Acórdãos T CONFLITOS

Acórdão do Tribunal dos Conflitos
Processo:049/14
Data do Acordão:03/12/2015
Tribunal:CONFLITOS
Relator:MOREIRA ALVES
Descritores:CONFLITO DE JURISDIÇÃO.
RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL.
CONCESSIONÁRIO.
Sumário:Uma acção onde se pede a condenação da concessionária de uma autoestrada no pagamento de uma determinada quantia a titulo indemnizatório, na sequência de um acidente de viação nela ocorrido em 21/07/2011 e, segundo o Autor, provocado pela Ré, concessionária, por esta não ter tomado as providências necessárias ao nivel da segurança rodoviária, assegurando que na faixa de rodagem não existissem objectos susceptíveis de colocar em perigo os utentes da via (objecto metálico), enquadra-se no âmbito de aplicação da previsão do art. 1º nº5 da Lei nº 67/2007, de 31/12, o que determina a competência dos tribunais administrativos em razão da matéria para julgar o litigio nos termos do art. 4º al. i) do ETAF. (*)
Nº Convencional:JSTA00069118
Nº do Documento:SAC20150312049
Data de Entrada:10/03/2014
Recorrente:A............, NO CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO, ENTRE O 1º JUÍZO DE PEQUENA INSTÂNCIA CÍVEL DE LISBOA E O TRIBUNAL ADMINSTRATIVO DE CÍRCULO DE LISBOA - UNIDADE ORGÂNICA 1.
Recorrido 1:*
Votação:UNANIMIDADE
Meio Processual:CONFLITO JURISDIÇÃO
Objecto:NEGATIVO JURISDIÇÃO TAC LISBOA - 1 JUIZO INST CIVEL LISBOA
Decisão:DECL COMPETENTE TAC LISBOA
Área Temática 1:DIR ADM CONT - CONFLITO.
Legislação Nacional:CONST76 ART212 N3 ART211 N1.
ETAF02 ART1 N1 ART4 N1 I.
L 67/2007 DE 2007/12/31 ART1 N5.
DL 242/2006 DE 2006/12/28.
L 24/07 DE 2007/07/18 ART12 N1.
Jurisprudência Nacional:AC TCF PROC028/13 DE 2013/12/18.; AC TCF PROC048/13 DE 2014/02/27.; AC TCF PROC017/13 DE 2013/05/30.; AC TCF PROC046/13 DE 2014/03/27.; AC TCF PROC025/09 DE 2010/01/20.
Referência a Doutrina:JORGE MIRANDA E RUI MDEIROS - CONSTITUIÇÃO ANOTADA III PAG.143.
GOMES CANOTILHO E VITAL MOREIRA - CRP ANOTADA II 4ED 2010 PAG566-567.
MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA - A COMPETENCIA DECLARATIVA DOS TRIBUNAIS COMUNS 1994 PAG76.
JONATAS MACHADO - BREVES CONSIDERAÇÕES EM TORNO DO ÂMBITO DA JUSTIÇA ADMINISTRATIVA IN A REFORMA DA JUSTIÇA ADMINISTRATIVA 2005 PAG80-93.
CARLOS CADILHA - REGIME DA RESPONSABILIDADE CIVIL EXTRACONTRATUAL DO ESTADO E DEMAIS ENTIDADES PÚBLICAS 2011 PAG49.
Aditamento:
Texto Integral: CONFLITO N.° 49/14
TRIBUNAL ADMINISTRATIVO DE CÍRCULO DE LISBOA – UNIDADE ORGÂNICA 1
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1° JUÍZO DE PEQUENA INSTÂNCIA CÍVEL DE LISBOA

Relatório
A…………, intentou contra B…………, S.A., e C…………, S.A., todas com os sinais nos autos, acção administrativa comum, sob a forma sumaríssima, peticionando a condenação da 1.ª ré, a título principal, e a da 2.ª ré, a título subsidiário – no caso de se provar que era esta que tinha a seu cargo a concessão do IP 7, no local onde ocorreu o acidente –, a pagar(em) à autora a quantia de € 937,31, pela reparação do seu veículo automóvel, acrescida de juros à taxa legal a contar da citação.
Para fundamentar a sua pretensão, invoca, em síntese, que foi vítima de um acidente de viação, ocorrido em 21-07-2011, no IP 7, concessionado à 1.ª ré (ou 2.ª), e que se traduziu no embate do seu veículo automóvel contra um objecto metálico (não identificado) que se encontrava na faixa de rodagem, por onde o veículo circulava, e que provocou a danificação, respectivamente, do pneu esquerdo e da parte inferior.
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O Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa (TAC de Lisboa) declarou-se materialmente incompetente para conhecer do objecto do litígio, absolvendo as rés da instância – cf. fls. 6 a 14 –, tendo a decisão transitado em julgado, o mesmo tendo ocorrido no âmbito do Proc. n.º 261/14.8THLSB, do 1.º Juízo de Pequena Instância Cível de Lisboa, que, igualmente, declarou verificada a excepção dilatória de incompetência absoluta do tribunal comum, por violação das regras da competência material - cf. fls. 15 a 20.
A autora veio requerer a resolução do conflito negativo de jurisdição, tendo junto, além do mais, certidão daquelas decisões, competindo ao Tribunal dos Conflitos dirimi-lo – cf., entre outros, arts. 209.º, n.º 3, da Constituição da República Portuguesa (CRP) (Anotam Gomes Canotilho e Vital Moreira: “Quando o conflito se dê entre tribunais de categorias diversas, então a solução mais razoável consistirá em constituir ad hoc um tribunal de conflitos, formado entre os dois tribunais superiores da respectiva categoria” – cf. Constituição da República Portuguesa Anotada, Volume II, 4.ª edição, 2010, p. 533.
O Tribunal dos Conflitos foi instituído pelo Decreto n.º 19 243, de 16-01-1931, com a competência para dirimir conflitos positivos ou negativos de jurisdição e de competência entre as autoridades administrativas e judiciais – art. 59.º (vide, arts. 59.º a 108.º) –, diploma subsequentemente alterado pelo Decreto n.º 19 438, de 11-03-1931 (que alterou os arts. 86.º e 87.º), e pelo DL n.º 23 185, de 30-10-1933, que procedeu à extinção do Supremo Conselho da Administração Pública e criação do Supremo Tribunal Administrativo, passando o Tribunal dos Conflitos a ser integrado por 6 Juízes Conselheiros, sendo 3 do STA e 3 do STJ, presidido pelo Presidente do 1.º – cf. art. 17.º.); 42.º, n.º 1, do Código do Procedimento Administrativo; 135.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos; e 110.º, n.ºs 1 e 3, do Novo Código de Processo Civil, aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26-06 (NCPC).
Designados os Senhores Juízes Conselheiros e distribuído o processo – cf. fls. 21 a 24 verso –, a Exma. Sr.ª Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer no sentido de se atribuir a competência material, para a tramitação dos autos, ao TAC de Lisboa – cf. fls. 25 a 27.
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Os Factos
É a seguinte a factualidade significativa, tal como flui da certidão inserta no processo, a atender para a resolução deste conflito de jurisdição:
1. No dia 21-07-2011, pelas 16h15m, no Itinerário Principal (IP 7), km 10,700, Campolide, Lisboa, circulava o veículo ligeiro de marca Audi, matrícula BN…………, propriedade de A………..., conduzido por B………….
2. Sensivelmente ao Km 10,700, o condutor do BN deparou-se com um objecto em ferro/metal, que na altura não conseguiu identificar, e que se encontrava na faixa ou fila de trânsito por onde o veículo circulava, não tendo conseguido evitar embater com o pneu esquerdo e a parte inferior do veículo no dito objecto.
3. Sobre a 1.ª ré, na qualidade de concessionária, recaia o dever de assegurar que a circulação no IP7 se fazia em condições de segurança, designadamente assegurando que na faixa de rodagem não existissem objectos susceptíveis de colocar em perigo os utentes da via, bem como susceptíveis de provocar acidentes.
4. Ao não o fazer, a concessionária responde nos termos da lei geral – art. 493.º, n.º 1, do Código Civil -, por quaisquer prejuízos causados.
5. A autora desconhece, sem obrigação de conhecer, se o local do acidente está concessionado à 1.ª ou à 2.ª ré, razão pela qual demanda as duas rés, por haver dúvidas sobre um dos sujeitos da relação material controvertida.
6. Responsável pela indemnização dos danos sofridos pela autora será aquela das rés que se vier a provar que tinha a seu cargo a concessão do IP7 no local onde ocorreu o acidente, à data dos factos.
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Fundamentação
Confrontamo-nos com um conflito negativo de jurisdição, suscitado entre um tribunal cível e um tribunal administrativo, relativamente a uma acção declarativa onde se peticiona a condenação de uma sociedade de direito privado, concessionária de um Itinerário Principal, numa determinada quantia pecuniária, a título de indemnização por danos materiais decorrentes de um acidente de viação, alegadamente ocorrido no IP 7, em Lisboa, no dia 21-07-2011, relacionado com a presença de um objecto estranho na via de circulação automóvel.
Na decisão do TAC de Lisboa, que se apoiou, em grande medida, no Acórdão do Tribunal dos Conflitos, de 18-12-2013, Proc. n.º 028/13, sustentou-se: “Estamos perante alegados actos ilícitos pelos quais as entidades concessionárias privadas são demandadas, actos esses configuráveis como «actos correntes da sua actividade», ou seja, estamos no âmbito do direito privado”, pelo que “em face do exposto, concluímos ser este Tribunal Administrativo materialmente incompetente para conhecer e decidir o presente processo, atento o disposto nos artigos 1.º, n.º 1, e 4.º, n.º 1, alínea i), a contrario do ETAF, devendo consequentemente, as rés ser absolvidas da instância, nos termos conjugados dos artigos 14.º, n.º 2, e 5.º, n.º 2, ambos do CPTA e dos artigos 65.º, 96.º, alínea a) e 99.º do CPC, aplicáveis ex vi do artigo 1.º do CPTA” (sic).
Diversamente, na decisão do 1.º Juízo de Pequena Instância de Lisboa entendeu-se estar-se perante matéria de natureza jurídico-pública, concluindo-se pela incompetência absoluta do tribunal cível, em razão da matéria, absolvendo-se as rés da instância, nos termos conjugados dos “artigos 493.º, n.ºs 1 e 2, e 288.º, n.º 1, alínea a), ambos do Código de Processo Civil” (sic).
O Ministério Público junto deste Tribunal dos Conflitos emitiu parecer no sentido que o tribunal competente é o Tribunal Administrativo e Fiscal de Lisboa, citando, a título de exemplo, os Acórdãos deste Tribunal com os n.ºs 25/09, de 20-01-2010, 17/13, de 30-05-2013, e 046/13, de 27-03-2014.
Vejamos, então.
A questão não tem merecido resposta unânime por parte deste Tribunal: na verdade, não obstante a maioria da jurisprudência considerar, em situações análogas, que a competência é da jurisdição administrativa - cf., v.g., Acórdãos do Tribunal de Conflitos com os n.ºs 025/09, de 20-01-2010, 046/13, de 27-03-2014, 017/13, de 30-05-2013, e 048/13, de 27-02-2014 (este último com dois votos de vencido) - existe, pelo menos, um Acórdão do Tribunal dos Conflitos, de 18-12-2013 (Proc. n.º 028/13) que considerou, em caso similar, que a situação “não se enquadra juridicamente na previsão do art. 1.°, n.º 5, da Lei n.º 67/2007”, acabando por concluir pela competência dos tribunais comuns.
A delimitação das jurisdições, correspondentes aos tribunais judiciais, por um lado, e aos tribunais administrativos e fiscais, por outro lado, implica a apreciação das respectivas áreas de competência, constituindo um pressuposto processual que deve ser apreciado antes da questão (ou questões) de mérito, aferindo-se pela forma como o autor configura a acção, e definindo-se pelo pedido, pela causa de pedir e pela natureza das partes.
O poder jurisdicional, como se sabe, está repartido por categorias de tribunais, de acordo com as matérias das causas suscitadas perante eles – cf. arts. 209.º e segs. da Constituição da República Portuguesa –, consagrando a existência, a par do Tribunal Constitucional e do Tribunal de Contas, de uma dualidade de jurisdições: a jurisdição comum e a jurisdição administrativa – cf. Jorge Miranda e Rui Medeiros, Constituição Anotada, Tomo III, 2007, p. 143. O art. 212.º, n.º 3, da CRP estabelece: “Compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais”. Por seu turno, de acordo com o art. 211.º, n.º 1, da CRP: “Os tribunais judiciais são os tribunais comuns em matéria cível e criminal e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais”. Consagra-se, na última parte deste preceito constitucional, o princípio da competência genérica ou residual dos tribunais comuns.
Em anotação ao disposto no art. 212.º, n.º 3, da CRP, Gomes Canotilho e Vital Moreira escrevem que “estão em causa apenas os litígios emergentes de relações jurídico-administrativas (ou fiscais) (n.º 3, in fine). Esta qualificação transporta duas dimensões caracterizadoras: (1) as acções e recursos incidem sobre relações jurídicas em que, pelo menos, um dos sujeitos é titular, funcionário ou agente de um órgão de poder público (especialmente da administração); (2) as relações jurídicas controvertidas são reguladas, sob o ponto de vista material, pelo direito administrativo ou fiscal. Em termos negativos, isto significa que não estão aqui em causa litígios de natureza «privada» ou «jurídico-civil». Em termos positivos, um litígio emergente de relações jurídico-administrativas e fiscais será uma controvérsia sobre relações jurídicas disciplinadas por normas de direito administrativo e/ou fiscal (cfr. ETAF, art. 4.º)” – CRP Anotada, Volume II, 4.ª edição, 2010, págs. 566/567. (Decorre do art. 13.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, aprovado pela Lei n.º 15/2002, de 22-02: “O âmbito da jurisdição administrativa e a competência dos tribunais administrativos, em qualquer das suas espécies, é de ordem pública e o seu conhecimento precede o de qualquer outra matéria” – anotam Aroso de Almeida e Fernandes Cadilha, Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos, 3.ª edição, 2010, p. 125: “A atribuição de prioridade absoluta ao conhecimento da questão da competência justifica-se pela consideração de que a única questão para que o tribunal incompetente é competente é para apreciar a sua incompetência. (...) Por outro lado, a competência do tribunal deve ser aferida pelos termos da relação jurídico-processual tal como é apresentada em juízo pelo autor, independentemente da idoneidade do meio processual utilizado”.)
De outra banda, a atribuição de competência ao tribunal de jurisdição comum pressupõe a inexistência de norma específica que atribua essa competência a uma jurisdição especial para resolver determinado litígio, tal como o autor o configura – cf. Miguel Teixeira de Sousa, in A competência declarativa dos tribunais comuns, 1994, pág. 76: “A competência material dos tribunais comuns é aferida por critérios de atribuição positiva e competência residual. Pelo primeiro critério cabem-lhes as causas cujo objecto é uma situação regulada pelo direito privado, civil ou comercial. Pelo segundo, incluem-se na sua competência todas as causas que apesar de não terem por objecto uma situação jurídica fundamentada no direito privado, não são legalmente atribuídas a nenhum tribunal não judicial ou a tribunal especial”.
Pois bem; a existência de várias categorias de tribunais implica um critério de repartição de competência entre eles, de natureza objectiva, de acordo com a natureza das questões, em razão da matéria, podendo, consequentemente, gerar-se conflitos de jurisdição. Especificamente, regista-se um conflito negativo de jurisdição quando duas ou mais autoridades pertencentes a diversas actividades do Estado, ou dois ou mais tribunais, integrados em ordens jurisdicionais diferentes, declinam, em decisões transitadas em julgado, o poder de conhecer da mesma questão - cf. Acórdãos do Tribunal de Conflitos n.ºs 01/13, de 04-06-2013, e 18/13, de 18-12-2013 (ambos do relator e acessíveis, em texto integral, em http://www.dgsi.pt/jcon). Na resolução desse conflito terá de ponderar-se os termos em que foi proposta a acção, seja quanto aos seus elementos objectivos – natureza da providência solicitada ou do direito para a qual se pretende a tutela judiciária, facto ou acto de onde teria resultado esse direito, etc. – seja quanto aos seus elementos subjectivos – identidade das partes – cf. Acórdão do Tribunal dos Conflitos n.º 013/12, de 05-11-2012, e a jurisprudência aí citada. Por isso, a fixação da competência material do tribunal é resolvida face à petição ou requerimento inicial e tomando em conta, por um lado, a pretensão formulada ou a medida jurisdicional requerida, e, por outro, a relação jurídica ou situação factual descrita nessa peça processual.
Há que atender, em especial, ao prescrito no art. 1.º, n.º 1, do ETAF (Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, aprovado pela Lei n.º 13/2002, de 19-02) (Com as alterações introduzidas pelas Declarações de Rectificação n.ºs 14/2002, de 20-03, e 18/2002, de 12-04, pelas Leis n.ºs 4-A/2003, de 19-02, 107-D/2003, de 31-12, 1/2008, de 14-01, 2/2008, de 14-01, 26/2008, de 27-06, 52/2008, de 28-08, 59/2008, de 11-09, pelo DL n.º 166/2009, de 31-07, pela Lei n.º 55-A/2010, de 31-12, e pela Lei n.º 20/2012, de 14-05.) - “Os tribunais da jurisdição administrativa e fiscal são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo, nos litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais” - o que implica dilucidar o que se deve entender por litígios emergentes de relações jurídicas administrativas.
O art. 4.º do ETAF define o âmbito da jurisdição dos tribunais administrativos (e fiscais), adoptando – nas palavras de Jónatas Machado – “um critério misto para a delimitação do âmbito da jurisdição administrativa, mediante o recurso a uma cláusula geral e a uma enumeração especificada, positiva e negativa, o que é, em si mesmo, uma rotura com o sistema adoptado até então, em que uma cláusula geral era acompanhada de um enumeração puramente negativa”. Destarte, “devem ser consideradas relações jurídico-administrativas as relações interpessoais e interadministrativas em que de um dos lados da relação se encontre uma entidade pública, ou uma entidade privada dotada de prerrogativas de autoridade pública, tendo como objecto a prossecução do interesse público, de acordo com as normas de direito administrativo. Assim entendida, a relação jurídica administrativa pode desdobrar-se num complexo acervo de posições jurídicas substantivas e procedimentais, favoráveis e desfavoráveis, activas e passivas”. - Breves Considerações em torno do âmbito da Justiça Administrativa, in “A Reforma da Justiça Administrativa”, 2005, págs. 80 e 93.
O art. 4.º do ETAF discrimina, nas diversas alíneas, qual o objecto dos litígios que compete apreciar pela jurisdição administrativa (e fiscal), clarificando na alínea i) que são da competência dos tribunais administrativos os litígios sobre a “responsabilidade civil extracontratual dos sujeitos privados, aos quais seja aplicável o regime específico da responsabilidade do Estado e demais pessoas colectivas de direito público”.
Tem de se apurar, consequentemente, em que circunstâncias um sujeito de direito privado assume a responsabilidade civil extracontratual própria do regime específico da responsabilidade do Estado e demais pessoas colectivas de direito público.
Ponderando, em concreto, a data dos factos, importa chamar à colação a disciplina vertida no art. 1.º, n.º 5, da Lei n.º 67/2007, de 31-12 - que aprovou o Regime de Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e Demais Entidades Públicas: “As disposições que, na presente lei, regulam a responsabilidade das pessoas colectivas de direito público, bem como dos titulares dos seus órgãos, funcionários e agentes, por danos decorrentes do exercício da função administrativa, são também aplicáveis à responsabilidade civil de pessoas colectivas de direito privado e respectivos trabalhadores, titulares de órgãos sociais, representantes legais ou auxiliares, por acções ou omissões que adoptem no exercício de prerrogativas de poder público ou que sejam regulados por disposições ou princípios de direito administrativo”. (Sobre esta matéria, cf. Vieira de Andrade, A Responsabilidade por danos decorrentes do exercício da função administrativa na nova lei sobre responsabilidade civil do Estado e demais entes públicos, “Revista de Legislação e Jurisprudência”, Ano 137, n.º 3951, 2008, págs. 360-371.)
“Tal como de resto sucede em relação a órgãos e serviços que integram a Administração Pública – adverte Carlos Alberto Cadilha –, o regime da responsabilidade administrativa é apenas aplicado no que se refere às acções ou omissões em que essas entidades tenham intervindo investidas de poderes de autoridade ou segundo um regime de direito administrativo, ficando excluídos os actos de gestão privada e, assim, todas as situações em que tenham agido no âmbito do seu estrito estatuto de pessoas colectivas privadas” – Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e Demais Entidades Públicas, 2011, pág. 49.
Por isso, à luz deste segmento normativo, constituem factores determinativos do conceito de actividade administrativa, em primeiro lugar, o exercício de prerrogativas de poder público, o que equivale ao desempenho de tarefas públicas para cuja realização sejam outorgados poderes de autoridade, ou, em segundo lugar, respeitar a actividades que sejam reguladas por disposições ou princípios de direito administrativo – neste sentido, cf. Acórdão do Tribunal dos Conflitos n.º 017/13, de 30-05-2013.
Miguel Assis Raimundo opina no sentido de “o critério da gestão pública ou privada parece manter-se, no essencial, pelo menos para efeitos de determinação do regime jurídico (e, limitadamente, da jurisdição competente) da responsabilidade civil dos sujeitos privados que exercem funções administrativas” - A Efectivação da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e Demais Pessoas Públicas, “Estudos em Homenagem ao Prof. Dr. Paulo de Pitta e Cunha”, Vol. III, 2010, pág. 592.
“Deve entender-se por gestão pública a actividade da Administração regulada pelo Direito Público e por gestão privada a actividade da Administração que decorra sob a égide do Direito Privado”, esclarecendo ainda Marcelo Caetano que “pode dizer-se que reveste a natureza de gestão pública toda a actividade da Administração que seja regulada por uma lei que confira poderes de autoridade para prosseguimento do interesse público, discipline o seu exercício ou organize os meios necessários para o efeito” – Manual de Direito Administrativo, II, 10.ª edição, 1994, pág. 1222.
In casu, recorda-se que o sinistro rodoviário, que constitui a causa de pedir – pretensamente verificado no Itinerário Principal 7 (IP 7), ao Km 10,700 (Lisboa) –, ocorreu num local que foi objecto de um contrato de concessão de obra pública e que, na óptica da autora, foi provocado por ter havido omissão dos deveres de segurança que incumbiam à concessionária, decorrentes do respectivo contrato de concessão. (Conforme explica João Caupers, a concessão de obra pública é uma espécie do género contrato de concessão, a que pertencem outras espécies de concessões, nomeadamente, as concessões de serviços públicos, as concessões de uso privativo ou de exploração do domínio público e as concessões de jogos de fortuna e azar - cf. Empreitadas e concessões de obras públicas: fuga para o direito comunitário, “Direito e Justiça”, número especial, 2005, pág. 91)
Especificamente, o DL n.º 242/2006, de 28-12, veio proceder à aprovação das bases de concessão da concepção, projecto, construção, aumento do número de vias, financiamento, manutenção e exploração dos lanços de auto-estrada e conjuntos viários associados, designada por Grande Lisboa (art. 1.º), abrangendo no seu objecto o lanço designado “IP 7 – eixo rodoviário norte-sul” – Base II, n.º 1, alínea f) –, tendo sido subsequentemente alterado pelo DL n.º 44-F/2010, de 05.05. (Por sua vez, a Resolução do Conselho de Ministros n.º 39-F/2010 (publicada no Diário da República, 1.ª Série, de 04-06-2010), veio, nos termos do art. 4.º do DL n.º 44-F/2010, aprovar a minuta do contrato de alteração ao contrato de concessão da concepção, projecto, construção, aumento do número de vias, financiamento, manutenção e exploração dos lanços de auto-estrada e conjuntos viários associados, designada por Grande Lisboa.)
Nos termos desses diplomas, importa frisar, além do mais:
(i) “A Concessionária deve desempenhar as actividades concessionadas de acordo com as exigências de um regular, contínuo e eficiente funcionamento do serviço público e adoptar, para o efeito, os melhores padrões de qualidade disponíveis em cada momento (...)” - n.º 1 da Base III;
(ii) “A Concessionária garante ao Concedente a qualidade da concepção, do projecto e da execução das obras de construção e conservação dos Lanços, responsabilizando-se pela sua durabilidade, em permanentes e plenas condições de funcionamento e operacionalidade, ao longo de todo o período da concessão” e “(...) responderá, perante a Concedente e perante terceiros, nos termos gerais da lei (...)” – n.ºs 1 e 2, da Base XXXVIII;
(iii) “A Concessionária obriga-se a manter, durante a vigência do Contrato de Concessão, e a expensas suas, a Auto-Estrada e os demais bens que constituem o objecto da Concessão em funcionamento ininterrupto e permanente, em bom estado de conservação e perfeitas condições de utilização e segurança (...)” – n.º 1 da Base XLIV;
(iv) “A Concessionária obriga-se a assegurar permanentemente, em boas condições de segurança e comodidade para os utentes, a circulação ininterrupta na Auto-Estrada, salvo a ocorrência de caso de força maior, devidamente comprovado, que a impeça de cumprir tal obrigação, e sem prejuízo do disposto na Lei n.º 24/2007, de 18 de Julho, e respectiva regulamentação.” – n.º 2, da Base LII;
(v) “A concessionária responderá, nos termos da lei geral, por quaisquer prejuízos causados a terceiros no exercício das actividades que constituem o objecto da concessão, por culpa ou pelo risco, não sendo assumido pelo concedente qualquer tipo de responsabilidade neste âmbito” – Base LXXIII.
Evidentemente, que sendo a ré (1ª/2ª ré?) concessionária do IP 7, ela está vinculada a certos deveres, decorrentes do contrato de concessão outorgado com o Estado, designadamente os acima discriminados, de que aproveitam todos os utentes.
“O contrato de concessão de obras públicas - de acordo com Armando Triunfante – é normalmente definido como um contrato administrativo, pelo qual alguém se encarrega de executar e explorar uma obra pública, cobrando aos utentes as taxas que forem devidas [excepção feita, v.g., às concessões sobre lanços de auto-estradas, em regime de portagem sem cobrança aos utilizadores]. Este contrato apresenta então três fases distintas: o concessionário executa a respectiva obra; coordena a sua gestão durante o prazo convencionado; findo o qual deve devolver à Administração a obra bem como todos os bens que permitam a sua exploração”.
Por isso, aduz: “[O]s concessionários de obras públicas são, de facto, entidades privadas, e que mantêm a seu cargo a prossecução de interesses públicos, transferidos pela Administração Pública, com a qual têm o dever de cooperar, ficando sujeitos, em parte, a um regime especial de Direito Administrativo. Serão então sociedades de interesse colectivo, e que se inserem na categoria mais ampla das instituições particulares de interesse público” – Responsabilidade Civil das concessionárias das auto-estradas, “Direito e Justiça”, Vol. XV, Tomo I, 2001, págs. 48/49.
Nas palavras de Carneiro da Frada, “o Estado considerou suficiente, para acautelar os interesses dos utentes, a vinculação da concessionária, perante ele mesmo, a certo número de deveres”, acrescentando que, “estando os deveres das concessionárias (ordinariamente) especificados por lei, não é difícil descortinar nessa consagração legal a presença de disposições de protecção, elaboradas, entre outros motivos, por razões que são do interesse dos utentes. O facto de existir um contrato de concessão que incorpora esses deveres não afasta a sua natureza (também) legal, porque proveniente de um acto normativo de natureza legislativa e por força dele (sempre) aplicável”.
Por fim, como clarifica esse mesmo autor, “tais deveres (de fonte legal) são direito especial relativamente aos preceitos do direito comum” – Sobre a responsabilidade das concessionárias por acidentes ocorridos em auto-estradas, “Revista da Ordem dos Advogados”, Ano 65, Vol. II, 2005.
Aquelas normas, reguladoras da concessão e indicadoras dos correspectivos deveres, atestam, sem margem para dúvidas, a natureza pública das actividades desenvolvidas pela concessionária.
“Compete, pois, à concessionária – como refere Rui Ataíde – comprovar que cumpriu os deveres no tráfego ajustados aos riscos que lhe cabe gerir: inspecções periódicas da rede de vedação, seguidas das imediatas reparações que se apresentem necessárias, patrulhamentos permanentes de vigilância e rápida remoção de qualquer obstáculo à circulação, controlo de nós de acesso e entrada na auto-estrada, etc.” – Acidentes em Auto-Estradas: Natureza e Regime Jurídico da Responsabilidade dos Concessionários, “Estudos em Homenagem ao Prof. Dr. Carlos Ferreira de Almeida”, Volume II, 2011, pág. 177 (No entender deste autor: “A concessão institui uma relação contratual duradoura de cumprimento devidamente escalonado no tempo, permitindo à concessionária definir antecipadamente o modo de execução dos encargos que assumiu” - op. cit., pág. 182).
Acresce que a Lei n.º 24/07, de 18-07 – após longa discussão jurisprudencial e doutrinal sobre a matéria –, veio definir os direitos dos utentes nas vias rodoviárias classificadas como auto-estradas concessionadas, itinerários principais e itinerários complementares, fazendo recair sobre o concessionário, em caso de acidente rodoviário, de que resultem danos, o ónus da prova do cumprimento das obrigações de segurança quando os sinistros sejam causalmente imputados: a objectos arremessados para a via ou existentes na faixa de rodagem (alínea a)), atravessamento de animais (alínea b)) e líquidos na via, quando não resultantes de condições climatéricas anormais (alínea c)) – cf. art. 12.º, n.º 1 –, instituindo um regime especial, que altera o regime geral do ónus da prova que vem estabelecido no art. 342.º, n.º 1, do Código Civil, o que parece atestar, outrossim por esta via, a natureza pública que o legislador pretendeu estabelecer para as actividades executadas pelas concessionárias das auto-estradas e itinerários principais.
De todo o exposto alcança-se, com evidência e clareza, que as entidades privadas concessionárias, que são chamadas a colaborar com a Administração Pública/Estado na concepção, projecto, construção, aumento do número de vias, financiamento, manutenção e exploração dos lanços de auto-estrada e conjuntos viários associados, fazem-no na execução de tarefas administrativas, mediante a prévia celebração de um contrato administrativo e têm a sua actividade regulada e submetida a disposições e princípios de direito administrativo.
Assim se compreenderá, aliás, que o aludido art. 12.º, n.º 1, da Lei n.º 24/2007, tenha investido as concessionárias no ónus de provar o cumprimento das suas obrigações de segurança, sempre que os acidentes digam respeito a alguma das situações ali contempladas.
E não se diga, em sentido contrário, que a referência que é feita na Base LXXIII do contrato de concessão à “lei geral” afasta a possibilidade de qualificação da actividade da concessionária como estando “regulada por disposições ou princípios de direito administrativo” (cf. art. 1.º, n.º 5, da Lei n.º 67/2007), significando apenas que a responsabilidade pelos prejuízos resultantes de responsabilidade civil extracontratual não está regulada por normas inscritas no contrato de concessão, mas pelas normas gerais que regulam tal matéria, sem contudo se tomar posição sobre a sua natureza, administrativa ou comum.
Como se decidiu no Acórdão do Tribunal dos Conflitos n.º 048/13, de 27-02-2014, “estamos perante serviços de vigilância e de segurança rodoviária (...) de natureza essencialmente pública e que à partida são próprios e se enquadram nas funções do Estado e são no seu interesse”.
Assim, a outorga desses serviços públicos, a uma entidade privada, através do contrato de concessão, não significa que as respectivas actividades percam a sua natureza público-administrativa e que, por essa circunstância, se transmutem em meros actos privados, submetidos e regulados pelo direito privado, apenas exprimindo que o Estado, através do aludido contrato de concessão, endossou para a concessionária tarefas que, em princípio, deviam estar a seu cargo.
Afastamo-nos, portanto, da jurisprudência expressa no Acórdão n.º 028/13, de 18-12-2013, e acolhemos, sem reservas, a jurisprudência constante dos Acórdãos do Tribunal de Conflitos com os n.ºs 025/09, de 20-01-2010, 046/13, de 27-03-2014, 017/13, de 30-05-2013, e 048/13, de 27-02-2014.
Em síntese, a eventual responsabilização da(s) ré(s), como concessionária do IP onde ocorreu o acidente, insere-se no âmbito de aplicação do art. 1.º n.º 5, da Lei 67/2007, de 31-12, razão pela qual os tribunais administrativos são os competentes para conhecer da causa, conforme preceitua o art. 4.º n.º 1, al i), do ETAF.

Decisão
Termos em que acordam os juízes do Tribunal dos Conflitos em resolver este conflito negativo de jurisdição, decidindo que a mesma cabe aos tribunais administrativos e fiscais e atribuindo ao Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa, a competência material para os ulteriores termos da acção.
Sem custas, ex vi do art. 96.º do Decreto n.º 19 243, de 16-01-1931.

Lisboa, 12 de Março de 2015. – António Manuel Machado Moreira Alves (relator) – Alberto Acácio de Sá Costa ReisJorge Artur Madeira dos SantosNuno Pedro de Melo e Vasconcelos CameiraAntónio Bento São PedroAntónio Alberto Moreira Alves Velho.