Acórdãos T CONFLITOS

Acórdão do Tribunal dos Conflitos
Processo:011/22
Data do Acordão:06/01/2022
Tribunal:CONFLITOS
Relator:TERESA DE SOUSA
Descritores:CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO
TRIBUNAIS JUDICIAIS
CONTRA-ORDENAÇÃO
CCP
Sumário:Uma contra-ordenação em matéria de contratação pública, prevista e punida expressamente pela alínea b) do 456º do CCP, mas que não se integra no conceito respeitante a urbanismo, mas sim, de contra-ordenação respeitante à violação de regras da contratação pública, não existindo, neste caso, expressa disposição em contrário, a impugnação deste ilícito de mera ordenação social está excluída da previsão do art. 4º, nº 1, al. l) do ETAF, cabendo, portanto, a sua apreciação à jurisdição comum.
Nº Convencional:JSTA000P29502
Nº do Documento:SAC20220601011
Data de Entrada:03/29/2022
Recorrente:CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO, ENTRE O TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LISBOA OESTE – JUÍZO LOCAL CRIMINAL DE SINTRA – JUIZ 4 E O TRIBUNAL ADMINISTRATIVO E FISCAL DE SINTRA
REQUERENTE: A.............., LDA
REQUERIDO: CÂMARA MUNICIPAL DE SINTRA
Recorrido 1:*
Votação:UNANIMIDADE
Área Temática 1:*
Aditamento:
Texto Integral: Conflito nº 11/22

Acordam no Tribunal dos Conflitos

1. Relatório
A………….., Lda , identificada nos autos, é arguido em processo de contra-ordenação instaurado pelo Instituto dos Mercados Públicos do Imobiliário e da Construção, IP [doravante IMPIC], tendo sido punida com uma coima de €7.500,00, acrescida de custas inerentes ao processo, por despacho de concordância de 21.09.2029, do Vogal do Conselho Directivo do IMPIC, porque “incumpriu a obrigação de entrega dos documentos de habilitação num procedimento de empreitadas de obras públicas, violando, por isso, com dolo, o disposto no artº 456º nº 1 alínea b) do Código dos Contratos Públicos, o que constitui um ilícito de mera ordenação social muito grave, por força do disposto no artº 37º, nº 1 alínea a) da Lei nº 41/2015, de 03 de junho”.
Notificado da decisão final emitida no referido processo o arguido interpôs a respectiva impugnação judicial (cfr. fls. 64 a 66 dos autos).
Remetidos os autos ao Ministério Público da Comarca de Lisboa Oeste, Procuradoria do Juízo Local Criminal de Sintra este fez os autos presentes a esse Tribunal, nos termos do art. 62º, nº 1 do DL nº 433/82, de 27/10 (cfr. fls. 75/76).

Por decisão proferida pelo Juízo Local Criminal de Sintra, Juiz 4, do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste, em 15.06.2021, foi declarada a incompetência desse Tribunal, em razão da matéria, para apreciação dos recursos interpostos pela arguida considerando ser competente para o efeito o Tribunal Administrativo e Fiscal (cfr. fls. 91 e 93).
Após trânsito, foi o processo remetido ao TAF de Sintra.

Por decisão de 24.02.2022, o TAF de Sintra julgou-se incompetente, em razão da matéria, para conhecer do recurso de impugnação contra-ordenacional, por não estar em causa matéria subsumível à previsão do art. 4º, nº 1, al. l) do ETAF.

Transitada esta decisão, o Sr. Juiz do TAF de Sintra suscitou o conflito negativo de jurisdição entre aquele Tribunal e o Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste, Juízo Local Criminal de Sintra, ordenando que os autos fossem remetidos à Exma. Senhora Presidente do Tribunal dos Conflitos - despacho de 23.03.2022.
Remetido o processo a este Tribunal dos Conflitos foi dado cumprimento ao disposto no art. 11º, nº 3 da Lei nº 91/2019.
A Exma. Procuradora Geral Adjunta emitiu parecer em 28.04.2022, no sentido de que a competência para julgar a impugnação judicial da decisão punitiva em causa deverá ser atribuída aos Tribunais Comuns, conforme o entendimento expresso na decisão do TAF de Sintra.


2. Os Factos
Os factos relevantes para a decisão são os enunciados no Relatório.

3. O Direito
O presente Conflito Negativo de Jurisdição vem suscitado entre o Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste, Juízo Local Criminal de Sintra, Juiz 4 e o TAF de Sintra.
A questão que está em causa nos autos é a de saber qual a jurisdição competente para apreciar a impugnação judicial apresentada pela arguida, no IMPIC em 21.10.2020 e remetida pelo Ministério Público ao Tribunal em 10.11.2020, respeitante à aplicação de uma coima por violação do disposto no art. 456º, nº 1, alínea b) do Código dos Contratos Públicos (CCP), o que constitui um ilícito de mera ordenação social muito grave, por força do disposto no art. 37º, nº 1 alínea a) da Lei nº 41/2015, de 3 de Junho.

Entendeu o Juízo Local Criminal de Sintra, Juiz 4 que, estando em causa a eventual prática de uma contra-ordenação, prevista e punida pelo art. 37º, nº 1, al. a) e nº 2, al. i) da Lei nº 41/2015, de 3/6, por remissão para os arts. 455º e 456º, ambos do CCP, compete à jurisdição administrativa e fiscal conhecer da impugnação judicial. Isto porque, “…, tal decisão, bem como todo o procedimento em causa constitui um acto administrativo, mais propriamente “acto da administração”. Assim, para apreciar da bondade da aplicação da coima nos presentes autos, é necessário apreciar a relação contratual subjacente”. Concluiu-se que estavam em causa actos de gestão pública, praticados no exercício de uma função pública, para fins de interesse público da pessoa colectiva, regidos pelo direito público, que atribuem à pessoa colectiva poderes de autoridade para tais fins, donde derivava a incompetência absoluta daquele Tribunal, em razão da matéria.
Remetido o processo ao TAF de Sintra este, por sua vez, considerou-se incompetente em razão da matéria, por entender que “(…), a impugnação judicial da decisão de aplicação de uma coima, no âmbito de um procedimento contra-ordenacional, levado a cabo pelo IMPIC, por violação da alínea b) do artigo 456.º do Código dos Contratos Públicos, ao abrigo da competência que lhe é conferida no artigo 461.º do CPC, - embora seja de considerar de iure condendo, que tal matéria pertença à parcela de justiça que cabe à jurisdição administrativa, face à natureza material sobre a qual versa, no caso, contratação pública, questão esta que não cumpre aqui desenvolver – de jure condito assim não é, por mera opção do legislador.
(…)
Assim sendo, e reportando-nos ao caso sub judice, é manifesto que não se está perante uma decisão administrativa por contra-ordenação nos domínios do direito do urbanismo, designadamente sobre o ordenamento do território, previsto na Lei nº 50/2006 e/ou contra-ordenação por violação de normas constantes do Regime Jurídico da Urbanização e Edificação.
Trata-se, isso sim, de uma contra-ordenação em matéria de contratação pública, prevista e punida expressamente pela alínea b), do 456.º do Código dos Contratos Públicos.
E apesar de o presente conflito envolver ou, pelo menos, ter por base uma relação jurídido-administrativa de contratação pública, está excluída do âmbito da competência dos Tribunais Administrativos por força do citado art. 4º, alínea l), do ETAF, assim sendo por vontade do legislador.
Por conseguinte, resulta claro que os Tribunais Administrativos e Fiscais não possuem competência material para o conhecimento das impugnações de decisões proferidas pela Administração na aplicação de coimas por ilícitos de mera ordenação social que incidam, tão só, sobre a matéria reportada nos autos.

Vejamos.
Dispõe o art. 4º, nº 1, alínea l) do ETAF, na redacção introduzida pelo DL nº 114 /2019, de 12/09, que:
1 - Compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham por objeto questões relativas a:
(…)
l) Impugnações judiciais de decisões da Administração Pública que apliquem coimas no âmbito do ilícito de mera ordenação social por violação de normas de direito administrativo em matéria de urbanismo (…);
Nos termos deste normativo o legislador previu, pois, a competência dos tribunais administrativos para o conhecimento das impugnações judiciais, no âmbito de ilícitos de mera ordenação social, mas restringido à violação de normas de direito administrativo em matéria de urbanismo.
Como se expendeu no Ac. deste Tribunal dos Conflitos de 27.09.2018, Proc. 023/18, no qual estava em causa um concurso de infracções relativo à violação de normas em matéria urbanística com violação de normas de outros domínios que não o urbanístico, quanto à opção legislativa relativa àquela alínea l) do nº 1 do art. 4º do ETAF:
«Daí que a opção tenha passado, nos termos da alínea l) do n.º 1 do art. 04.º do ETAF, pela atribuição da competência aos tribunais administrativos apenas das impugnações contenciosas de decisões que hajam aplicado coimas fundadas na violação de normas de Direito Administrativo em matéria de urbanismo [aqui entendido num âmbito que não abarca as regras relativas à ocupação, uso e transformação do solo (planos/instrumentos de gestão territorial), nem as regras relativas ao direito e política de solos, mas que inclui, mormente, as regras respeitantes à disciplina do direito administrativo da construção e à dos instrumentos de execução dos planos (v.g., reparcelamento, licenciamento e autorização de operações de loteamento urbano e de obras de urbanização e edificação)], ficando excluídas, salvo expressa disposição em contrário, todas as impugnações contenciosas relativas aos demais domínios/matérias tipificados em sede de ilícito de mera ordenação social e, assim, por este abrangidos.»
Por sua vez, no Ac. deste Tribunal dos Conflitos de 03.11.2020, Proc. nº 047/19 (no qual estava em causa uma contra-ordenação ambiental), expendeu-se o seguinte: “(…) o legislador previa, pois, a competência dos tribunais administrativos para o conhecimento das impugnações judiciais, no âmbito de ilícitos de mera ordenação social, mas restringido à violação de normas de direito administrativo em matéria de urbanismo, como aliás é timbre da jurisprudência do Tribunal dos Conflitos”. Ou seja, tratando-se, no caso concreto, de norma constitutiva da contra-ordenação que não se integra no conceito de matéria urbanística, antes constituindo uma contra-ordenação ambiental, cuja impugnação foi apresentada no Tribunal Judicial, está excluída do âmbito da citada alínea l) do nº 1 do art. 4º do ETAF.
Com efeito, o direito do urbanismo é constituído pelo conjunto de normas e institutos públicos que, no quadro das directivas e orientações definidas pelo ordenamento do território, se destinam a promover o desenvolvimento e a conservação cultural da urbe (cfr. neste sentido o Ac. deste Tribunal de 21.03.2019, Proc. nº 037/18).
Ora, a mesma ordem de razões se verifica no caso presente, no qual está em causa uma contra-ordenação em matéria de contratação pública, prevista e punida expressamente pela alínea b) do 456º do CCP.
O que significa que esta contra-ordenação não se integra no conceito respeitante a urbanismo, mas sim, de contra-ordenação respeitante à violação de regras da contratação pública, sendo que, neste caso, não existe expressa disposição em contrário, pelo que a impugnação deste ilícito de mera ordenação social está excluída da previsão do art. 4º, nº 1, al. l) do ETAF, cabendo, portanto, a sua apreciação à jurisdição comum (cfr., o Ac. deste Tribunal dos Conflitos de 19.06.2019, Proc. 010/19).

Pelo exposto, acordam em julgar que a competência para a referida impugnação judicial cabe aos tribunais da jurisdição comum, concretamente ao Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste – Juízo Local Criminal de Sintra, Juiz 4.
Sem custas.

Lisboa, 1 de Junho de 2022. – Teresa Maria Sena Ferreira de Sousa (relatora) – Maria dos Prazeres Couceiro Pizarro Beleza.