalmente está em vigor para o sector de actividade onde se insere o projecto da medida contrato emprego-inserção+ e conforme acordado entre as partes no presente contrato, ou seja, entre as 8h00m e as 16h00m.»

Tem particular relevo na caracterização desta relação de trabalho as obrigações decorrentes da cláusula 4.ª nomeadamente, «a) Aceitar a prestação de trabalho necessário no âmbito do projecto, desde que aquele reúna, cumulativamente, as seguintes condições: a1) Seja compatível com a capacidade física e com a qualificação ou experiência profissional do segundo outorgante; a2) Consista na satisfação de necessidades sociais ou colectivas ao nível local ou regional; a3) Permita a execução das tarefas de acordo com as normas legais de segurança e saúde no trabalho; a4) Não corresponda ao preenchimento de postos de trabalho nos quadros de pessoal do primeiro outorgante», «b) Tratar com urbanidade o primeiro outorgante, seus representantes e demais colaboradores, bem como os outros participantes no projecto», c) Guardar lealdade ao primeiro outorgante, designadamente, não transmitindo para o exterior informações de que tenha tomado conhecimento durante a execução do projecto», «d) Utilizar com cuidado e zelar pela boa conservação de equipamentos e demais bens que lhe sejam confiados, pelo primeiro outorgante ou seus representantes, no decurso da execução do projecto» e «Aceitar emprego conveniente e/ou formação profissional considerada relevante para a integração no mercado de trabalho, caso lhe venha a ser proposto pelo IEFP, I. P. no decorrer do projecto».

A actividade prosseguida pelo trabalhador está ainda sujeita a controlo de assiduidade, nos termos da cláusula 5.ª que disciplina as faltas e os seus efeitos.

Na caracterização da relação de trabalho emergente deste contrato, releva também a circunstância de o Município, enquanto destinatário do trabalho prestado pelo trabalhador, ser responsável parcialmente pelo pagamento da bolsa a que o trabalhador tem direito, nos termos do artigo 13.º, n.º 3 e n.º 5 da Portaria n° 128/2009, de 30 de Janeiro.

Os elementos acima referidos permitem afirmar que do contrato celebrado entre as partes decorre a existência de uma relação de trabalho subordinado (o Município enquanto destinatário da actividade prosseguida pelo trabalhador define e enquadra o trabalho a prestar e controla a sua prestação efectiva), sendo que se trata de uma relação atípica, com componentes retributivas e com uma dimensão de precaridade.

A bolsa e as demais componentes retributivas pagas pelo Município ao trabalhador não se confundem com a pensão do Rendimento Social de Inserção de que o mesmo beneficia, sendo motivadas pela prestação de trabalho que justifica o seu pagamento.

As medidas disciplinadas na Portaria n.º 128/2009, de 30 de Janeiro, enquadram-se no direito constitucional à Segurança Social, com assento no artigo 63.º da Constituição da República, sendo medidas de política activa de emprego e são complementares aos instrumentos de protecção social, no caso o Rendimento Social de Inserção, realizando os objectivos definidos no artigo 3.º daquela Portaria, concretamente: «a) Promover a empregabilidade de pessoas em situação de desemprego, preservando e melhorando as suas competências sócio-profissionais, através da manutenção do contacto com o mercado de trabalho; b) Fomentar o contacto dos desempregados com outros trabalhadores e actividades, evitando o risco do seu isolamento, desmotivação e marginalização; c) A satisfação de necessidades sociais ou colectivas, em particular ao nível local ou regional.»

5 - De acordo com os elementos decorrentes do processo, o sinistrado quando se encontrava no exercício das suas funções, ao descer de um andaime, torceu o pé esquerdo, do que resultaram as lesões clínicas igualmente documentadas nos autos que produziram incapacidade para o trabalho, não decorrendo dos autos quais são as consequências definitivas das mesmas.

As funções em causa eram desempenhadas nos termos de um contrato de inserção-emprego+ celebrado com o Município de Moura que enquadrava e dirigia o trabalho prestado pelo sinistrado e que assumia a responsabilidade pelo pagamento de parte da contrapartida paga ao sinistrado pelo trabalho desempenhado.

Mau grado o trabalho em causa se insira no âmbito das medidas de inserção que enquadram a situação inerente à atribuição do Rendimento Social de Inserção de que o sinistrado beneficiava, a bolsa que o mesmo auferia não se confunde com a prestação do rendimento social, tendo autonomia face à mesma, sendo uma verdadeira contrapartida do trabalho prestado.

O Município é o destinatário do trabalho em causa, que enquadra e dirige, assumindo igualmente parte da contrapartida devida ao sinistrado pelo trabalho prestado.

Pode o acidente dos autos ser considerado um acidente de trabalho, nos termos da Lei n.º 98/2009, concretamente à luz dos artigos, 3.º que se refere ao âmbito da lei e da noção conceito de acidente de trabalho que resulta dos artigos 8.º e 9.º daquela Lei?

A resposta é claramente afirmativa.

Na verdade, o evento sofrido pelo trabalhador dos autos preenche o conceito de acidente descrito no n.º1 do artigo 8.º daquela lei que refere que «é acidente de trabalho aquele que se verifique no local e no tempo de trabalho e produza directa ou indirectamente, lesão corporal, perturbação funcional ou doença de que resulte redução da capacidade de ganho ou a morte».

Por outro lado, independentemente da natureza da relação estabelecida entre o Município e o Trabalhador, dúvidas não restam de que a situação dos autos se insere no n.º 1 do artigo 3.º da Lei que refere que o «regime previsto na presente lei abrange o trabalhador por conta de outrem de qualquer actividade, seja explorada ou não com fins lucrativos».

No caso dos autos o Município era o destinatário do trabalho prestado e responsável pelo mesmo, pelo que não pode dizer-se que as funções em causa não fossem desempenhadas «por conta» daquele Município.

Mesmo que se considerasse que não existia nos autos uma situação de subordinação relevante, o que não é o caso, o conceito de acidente de trabalho sempre enquadra os acidentes sofridos na execução de trabalhos espontaneamente prestados, conforme decorre da alínea b) do n.º 1 do artigo 9.º daquela Lei.

Importa contudo que se afirme que não é essencial ao conceito de acidente de trabalho que as tarefas no contexto do qual o acidente ocorre sejam prestadas no âmbito de uma relação de trabalho subordinado, titulada por um contrato de trabalho.

Caracterizado o evento como um acidente nos termos do artigo 8.º da Lei, e enquadrada a situação em cujo âmbito o acidente ocorre, no âmbito do n.º 1 do artigo 3.º daquele diploma, ou seja, que as tarefas executadas o sejam «por conta de outrem» isso, em princípio isso basta para que se possa considerar o acidente como um acidente de trabalho, a abranger pela Lei n.º 98/2009, de 4 de Setembro.

A entidade por conta de quem o trabalho é prestado, nos termos da lei, assume o risco pela reparação das consequências que derivem do acidente, transfere a sua responsabilidade para uma companhia seguradora, nos termos do artigo 79.º da referida Lei n.º 98/2009, de 4 de Setembro.

6 - O Regime Jurídico dos Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais, hoje resultante da Lei n.º 98/2009, de 4 de Setembro, é parte integrante do regime do contrato de trabalho consagrado no Código do Trabalho.

Na verdade, o Código do Trabalho em vigor, insere no Título II, dedicado ao contrato de trabalho, um capítulo III, relativo à «prevenção e reparação de acidentes de trabalho e doenças profissionais» que integra os artigos 281.º, 282.º, 283.º e 284.º.

Este último artigo remete a regulamentação do disposto naquele capítulo para legislação específica que hoje é a citada Lei n.º 98/2009, remessa que não põe em causa a natureza privada deste segmento do direito e a sua inerente relação com o regime jurídico do contrato de trabalho.

Apesar de o sinistrado se encontrar ao serviço de uma autarquia local, o sinistro dos autos não pode considerar-se um acidente em serviço, nos termos do Decreto-Lei n.º 503/99, de 20 de Novembro.

Na verdade, as funções assumidas pelo sinistrado, dada a sua atipicidade, não podem considerar-se «funções públicas», nos termos e para os efeitos do disposto nos n.ºs 1 e 2 do artigo 2.º do referido Decreto-lei, uma vez que não se inserem na realização das atribuições do Município.

Por outro lado, a relação de trabalho que ligava o sinistrado ao Município não integra um vínculo de trabalho em funções públicas, tal como ele hoje decorre da Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas, aprovada pela Lei n.º 35/2014, de 20 de Junho.

Na verdade, esse regime, que é aplicável na administração autárquica por força do disposto no n.º 2 do artigo 1.º, consagra como formas de vinculação ao exercício de funções públicas, nos termos do n.º 3 do seu artigo 6.º, o contrato de trabalho em funções públicas, a nomeação e a comissão de serviço, formas de vinculação que não ocorrem no caso dos autos.

O acidente dos autos não pode pois considerar-se abrangido pelo Regime Jurídico dos Acidentes em Serviço e das Doenças Profissionais no âmbito da Administração Pública.»

Continuando a acompanhar o mesmo acórdão, aí se consigna que:

«O acidente em causa preenche todas as condições para ser considerado como um acidente de trabalho, nos termos da Lei n.º 98/2009, de 4 de Setembro, e dada a relação do regime destes acidentes com o regime jurídico do contrato de trabalho, por força do disposto no art. 4.º, n.º 4, alínea b) do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, conforme acima se referiu, a competência para conhecer do presente processo deve ser atribuída aos tribunais judiciais.

Na verdade embora a relação que liga o trabalhador sinistrado ao Município tenha elementos de natureza administrativa, dada a sua relação com a atribuição do estatuto de beneficiário do Rendimento Social de Inserção, o litígio é resolvido pela aplicação do direito privado, do regime dos acidentes de trabalho que é parte integrante da disciplina jurídica do contrato de trabalho».

Termos em que aí se decidiu resolver o conflito de jurisdição suscitado atribuindo a competência para conhecer do presente processo aos Tribunais Judiciais.

No sentido da atribuição da competência em razão da matéria à jurisdição comum em situações que, como já referido, apresentam fortes semelhanças com a que aqui se nos apresenta, estando em causa situações decorrentes da execução de «contratos emprego-inserção+», podem convocar-se também os acórdãos deste Tribunal dos Conflitos de 25-01-2018, proferido no processo 053/17 (Relatora: Cons. Maria Benedita Urbano), de 31-01-2019, proferido no processo 040/18 (Relatora: Cons. Maria João Vaz Tomé), e de 28-02-2019, proferido no processo 042/18 (Relator: Cons. Abrantes Geraldes), todos disponíveis nas Bases Jurídico-Documentais do IGFEJ, em www.dgsi.pt.

Perante esta uniforme e consolidada jurisprudência, aderindo à argumentação aí condensada, há que atribuir a competência material para apreciar a acção ao Juízo do Tribunal do Trabalho de Penafiel da Comarca do Porto-Este.

III - DECISÃO

Em face do exposto, resolvendo o presente conflito de jurisdição, os Juízes do Tribunal dos Conflitos decidem atribuir a competência em razão da matéria para o conhecimento da presente acção ao tribunal da jurisdição comum, no caso, ao Juízo do Trabalho de Penafiel.

Sem custas.

Lisboa, 6 de Fevereiro de 2020. - Manuel Pereira Augusto de Matos (relator) - Teresa Maria Sena Ferreira de Sousa - Maria Rosa Oliveira Tching - Carlos Luís Medeiros de Carvalho - Maria da Graça Machado Trigo Franco Frazão - Jorge Artur Madeira dos Santos.